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“Cinema Brasileiro e Realidade Social”, de Paulo Emílio Salles Gomes

RESUMO

O objetivo deste artigo é comentar a conferência “Cinema Brasileiro e Realidade Social”, escrita no início dos anos 1960 por Paulo Emílio Salles Gomes. Mais especificamente, trata-se de identificar as tensões que atravessam a obra do crítico paulista num período marcado pela emergência de uma nova produção cinematográfica e pelas discussões em torno do desenvolvimento econômico do país. De maneira significativa, a conferência se apropria da obra Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido de Mello e Souza, de modo a apresentar de uma maneira particular uma “tomada de consciência” acerca do cinema brasileiro, de sua situação e de suas possibilidades.

PALAVRAS-CHAVE:
Cinema; Crítica; Cinema brasileiro; Paulo Emílio; Antonio Candido

ABSTRACT

The aim of this article is to comment on the conference “Brazilian Cinema and Social Reality,” written in the early 1960s by Paulo Emílio Salles Gomes. More specifically, it seeks to identify the tensions that pervade the work of the film critic from São Paulo in a period marked by the emergence of a new type of cinema production and by discussions on the country’s economic development. Significantly, the conference borrows from Formação da literatura brasileira, by Antonio Candido de Mello e Souza, presenting a particular kind of “new awareness” about Brazilian cinema, its situation and possibilities.

KEYWORDS:
Cinema; Criticism; Brazilian cinema; Paulo Emílio; Antonio Candido

Transcrição do documento “Cinema Brasileiro e Realidade social”1 1 Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. Os trâmites necessários à transcrição do documento foram garantidos pela família de Lygia Fagundes Telles e pela Cinemateca Brasileira. Para efeitos de normalização do texto foram adotados os seguintes parâmetros: 1. complementos ou incertezas da transcrição foram indicados em colchetes; parênteses e chaves foram indicados exclusivamente por parênteses; 2. trechos riscados foram indicados, em nota de rodapé, apenas quando a supressão foi significativa; 3. acréscimos foram integrados ao texto; quando não foi possível determinar sua localização exata, eles foram indicados em nota de rodapé; 4. abreviações, acrônimos e símbolos foram complementados; 5. erros ou desatualizações gramaticais foram corrigidos; o uso um pouco irregular de maiúsculas foi mantido; 6. palavras sublinhadas no manuscrito e nomes de obras foram indicadas em itálico.

Um certo clima que reina hoje no Brasil em torno do cinema nacional lembra a situação teatral em nosso país há aproximadamente uns 15 anos atrás. Uma animação grande, esperança, um polo de atração para as mais diversas atividades artísticas, intelectuais e técnicas. Em São Paulo é menos sensível do que em outras partes, notadamente Rio e Bahia. Os motivos me parecem evidentes.

* * *

Se examinarmos de perto a situação na qual e a partir da qual o teatro floriu [?] há cerca de vinte anos veremos que é radicalmente diversa, antagônica, da conjuntura dentro da qual o cinema brasileiro ensaia de fincar pé.

O teatro no Brasil2 2 Acréscimo: “o livro de Décio de Almeida Prado Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno”. - o conjunto espetáculo-público - vivia estiolado nas décadas [de] 1920 e 1930, uma certa tradição que vinha do século passado e que mal e mal se prolongara até a primeira guerra mundial havia sido praticamente demolida, em grande parte, aliás, pela irrupção do cinema. Mas em torno dos anos vinte e trinta o que caracterizava o teatro que vegetava no Brasil é que vivia totalmente à margem do movimento teatral do mundo. O grande acontecimento vivificador e estimulante - e que pode ser com plena justiça histórica simbolizado e resumido pela chegada de Ziembinski ao Brasil - para a nossa vida teatral foi a descoberta e a vinculação com a experiência estrangeira das últimas décadas. Foi a partir daí que se criaram condições para o renascimento da dramaturgia nacional, que consiste inclusive na procura daqueles elos partidos da tradição.

Se agora voltarmos os olhos para o cinema no Brasil, segundo o mesmo critério, isto é, considerando o conjunto espetáculo-público, nós constatamos que a situação é a inversa da que havíamos notado para o teatro. O fenômeno “Cinema no Brasil” é algo que tradicionalmente ignora o cinema brasileiro, isto é, os filmes produzidos no Brasil. (Hoje não há brasileiro, contemporâneo, que não tenha elementos cinematográficos na sua biografia; perguntem aos seus pais e avós, é só raramente [que] vocês encontrarão em suas memórias um resquício de cinema brasileiro.)

De maneira que por um lado, no Brasil, o teatro ignorava o Estrangeiro e por outro, entre nós, o cinema, que é Estrangeiro, ignora o Brasil. A maneira que o teatro brasileiro encontrou para se salvar, em dado momento, foi abrir os braços para o Estrangeiro. Repertório, ideias, teorias [?] etc. Cinema: objeto manufaturado que chega em latas.

Mas para nós estudarmos a situação do cinema brasileiro não adianta levarmos adiante uma comparação com o que aconteceu recentemente em nossa vida teatral, pois essa comparação é reveladora apenas por contraste.

Mas se levarmos nossas reflexões para outro terreno eu penso que poderemos estabelecer um paralelo rico de consequências entre o cinema brasileiro e a literatura brasileira. Não a literatura atual. Nosso propósito é comparar o cinema brasileiro com a literatura brasileira quando ela ainda propriamente não existia, mas queria existir, isto é, o movimento de ideias, sentimentos e letras que se manifestaram na primeira parte do século XIX, a partir de antes da Independência, mas que se analisou [?] e aprofundou sobretudo depois. Quando lemos no livro de Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira, os capítulos dedicados àquele período, provoca a nossa curiosidade, (a dos que estão preocupados de forma mais ou menos constante com a problemática da cinematografia brasileira) o fato de sentirmos uma espécie de familiaridade muito grande com os temas prediletos dos intelectuais daquele tempo e com os problemas que enfrentavam. O sentimento que os animava da possibilidade e da necessidade de uma literatura nacional é extraordinariamente próximo do estado de espírito dos brasileiros de hoje que acreditam na possibilidade e necessidade de um cinema nacional. As coincidências se manifestam não só nas formas de comportamento intelectual, na maneira de equacionar os problemas, mas frequentemente na própria linguagem empregada.

O desejo de fazer literatura nacional foi inseparável da vontade de afirmar que o Brasil já tinha uma tradição literária própria. Procurar sinais no passado, criar retroativamente uma tradição.

Nós, brasileiros de hoje sobretudo, mas não só, interessados por cinema nacional, estamos hoje em pleno nesse processo. Estudos e pesquisas sobre o cinema brasileiro antigo. Não têm uma natureza arqueológica desinteressada. É uma procura de razões suplementares para acreditar. Humberto Mauro, o papel de sua descoberta na São Paulo da I Retrospectiva e ultimamente na Bahia. Limite. Mário Peixoto.3 3 No manuscrito consta “Mário Pedrosa”, o que é um lapso, considerando-se a referência imediatamente anterior a Limite (1931, dir. Mário Peixoto).

Esse esforço de criar retroativamente uma tradição cinematográfica nós o fazemos talvez com menos ingenuidade do que nossos antepassados da literatura. Bem, o título dessa conferência é “Cinema Brasileiro e Realidade Social”. Nós sabemos que essa realidade social está impregnada de doses maciças de cinema estrangeiro. Esse cinema absorvido durante décadas constitui um dos componentes dessa realidade social. Estudei um pouco o cinema campineiro da década de 1920. Sofrer para gozar ou Gozar para sofrer.4 4 O nome do filme em questão é Sofrer para gozar (1923, dir. Eugenio C. Kerrigan). A ação situada em Campinas. O Bar. A atmosfera. A roleta. O chinês. O aventureiro. Expressão de uma realidade social. Conde Eugenio Maria Piglinioni Rossiglione de Farnet. William C. Kerrigan. Na mesma Campinas João da Mata. Mas no próprio Humberto Mauro de quem justificadamente nossos jovens realizadores se sentem tão próximos nós encontramos muita impregnação da mitologia cinematográfica de raízes estrangeiras. Com um certo retardamento. Na mitologia cinematográfica americana antiga, constituída notadamente por Griffith, e que é uma expressão de Dickens e da cultura vitoriana, a virtude era loura e o pecado moreno, isto é, a ingênua era uma moça loura e a vamp sensual uma morena. Para um de seus filmes Humberto Mauro quis adaptar ao Brasil o tipo de ‘ingênua sensual’ que já estava em voga na América e criou então para ela o “slogan” “a loura que tinha a alma morena”. O sucesso de O Preto que tinha a alma branca.5 5 No manuscrito está grafado “Negro”.

Nós vimos no exemplo campineiro que o desejo de aproximação cinematográfica tomava forma ora se inspirando de perto no cinema americano de então, ora procurando se vincular a histórias e atmosferas da região.

Antonio Candido, sempre a propósito dos pioneiros da literatura brasileira: Ele nos fala “do intuito de praticar a literatura, ao mesmo tempo, como atividade desinteressada e como instrumento, utilizando-a ao modo de um recurso de valorização do país, quer no ato de fazer aqui o mesmo que se fazia na Europa culta, quer exprimindo a realidade local”.

Essa passagem a respeito dos primórdios de nossa literatura, aproxima e esclarece o que aconteceu em Campinas e acontece cinematograficamente entre nós, em nossos dias. Continuam em pleno vigor essas duas formas de afirmar o cinema brasileiro, uma procurando fazer aqui o que se faz na Europa culta e na América, e outra procurando exprimir a realidade local. Nós encontramos a cada passo nos meios cinematográficos polêmicas que fazem lembrar os apelos que, na autora da literatura nacional alguns espíritos lançavam no sentido de que os poetas fizessem “descansar seus amantes à sombra amena de nossas mangueiras” em lugar dos eternos ciprestes e fazê-los ouvir não o rouxinol, mas o sabiá. Lembramos imediatamente das discussões em torno da deliberação de cineastas brasileiros em evitar a natureza tropical situando suas ações dramáticas cada vez mais ao sul e filmando os exteriores em Campos do Jordão.

De fato, se nós pegamos quase ao acaso um grupo de filmes brasileiros mais ou menos recentes e sem nenhum critério de julgamento de valor, nós veremos que todos eles se encontram intimamente vinculados à realidade social brasileira. O Cangaceiro, Estranho Encontro, Rio 40 Graus, O Viúvo Alegre, Ravina, A Morte Comanda o Cangaço, Pagador de Promessas, exprimem indiferentemente a vontade do cinema brasileiro em querer existir.

Tudo indica que ele irá existir agora durante o nosso tempo de vida e não é impossível que o seu desenvolvimento que se processa diante de nossos olhos continue a obedecer ao paralelismo com os acontecimentos literários de antigamente.

Examinando o processo, Antonio Candido nota a partir de certo documento o: desejo de criar não apenas uma literatura, mas uma literatura diversa, independente, aparecendo o classicismo como manifestação do passado colonial, o nacionalismo literário e a busca de modelos novos6 6 Riscado: “, nem clássicos, nem portugueses,”. davam o sentimento de libertação.

A existência de um anseio, frequentemente algo indefinido, mas por alguma coisa que nos exprimisse.

E também a noção de atividade intelectual não mais apenas como prova do valor do brasileiro, mas [como] tarefa patriótica na construção nacional.

Antonio Candido comenta: “construir uma ‘literatura nacional’ é afã, quase divisa, proclamado nos documentos do tempo até se tornar enfadonho”.

É cada vez mais esse estado de espírito, esse clima, que nós sentimos dentro e fora de nós a respeito do cinema nacional.

Um dos resquícios mais sérios de nossa mentalidade, em processo de desaparecimento, de país subdesenvolvido e importador se manifesta no terreno cinematográfico. Achar natural que o Brasil não tenha cinema. Paralelos.

No livro de Antonio Candido lê-se:

“O Romantismo no Brasil foi episódio do grande processo de tomada de consciência nacional, constituindo um aspecto do movimento de Independência.”

Eu acho bastante provável que se encontre num livro uma frase semelhante com os seguintes dizeres:

“O cinema da década de 1960 no Brasil foi episódio do grande processo de tomada de consciência nacional, constituindo um aspecto do movimento de emancipação econômica.”7 7 O material transcrito é precedido por duas páginas com apontamentos esparsos. A primeira página possui o timbre da Escola Anna Maria, no bairro do Brooklin, em São Paulo. Nela aparecem anotações sobre a incorporação do lastro deixado pela poesia no romance e, no verso, sobre a expansão do cinema. Na segunda página aparecem algumas palavras soltas, como “SUITA”.

Roteiro para uma conferência

“Cinema Brasileiro e Realidade Social” (PE/PI 0211) é o título de uma conferência preparada por Paulo Emílio Salles Gomes no início dos anos 1960, cujo roteiro encontra-se transcrito acima. Não é possível determinar com exatidão a data e as circunstâncias em que se deu essa intervenção, mas a menção a O pagador de promessas (1962, dir. Anselmo Duarte) indica que o roteiro não é anterior ao lançamento do filme.8 8 Salles Gomes discutiu O pagador de promessas em “Do circo de Salto a Cannes” (Visão, 1962), “Pagador é promessa e desafio: uma glória que obriga a pensar” (Visão, 1962) e “Babá Saci Anselmo” (Brasil, urgente, 1963). A ausência de filmes posteriores que lhe causaram impacto, como Porto das Caixas (1962, dir. Paulo César Saraceni) e Vidas secas (1963, dir. Nelson Pereira dos Santos), sugere ainda que o roteiro não deve ter sido redigido depois daquele ano.9 9 Porto das Caixas foi abordado pelo crítico em “Primavera em Florianópolis” (Suplemento Literário, 1962), “Crimes que compensam” (Suplemento Literário, 1962) e “Um filme difícil?” (Visão, 1963). Vidas secas foi discutido em “Esplêndido amadurecimento” (Visão, 1963). Pouco se pode acrescentar a partir dos demais elementos presentes no documento, salvo que a conferência possivelmente foi realizada na Escola Anna Maria, em São Paulo, uma vez que o papel timbrado dessa instituição precede o roteiro, havendo ali anotações compatíveis com o tema em discussão, escritas talvez em decorrência das intervenções do público.

Embora as circunstâncias a que se liga a funcionalidade do material não estejam claras, a atmosfera em que ele se insere é delineada no parágrafo introdutório, onde se caracteriza “Um certo clima que reina hoje no Brasil em torno do cinema nacional” pela “animação grande, esperança, um polo de atração para as mais diversas atividades artísticas, intelectuais e técnicas”. Salles Gomes evoca um clima de renovação cujos indícios já se lhe haviam manifestado por aqueles anos. Em 1961, a Cinemateca Brasileira organizou a mostra Homenagem ao Cinema Brasileiro, em paralelo à VI Bienal de Arte de São Paulo. Ali foram exibidos curtas-metragens como Aruanda (1960, dir. Linduarte Noronha), Arraial do Cabo (1959, dir. Paulo César Saraceni e Mário Carneiro) e Couro de gato (1961, dir. Joaquim Pedro de Andrade).10 10 É conhecido o apreço de Salles Gomes por Couro de gato (Souza, 2002, p. 408-410). Em “Paralelo inútil” (Suplemento Literário, 1961), o crítico procura articular a Homenagem com a mostra História do Cinema Russo e Soviético, também promovida por ocasião da VI Bienal. No texto, ele explora a trajetória de diretores russos e brasileiros, nomeadamente Joaquim Pedro de Andrade (Salles Gomes, 1981, v.2, p.368-71). Quanto ao impacto de Arraial do Cabo, cf. Rafael Zanatto (2012). Um ano antes, na I Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, realizada em São Paulo, Salles Gomes já indicara as expectativas causadas por Aruanda (Salles Gomes, 1981, v.2, p.292-5). Foi nessa mesma convenção que o crítico paulista apresentou a célebre tese “Uma situação colonial?”, publicada no mesmo ano no Suplemento Literário, que cristalizaria uma nova tomada de posição em favor do cinema brasileiro (Salles Gomes, 2016, p.47-54).

No entanto, como a própria expressão “clima” sugere, o texto parece desviar de uma vinculação com um conjunto determinado de diretores para evocar, antes, um sentimento difuso de entusiasmo diante da mais recente produção nacional.11 11 A fórmula “Um certo clima que reina hoje no Brasil” talvez ecoe ainda o famoso artigo de François Truffaut, “Uma certa tendência do cinema francês”, publicado em 1954 nos Cahiers du cinéma (Truffaut, 2005, p.257-76). Mas a possível aclimatação da fórmula - que inclui a transformação de “tendência” em “clima” - renuncia à negação da “tradição da qualidade”, que estava no centro da crítica de Truffaut aos diretores estabelecidos. No caso brasileiro tratava-se de lidar com a invenção em curso de uma tradição. Páginas depois, a justaposição de Estranho encontro (1957, dir. Walter Hugo Khouri) e Rio, 40 graus (1955, dir. Nelson Pereira dos Santos) reforça esse ecumenismo.12 12 Anos antes, em “Rascunhos e exercícios” (Suplemento Literário, 1958), o crítico não apenas diferenciava, mas opunha os dois filmes (Salles Gomes, 2016, p.218-24). Contudo, essa disposição encontra um limite ainda no parágrafo introdutório, onde se indica que o clima de entusiasmo é distribuído de maneira desigual pelo país, já que “Em São Paulo é menos sensível do que em outras partes, notadamente Rio e Bahia”. Essa afirmação é reforçada, aqui e ali, por menções à Bahia e aos “nossos jovens realizadores”. Há aqui um duplo compromisso, uma delimitação do escopo que pende entre o nacional e o regional, contradição não resolvida em nenhuma dessas direções.13 13 Carlos Guilherme Mota (2014, p.156-75) identifica, a respeito da posição de Salles Gomes nos anos 1940, a contradição entre o desejo de desaparecimento de um “Brasil formal” e a adesão à ideologia nacionalista. O limite dessa análise está em abandonar as sucessivas tentativas de composição, dissolução e socialização dessa contradição que serão experimentadas até os últimos escritos de Salles Gomes, constituindo um de seus movimentos centrais.

O itinerário proposto ainda no primeiro parágrafo, no entanto, desloca essa tensão ao vincular o tema da conferência a outro campo, o teatro, logo substituído pela literatura. Estranhamento reforçado pelo deslocamento temporal: o teatro de quinze ou vinte anos antes e a literatura pré-Independência. Considerando essas questões, a proposta dos itens seguintes é articular o percurso anunciado pelo conferencista com as tensões que atravessavam sua posição intelectual nos primeiros anos da década de 1960. Com isso se espera aferir as idas e vindas do pensamento de Salles Gomes diante das categorias solidárias enunciadas no título da conferência, “cinema brasileiro” e “realidade social”.

Termos de comparação

“Um certo clima que reina hoje no Brasil em torno do cinema nacional lembra a situação teatral em nosso país há aproximadamente uns 15 anos atrás.” “Se examinarmos de perto a situação na qual e a partir da qual o teatro floriu [?] há cerca de vinte anos [...].” Com uma diferença de poucas linhas, essas afirmações apresentam o campo teatral brasileiro sob certa instabilidade temporal. A única figura mencionada na primeira redação, Z. Ziembinski, é diretamente afetada por essa indefinição, que abarca sua atividade no Rio de Janeiro (a célebre encenação de Vestido de noiva pelo grupo Os Comediantes ocorreu em 1943) e em São Paulo (sua vinculação com o Teatro Brasileiro de Comédia se inicia em 1950). Ademais, o campo teatral é caracterizado com um número mínimo de referências. A outra menção, um acréscimo, é feita a Décio de Almeida Prado e sua Apresentação do teatro brasileiro moderno, publicação de 1956 que coligia artigos escritos anteriormente.

Data dos anos 1930 a pequena produção dramatúrgica de Salles Gomes (Quinquim Maurity, Chaminé e Destinos) e a maior parte de sua crítica teatral, publicada em Movimento, A Plateia e A Manhã. Já em 1935, sua correspondência com Décio de Almeida Prado evidencia a preeminência deste em relação ao tema (Telles, 2012TELLES, L. da S. Movimento em construção. Correspondência entre Paulo Emílio Sales Gomes e Décio de Almeida Prado, de junho a agosto de 1935. São Paulo, 2012. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.76-83), fato que ainda ecoa, décadas depois, no seu comentário à peça Destinos (Almeida Prado, 1997, p.147-53). Assim, embora a edição da revista Clima tenha cristalizado a especialização de Salles Gomes e Almeida Prado em cinema e teatro, respectivamente, não é exato afirmar que ela está na sua origem. A revista foi fundamental, antes, na constituição de determinadas orientações coletivas (Pontes, 1998PONTES, H. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940-68). São Paulo: Cia. das Letras, 1998.), de convergências estruturais que explicam, em parte, a citação de alguns de seus redatores, como Almeida Prado e Antonio Candido de Mello e Souza, numa conferência sobre cinema brasileiro contemporâneo.

Tanto Ziembinski quanto Almeida Prado vincularam-se ao Teatro Brasileiro de Comédia. Embora ausente do país entre 1945 e 1954, Salles Gomes acompanhou a distância o empreendimento. Num debate promovido nos anos 1970 sobre a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (PE/PI 0625), o crítico lembraria a vinculação de intelectuais ligados ao TBC com a iniciativa cinematográfica, citando Almeida Prado, Abílio Pereira de Almeida e Guilherme de Almeida.14 14 Nessa mesma conferência, Salles Gomes afirma que a I Retrospectiva do Cinema Brasileiro marcaria a tomada de consciência acerca do cinema nacional. Essa periodização marca uma das principais diferenças, nunca explicitada, em relação à Introdução ao cinema brasileiro, de Alex Viany (1993, p.109-27), que privilegia os Congressos do Cinema Brasileiro realizados no início dos anos 1950. Ainda que não apareçam no documento aqui analisado, as diferenças em relação a Viany são significativas nesse contexto. Na comparação com o debate dos anos 1970, a conferência dos anos 1960 possui duas diferenças significativas: 1. ela é mais vaga no quadro de referências (apenas Ziembinski e Almeida Prado); 2. ela propõe uma comparação não de ordem genética (entre TBC e Vera Cruz), mas instrumental ao tema discutido (o cinema brasileiro contemporâneo).

As duas personalidades mencionadas são suficientes, no entanto, para tornar inteligível a comparação: Décio de Almeida Prado oferece o parâmetro (o conjunto espetáculo-público) e Ziembinski encarna o acontecimento (a abertura do teatro brasileiro às tendências estrangeiras). Articulado a eles está uma terceira personagem, significativamente grafada com maiúscula no documento, “Estrangeiro”, e reforçada em seu sentido pelo lapso presente na grafia original do manuscrito, onde se lê “Extrangeiro”. É interessante notar a integração desses três termos. A conexão proporcionada a partir de Ziembinski com o teatro contemporâneo estrangeiro permite uma efetiva integração entre espetáculo e público; esse movimento não implica uma desnacionalização, mas, ao contrário, conduz à recomposição dos elos com a tradição, o que se dá por meio da apropriação seletiva de “Repertório, ideias, teorias [?]” que vêm de fora.

Alguns desses elementos já apareciam no artigo “10º Aniversário do TBC: ‘Pedreira das Almas’, de Jorge Andrade” (Visão, 1958; PE/PI 0193). Nessa ocasião, Salles Gomes valorizava a integração de técnicos estrangeiros (Adolfo Celi) com intelectuais locais (Almeida Prado, Abílio P. de Almeida e Alfredo Mesquita), notando que o grande limite do TBC residia na falta de uma produção dramatúrgica à altura de sua encenação. O advento da obra de Jorge Andrade teria finalmente completado o panorama (ou: integrado efetivamente criação e espectadores) com uma produção feita fora dos quadros consolidados da comédia ou da chanchada, além de fortemente enraizada numa reflexão sobre a história regional.

A postura restritiva em relação à comédia já se manifestava desde 1935, quando o desejo de uma produção “séria” era marcado nos comentários de Salles Gomes à obra teatral de Renato Vianna (Sexo) e Oswald de Andrade (O homem e o cavalo). Ora, se O pagador de promessas apontava, no início dos anos 1960, para o triunfo da produção cinematográfica brasileira, não seria indiferente a esse tento a opção pelo drama, tido como índice de maturidade. Embora o tema não seja explícito na conferência, é notório que o ecumenismo de Salles Gomes na lista de filmes que abarca o par Estranho encontro e Rio, 40 graus seja mais tímido no que toca a gêneros, havendo referência, entre sete filmes citados, a uma única comédia, O viúvo alegre (1961, dir. Victor Lima). Uma abertura consistente de Salles Gomes em relação à comédia em geral e à chanchada em particular teria lugar apenas em sua reflexão posterior.15 15 Nesse sentido, Alex Viany (1993, p.76-91) demonstra uma sensibilidade prematura em relação à chanchada, seja na Introdução ao cinema brasileiro, seja e em seu filme Agulha no palheiro (1953).

Mas a natureza diferencial da comparação com o teatro é logo mencionada: “Se examinarmos de perto a situação na qual e a partir da qual o teatro floriu [?] há cerca de vinte anos veremos que é radicalmente diversa, antagônica, da conjuntura dentro da qual o cinema brasileiro ensaia de fincar pé”. Esse contraste é reputado como limitante, motivo pelo qual é introduzida a comparação com a literatura.

* * *

Na comparação entre teatro e cinema, destaca-se a diferente relação com o Estrangeiro: “Cinema: objeto manufaturado que chega em latas”. A imagem é significativa, pois ao citar a embalagem dos filmes importados o autor sublinha a naturalização do caráter industrial e dissolve essa mercadoria entre outras tantas que são objeto de importação.16 16 É recorrente associação com a importação de um objeto comezinho como o palito de dente, mencionado no depoimento à CPI do Cinema, em 1964 (Salles Gomes, 2014, p.110), e em “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, publicado em 1973 em Argumento (Salles Gomes, 2016, p.191). Em comparação com esse produto pronto e embalado, o teatro importa o que se poderia chamar de insumos: “Repertório, ideias, teorias [?]”. Conclusão: “por um lado, no Brasil, o teatro ignorava o Estrangeiro e por outro, entre nós, o cinema, que é Estrangeiro, ignora o Brasil”.

Com isso, o problema é deslocado da produção fílmica para a “ignorância” ou, de modo oposto, para a tomada de consciência acerca da situação do cinema no Brasil. O que converge com as preocupações centrais da Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido de Mello e Souza. A impertinência da comparação do cinema com a literatura contemporânea, aliás, se baseia num olhar que privilegia não tanto a criação, mas a formação de uma consciência a respeito das obras criadas. E é fundamental lembrar, a esse respeito, a importância que tem o capítulo derradeiro da Formação, intitulado justamente “A consciência literária” (Candido, 2017, p.633).

Todavia, apesar de explícita, a aproximação com a obra de Candido é temperada por diferenças significativas. A fórmula “espetáculo-público”, remetida como se viu a Almeida Prado, recupera de maneira parcial o movimento presente na Formação, atento à articulação entre obras, leitores e crítica não apenas na criação de um sistema, mas na sua permanência. Simplificação que, talvez, atenda ao objeto da conferência de Salles Gomes, afinal a permanência do cinema brasileiro estaria além do horizonte imediato, de garantia de sua existência. Mais uma vez, a lata pode ser considerada um emblema dessa falta de consciência ou ainda de uma mentalidade graneleira,17 17 Embora o tema não seja abordado nesses termos por Anita Simis (2015), seria possível extrapolar o argumento de Salles Gomes e sugerir uma vinculação entre o debate sobre a taxação de filmes virgens e filmes impressionados, por quilo ou por item, com a existência dessa mentalidade. Anos mais tarde, a formação de hábitos de consumo receberá um novo tratamento, de maneira quase concomitante, por Salles Gomes (“Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, 1973) e Celso Furtado (“O mito do desenvolvimento econômico”, 1974). em que o filme perde sua individuação.18 18 Desde o célebre artigo “Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo”, de Alexandre Astruc (L’Écran Français, 1948), a individuação dos produtos fílmicos é feita por meio de um estilo identificável do diretor-autor e por metáforas que remetem à autoria literária (stylo, isto é, caneta), o que mais tarde viria a fundamentar a “política dos autores”. O que explica o fato de o cinema brasileiro ser um produto alheio à experiência de vida das pessoas: “perguntem aos seus pais e avós, é só raramente [que] vocês encontrarão em suas memórias um resquício de cinema brasileiro”.19 19 Comentário semelhante aparece no artigo “O cinema no século” (Jornal do Brasil, 1970; Salles Gomes, 2015, p.572-9).

Daí a necessidade de uma tomada de consciência, movimento que supõe um olhar para o cinema e, portanto, um recuo em relação a ele. Esse recuo corresponde ao movimento proposto no modelo para o qual convergem Salles Gomes, Almeida Prado e Candido, que contempla a produção e a circulação das obras.20 20 A opção por marcar a convergência desses autores explica-se pela ausência de uma prioridade genética clara entre eles. Agradeço a Rafael Zanatto por sublinhar esse ponto em mais de uma ocasião. Portanto, não é apenas como modelo analítico que a Formação da literatura brasileira se relaciona com conferência de Salles Gomes. O principal vínculo entre os dois materiais está no acontecimento básico a ser trabalhado por analogia, a literatura brasileira no início do século XIX. Essa abordagem está de certa forma documentada pelo exemplar que Salles Gomes possuía da Formação, depositado atualmente na Cinemateca Brasileira. Nesse volume, é possível observar que a ocorrência de trechos sublinhados e de comentários à margem do texto é quase coincidente com seu uso na conferência: “Introdução”, onde Candido apresenta seu modelo analítico calcado na distinção entre “sistema literário” e “manifestações literárias” (Candido, 2017, p.25-7); capítulo 1, “Razão, natureza e verdade” (itens 1, “Traços gerais”, e 5, “A presença do Ocidente”), ao final do qual Candido se afasta da crítica literária romântica ao reconhecer o empenho dos neoclássicos em incorporar o Brasil ao Ocidente em correlação com a elaboração de uma consciência local (Candido, 2017, p.70-3); capítulo 2, “Transição literária”, em que figuras como Cláudio Manuel da Costa permitem discutir o desejo de se mostrar à altura da Europa (Candido, 2017, p.75-108); capítulo 7, “Promoção das Luzes”, sobretudo quando se discorre sobre o nacionalismo de Hipólito José da Costa (Candido, 2017, p. 259-264). Os únicos trechos anotados, portanto, vinculam-se ora ao aporte metodológico da Formação (Introdução e cap. 1 e 2), ora ao período que baseia a comparação (cap.7).

Tais observações devem ser imediatamente restritas em seu alcance pela impossibilidade de definir a data de tais anotações, mesmo que a dupla abordagem, metodológica e temática, esteja em consonância com a redação da conferência. Ainda assim, é possível afirmar que o livro de Candido, lançado em 1959, foi rapidamente incorporado na obra de Salles Gomes. Foi justamente como termo de comparação que ele foi evocado, em 1961, no artigo “Decepção e esperança”, publicado no Suplemento Literário como parte de uma série de resenhas dedicadas à Introdução ao cinema brasileiro, lançada por Alex Viany também em 1959 (Salles Gomes, 2016, p.469-76). Trata-se de um duro balanço, em que são repertoriadas as limitações metodológicas da obra de Viany, em torno da qual se formara certa expectativa (Autran, 2003-2004). A introdução da Formação, dessa vez numa comparação diferencial, permite explicar as causas dessa fragilidade, remetendo-a à situação medíocre em que jazia a cultura cinematográfica brasileira. O desnível existente entre a cultura literária e a cultura cinematográfica explicaria, assim, o aparecimento de obras tão desiguais do ponto de vista metodológico como a Introdução e a Formação.21 21 A construção de uma metodologia por Salles Gomes foi largamente analisada por Adilson Mendes (2013) e Rafael Zanatto (2018). Como se pôde perceber em notas acima, há outros pontos de discordância entre Salles Gomes e Viany que não dizem respeito a questões de ordem metodológica.


Caio Scheiby, Paulo Emílio e Rudá de Andrade na inauguração do Festival de Cinema Russo e Soviético. VI Bienal de São Paulo no MAM, em 1961.

Mas a conferência possui ainda uma particularidade fundamental em relação à obra de Candido. Afinal, a formação da literatura brasileira, que teria no início do século XIX um de seus “momentos decisivos”, se completaria na década de 1880, quando se assiste à consolidação da obra de Machado de Assis e ao surgimento de uma primeira crítica munida de consciência histórica, com Sílvio Romero (Candido, 2017, p.643-4). Candido se coloca, portanto, em relação a um passado já “tradicionalizado”, ao passo que Salles Gomes se coloca diante, ou melhor, no interior de uma formação incompleta, donde sua insistência no sistema reduzido “espetáculo-público” e na necessidade de princípios metodológico rigorosos para principiar uma história do cinema brasileiro. Poucos anos depois, em 1966, ele próprio daria início a uma produção historiográfica mais sistematizada, com a publicação de 70 anos de cinema brasileiro (Salles Gomes, 2016, p.119-66). Essa participação no processo ou esse “empenho”22 22 Referida a um contexto anterior da produção de Salles Gomes, a expressão foi trabalhada por João C. Zuin (2001). é marcado no texto da conferência pela profusão do pronome “nós”. Seria o caso de se perguntar quais providências específicas o crítico sugere, no cruzamento entre rigor metodológico e desejo de conscientização.

Formação do cinema

Assim como na literatura brasileira, o campo cinematográfico seria orientado por dois modelos básicos: “Continuam em pleno vigor essas duas formas de afirmar o cinema brasileiro, uma procurando fazer aqui o que se faz na Europa culta e na América, e outra procurando exprimir a realidade local”. É curioso que o autor dessa conferência sobre cinema contemporâneo recorra a filmes dos anos 1920 e 1930 para exemplificar tal observação. Desse período datam a produção campineira (Sofrer para gozar [1923, dir. Eugenio C. Kerrigan] e João da Mata [1923SOFRER para gozar. Eugenio C. Kerrigan, Brasil, 1923., dir. Amilar Alves]), o primeiro conjunto da produção de Humberto Mauro e Limite (1931, dir. Mário Peixoto). Quanto aos filmes produzidos em Campinas, é interessante observar que eles já haviam sido objeto de uma das primeiras reflexões públicas do crítico atinentes ao problema de uma metodologia ajustada ao estudo do cinema brasileiro. Em “Evocação campineira” (Suplemento Literário, 1956), o esboço de descrição do cinema silencioso local vai de par com o apelo pela preservação e pela busca de documentação (Salles Gomes, 2016, p.404), reflexão que se desdobraria num primeiro ciclo de artigos publicados no Suplemento Literário (Zanatto, 2018_______. Paulo Emílio e a cultura cinematográfica: crítica e história na formação do cinema brasileiro (1940-1977). Assis, 2018. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”., p.250-3).23 23 Além de “Evocação campineira” o conjunto é formado pelos artigos “Um pioneiro esquecido”, “Pesquisa histórica”, “Dramas e enigmas gaúchos”, todos de 1956, e “Visita a Pedro Lima”, de 1957. Diante das limitações do material fílmico, a preocupação heurística seria insistentemente retomada na obra de Salles Gomes, cristalizando-se, por exemplo, na reconstituição indireta do filme Na primavera da vida (1926, dir. Humberto Mauro), realizada em 1972 em sua tese de doutoramento (Salles Gomes, 1974, p.95-118).

No entanto, o problema metodológico não ocupa o centro da conferência. Ele é antes suscitado por outra preocupação: “Procurar sinais no passado, criar retroativamente uma tradição”. É sob tal impulso, interessado, que se colocam as pesquisas e “descobertas” a respeito do cinema brasileiro antigo. Quanto a Humberto Mauro, por exemplo, a conferência se refere diretamente à projeção de seus filmes na I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro, realizada em 1952 em São Paulo, e, possivelmente, no Festival de Cinema da Bahia de 1962. No entanto, esse breve comentário sugere a existência de modalidades diversas no processo de tomada de consciência, que pode se fazer como pesquisa desinteressada, mas também e principalmente como “descoberta” cujo significado se ancora no presente. Nesse sentido, figuras como Mauro e Mário Peixoto são emblemas, “razões suplementares para acreditar”.

Salles Gomes faz um reparo importante a propósito dessa consciência interessada, sempre a partir da comparação com a literatura do início do século XIX. Diferentemente do que ocorrera com os mentores de uma consciência literária nacional, o interesse pelo cinema brasileiro demonstraria maior clareza em relação aos limites dessa tomada de consciência. Afinal, conscientizar-se acerca da existência de um “cinema brasileiro” supõe dar-se com uma realidade social profundamente impregnada pelos filmes estrangeiros. No século XIX, o indigenismo foi elaborado a partir de critérios fornecidos por Chateaubriand e aclimatados por Ferdinand Denis; nos anos 1960, a emergência do cinema brasileiro parte da consciência de sua “situação colonial”.

A digressão sobre o cinema silencioso campineiro toca justamente na impregnação da produção nacional pelo cinema estrangeiro. A evocação de Sofrer para gozar é significativa pela flagrante contradição entre “A ação situada em Campinas” e “O bar. A atmosfera. A roleta. O chinês”, que configuram o clima de faroeste. Da mesma forma, a menção aos possíveis nomes de seu diretor contribui para demarcar um universo em que a própria nomeação é mediada por critérios importados.24 24 O quiproquó em torno do nome de E. C. Kerrigan seria retomado mais tarde, em 70 anos de cinema (Salles Gomes, 2016, p.144-51). Ele também já fora mencionando nos artigos já citados “Evocação campineira” e “Decepção e esperança”. De forma quase simultânea ao cinema de Kerrigan, Oswald de Andrade jogava com as risíveis composições nos nomes de empresas cinematográficas citadas nas Memórias sentimentais de João Miramar (1924), onde a Empresa Cubatense se torna Piaçanguera Lightning and Famous Company Pictures of São Paulo and Around (cf. Mariutti, 2009). E embora não desenvolva a indicação na conferência, é interessante notar ainda a contraposição sugerida em torno de João da Mata, cuja impregnação pelo universo caipira seria tematizada mais tarde, em 70 anos de cinema.25 25 João da Mata seria citado em “Evocação campineira” e em “Vinte milhões de cruzeiros” (Suplemento Literário, 1957), mas sem menção ao seu conteúdo.

Poucas linhas depois, essa tensão presente no cinema campineiro é transferida para a obra de Humberto Mauro. Cerca de dez anos antes de defender sua tese de doutorado, Salles Gomes ressaltava na conferência a incorporação da mitologia cinematográfica estrangeira na obra do diretor mineiro.26 26 A formação de uma mitologia cinematográfica, por vezes vinculada ao tema do erotismo, foi discutida em alguns artigos no Suplemento Literário, como “Mitologia e verdade” e “Erotismo e humanismo”, ambos de 1958. Em 1960, a discussão sobre o erotismo foi atualizada em função da ameaça de censura ao filme Os amantes (1958, dir. Louis Malle), na série de artigos para o Suplemento “Os amantes ultrajados” (Salles Gomes, 1981, v.2, p.161-86). Incorporação que se dá de uma maneira retardada e bastante mediada, através da qual a moral vitoriana se faz presente por meio de um Dickens filtrado por D. W. Griffith.27 27 A sugestão não é original e remete a Serguei Eisenstein e seu artigo “Dickens, Griffith e nós” (1944). A fórmula foi utilizada por Salles Gomes nos artigos “O narrador e a câmera” e “D. W. Griffith” (Suplemento Literário, 1958; Salles Gomes, 1981, v.1, p. 416-19; Salles Gomes, 2015, p.73-9). Na tese de doutorado, Salles Gomes desenvolve o tema, indicando que mesmo a relação com Griffith é mediada, notadamente pelo filme David, o caçula (1921, dir. Henry King). Assim, a formação histórica da mitologia estadunidense em torno do par virtude-loura/pecado-morena teria sido internalizada por Mauro no slogan “a loura que tinha a alma morena”.28 28 Em referência ao filme O negro que tinha a alma branca (1927, dir. Benito Perrojo). Embora Salles Gomes note na tese de 1972 o racismo manifesto de Mauro, ele atenua seus contornos, ao contrário do que faz com Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, redatores de Cinearte (Autran, 2003-2004). E ainda que essas linhas ressaltem a impregnação do cinema estrangeiro em Mauro, deve-se atentar a dois elementos que acrescentam certa ambiguidade. Em primeiro lugar, a observação de que se trata de um autor “de quem justificadamente nossos jovens realizadores se sentem tão próximos” (grifo meu). Em segundo lugar, pela indicação do retardamento com que essas tendências estrangeiras chegaram. Daí, aliás, a mistura de categorias (“vamp ingênua”) apontada na conferência. Na tese de 1972, Mauro aparecerá não apenas como exemplo da impregnação pelo cinema estadunidense, mas também como expressão de sua aclimatação no tecido cultural da Zona da Mata Mineira.29 29 Entre a conferência e a tese, Mauro ainda apareceria como personagem (“tio Humberto”) no roteiro “Em memória de Helena”, escrito por Salles Gomes com a colaboração de David Neves no final dos anos 1960 (PE/PI 0268). No filme dirigido em 1969 por David Neves a partir desse roteiro, Memória de Helena, Humberto Mauro atuaria como “tio Mário”. O que nos interessa aqui é o papel da personagem no agenciamento de imagens que revelam o tecido cultural mineiro, deslocado para Diamantina. Não deixa de ser significativo que por esses mesmos anos a conhecida tese “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” insistisse na “incompetência criativa em copiar”, que definiria o cinema de países como o Brasil, culturalmente próximos a suas metrópoles (Salles Gomes, 2016, p.190).

Os exemplos trazidos por Salles Gomes interrompem-se nos primeiros anos da década de 1930. Já a enumeração de filmes que aparece pouco depois cobre um recorte temporal que vai de 1953 (O cangaceiro [dir. Lima Barreto]) a 1962 (O pagador de promessas). Mas o que diferencia esse panorama recente do cinema dos anos 1920 e 1930? O que justifica esse novo clima em torno do cinema brasileiro?

A pergunta ganha pertinência quando se nota que a impregnação estrangeira continua sendo a tônica: “Lembramos imediatamente das discussões em torno da deliberação de cineastas brasileiros em evitar a natureza tropical situando suas ações dramáticas cada vez mais ao sul e filmando os exteriores em Campos do Jordão”.30 30 No momento da conferência, o filme mais recente de Walter Hugo Khouri, Na Garganta do Diabo (1960), havia sido filmado nas Cataratas do Iguaçu. Ravina (1958, dir. Rubem Biáfora) foi filmado em Campos do Jordão. Ora, na lista de filmes citados, Salles Gomes enfatiza a marca da realidade local mesmo nas produções mais distantes do gosto do crítico: “De fato, se nós pegamos quase ao acaso um grupo de filmes brasileiros mais ou menos recentes e sem nenhum critério de julgamento de valor, nós veremos que todos eles se encontram intimamente vinculados à realidade social brasileira”. Portanto, o que parece particularizar o momento atual é sua vinculação com uma “vontade de existir” do cinema brasileiro mesmo em sua versão cosmopolita. Vontade de existir ou clima que precede a consciência sobre esse processo.

No entanto, como se viu, a listagem de filmes não parece ser aleatória, o que é reforçado quando se percebe o adensamento de referências em torno de filmes recentes (apenas dois dos sete filmes citados são anteriores a 1957). Essa lista tende a enfatizar o caráter nacional, diversificado, pendendo para o drama (mas incluindo uma comédia, outra marca da diversidade) e com sucesso no exterior (de O cangaceiro a O pagador de promessas).

Cinema brasileiro e realidade social

Tomando a conferência como base, poder-se-ia dizer que, no início dos anos 1960, Salles Gomes vincula o fenômeno de explosão latente do cinema brasileiro a um horizonte onde aponta a perspectiva de independência econômica. Ou, dito de outra forma, o crítico afirma que o cinema brasileiro é expressão de algo mais amplo de nossa sociedade, da “situação colonial” apresentada na referida tese de 1960. Reflexões como as que aparecem em “Uma situação colonial?” e em outros textos da época, como “O dono do mercado” (Suplemento Literário, 1961; Salles Gomes, 2016, p.73-8), são muito claras quanto às providências necessárias para que o cinema brasileiro atinja sua independência. E a atuação de Salles Gomes nesses mesmos anos sugere, de fato, que há aí uma tentativa de cristalização dessas providências: negociações junto ao Legislativo e ao Executivo federais para dar expressão nacional à Cinemateca Brasileira; atuação na CPI do Cinema, em 1964; participação na formação do curso de Cinema na Universidade de Brasília; participação nas Caravanas da Cultura, idealizadas por Paschoal Carlos Magno; presença num dos grandes polos de inovação cinematográfica do momento, a Bahia; passagem à escrita regular para um jornal de público mais amplo, Brasil, Urgente.

No entanto, a frustração que pontua, uma a uma, todas essas iniciativas, é fundamental para compreender o tom adotado na conferência “Cinema Brasileiro e Realidade Social”. Pois nela, Salles Gomes incorpora a frustração e a “ficção compensatória” como elementos que participam da configuração da realidade social.31 31 A expressão “ficção compensatória” aparece, no Suplemento Literário, em “Desconfiança por Bolognini” (1960) e “Cinema e prostituição” (1961), nos dois casos associada ao tema da prostituição. A ideia retornaria com força em “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” e em entrevistas dos anos 1970, como em “Ela (a pornochanchada) dá o que eles gostam?” (Movimento, 1976; Salles Gomes, 2014, p.44-55). Assim, o crítico acrescenta ao propósito didático da conferência algumas notações a respeito dos próprios termos em que se processa a tomada de consciência, que tem de se dar com mecanismos de ficcionalização que também incidem na construção do “real”. O tema não é novo e ocupou o crítico nesses mesmos anos, aparecendo, pouco depois da publicação de “Uma situação colonial?”, nos artigos “Um mundo de ficções”, “A agonia da ficção” e “O gosto da realidade” (Suplemento Literário, 1960).

Talvez o tema das ficções compensatórias seja um dos principais elementos a aproximar a conferência de Salles Gomes com a Formação da literatura brasileira. A começar pela ironia. No livro de Candido, é notório como se avolumam as referências irônicas às limitações da literatura brasileira na passagem para o Romantismo.32 32 A respeito da simpatia de Candido pelo “segundo escalão”, cf. Paulo Arantes (1997, p.43-6). Uma descrição do processo formativo atenta a seus aspectos risíveis é recuperada por Salles Gomes em suas citações da Formação: “Antonio Candido comenta: ‘construir uma ‘literatura nacional’ é afã, quase divisa, proclamado nos documentos do tempo até se tornar enfadonho’”, acrescentando logo depois que “É cada vez mais esse estado de espírito, esse clima, que nós sentimos dentro e fora de nós a respeito do cinema nacional”. Isto é, o enfado não deixa de se fazer presente no cinema brasileiro contemporâneo. Mas, diferentemente da “mediocridade” citada em “Uma situação colonial?”, o enfado é aqui fruto da repetição da divisa independentista. Além disso, a ingenuidade também se faz presente a essa altura: “Esse esforço de criar retroativamente uma tradição cinematográfica nós o fazemos talvez com menos ingenuidade do que nossos antepassados da literatura”, em que as palavras “talvez” e “menos” indicam que o sentimento é, ainda assim, presente. Portanto, se por um lado Salles Gomes apresenta o estado de maturidade do cinema brasileiro, ele semeia, aqui e ali, certa ironia em relação ao processo descrito.

Como vimos, a tensão entre aspiração nacional e realização regional desse novo momento da cinematografia brasileira já era presente no parágrafo introdutório da conferência. Agora, é possível desdobrar essa tensão numa dupla providência: por um lado, dar conta do clima de otimismo em relação à produção mais recente do país (que se adensaria nos anos seguintes); por outro lado, preservar o espaço de dessolidarização em relação a certos aspectos desse processo formativo, evidenciando sua fuga para certas ficções compensatórias (o que ficaria mais evidente após o Golpe de 196433 33 Veja-se a distância tomada por diversos diretores em relação ao cinema do começo da década (Xavier, 2012, p.32-40). ). Daí a necessidade de enfatizar que o trabalho de conscientização não passa pela simples exposição dos fatos, mas pela compreensão do entrelaçamento entre real e ficcional.

Aliás, pouco antes da elaboração conferência, Salles Gomes escreveu um artigo, “Mauro e outros dois grandes” (Il Cinema Brasiliano, 1961), em que ironizaria o tema da obra-prima perdida, em referência a Limite, de Mário Peixoto (este, já apresentado sob o signo da mitomania), e ao roteiro jamais filmado O sertanejo, de Lima Barreto (Salles Gomes, 2016, p.236-43). Ora, esse mito da obra-prima perdida reforça o vínculo com Antonio Candido em torno das ficções compensatórias. Candido afirma na Formação: “Sintoma interessante do que foi dito é a formação, nesse tempo, de dois temas, onde se vêm unir as condições reais da produção intelectual e certa fabulação, que procurava compensar a sua pobreza e lacunas. Refiro-me ao que se poderia chamar de temas do “saber universal” e da “obra-prima perdida” (Candido, 2017, p.247). Importante lembrar que as primeiras citações da Formação nos textos de Salles Gomes, na referida crítica a Viany, aparece de forma quase concomitante a “Mauro e outros dois grandes”.34 34 Quanto ao tema do saber universal, em sua versão popularizada, uma vítima comum a Candido e a Salles Gomes é Ruy Barbosa: “Há anos, no interior de Minas, um velho negro, de esplêndida barba branca, analfabeto e majestoso, me informou que Rui Barbosa falava todas as línguas do mundo” (Candido, 2017, p.247). “E tanto eu como o senhor lemos o Cemitério e sabemos que quando dr. Rui Barbosa chegou e falando holandês com o porteiro apresentou as credenciais do Brasil ninguém lhe deu importância, mas mesmo assim deixaram entrar. Lá dentro disse bom dia em francês, inglês, alemão e russo, e foi olhado” (Salles Gomes, 2007, p.42). Assim, se a tomada de consciência não é um tema novo na discussão sobre o cinema brasileiro, sendo frequentado por diversos autores, o que parece particularizar a posição do crítico paulista é a tentativa de anexar a ficção aos domínios da consciência.

Por fim, é interessante observar uma última providência tomada por Salles Gomes em sua conferência, a apropriação explícita e reelaboração de uma frase da Formação: “O cinema da década de 1960 no Brasil foi episódio do grande processo de tomada de consciência nacional, constituindo um aspecto do movimento de emancipação econômica”. Essa reinvenção não deixa de alimentar a ironia do texto, uma vez que há uma contradição performativa na afirmação da autonomização do cinema brasileiro a partir de um fragmento textual estruturado em função do contexto literário. Como se a apresentação da libertação tivesse que ser embalada com fórmulas tomadas de fora; e como se o trabalho da crítica consistisse em grande medida no trabalho consciente da formulação.35 35 Sobre o trabalho com as fórmulas num contexto familiar a Salles Gomes, a crítica de André Bazin, cf. Hervé Joubert-Laurencin (2014, p.153-8).

Referências documentais

  • Cinemateca Brasileira, Arquivo Paulo Emilio Salles Gomes: PE/PI (Produção Intelectual) 0193, 0211, 0268, 0455 e 0625.

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  • GARGANTA do Diabo, Na. Walter Hugo Khouri, Brasil, 1960.
  • JOÃO da Mata. Amilar Alves, Brasil, 1923.
  • LIMITE. Mário Peixoto, Brasil, 1931.
  • MEMÓRIA de Helena. David Neves, 1969.
  • MORTE comanda o cangaço, A. Carlos Coimbra e Walter Guimarães Motta, Brasil, 1960.
  • NEGRO que tinha a alma branca, O. Benito Perrojo, Espanha, 1927.
  • PAGADOR de promessas, O. Anselmo Duarte, Brasil, 1962.
  • PORTO das Caixas. Paulo César Saraceni, Brasil, 1962.
  • PRIMAVERA da vida, Na. Humberto Mauro, Brasil, 1926.
  • RAVINA. Rubem Biáfora, Brasil, 1958.
  • RIO, 40 graus. Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 1955.
  • SOFRER para gozar. Eugenio C. Kerrigan, Brasil, 1923.
  • TERRA é sempre terra. Tom Payne, Brasil, 1951.
  • VIDAS secas. Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 1963.
  • VIÚVO alegre, O. Victor Lima, Brasil, 1961.

Notas

  • 1
    Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. Os trâmites necessários à transcrição do documento foram garantidos pela família de Lygia Fagundes Telles e pela Cinemateca Brasileira. Para efeitos de normalização do texto foram adotados os seguintes parâmetros: 1. complementos ou incertezas da transcrição foram indicados em colchetes; parênteses e chaves foram indicados exclusivamente por parênteses; 2. trechos riscados foram indicados, em nota de rodapé, apenas quando a supressão foi significativa; 3. acréscimos foram integrados ao texto; quando não foi possível determinar sua localização exata, eles foram indicados em nota de rodapé; 4. abreviações, acrônimos e símbolos foram complementados; 5. erros ou desatualizações gramaticais foram corrigidos; o uso um pouco irregular de maiúsculas foi mantido; 6. palavras sublinhadas no manuscrito e nomes de obras foram indicadas em itálico.
  • 2
    Acréscimo: “o livro de Décio de Almeida Prado Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno”.
  • 3
    No manuscrito consta “Mário Pedrosa”, o que é um lapso, considerando-se a referência imediatamente anterior a Limite (1931, dir. Mário Peixoto).
  • 4
    O nome do filme em questão é Sofrer para gozar (1923, dir. Eugenio C. Kerrigan).
  • 5
    No manuscrito está grafado “Negro”.
  • 6
    Riscado: “, nem clássicos, nem portugueses,”.
  • 7
    O material transcrito é precedido por duas páginas com apontamentos esparsos. A primeira página possui o timbre da Escola Anna Maria, no bairro do Brooklin, em São Paulo. Nela aparecem anotações sobre a incorporação do lastro deixado pela poesia no romance e, no verso, sobre a expansão do cinema. Na segunda página aparecem algumas palavras soltas, como “SUITA”.
  • 8
    Salles Gomes discutiu O pagador de promessas em “Do circo de Salto a Cannes” (Visão, 1962), “Pagador é promessa e desafio: uma glória que obriga a pensar” (Visão, 1962) e “Babá Saci Anselmo” (Brasil, urgente, 1963).
  • 9
    Porto das Caixas foi abordado pelo crítico em “Primavera em Florianópolis” (Suplemento Literário, 1962), “Crimes que compensam” (Suplemento Literário, 1962) e “Um filme difícil?” (Visão, 1963). Vidas secas foi discutido em “Esplêndido amadurecimento” (Visão, 1963).
  • 10
    É conhecido o apreço de Salles Gomes por Couro de gato (Souza, 2002, p. 408-410). Em “Paralelo inútil” (Suplemento Literário, 1961), o crítico procura articular a Homenagem com a mostra História do Cinema Russo e Soviético, também promovida por ocasião da VI Bienal. No texto, ele explora a trajetória de diretores russos e brasileiros, nomeadamente Joaquim Pedro de Andrade (Salles Gomes, 1981, v.2, p.368-71). Quanto ao impacto de Arraial do Cabo, cf. Rafael Zanatto (2012).
  • 11
    A fórmula “Um certo clima que reina hoje no Brasil” talvez ecoe ainda o famoso artigo de François Truffaut, “Uma certa tendência do cinema francês”, publicado em 1954 nos Cahiers du cinéma (Truffaut, 2005, p.257-76). Mas a possível aclimatação da fórmula - que inclui a transformação de “tendência” em “clima” - renuncia à negação da “tradição da qualidade”, que estava no centro da crítica de Truffaut aos diretores estabelecidos. No caso brasileiro tratava-se de lidar com a invenção em curso de uma tradição.
  • 12
    Anos antes, em “Rascunhos e exercícios” (Suplemento Literário, 1958), o crítico não apenas diferenciava, mas opunha os dois filmes (Salles Gomes, 2016, p.218-24).
  • 13
    Carlos Guilherme Mota (2014, p.156-75) identifica, a respeito da posição de Salles Gomes nos anos 1940, a contradição entre o desejo de desaparecimento de um “Brasil formal” e a adesão à ideologia nacionalista. O limite dessa análise está em abandonar as sucessivas tentativas de composição, dissolução e socialização dessa contradição que serão experimentadas até os últimos escritos de Salles Gomes, constituindo um de seus movimentos centrais.
  • 14
    Nessa mesma conferência, Salles Gomes afirma que a I Retrospectiva do Cinema Brasileiro marcaria a tomada de consciência acerca do cinema nacional. Essa periodização marca uma das principais diferenças, nunca explicitada, em relação à Introdução ao cinema brasileiro, de Alex Viany (1993, p.109-27), que privilegia os Congressos do Cinema Brasileiro realizados no início dos anos 1950. Ainda que não apareçam no documento aqui analisado, as diferenças em relação a Viany são significativas nesse contexto.
  • 15
    Nesse sentido, Alex Viany (1993, p.76-91) demonstra uma sensibilidade prematura em relação à chanchada, seja na Introdução ao cinema brasileiro, seja e em seu filme Agulha no palheiro (1953).
  • 16
    É recorrente associação com a importação de um objeto comezinho como o palito de dente, mencionado no depoimento à CPI do Cinema, em 1964 (Salles Gomes, 2014, p.110), e em “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, publicado em 1973 em Argumento (Salles Gomes, 2016, p.191).
  • 17
    Embora o tema não seja abordado nesses termos por Anita Simis (2015), seria possível extrapolar o argumento de Salles Gomes e sugerir uma vinculação entre o debate sobre a taxação de filmes virgens e filmes impressionados, por quilo ou por item, com a existência dessa mentalidade. Anos mais tarde, a formação de hábitos de consumo receberá um novo tratamento, de maneira quase concomitante, por Salles Gomes (“Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, 1973) e Celso Furtado (“O mito do desenvolvimento econômico”, 1974).
  • 18
    Desde o célebre artigo “Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo”, de Alexandre Astruc (L’Écran Français, 1948), a individuação dos produtos fílmicos é feita por meio de um estilo identificável do diretor-autor e por metáforas que remetem à autoria literária (stylo, isto é, caneta), o que mais tarde viria a fundamentar a “política dos autores”.
  • 19
    Comentário semelhante aparece no artigo “O cinema no século” (Jornal do Brasil, 1970; Salles Gomes, 2015, p.572-9).
  • 20
    A opção por marcar a convergência desses autores explica-se pela ausência de uma prioridade genética clara entre eles. Agradeço a Rafael Zanatto por sublinhar esse ponto em mais de uma ocasião.
  • 21
    A construção de uma metodologia por Salles Gomes foi largamente analisada por Adilson Mendes (2013) e Rafael Zanatto (2018). Como se pôde perceber em notas acima, há outros pontos de discordância entre Salles Gomes e Viany que não dizem respeito a questões de ordem metodológica.
  • 22
    Referida a um contexto anterior da produção de Salles Gomes, a expressão foi trabalhada por João C. Zuin (2001).
  • 23
    Além de “Evocação campineira” o conjunto é formado pelos artigos “Um pioneiro esquecido”, “Pesquisa histórica”, “Dramas e enigmas gaúchos”, todos de 1956, e “Visita a Pedro Lima”, de 1957.
  • 24
    O quiproquó em torno do nome de E. C. Kerrigan seria retomado mais tarde, em 70 anos de cinema (Salles Gomes, 2016, p.144-51). Ele também já fora mencionando nos artigos já citados “Evocação campineira” e “Decepção e esperança”. De forma quase simultânea ao cinema de Kerrigan, Oswald de Andrade jogava com as risíveis composições nos nomes de empresas cinematográficas citadas nas Memórias sentimentais de João Miramar (1924), onde a Empresa Cubatense se torna Piaçanguera Lightning and Famous Company Pictures of São Paulo and Around (cf. Mariutti, 2009).
  • 25
    João da Mata seria citado em “Evocação campineira” e em “Vinte milhões de cruzeiros” (Suplemento Literário, 1957), mas sem menção ao seu conteúdo.
  • 26
    A formação de uma mitologia cinematográfica, por vezes vinculada ao tema do erotismo, foi discutida em alguns artigos no Suplemento Literário, como “Mitologia e verdade” e “Erotismo e humanismo”, ambos de 1958. Em 1960, a discussão sobre o erotismo foi atualizada em função da ameaça de censura ao filme Os amantes (1958, dir. Louis Malle), na série de artigos para o Suplemento “Os amantes ultrajados” (Salles Gomes, 1981, v.2, p.161-86).
  • 27
    A sugestão não é original e remete a Serguei Eisenstein e seu artigo “Dickens, Griffith e nós” (1944). A fórmula foi utilizada por Salles Gomes nos artigos “O narrador e a câmera” e “D. W. Griffith” (Suplemento Literário, 1958; Salles Gomes, 1981, v.1, p. 416-19; Salles Gomes, 2015, p.73-9). Na tese de doutorado, Salles Gomes desenvolve o tema, indicando que mesmo a relação com Griffith é mediada, notadamente pelo filme David, o caçula (1921, dir. Henry King).
  • 28
    Em referência ao filme O negro que tinha a alma branca (1927, dir. Benito Perrojo). Embora Salles Gomes note na tese de 1972 o racismo manifesto de Mauro, ele atenua seus contornos, ao contrário do que faz com Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, redatores de Cinearte (Autran, 2003-2004).
  • 29
    Entre a conferência e a tese, Mauro ainda apareceria como personagem (“tio Humberto”) no roteiro “Em memória de Helena”, escrito por Salles Gomes com a colaboração de David Neves no final dos anos 1960 (PE/PI 0268). No filme dirigido em 1969 por David Neves a partir desse roteiro, Memória de Helena, Humberto Mauro atuaria como “tio Mário”. O que nos interessa aqui é o papel da personagem no agenciamento de imagens que revelam o tecido cultural mineiro, deslocado para Diamantina.
  • 30
    No momento da conferência, o filme mais recente de Walter Hugo Khouri, Na Garganta do Diabo (1960), havia sido filmado nas Cataratas do Iguaçu. Ravina (1958, dir. Rubem Biáfora) foi filmado em Campos do Jordão.
  • 31
    A expressão “ficção compensatória” aparece, no Suplemento Literário, em “Desconfiança por Bolognini” (1960) e “Cinema e prostituição” (1961), nos dois casos associada ao tema da prostituição. A ideia retornaria com força em “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” e em entrevistas dos anos 1970, como em “Ela (a pornochanchada) dá o que eles gostam?” (Movimento, 1976; Salles Gomes, 2014, p.44-55).
  • 32
    A respeito da simpatia de Candido pelo “segundo escalão”, cf. Paulo Arantes (1997, p.43-6).
  • 33
    Veja-se a distância tomada por diversos diretores em relação ao cinema do começo da década (Xavier, 2012, p.32-40).
  • 34
    Quanto ao tema do saber universal, em sua versão popularizada, uma vítima comum a Candido e a Salles Gomes é Ruy Barbosa: “Há anos, no interior de Minas, um velho negro, de esplêndida barba branca, analfabeto e majestoso, me informou que Rui Barbosa falava todas as línguas do mundo” (Candido, 2017, p.247). “E tanto eu como o senhor lemos o Cemitério e sabemos que quando dr. Rui Barbosa chegou e falando holandês com o porteiro apresentou as credenciais do Brasil ninguém lhe deu importância, mas mesmo assim deixaram entrar. Lá dentro disse bom dia em francês, inglês, alemão e russo, e foi olhado” (Salles Gomes, 2007, p.42).
  • 35
    Sobre o trabalho com as fórmulas num contexto familiar a Salles Gomes, a crítica de André Bazin, cf. Hervé Joubert-Laurencin (2014, p.153-8).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2020
  • Aceito
    29 Abr 2021
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