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Bolsonarismo e as eleições de 2022

RESUMO

O artigo analisa os componentes ideológicos baseados em preferências sobre temas políticos do eleitor que apoia Jair Bolsonaro. O bolsonarismo é um alinhamento eleitoral de direita no Brasil, fortemente associado a dimensões de uma agenda conservadora, incluindo uma visão de mão dura no combate ao crime, uma forte reação culturalista a propostas progressistas de gênero, liberalismo econômico, contrário a políticas de inclusão social baseadas em cotas. Mais recentemente, o bolsonarismo incorporou o negacionismo frente à pandemia de Covid-19, adesão a teorias conspiratórias e opção por alternativas antidemocráticas. Testamos esse alinhamento usando dados da série de pesquisas de opinião pública a Cara da Democracia, para os anos de 2018 a 2022.

PALAVRAS-CHAVE:
Eleições; Bolsonarismo; Temas políticos; Ideologia; Conservadorismo

ABSTRACT

The article analyzes the ideological components, based on preferences of political issues, of the voter who supports Jair Bolsonaro. Bolsonarism is a right-wing electoral alignment in Brazil, strongly associated with dimensions of a conservative agenda, including a tough-minded vision in the fight against crime, strong culturalist reaction to progressive gender politics, economic liberalism, rejection of social inclusion policies based on quotas and reticence regarding cash transfer policies. More recently, Bolsonarism incorporated denialism in the face of the Covid-19 pandemic, adherence to conspiracy theories and an option for anti-democratic alternatives. We tested this alignment using data from the Cara da Democracia series of public opinion surveys for the years 2018 to 2022.

KEYWORDS:
Elections; Bolsonarism; Political issues; Ideology; Conservatism

Introdução

O bolsonarismo é um alinhamento ideológico de direita no Brasil, basea- do nos posicionamentos políticos de seu líder, Jair Bolsonaro, e altamente consistente com sua base central (core), que constitui aproximadamente 20% da população brasileira. Por meio de sua retórica crítica à esquerda e embasado em um projeto conservador, voltado para a defesa de princípios tradicionais, como família, pátria e propriedade, Bolsonaro atraiu o apoio de um conjunto de eleitores que compartilham seus ideais e ideias e que estavam profundamente insatisfeitos com os partidos que governaram o país nas últimas décadas, especialmente o Partido dos Trabalhadores (PT).

Nesse sentido, Bolsonaro não é um produto de publicidade (marketing), como outro líder semelhante o foi no passado - Collor de Melo -, mas um galvanizador e legitimador de posições sobre temas políticos (political issues). O bolsonarismo é marcado por: reações culturais contrárias a avanços sociais progressistas em matérias relativas a direitos de gênero e LGBTQIA+; a defesa de políticas duras de combate ao crime e à corrupção; crítico a políticas sociais de reversão de desigualdades baseadas em ação afirmativa. Além disso, Bolsonaro promove uma clara junção dessas propostas a outras associadas à direita no Brasil e na América Latina, como a redução da presença do Estado na economia, sintetizadas na defesa das privatizações, e a ideia de que indivíduos são responsáveis por seu sucesso pessoal (Luna; Rovira-Kaltwasser, 2014LUNA, J. P.; ROVIRA-KALTWASSER, C. The right in contemporary Latin America: a framework for analysis. In: The resilience of the Latin American right. S.l.: s.n., 2014. p.1-22.).

Bolsonaro manteve suas posições consistente e coerentemente ao longo de sua trajetória política: ele se tornou porta-voz e líder de um movimento de retomada da defesa de posições conservadoras de direita que vários intelectuais encamparam e defenderam - Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, Diego Mainardi, Reinaldo Azevedo - e com o qual parcela significativa da população se identifica. Trata-se de um movimento, de um processo de construção coletiva, com lideranças específicas e que defende um projeto político para o Brasil. Não é exclusivamente uma reação de ressentimento ou raiva, baseada em sentimentos, embora o elemento de rejeição da classe política seja importante, mas também de posicionamentos sobre temas políticos, políticas públicas e de reformas institucionais. O que parece desgoverno, são ações concretas de disrupção institucional em áreas específicas visando desfazer o que governos anteriores avançaram (Lawrence et al., 2009LAWRENCE, T. et al. Theorizing and studying institutional work. Introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.).

Apresentaremos aqui evidências da consolidação do bolsonarismo baseadas em levantamentos de opinião pública. Os dados apontam para uma consistente adesão de parcela da população, tanto em sua manifestação de apoio a Bolsonaro como da relação desse apoio a posições políticas. O bolsonarismo é um fenômeno multidimensional que congrega diferentes vertentes da direita nacional em um mesmo projeto, com base ideológica. Os dados confirmam também a consistência temporal desse alinhamento.

Feito isso, discutiremos as projeções do que representa o bolsonarismo para as eleições de 2022, considerando seu desgaste como governo, especialmente devido à pandemia de Covid-19 e suas implicações econômicas, e os riscos que marcam o presente processo eleitoral. Cada eleição tem uma cara, uma marca. Em 1994, o Plano Real definiu o processo eleitoral; em 2002, o fracasso do PSDB e o triunfo da agenda de combate à desigualdade e o desemprego; em 2006, o Mensalão, a corrupção e a recuperação do apoio petista representando especialmente pelo Bolsa Família; em 2010, a recompensa pelas políticas econômicas e o sucesso de Lula em fazer a sucessora; em 2014, o início da débacle do PT e a desconstrução de Marina Silva; em 2018, a emergência do bolsonarismo.

As eleições de 2022 são marcadas pelo risco de mais desgastes das instituições democráticas - com profundos e continuados questionamentos da lisura de nosso processo eletrônico de contagem de votos. São eleições com alto potencial de violência e turbulência, com amplas chances de seu resultado ser rejeitado e questionado pelos perdedores e ameaças significativas de erupção de movimentos que questionam a integridade do processo.

O alinhamento bolsonarista

Em primeiro lugar, é importante diferenciar conceitos-chaves para entendermos os movimentos de eleitores ao longo do tempo. A literatura fala em alinhamento e realinhamento eleitoral (Rennó; Cabello, 2010RENNÓ, L.; CABELLO, A. As bases do Lulismo: a volta do personalismo, realinhamento ideológico ou não alinhamento? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.25, p.39-60, 2010.; Rennó; Moreira, 2014). Alinhamento é um processo em que eleitores anteriormente desmobilizados ou independentes passam a se articular em torno de uma nova agenda, em um período continuado e de longo prazo, afetando inúmeros episódios eleitorais. Na discussão sobre volatilidade eleitoral de curto prazo, que acompanha, por exemplo, apenas um período eleitoral, o paralelo claro é com a ativação (activation) de eleitores sem preferência ou intenção de voto definida, os indecisos ou independentes, que passam a votar em um candidato (Finkel, 1993FINKEL, S. E. Reexamining the ‘Minimal Effects’ Model in Recent Presidential Campaigns. The Journal of Politics, v.55, n.1, p.1-2, 1993. https://doi.org/10.2307/2132225.
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; Greene, 2011GREENE, K. Campaign Persuasion and Nascent Partisanship in Mexico’s New Democracy. American Journal of Political Science, v.55, n.2, p.398-416, April 2011.). Ou seja, trata-se de um processo em que pessoas previamente desarticuladas e sem vinculações a grupos políticos passam a constituir uma identidade e aderem a um projeto político na campanha eleitoral - sem necessariamente que isso seja continuado no tempo. Alinhamento e ativação são fenômenos semelhantes, mas com perspectivas temporais distintas. O alinhamento é de mais longo prazo, a ativação usa-se em apenas uma campanha.

Realinhamento, por sua vez, indica um reposicionamento de eleitores ao longo do tempo, saindo de uma afiliação específica e mudando para outra. O exemplo clássico na literatura americana é o realinhamento de democratas para republicanos no sul dos Estados Unidos durante o período do movimento de direitos civis. Democratas conservadores do sul norte-americano migram para o Partido Republicano, contribuindo, dessa forma, para uma maior homogeneização ideológica dentro de cada partido e para maior diferenciação ideológica entre os partidos. O paralelo em um único ciclo eleitoral é o conceito de conversão (conversion), no qual um eleitor que inicialmente declara voto em um candidato muda sua opinião no transcurso da campanha e passa a apoiar outro candidato. É fruto de um processo mais intenso de persuasão política, de convencimento para a mudança, do que o que ocorre com a ativação. No longo prazo, essa é a mesma dinâmica dos realinhamentos: eleitores com uma preferência consolidada mudam e adotam outra preferência.

Para fins da discussão posta, outros movimentos como dealinhamento ou não alinhamento não são relevantes.

Pois bem, o que argumentamos é que o bolsonarismo representa um alinhamento conservador de direita, pois indica algo que não existia antes (Rennó, 2020RENNÓ, L. The Bolsonaro Voter: Issue Positions and Vote Choice in the 2018 Brazilian Presidential Elections. Latin American Politics and Society, v.62, n.4, p.1-23, 2020. doi: https://doi.org/10.1017/lap.2020.13
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). Os eleitores de direita antes apoiavam a força mais próxima a seus interesses que se mostrasse viável no enfrentamento do Partido dos Trabalhadores (PT). Mas sem necessariamente haver uma consistência entre as posições políticas dessas forças e um detalhado perfil ideológico, voltado para posições sobre temas políticos. O bolsonarismo, por sua vez, é composto por dimensões claramente postas e internamente consistentes, às quais parcelas substanciais da população aderem: defesa de soluções duras para o crime; reação culturalista a políticas progressistas de gênero e direitos LGBTIQA+; defesa de políticas econômicas neoliberais; crítica a políticas inclusivas de ação afirmativa. Mais recentemente, esse receituário foi acrescido da defesa aberta de teorias conspiratórias (Gramacho; Turgeon, 2021GRAMACHO, W.; TURGEON, M. When politics collides with public health: Covid 19 vaccine country of origin and vaccination acceptance in Brazil. Science Direct, v.39, n.19, p.2608-2612, 2021. doi.org/10.1016/j.vaccine.2021.03.080
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), negacionismo acerca da pandemia de Covid-19 (Borges; Rennó, 2021BORGES, A.; RENNÓ, L. Brazilian Response to Covid-19: Polarization and Conflict. In: FERNANDEZ, M.; MACHADO, C. (Ed.) Covid-19’s political challenges in Latin América. S.l.: s.n, 2021. p.9-22.; Rennó et al., 2021) e da aberta defesa de soluções autoritárias, antidemocráticas (Avritzer; Rennó 2021AVRITZER, L.; RENNÓ, L. The Pandemic and the Crisis of Democracy in Brazil. Journal of Politics in Latin America, p.1866802X2110223, 5 jul. 2021.).

Isso não significa dizer que o eleitor bolsonarista adota com igual intensidade todas essas posturas. O bolsonarismo não é composto por uma única dimensão latente. O bolsonarismo é um fenômeno multidimensional, que agrega diferentes eleitorados que antes não aderiam de forma orgânica e consistente a um movimento único e que agora o fazem. Por isso um alinhamento, e não um realinhamento. O bolsonarismo uniu públicos que antes estavam dispersos. Novamente, não se trata exclusivamente de uma reação emocional de ressentimento ou um conjunto de eleitores iludidos por fake news. Aparenta ser algo bem mais estruturado.

Nesse sentido, o bolsonarismo remete a outros momentos de alinhamento da direita, embora com intensidade e alcance menores. Já na década de 1960, usando metodologias bastante avançadas de coleta de dados de opinião pública e uma discussão teórica sobre volatilidade eleitoral e alinhamento ideológico, Gláucio Soares (1965SOARES, G. A. D. As bases ideológicas do lacerdismo. Revista Civilização Brasileira, Ano I, n.4, 1965.) estudou o lacerdismo. Em primeiro lugar, cabe destacar o evidente paralelo entre lacerdismo e bolsonarismo expresso por Soares no que tange ao fato de que personalismo não significa a ausência de preferências políticas sobre temas, aproximando uma configuração ideológica específica. O personalismo só existe quando há uma relação entre líder e liderados e uma convergência de visões de mundo entre ambos. Portanto, baseia-se nas características socioeconômicas e culturais de parcelas da população (Soares, 1965, p.55). Há, dessa forma, um caráter relacional do personalismo político: uma reciprocidade entre o que o líder e seus seguidores pensam. No estudo de Soares esses fenômenos são captados por pesquisa de opinião pública com amostra aleatória da população realizada em 1960 na Guanabara e em 1964, em um censo de universitários do ITA.

Soares (1965SOARES, G. A. D. As bases ideológicas do lacerdismo. Revista Civilização Brasileira, Ano I, n.4, 1965., p.61) identifica que o lacerdismo é composto por cidadãos de classes sociais específicas, aqueles com altas ocupações e que em sua autoclassificação em classes se colocam nas castas superiores. Mas, mais importante, Soares defende que o lacerdismo, como o bolsonarismo de nosso tempo, é um fenômeno ideológico. O lacerdismo é anti-intervencionista, seus apoiadores entendem que o Estado não deve intervir na vida econômica, e favorável ao capital estrangeiro. Ou seja, as bases ideológicas do personalismo ficam evidenciadas nesse movimento, que, naquele caso, também contava com uma base partidária vinculada à UDN. Havia consistência entre líder e sua base de apoio.

Pulamos algumas décadas e algo semelhante é apresentado por Pierucci (1987PIERUCCI, A. F. As Bases da Nova Direita. Novos Estudos, v.19, p.26-45, 1987.) em São Paulo nos anos 1980. As bases da nova direita paulista, aquela que é militante de Jânio Quadros em 1985 e Paulo Maluf em 1986, está baseada em:

Seu tique mais evidente é sentirem-se ameaçados pelos outros. Pelos delinquentes e criminosos, pelas crianças abandonadas, pelos migrantes mais recentes, em especial os nordestinos (às vezes, dependendo do bairro, por certos imigrados asiáticos também recentes, como é o caso dos coreanos), pelas mulheres liberadas, pelos homossexuais (particularmente os travestis), pela droga, pela indústria da pornografia, mas também pela permissividade “geral”, pelos jovens, cujo comportamento e estilo de pôr-se não estão suficientemente contidos nas convenções nem são conformes com o seu lugar na hierarquia das idades, pela legião de subproletários e mendigos que, tal como a revolução socialista no imaginário de tempos idos, enfrenta-se a eles em cada esquina da metrópole, e assim vai. Eles têm medo. (Pierucci, 1987PIERUCCI, A. F. As Bases da Nova Direita. Novos Estudos, v.19, p.26-45, 1987., p.26)

Em seu estudo da nova direita paulista, Pierucci encontra uma rejeição forte à política de direitos humanos, algo que é central ao bolsonarismo. Presos e criminosos, na visão desse eleitor com medo e abandonado, não têm direitos humanos. São também religiosos, especialmente na defesa de conceitos tradicionais, das normas convencionais de comportamento, da rejeição à homossexualidade e ao aborto. O preconceito contra o diferente e a xenofobia vêm quase como uma consequência imediata. Portanto, o racismo e o moralismo estão na base ideológica da direita paulista que Pierucci (1987, p.34) investigou. O elemento cultural, que não está posto no debate sobre lacerdismo, emerge veementemente na análise de São Paulo. Nesse sentido, o bolsonarismo é um amálgama do lacerdismo carioca com o malufismo paulista - conjuga elementos antes dispersos no elenco de valores, atitudes e opiniões da direita.

As posturas de direita são novamente captadas por surveys em 1993 e 1995, em estudo de Alves (2000ALVES, M. T. G. Conteúdos Ideológicos da Nova Direita no Município de São Paulo: Análise de Surveys. Opinião Pública, v.6, n.2, 2000.) sobre as bases ideológicas da direita. Mostram uma direita menos igualitária, menos tolerante à orientação sexual de homossexuais, e mais autoritárias do que grupos à esquerda. Completa-se o quadro bolsonarista - um amálgama das diversas direitas brasileiras, potencializado em seu extremismo.

Esse breve caminhar pela direita brasileira recente demonstra que posições ideológicas e sobre temas políticos estão articulados entre elite e massa há algum tempo. Bolsonaro promove um alinhamento de todas essas fontes e feições em um projeto amplo e nacional, antes apenas esporadicamente articulados regionalmente e sempre incompletos em relação à sua cobertura temática. Há convergências esporádicas que são ancoradas em lideranças específicas que dão vazão, legitimam e catalisam a mobilização de posições conservadoras, tradicionalistas, típicas de direitas mais radicalizadas pelo mundo. Bolsonaro é o líder conservador da vez no Brasil, mas, possivelmente, com um apoio superior ao de seus antecessores e com uma agenda política que abrange um conjunto maior de valores, indo do liberalismo clássico lacerdista, passando pelo medo e intolerância da base de apoio malufista, até incorporar o negacionismo e as teorias conspiratórias obscurantistas dos dias atuais.

A eleição de Bolsonaro tem sido articulada às características demográficas, socioeconômicas e regionais de sua base eleitoral (Nicolau, 2020NICOLAU, J. O Brasil Dobrou à Direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.; Amaral, 2019). Há estudos que enfocam aspectos autoritários da base de apoio de Bolsonaro (Chaguri; Amaral, 2021CHAGURI, M.; AMARAL, O. E. The social bases of Bolsonarism: an analysis of authoritarianism as politics. Latin American Perspectives, 2021.; Avritzer; Rennó 2021RENNÓ, L.; AVRITZER, L.; CARVALHO, P. D. D. Entrenching right-wing populism under covid-19: denialism, social mobility, and government evaluation in Brazil. Revista Brasileira de Ciência Política, n.36, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.36.247120>
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) e da sua articulação com teorias da conspiração e seu negacionismo frente à pandemia (Gramacho; Turgeon 2021GRAMACHO, W.; TURGEON, M. When politics collides with public health: Covid 19 vaccine country of origin and vaccination acceptance in Brazil. Science Direct, v.39, n.19, p.2608-2612, 2021. doi.org/10.1016/j.vaccine.2021.03.080
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; Rennó et al., 2021). Há também toda uma série de estudos sobre os movimentos populares de direita, surgidos a partir de 2013, e suas lideranças (Ortellado; Solano, 2016ORTELLADO, P.; SOLANO, E. Nova direita nas ruas? Uma análise do descompasso entre manifestantes e os convocantes dos protestos antigoverno de 2015. Perseu: História, Memória e Política, v.11, 2016.; Pinheiro-Machado, 2019; Rocha, 2018ROCHA, C. Menos Marx, mais Mises: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.; Solano et al., 2017; Tatagiba, 2018TATAGIBA, L. Entre as ruas e as instituições: os protestos e o impeachment de Dilma Rousseff. Lusotopie, v.17, n.1, p.112-35, 2018.; Messenberg, 2017MESSENBERG, D. A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de opinião dos manifestantes de direita brasileiros. Sociedade e Estado, v.32, n.3, 2017.). Mas há bem menos referente às preferências ideológicas desse eleitorado baseadas em temas políticos (Rennó, 2020). Aqui damos sequência à exploração iniciada por Rennó para avaliar no tempo a variação das preferências do eleitorado brasileiro a posições políticas e suas ligações com o apoio a Bolsonaro, sinalizando a consolidação de um movimento nacional consistente no tempo.

Dessa forma, Bolsonaro é um líder que tem apelo populista (Ringe; Rennó 2022RINGE, N.; RENNÓ, L. (Ed.) Populists and the Pandemic: How Populists Around the World Responded to Covid-19. London: Routledge, 2022.; Bertholini, 2022BERTHOLINI, F. Brazil: we are all going to die one day. In: RINGE, R. N.; RENNO, L. (Ed.) Populists and the pandemic. How Populists Around the World Responded to Covid-19 (e-book). 2022; Rennó et al., 2021; Borges; Rennó, 2021BORGES, A.; RENNÓ, L. Brazilian Response to Covid-19: Polarization and Conflict. In: FERNANDEZ, M.; MACHADO, C. (Ed.) Covid-19’s political challenges in Latin América. S.l.: s.n, 2021. p.9-22.), mas com issues (com a defesa de uma agenda de temas políticos). Como veremos adiante, há forte correlação entre o bolsonarismo e a ampla adesão da população brasileira a posições conservadoras e de direita acerca de temas políticos. Não entramos aqui no mérito conceitual de se é uma posição conservadora ou reacionário, mas sim do conteúdo dessas preferências com base em temas políticos e associando as posições de massa com a do líder, Jair Bolsonaro.

Dados e análise

Os dados abaixo são da série de surveys do INCT Instituto da Democracia, uma parceria entre UFMG, UnB, Unicamp e UnB,1 1 Disponível em: <https://www.institutodademocracia.org/>. intitulado A Cara da Democracia.2 2 Para dados, questionários, notas técnicas metodológicas, consultar: <https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia>.

Nossa discussão empírica se inicia com uma apresentação do posicionamento da população brasileira acerca de temas políticos, mostrando a predominância de preferências ideológicas conservadoras e de direta em vários casos. Exploramos também a adesão a posições autoritárias e críticas à democracia. Na sequência, apresentamos resultados de análises multivariadas do apoio a Bolsonaro com base nas posições sobre temas, demonstrando que o bolsonarismo, um fenômeno que abarca um quinto do eleitorado brasileiro, o equivalente à população da Espanha, tem sólidas e consistentes bases ideológicas. Não é um fenômeno exclusivamente definido pelo antipetismo (Samuels; Zucco, 2018SAMUELS, D.; ZUCCO, C. Partisans, Antipartisans and Nonpartisans: voting behavior in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.), aqui entendido como um sentimento de ressentimento, rancor e rejeição ao PT e à sua gestão no governo federal. Por último, avançamos para pensar as consequências do bolsonarismo para o pleito de 2022.

Em primeiro lugar, é importante reconhecer o espaço e a importância de preferências políticas conservadoras no Brasil. O apoio a temas e políticas que são típicas de direita, muito próximas do que o bolsonarismo passou a representar no país, tem apoio considerável e, em vários casos, majoritário da população, conforme fica claro na Tabela 1.

Fica claro que posições contrárias ao aborto são consensuais no Brasil, assim como a defesa de se rezar nas escolas, a redução da maioridade penal e a militarização das escolas. A população também é majoritariamente contra a legalização das drogas. Temas relacionados à direitos da comunidade LGBTQIA+, como casamento e adoção, dividem a sociedade mais proporcionalmente ao meio, também sendo o caso, com um pouco menos de intensidade, da pena de morte, da proibição da posse de armas e as privatizações. Cotas raciais também dividem a população quase que ao meio. Um terço é favorável à prisão de mulheres que cometem abortos. Temos, portanto, um quadro de adesão significativa da cidadania brasileira a posições políticas conservadoras.

Interessante destacar que temas relativos ao meio ambiente são praticamente de valência - não há oposição. O valor mais elevado é de apoio ao desmatamento de terras indígenas, mas totalizando um quinto da população. Também é majoritário o apoio a políticas de transferência de renda, apontando para dois temas que são mais claramente progressistas e de esquerda. Portanto, há uma certa ambiguidade entre o apoio a essas duas grandes áreas concomitante a outras esferas onde prevalecem posições mais conservadoras.

Por último, cabe destacar a estabilidade das preferências ideológicas na população. Rennó (2020RENNÓ, L. The Bolsonaro Voter: Issue Positions and Vote Choice in the 2018 Brazilian Presidential Elections. Latin American Politics and Society, v.62, n.4, p.1-23, 2020. doi: https://doi.org/10.1017/lap.2020.13
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) já havia apontado para a estabilidade das posições políticas dos eleitores medidas a nível individual no ciclo eleitoral de 2018, usando dados do Estudo de Painel Eleitoral Brasileiro embutido no projeto A Cara da Democracia. Essa estabilidade se confirma em valores agregados na Tabela 1 para a maioria das variáveis. Cabe apontar para um aumento do apoio ao casamento e adoção por pessoas do mesmo sexo, uma queda no apoio à redução da maioridade penal e um aumento no apoio à descriminalização das drogas, temáticas progressistas.

Tabela 1
Posições favoráveis sobre temas políticos

De qualquer forma, O bolsonarismo encontra ambiente fértil para se enraizar em consonância com as preferências políticas da população. Isso se reforça no significativo apoio da população a soluções antidemocráticas e críticas da democracia. A Tabela 2 traz dados de atitudes autoritárias, conforme definidas por Avritzer e Rennó (2021RENNÓ, L.; AVRITZER, L.; CARVALHO, P. D. D. Entrenching right-wing populism under covid-19: denialism, social mobility, and government evaluation in Brazil. Revista Brasileira de Ciência Política, n.36, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.36.247120>
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), para o caso brasileiro. Trata-se de uma combinação de posições favoráveis a um golpe militar, apoio difuso ao sistema medido por indicadores de desconfiança nas instituições e insatisfação com a democracia.

Há níveis significativos de apoio a golpe militar sobre duas condições: crime e corrução altos. Esses valores oscilam um pouco ao longo dos anos, mas à exceção de 2020, mantêm patamares altos de apoio. Ou seja, parcela substantiva da população brasileira estaria aberta a uma solução autoritária, antidemocrática. Combina-se a isso uma tradicional desconfiança das instituições democráticas, que é um aspecto estrutural do perfil atitudinal do brasileiro(a) (Rennó et al., 2011RENNÓ, L. et al. Legitimidade e qualidade da democracia no Brasil: uma visão da cidadania. São Paulo: Intermeios, 2011.) e uma grande insatisfação com o funcionamento do regime democrático e temos uma receita bastante indigesta para a democracia no país. Cabe aqui apontar para o elevado grau de desconfiança no sistema de justiça eleitoral e de votação, ambos com adesão de quase um terço da população. Dessa forma, fica claro que quando Bolsonaro critica o sistema de computação e contagem de votos, através das urnas eletrônicas, isso tem ressonância com 30% da população. Ou seja, o discurso autoritário que passou a se difundir pela população brasileira em manifestações políticas recentes, e prontamente adotado em um primeiro momento por Jair Bolsonaro, tem apoio de segmentos da população. Nada no bolsonarismo existe em um vácuo atitudinal.

Tabela 2
Apoio a posições antidemocráticas

Mas como esses elementos se correlacionam com o apoio a Bolsonaro? Em primeiro lugar, cabe atentar que aproximadamente 20% da população apoia Bolsonaro de forma consistente ao longo dos anos: votaram nele no segundo turno de 2018 e acham que seu governo é ótimo ou bom, tendo, assim, uma avaliação positiva presente de sua atuação. A combinação desses dois elementos é o indicador utilizado para identificar o eleitor raiz (core) de Bolsonaro. A Tabela 3 aponta para o montante consistente de bolsonarista ao longo dos anos. A tabela mostra que o apoio a Bolsonaro oscila, mas não se distancia da marca de 20%. O ano de 2021 foi o pior para Bolsonaro em seu mandato.

Por outro lado, cabe também apontar que as posições duras de Bolsonaro e sua adesão a um discurso de extrema direita suscitam reações contrárias de parte da população. Assim, definimos os antibolsonaristas como aqueles que votaram em Haddad no segundo turno de 2018 e acham que Bolsonaro faz um governo ruim ou péssimo, tendo uma avaliação negativa presente do desempenho do governo. Esse montante também oscila em torno de 20%. Assim, como foi o Partido dos Trabalhadores no passado (Carreirão e Barbetta, 2007CARREIRÃO, Y. de S.; BARBETTA, P. A. A eleição presidencial de 2002: a decisão do voto na região da grande São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.19, n.56, p.75-93, 2007.), e segue em parte também sendo, Bolsonaro passa a ser uma âncora do sistema político brasileiro, mobilizando quase metade da população em seus sentimentos contrários e favoráveis.

Tabela 3
Bolsonaristas e antibolsonaristas

Mas como os bolsonaristas pensam sobre os temas políticos? O bolsonarismo como fenômeno político não se limita ao apoio popular, mas também às bases desse apoio em termos ideológicos relativos às preferências sobre temas políticos. Há correlação entre apoio a Bolsonaro e posições conservadoras durante seu primeiro mandato no poder, conforme Rennó identificou nas eleições de 2018?

A Tabela 4 apresenta os resultados de regressões logísticas para apoio a Bolsonaro ao longo dos anos. Testamos se as preferências sobre os temas políticos apresentados na Tabela 1, quando disponíveis para todos os anos, e que denotam amplo apoio a posturas conservadoras no Brasil está articulado com ter votado em Bolsonaro no segundo turno e avaliar positivamente seu governo no presente, a variável que indica se o eleitor é bolsonarista. O bolsonarismo se comprova pela existência de uma convergência ideológico de seu eleitorado com suas posturas conservadoras. E é isso que encontramos.

Analisando os resultados da Tabela 4, nos deparamos com o consistente efeito de algumas variáveis correlacionadas com o aumento da chance de um cidadão ser bolsonarista. As seguintes variáveis aumentam significativamente a probabilidade de ser apoiador de Bolsonaro: ser favorável à redução da maioridade penal; ser favorável à pena de morte; e a que as escolas públicas ensinem a rezar. Por outro lado, o bolsonarista é consistentemente contrário ao casamento de pessoas do mesmo sexo e à legalização do aborto. Outros fatores, como ser contra a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo, contra cotas raciais e a descriminalização das drogas e ser favorável à prisão de mulheres que cometem aborto aparecem como associadas ao apoio a Bolsonaro em alguns anos. De toda sorte, os dados demonstram uma convergência ideológica, de caráter cultural e voltada para questões de lei e ordem, muito associadas ao bolsonarismo.

No que tange as suas características socioeconômicas, o bolsonarismo é especialmente um fenômeno do homem branco, com renda mais elevada e evangélico. Apesar de estar disperso por faixas etárias em 2019 e 2021, como Rennó (2020RENNÓ, L. The Bolsonaro Voter: Issue Positions and Vote Choice in the 2018 Brazilian Presidential Elections. Latin American Politics and Society, v.62, n.4, p.1-23, 2020. doi: https://doi.org/10.1017/lap.2020.13
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) encontrou em 2018, em 2022 está mais associado a idades mais avançadas. Portanto, o bolsonarismo tem uma base ideológica e social.

Por último, cabe pensar o impacto do bolsonarismo nas eleições de 2022. Fica claro que Bolsonaro chega ao pleito com o apoio sólido de uma parcela significativa da população brasileira. Ele conta com a adesão ideologicamente consistente de aproximadamente 20% da população. Durante seu mandato, Bolsonaro foi bastante fiel à sua agenda de campanha, desmontando áreas centrais de governos anteriores, como a estrutura de funcionamento do Bolsa Família, a área ambiental, o ensino universitário e de pós-graduação e dando novas diretrizes às questões de direitos humanos. Nesse sentido, como prometeu em campanha, seu governo trabalhou para ser disruptivo (Lawrence et al., 2009LAWRENCE, T. et al. Theorizing and studying institutional work. Introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.) de uma ordem anteriormente estabelecida contra a qual ele se ergue e se elege. Sua atuação na pandemia apenas acentuou sua diferença e o distanciamento do “mainstream” político brasileiro, adotando uma postura típica dos populistas conservadores contemporâneos de enfrentamento e confronto, encontrando novos inimigos para se contrapor - o PT e a esquerda ganham a companhia da ciência, das organizações internacionais de saúde, dos governadores, do Supremo Tribunal Federal, até da China. Ao hostilizar adversários, energizou sua base, satisfeita com o papel desafiador do presidente, defensor da economia e menosprezando os efeitos da Covid-19, apostando, inclusive, em teorias conspiratórias que alimentam fake news sobre a origem do vírus e curas alternativas.

Tabela 4
Razão de Probabilidade extraída de regressão logística para bolsonaristas (votou em Bolsonaro em 2018 e avalia positivamente seu governo)

Dessa forma, Bolsonaro investiu em manter sua base de apoio mobilizada e ativada, em linha com suas posições. Ele não se preocupou em se distanciar de uma parcela maior da população com suas controvérsias e desafios. Ao invés de investir em mobilizar a nação para o enfrentamento de um inimigo comum - a pandemia -, optou por polemizar e acirrar ânimos ao insistir em uma retórica do confronto e da agressão. Seu estilo ríspido agrada seus apoiadores, mas desagrada a maioria, e vemos, em 2021, uma significativa virada no quadro de apoio a Bolsonaro. A Figura 1 evidencia o efeito negativo da pandemia nas avaliações de governo de Bolsonaro.

As avaliações positivas e negativas do governo oscilam anteriormente e se alternam na perspectiva da população ao longo de 2020. Ora prevalecia uma visão positiva, ora uma negativa, mas sem um padrão claro. No início de 2021, com o acentuado aumento do número absoluto semanal de óbitos por Covid-19, período seguido por investigações no Congresso que significativamente desgastaram o governo, há uma perda de apoio do governo, colocando-o ainda mais na berlinda. Fica claro abaixo que o padrão anterior é substituído por um novo, no qual as avaliações negativas ganham aceleração e se distanciam cada vez mais das positivas, distanciamento esse acentuado e promovido pelo choque do crescimento do número de mortes.

Figura 1
Avaliação do Presidente Jair Bolsonaro e Número de Mortes por Covid Semanais (valores absolutos).

A Figura 2 mostra a consistência dessa relação, ao comparar o número cumulativo semanal de óbitos por Covid-19 com a avaliação do governo. Na medida em que o quantitativo de fatalidades foi aumentando, também sobe a avaliação negativa do governo, quase que na mesma intensidade. Ou seja, parece haver uma clara relação entre a progressão e aprofundamento da crise sanitária no Brasil e a queda de apoio ao governo.

Figura 2
Avaliação do Presidente Jair Bolsonaro e Número de Mortes por Covid Semanais (Valores cumulativos).

Essa tendência é confirmada pelo acompanhamento das intenções de voto. A Figura 3 mostra claramente que houve uma virada nas expectativas eleitorais em 2021. Bolsonaro, que vinha gradativamente perdendo apoio, é ultrapassado por Lula que amplia sua distância durante o ano e no início de 2022. Contudo, há um momento de reversão dessa tendência em 2022 no bojo de dois movimentos. O primeiro é a saída da disputa presidencial de Sérgio Moro, que se colocava como o candidato mais popular da terceira via. A desistência de Moro levou a uma recuperação do voto antipetista por parte de Bolsonaro. O eleitor morista preferiu retornar a Bolsonaro, até por que os partidos de centro e centro-direita que propunham uma alternativa a ele - PSDB e MDB, especialmente - não conseguiram lançar candidatura a tempo de reverter a retomada de crescimento do presidente. O eleitor morista, crítico de Bolsonaro, mas acima de tudo antipetista, na ausência de opções viáveis e dado o crescimento eleitoral de Lula, naturalmente migrou de volta ao presidente.

As confusões geradas pelas eleições primárias do PSDB, um total e absoluto fiasco, que culminou na retirada do apoio do partido ao pré-candidato João Dória que havia se sagrado vitorioso, foi o triste desfecho desse movimento. Até a decisão sobre quem, de fato, seria candidato, perdeu-se tempo valioso, que até agora na campanha (setembro de 2022) não foi recuperado pela candidata escolhida, do MDB, Simone Tebet, que oscila em uma porcentagem ínfima de votos que não lhe permite sonhar com chances de almejar algo relevante. Mais uma vez, o centro-direita moderado fracassa estrondosamente em uma campanha eleitoral, como já havia ocorrido em 2018, seguindo menosprezando a força do bolsonarismo e por ele sendo atropelado.

A Figura 3 mostra, portanto, dois fenômenos. Confirma a polarização entre Lula e o PT de um lado e Bolsonaro de outro, com grande estabilidade desde a virada mencionada acima, e a ausência de alternativas à esquerda e à direita a essas duas forças. Lula domina a esquerda, sem chance para Ciro Gomes. Bolsonaro domina a direita, especialmente dada a inépcia de partidos como PSDB e MDB em conseguirem organizar e promover uma alternativa viável. O segundo ponto é justamente esse: não há espaço, ainda, para uma terceira via no Brasil, seja à direita, seja à esquerda. A polarização do sistema e a ausência de lideranças moderadas à Lula e Bolsonaro não permitem, por hora, o surgimento de alternativas críveis e viáveis.

Figura 3
Intenção de voto na campanha eleitoral de 2022.

Conclusão

As eleições de 2022 têm características muito específicas. É a primeira em que um presidente concorrendo à reeleição enfrenta um ex-presidente. Certamente isso já ocorreu no âmbito estadual, em disputa a governador, como já documentou Soares (2000SOARES, G. Em busca da racionalidade perdida: Alguns determinantes do voto no Distrito Federal. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.15, n.43, 2000.https://doi.org/10.1590/S0102-69092000000200001.
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). São pleitos, portanto, interessantes para se comparar os legados deixados por dois gestores, em uma disputa clara sobre preferências acerca das políticas públicas adotadas. O eleitor pode comparar os distintos desempenhos e as justificativas dos candidatos. Portanto, é natural que seja uma eleição em que a dimensão retrospectiva, de julgamento do que foi feito e das conquistas de cada governo, prevaleça sobre discussões prospectivas, sobre o futuro do país. É uma eleição mais sobre qual alternativa foi melhor e, com base nisso, decidir o futuro. Em um ambiente polarizado como o que se apresenta, o espaço para discutir propostas emerge mais claramente das forças que representariam uma alternativa, uma terceira via, simplesmente também porque essas não têm realizações no governo para mostrar.

A polarização, por sua vez, tem repercussões nas adesões ideológicas dos eleitores. A polarização amplia a diferenciação e distanciamento entre campos e a maior homogeneização interna de cada campo. Nesse sentido, a preferência sobre temas políticos, sobre questões ideológicas, também passa a ser ainda mais relevante, diferenciando preferências para além das avaliações exclusivamente da economia. Será muito interessante no estudo da eleição de 2022 analisar os impactos das avaliações retrospectivas e das posições sobre temas concomitantemente, gerando processos interativos que ampliam a ambivalência eleitoral ou estimulam o reforço de posições (Rennó; Ames, 2014RENNÓ, L.; MOREIRA, T. Perdendo o Fio da Meada: ambiguidades e contradições na teoria do realinhamento. BIB 77, 2014.).

Além disso, as eleições de 2022 têm outra característica marcante. São realizadas em um ambiente pós-pandemia, uma tragédia mundial, fortemente sentida no Brasil. Portanto, as escolhas do governo na pandemia passam a ser tema de campanha, até por que Bolsonaro a politizou extensamente (Rennó et al., 2021RENNÓ, L.; AVRITZER, L.; CARVALHO, P. D. D. Entrenching right-wing populism under covid-19: denialism, social mobility, and government evaluation in Brazil. Revista Brasileira de Ciência Política, n.36, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.36.247120>
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; Ringe; Rennó, 2022RINGE, N.; RENNÓ, L. (Ed.) Populists and the Pandemic: How Populists Around the World Responded to Covid-19. London: Routledge, 2022.). Bolsonaro a utilizará para justificar resultados negativos na economia, mas terá que se defender de acusações de ter menosprezado a doença e de não ter adequadamente respondido à necessidade e agilidade de vacinação. A pandemia, como vimos, teve efeito fortemente negativo nas avaliações de governo.

Por último, e mais relevante, as eleições de 2022 se dão em um ambiente de crescente questionamento da ordem democrática no país por setores da população e pelo próprio Presidente. Conforme aponta Avritzer e Rennó (2021RENNÓ, L.; AVRITZER, L.; CARVALHO, P. D. D. Entrenching right-wing populism under covid-19: denialism, social mobility, and government evaluation in Brazil. Revista Brasileira de Ciência Política, n.36, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.36.247120>
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) e Chaguri e Amaral (2021CHAGURI, M.; AMARAL, O. E. The social bases of Bolsonarism: an analysis of authoritarianism as politics. Latin American Perspectives, 2021.), o autoritarismo passou a ser uma marca também do bolsonarismo. Bolsonaro vem, há meses, questionando fortemente o sistema de votação baseado nas urnas eletrônicas. Tentou emplacar, inclusive, mudanças no sistema através de alteração nas regras instituindo a impressão do voto, sem êxito. Tem repetidamente questionado a lisura da contagem dos votos, sua fragilidade a manipulação, e também alegadado a impossibilidade de escrutínio do processo, de recontagem dos votos, estimulando fraudes. Certamente essas críticas têm objetivo de levantar suspeitas e deslegitimar o sistema para questioná-lo, caso o resultado não lhe seja favorável. Lembrando que o PSDB de Aécio Neves inaugurou esse discurso, pedindo a recontagem e auditoria dos votos em 2014. O próprio PSDB hoje, com base em sua experiência frustrada de questionar o sistema e que comprovadamente confirmou a lisura do processo, é forte defensor das urnas eletrônicas, outra vez retrocedendo em suas ações do passado.

O questionamento do resultado das urnas por Bolsonaro, à la Trump nos Estados Unidos, seu grande guru ideológico e exemplo de governo, é altamente provável. As próprias manifestações que ocorrem na comemoração do 7 de Setembro em Brasília sinalizam a consolidação do bolsonarismo, com uma ramificação armada, outra religiosa, e uma terceira baseada nos setores rurais, produtores do agronegócio no país - as duas últimas desfilando ao lado dos tanques pela primeira vez, com seus tratores e crucifixos. Tais grupos, alinhados a Bolsonaro, fortemente consistentes com a retórica bolsonarista, têm tudo para se mobilizar questionando os resultados. As forças democráticas no país, que têm repetidas vezes se organizado para frear os ímpetos, discurso e ações antidemocráticas do bolsonarismo, terão que se preparar novamente para o enfrentamento desses questionamentos. Bolsonaro e seus seguidores provavelmente retrocederão, como sempre fizeram em tais episódios de quebra-de-braços no passado recente. Mas estar atento será necessário e possíveis episódios desse tipo, altamente perniciosos e prováveis, criam narrativas que perduram, lastimando o regime democrático no Brasil.

Agradecimentos

Agradeço ao INCT Instituto da Democracia pelo financiamento do Projeto A Cara da Democracia e pela disponibilização dos dados, e a Daniel Marcelino pelo apoio na obtenção dos dados de intenção de voto da Figura 3.

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Notas

  • 1
    Disponível em: <https://www.institutodademocracia.org/>.
  • 2
    Para dados, questionários, notas técnicas metodológicas, consultar: <https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Set 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
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