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Literatura, formação e educação na obra de Antonio Candido: a humanização do homem

RESUMO

Como a literatura obteve a primazia na vida cultural e intelectual no país e ocupa lugar destacado na obra de Antonio Candido de Mello e Souza, neste trabalho, a partir de suas reflexões, procura-se apresentar algumas discussões sobre a contribuição da literatura para a formação e humanização do homem. Pois em seu caminho o crítico literário voltou seu olhar também para a educação, aspecto pouco relevado de sua produção se comparado a outros como o de crítico literário. Nesse sentido, não seria exagerado afirmar que Candido fornece importantes contribuições, subsídios e ferramentas teóricas para um repensar do modo que temos concebido o processo de formação e construído historicamente a educação e a universidade no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:
Literatura; Educação; Formação; Humanização; Antonio Candido

ABSTRACT

As literature obtained primacy in Brazil’s cultural and intellectual life and occupies a prominent place in the work of Antonio Candido, in this article, based on his reflections, we strive to show some discussions on the contribution of literature to the formation and humanization of man. Because, on his journey, the critic also turned his attention to education, a less relevant aspect of his production when compared to others, such literary criticism. In this sense, it would not be an exaggeration to say that Candido provides important contributions, scholarly underpinnings, and theoretical tools to rethink how we have conceived the educational process and historically constructed the education and the university in Brazil.

KEYWORDS:
Literature; Education; Instruction; Humanization; Antonio Candido

Introdução

São de extrema importância a discussão, a reflexão e o debate acerca da educação e da formação no ensino superior em tempos de diluição aparente do papel das universidades, com as vicissitudes e turbulências do momento em razão da Sars-Covid 19. A imposição do ensino remoto, seja lá o que significa isso, nos diferentes graus de ensino, mas também da injunção de políticas públicas nefastas à vida, à educação e as universidades, bem como, a ausência do poder público conformam um quadro social perverso.

Nessa diretriz, esta proposta de reflexão acerca da educação, formação, humanização e papel do ensino superior se delineia. Para tanto, buscou-se fundamentar a discussão a partir da produção intelectual do sociólogo e crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza. O autor, ao longo de sua obra, diversas vezes ressaltou que, no Brasil, devido ao surgimento tardio da universidade e das explicações científicas, a literatura se propôs como instrumento de investigação e construção de um saber sobre o país. Para o crítico, a criação literária se constituiu mais que a filosofia e as ciências sociais no fenômeno central da vida do espírito, principalmente em seu livro A educação pela noite (Candido, 1989a).

Conforme Célia Pedrosa (1994PEDROSA, C. Antonio Candido: a palavra empenhada. São Paulo: Editora USP, 1994.) em A palavra empenhada, em Antonio Candido nas aulas na universidade, no contato e na convivência com professores, alunos e intelectuais, nas entrevistas, foi erigindo uma compreensão a respeito do tema que resgata a dimensão de formação humana, intelectual e cultural da educação. Suas discussões além de sinalizar para a necessidade da busca - no duplo sentido de consciência e práxis com o fazer histórico - de uma educação que visa à formação humana, contribui para o desvelamento do caráter ideológico e reducionista, tanto das análises a respeito do tema como da própria educação no país.

Pedrosa, ao avaliar algumas manifestações do Iluminismo moderno, postula a correspondência entre as perspectivas de Kant e Candido que também confere à liberdade, em contexto e perspectivas diversas, papel fundamental no processo de formação e humanização do homem. Segundo a autora, a perspectiva do filósofo é então adotada por Candido, uma vez que o crítico manifesta “a vontade de utilizar a tradição do saber filosófico e científico como meio de produção de um pensamento livre” (Pedrosa, 1994, p.88). Contudo, não é interesse aqui procurar semelhanças entre as concepções, nem verificar a influência do pensamento de Kant sobre o de Candido, mas resgatar o aspecto da concepção humanística de educação que atribui à literatura valor importante na ação formativa.

Para Candido (1989b_______. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, A. C. R. Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989b. p.107-26.), a liberdade é um “bem incompressível”, termo utilizado pelo autor ao discutir a literatura como um direito, que responde às necessidades profundas dos sujeitos. A liberdade, ou a falta dela, é decisiva no processo de desenvolvimento do potencial humano, através da construção e amadurecimento da personalidade via conhecimento. Daí a razão pela qual, ao ser questionado, durante a ditadura militar no Brasil, a respeito do que estava prejudicando a formação das novas gerações, afirmou enfaticamente que era “a falta de liberdade. A liberdade é o principal para a formação de cada um” - ideia recorrente de Candido, conforme as entrevistas concedidas as revistas: Trans/Form/Ação em 1979 e Isto é em 7/9/1977 -, e condição sine qua non para impedir a hipertrofia do pensamento.

A importância atribuída à atividade, à atitude, ao ato, ao combate e o esforço mostra o valor que o movimento, elemento chave do pensamento, assume para Candido em contraposição à esterilidade da imobilidade. Por outro lado, revela a necessidade da autonomia e do esforço intelectual que se deve ter na busca do pensamento. Ideias reiteradas no ensaio sobre Nietzsche que insiste na necessidade de se alterar o modo de encarar a vida e o conhecimento. De superarmos “as injunções, as normas cristalizadas, tudo enfim que tende a imobilizar o ser em posições já atingidas e esvaziadas de conteúdo vivo” (Candido, 1992, p.198), através da busca do pensamento, da “busca de ângulos novos, posições inexploradas, renovando sem parar as técnicas do conhecimento” (ibidem, p.202).

Ao conceber o pensamento de Nietzsche como uma “permanente aventura”, Antonio Candido o reconhece como “eminentemente educador” de “técnicas libertadoras”, que ensina que um livro tem valor quando “for capaz de nos transportar além do livro” (ibidem, p.203). Nesse sentido, são portadores e educadores os que, assim como Nietzsche “iluminam bruscamente os cantos escuros do entendimento e, unificando os sentimentos desparelhados [...] revelam a possibilidades de uma existência mais real” (ibidem, p.204) e mais humana.

A partir dessas reflexões destaca-se a perspectiva de formação em que o pensamento, a mobilidade e a autonomia assumem papel fundamental. A mobilidade do espírito e a autonomia são elementos essenciais de uma formação que visa à atividade crítica e à atitude intelectual diante da vida e do conhecimento. A formação como bildung, isto é, a compreensão em que a capacidade de autonomia do indivíduo na construção do saber adquire papel fundamental.

Willi Bolle (1997BOLLE, W. A ideia de formação na modernidade. In: GHIRALDELLI JUNIOR, P. (Org.) Infância, escola e modernidade. São Paulo: Cortez; Editora da Universidade Federal do Paraná, 1997. p.12-25.), em “A ideia de formação na modernidade”, mostra o processo pelo qual o conceito de bildung surgiu e tornou-se uma tradição no pensamento alemão. Essa concepção articulada por Nietzsche, inspirado em Goethe, surgiu como alternativa à educação, no processo de acentuação do seu caráter pragmático em função do sistema econômico ou de interesses do Estado.

O conceito moderno de Bildung surgiu na Alemanha a partir de fins do século XVIII. É um conceito de alta complexidade, com extensa aplicação nos campos da pedagogia, da educação e da cultura, além de ser indispensável nas reflexões sobre o homem e a humanidade, sobre a sociedade e o Estado. É até hoje um dos conceitos centrais da língua alemã, que foi revestido de uma carga filosófica, estética, pedagógica e ideológica sem igual. (Bolle, 1997BOLLE, W. A ideia de formação na modernidade. In: GHIRALDELLI JUNIOR, P. (Org.) Infância, escola e modernidade. São Paulo: Cortez; Editora da Universidade Federal do Paraná, 1997. p.12-25., p.14-17)

A ideia de formação se emancipa em relação à educação e ao ensino, segundo Willi Bolle, quando Herder e Nietzsche realçam que ela é também autoformação e atuação viva. Nesse sentido, “articulou-se a ideia de Bildung: algo que não pode ser obtido apenas por meio da educação (o círculo vicioso do ‘ducor’ e do ‘duco’), mas algo que exige independência, liberdade, autonomia e se efetua como um autodesenvolver-se [...]. Portanto, a Bildung como corretivo da educação” (Bolle, 1997, p.17). Por isso formação, educação e ensino não se confundem, ao contrário, o conceito de formação desvela o caráter ideológico da educação e da escola moderna e um dos seus princípios: “estudar o máximo, encher a cabeça até o limite, para evitar o ato de pensar” (ibidem, p.13).

No mesmo sentido não se confundem formação e erudição, formação e instrução, formação e treinamento, formação e jornalismo e formação e profissão. Aliás o imperativo do mercado de trabalho no modo de produção capitalista tem inutilizado e até mesmo, segundo a crítica nietzschiana, banido as instituições de formação. Essas passam a não mais existir e em seu lugar surgem as instituições de “treinamento” que “descuidam da atenção e disciplina para com a linguagem; que fazem de tudo para banir a filosofia; e que se mantêm afastadas do contato vivo com o pensamento e a aprendizagem dos artistas” (Bolle, 1997BOLLE, W. A ideia de formação na modernidade. In: GHIRALDELLI JUNIOR, P. (Org.) Infância, escola e modernidade. São Paulo: Cortez; Editora da Universidade Federal do Paraná, 1997. p.12-25., p.14). E a formação não se reduz à instrução para garantir a sobrevivência ou preparação para o trabalho.

Em alguns de seus trabalhos, Antonio Candido enfatiza a importância do “saber desinteressado”. Ela se mostra, por exemplo, na sua reflexão acerca do papel que os professores estrangeiros desempenharam na Faculdade de Filosofia da USP ao estabelecer uma “concepção de ensino e da pesquisa desligados de finalidade prática imediata, isto é, estabeleceram o conhecimento ‘desinteressado’” (Candido, 1999, p.32).

Apreensivo com os equívocos que essa expressão podia gerar, inclusive a noção errônea do desligamento com os problemas maiores da sociedade, Candido, em “A Faculdade no centenário da Abolição”, ao discutir a concepção dos fundadores da USP, explica que saber desinteressado é “um tipo de ensino superior desvinculado das injunções imediatas da formação profissional” que “visa à pesquisa”, e tem como “finalidade maior a investigação, a descoberta, a inovação” (Candido, 1995b, p.307).

É válido ressaltar que Antonio Candido (1995b_______. Vários escritos. 3.ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995b.) não se colocou pura e simplesmente contra a formação profissional, não se contrapôs formal e absolutamente à organização do ensino superior e à universidade no Brasil, o que seria o não rompimento com uma compreensão linear e estreita do problema da formação e do ensino. Ao contrário, reconhece a importância e o significado da universidade e o que ela representa num país como o Brasil.

Da mesma forma, Candido ressalta o papel da literatura, como forma de conhecimento e esclarecimento, que atua na formação intelectual e promove a humanização do homem. “A literatura e a Formação do Homem” (Candido, 2002) e “Direitos Humanos e Literatura” (Candido, 1989b), mostram uma imbricação profunda entre literatura, formação e humanização. É necessário ressaltar que em sua concepção a literatura pode atuar como elemento formador e contribuir nos processos educativos, contudo, não é a dimensão primeira, única e mais importante da formação.

Para Candido, a literatura é um direito humano fundamental e um dos instrumentos de instrução, educação e formação, não podendo, portanto, ser negado o acesso a ela. De acordo com o crítico, isso explica o fato de que nos países onde a educação apresenta níveis de qualidade social superior ao Brasil, sempre basearam sua educação “nas letras. Daí o elo entre formação do homem, humanismo, letras humanas e o estudo da língua e da literatura” (Candido, 2002, p.79).

Literatura e formação na obra de Antonio Candido

Conforme Antonio Candido, é necessário um saber que promova “uma maior inteligibilidade”, uma vez que os fatos “são de tal maneira complexos, que apenas parcialmente se deixam explicar de maneira rigorosa e impositiva”. Daí a necessidade de uma formação que visa “multiplicar a inteligibilidade do objeto e ampliar a inteligência do sujeito”, cujo “exercício intelectual” se baseie “no esforço da razão”, no “trabalho da razão” e da “sensibilidade”, para que se promova a capacidade de “avaliação”, “distinção”, “julgamento” e “discernimento” (Candido, 1989a, p.131 e 133, respectivamente).

O discernimento e a interpretação assumem relevância em sua obra, aliás são o fundamento do seu método crítico e postura epistemológica. O pluralismo metodológico requer o discernimento crítico, a fim de não se cair nas teias do dogmatismo, do discurso enrijecido e na redução da complexidade do social e do humano. Ao contrário, em “O portador” o discernimento é a possibilidade da compreensão da “complexidade do humano, contra certas versões racionalistas e simplificadoras” (Candido, 1992_______. Brigada Ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da Unesp, 1992., p.198).

O “trabalho de leitura do texto”, da “interpretação”, do “entendimento” requer o discernimento metodológico. E “interpretar é, em grande parte, usar a capacidade” intelectual de superação do “esqueleto do conhecimento objetivamente estabelecido” (Candido, 1993a_______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 7.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993a. v.1 e 2,, v.1, p.34 e 37, respectivamente). O “momento decisivo” da leitura pressupõe o exercício intelectual de “perceber, compreender e julgar”, contudo, “o juízo, não é julgamento puro e simples, mas avaliação, - reconhecimento e definição de valor” (Candido, 1993a, v.1, p.31).

Em suas reflexões Antonio Candido recorre a vários instrumentos de interpretação, ao buscar compreender o fenômeno em sua complexidade e multiplicidade. Nessa diretriz, sistema, função e valor erigem-se como categorias de análise. Cabe ressaltar que apesar de Candido ter escolhido a literatura como objeto de reflexão, essas categorias não se limitam a sua análise, mas sobrepõem-se como instrumentos metodológicos de estudo dos fenômenos sociais.

Ao estudar a formação da literatura brasileira, como “sistema” em movimento, articulado ao processo da sociedade e cultura brasileira, no prefácio à Formação da literatura brasileira, Candido (1993a_______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 7.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993a. v.1 e 2,, v.1) acentua a necessidade da definição, ao mesmo tempo, de função e do valor das obras. Em “A literatura e a formação do homem” (Candido, 2002) ressalta que função é “o papel que alguma coisa desempenha num dado contexto”. O estudo da função evoca “certas noções em cadeia, de cunho mais dinâmico, como: atuação, processo, sucessão, história”. Revelando “a ideia de pertinência e de adequação à finalidade; e daí bastaria um passo para se chegar à ideia de valor” (ibidem, p.77). O valor reside a partir da função que o elemento desempenha no sistema, na totalidade, no contexto histórico-cultural.

A apreensão dessas categorias ou instrumentos de reflexão da realidade, são fundamentais para a mobilidade do pensamento e o discernimento. Necessários ao esforço de compreensão e de interpretação dada a complexidade dos “textos”, das “obras vivas” e da sua “multiplicidade de significados”, e importante para uma leitura que promova a apreensão das contradições como constituidoras do social, das ciências e da esfera do real.

Quem quiser ver em profundidade, tem de aceitar o contraditório [...] porque, segundo uma frase justa ele “é o próprio nervo da vida”. Por outro lado, se aceitarmos a realidade na minúcia das suas discordâncias e singularidades, sem querer mutilar a impressão vigorosa que deixa, temos de renunciar simplificações, reduções ao elementar, à dominante, em prejuízo da riqueza infinita dos pormenores. É preciso, então, ver o simples onde é complexo, tentando o demonstrar que o contraditório é harmônico [...] como forma, para traduzir a multiplicidade do real; seja a forma da arte aplicada às inspirações da vida, seja a da ciência, aos dados da realidade, seja a da crítica, à diversidade das obras. (ibidem, v.1, p.30)

A conceituação do objeto e a apresentação do método de trabalho, em Candido, apontam para os procedimentos inerentes à atividade intelectual. O exercício do pensamento requer disciplina e regras próprias do trabalho intelectual, da aprendizagem e do estudo. No campo da atividade intelectual faz-se necessário o rigor para com os conceitos, a clareza teórico-metodológica e o exercício da reflexão (ibidem, v.1, p.23).

Em sua obra alguns elementos da atividade intelectual e crítica assumem dimensão significativa, atualizando contribuições para a compreensão do processo intelectual para qual um determinado tipo de formação pode contribuir. Conforme explicitado, embora Candido não apresente uma definição do que entende por formação, de sua perspectiva surge uma concepção ampla ao enfatizar, em alguns de seus trabalhos, a importância do processo do cultivo da inteligência e do pensamento, do exercício da linguagem e da prática discursiva, do saber desinteressado, da apreensão da realidade e de suas contradições, da capacidade de discernimento e de interpretação, do exercício crítico, da autonomia do sujeito na busca pelo saber, da formação nas diversas áreas do conhecimento, de uma formação que promova aos intelectuais o senso de percepção dos problemas sociais e a posição contrária à imobilidade do pensamento e a rigidez de interpretações e explicações.

Nessa diretriz, a discussão do crítico literário acerca da universidade, do ensino e da formação se constitui em uma reflexão que se contrapõe às concepções e idéias vigentes. À medida em que defende uma formação que promova o saber, a humanização do homem, a sensibilidade, o desenvolvimento das potencialidades do conhecimento nas diversas áreas, inclusive nas artes e nas letras, Candido resgata a dimensão de formação humana da educação.

Ao explicitar a relação entre literatura e contexto, mostra como a literatura possui funções que atuam significativamente na formação, já que é meio de expressão do homem e depois se volta para sua cognição e formação: A “literatura como força humanizadora, não como sistema de obras [...] é algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem” (Candido, 2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.80).

Em sua reflexão o crítico literário destaca enfaticamente a dimensão cognitiva da literatura e o seu papel formativo. Como forma de conhecimento, no sentido de compreensão e de esclarecimento, ela é meio e instrumento de formação e de educação, de enriquecimento de visão de mundo e da sensibilidade. Enfim, pode contribuir para a formação da personalidade, adquirindo uma função social específica, seja para atender a determinadas necessidades de fantasia que tem o homem, seja pelo papel educativo que pode desempenhar num sentido amplo.

Outro caráter formativo da literatura se refere à função social que ela exerce numa determinada sociedade. A literatura brasileira, à qual Candido dedicou grande parte de sua reflexão crítica, desempenhou papel decisivo na formação de nossa nacionalidade. “As melhores expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária”. Diferentemente do que aconteceu “em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito [...] a literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros” (ibidem, p.130).

Ao considerar a estrutura estética da literatura, Candido não deixa de conjugá-la com a função que ela desempenha em determinados momentos históricos. Em sua reflexão acerca do processo de formação histórica de nossa literatura, ela é vista como um sistema coerente que serviu à edificação da nossa nacionalidade e, nesse sentido, é “eminentemente interessada”. Com isso Candido não quer dizer “que seja “social”, nem que deseje tomar partido ideologicamente. Mas que é toda voltada, no intuito dos escritores ou na opinião dos críticos, para a construção de uma cultura válida no país” (Candido, 1993a, v.1, p.17).

A compreensão da função social da literatura na construção dos valores da nacionalidade brasileira passa, pois, necessariamente, pela distinção entre manifestações literárias isoladas e literatura como sistema estruturado de escritor, obra e público.

[...] Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns aos outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade. (Candido, 1993a_______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 7.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993a. v.1 e 2,, v.1, p.23)

A distinção entre manifestações literárias e sistema literário articulado (ibidem, v.1, p.24) permitiu a Antonio Candido, a partir da linha investigativa voltada para as relações entre literatura e sociedade, texto e contexto e de um método que conjuga ao mesmo tempo, história e estética, propor uma periodização da literatura brasileira diferente da apresentada pela historiografia e pela crítica tradicional. Ao considerar a estruturação de um sistema literário brasileiro somente no século XVIII recebeu uma série de críticas, como a de Afrânio Coutinho (1968COUTINHO, A. Introdução à literatura no Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1968.) que cobra o fato de não ter iniciado sua reflexão a partir da Carta de Caminha. E de Haroldo Campos (1989CAMPOS, H. de. O sequestro do Barroco na “Formação da literatura brasileira”: caso Gregório de Matos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989.) que, no mesmo sentido, afirma que Candido deveria ter principiado, pelo menos, com o Barroco, mais precisamente com Gregório de Matos.

Nessa acepção, nos séculos XVI e XVII no Brasil, houve manifestações literárias esparsas, e somente na primeira década do século XVIII, nossa literatura adquiriu feições mais significativas. É nesse período que ocorre a configuração de uma literatura brasileira, com os autores que pertencem ao movimento literário conhecido como Arcadismo. Para Candido, há uma relação de “solidariedade estreita” entre esse movimento literário e o Romantismo, pois, embora diferentes entre si pela atitude estética, os dois conferem importância fundamental à atividade histórica.

O Arcadismo, segundo Candido, teve uma importância que não pode ser desprezada. Foi o movimento literário que, na busca por padrões universais, nos integrou à tradição da literatura ocidental. A inserção nessa tradição, propiciou o início de um processo de definição de originalidade da literatura brasileira. Sob esse aspecto o Romantismo é uma continuidade do Arcadismo, entretanto, sob o ponto de vista estético, é também ruptura. É sobretudo no Romantismo que o caráter interessado da literatura brasileira se firmou definitivamente: “a literatura no Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada com esse compromisso com a vida nacional no seu conjunto [...] aqui houve a consciência, ou a intenção, de estar fazendo um pouco da nação ao fazer literatura” (Candido, 1993a, v.1, p.18).

No segundo volume de Formação da literatura brasileira, o autor assinala o caráter ou a “vocação extensiva” do nosso romance, uma das dimensões mais significativas do Romantismo, que transpôs para o mundo da ficção o conjunto das formas sociais que organizam o território brasileiro. Uma vez interiorizada pela literatura, a organização social torna-se objeto passível de reflexão e de discussão, o que fez com que esse movimento literário desempenhasse o papel que hoje cabe às ciências sociais.

O nosso romance tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país. Talvez o seu legado consista menos em tipos, personagens e peripécias do que em certas regiões tornadas literárias, a seqüência narrativa inserindo-se no ambiente, quase se escravizando a ele. Assim, o que se vai formando e permanecendo na imaginação do leitor é um Brasil colorido e multiforme, que a criação artística sobrepõe à realidade geográfica e social [...] Literatura extensiva, como se vê, esgotando regiões literárias e deixando pouca terra pra os sucessores, num romance descritivo e de costumes como o nosso. (Candido, 1993a_______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 7.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993a. v.1 e 2,, v.2, p.101)

A dimensão formadora da literatura brasileira, uma vez que que proporciona o autoconhecimento social, encontra-se presente também no Modernismo. Nesse movimento, que pode ser visto como uma expressão marcante de mudanças das condições socioculturais, de criações literárias, científicas e filosóficas, é mais forte o desafio de compreender e explicar a formação da sociedade brasileira.

O Modernismo foi um movimento cultural e intelectual em sentido amplo, movimento de ideias, que não se limitou à produção literária. Desse modo, cientistas sociais, filósofos, escritores e artistas buscaram as origens, as transformações e os movimentos decisivos da formação sociocultural e político-econômica do Brasil. O modernismo instituiu o aniquilamento dos “tabus formais, a libertação do idioma literário, a paixão pelo dado folclórico, a busca do espírito popular, a irreverência como atitude: eis algumas contribuições do Modernismo que permitiriam a expressão simultânea da literatura interessada, do ensaio histórico-social, da poesia libertada” (Candido, 2000_______. Literatura e sociedade. 8.ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000., p.135).

No contexto histórico-social do Modernismo a literatura, na medida em que participou na construção dos valores da nacionalidade brasileira, desempenhou papel formativo. Segundo Antonio Candido, o que caracteriza a literatura como atividade formadora é o fato dela se constituir numa prática discursiva que confere maior inteligibilidade à realidade social e individual, da qual ela constitui representação.

Nessa perspectiva, a literatura é algo que não pode ser apenas fruído, ela é um instrumento de formação, de educação e “extraordinário fator de humanização”. Contudo, isso não quer dizer que a literatura só possui valor quando exerce papel moral ou didático. “É preciso não esquecer que a grande função social da literatura é o grande efeito humanizador que ela exerce, tanto pela forma quanto pela mensagem. Porque geralmente pensamos que o impacto da literatura é a mensagem [...] é a formalização que humaniza” (Candido, 1997_______. Entrevista. Revista Investigações, linguística e teoria literária, v.7, p.7-39, 1997., p.38).

Nessa perspectiva, torna-se necessário ressaltar os equívocos de análises que encaram a literatura como documento ou como reflexo da sociedade. Ao conceber a literatura dessa forma e lhe conferirem valor somente quando reflete aspectos ou a sociedade em geral, essas análises reduzem a sua capacidade formativa, pois, a literatura só tem valor formativo na medida em que é relativamente independente e autônoma.

A literatura, não mais como sistema de obras, autores e público, mas como uma força humanizadora, pode contribuir para a formação do homem. Candido ressalta três funções que atuam nesse sentido e em seu conjunto formam a “função humanizadora da literatura”, que é a “capacidade de confirmar a humanidade do homem”.

A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório, mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusão e inconsciente. Em geral pensamos que a literatura atua sobre nós devido ao terceiro aspecto, isto é, porque transmite uma espécie de conhecimento, que resulta em aprendizado, como se ela fosse um tipo de instrução. Mas não é assim. O efeito das produções literárias é devido à atuação simultânea dos três aspectos. (Candido, 1989b_______. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, A. C. R. Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989b. p.107-26., p.115)

A primeira função é a psicológica, em virtude de sua ligação estrita com a capacidade e a necessidade que o homem tem de fantasiar. Essa necessidade é expressa diariamente através de novelas, músicas e do fantasiar sobre o amor, a vida, o futuro, constituindo-se a literatura a modalidade de fantasia mais rica.

No entanto, as fantasias expressas pela e na literatura têm sempre vínculo com a realidade: “a literatura é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração” (Candido, 2000_______. Literatura e sociedade. 8.ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000., p.53).


Antonio Candido (1918-2017).

Candido chama a atenção para a manipulação técnica que se constitui em fator crucial tanto para a classificação de uma obra como literária, e para a formação e a humanização do homem. Essa linguagem estabelece um modelo arbitrário de ordem possível apenas à “linguagem literária”, isto é, aquela não respeita rigidamente as regras e a estrutura lingüística de um idioma.

As palavras organizadas são mais do que a presença de um código: elas comunicam sempre alguma coisa, que nos toca porque obedece a certa ordem. [...] Em palavras usuais, o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido. (Candido, 1989b_______. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, A. C. R. Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989b. p.107-26., p.115)

A literatura que é processada por meio de representações estilizadas, possui a capacidade de superação das “normas severas” da língua. “A maneira pela qual a mensagem é construída: [...] é o aspecto, senão mais importante, com certeza crucial” (Candido, 1989b_______. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, A. C. R. Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989b. p.107-26., p.114) para o enquadramento ou superação de um estilo literário. E embora a linguagem literária torne possível ou permita a criação de universos imaginários, esses são construídos a partir do contexto de sua produção.

Assim a literatura mantém vínculos com a realidade, segundo Candido, mas não é o seu espelho ou o seu reflexo, pois dela foge através da estilização ou da sua linguagem. O que se constitui em fator de humanização, pois, “a obra literária é uma espécie de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção. A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado. Este é o primeiro nível humanizador, ao contrário do que geralmente se pensa” (Candido, 1989b, p.114).

Nessa perspectiva, os meios técnicos, a organização e a combinação das palavras, o estilo literário, a utilização de rimas, criam uma ordenação que permite a assimilação pelo leitor. Desse modo, a forma dá significado ao conteúdo, e ambos redundam na construção de um objeto, nesse caso a literatura, que “transmite uma espécie de conhecimento”.

O momento decisivo da leitura é o momento do reconhecimento das contradições da experiência humana e social, que o texto, organiza numa unidade, a forma estética. A atuação da literatura como instrumento de formação, reside, portanto, na leitura da obra. A leitura não se resume a uma mera decodificação de signos linguísticos. Apesar de essa ser uma ideia comum, ela é parcial, pois uma decodificação pura de sinais não tem sentido. É necessário levar em consideração os significados que preenchem esses sinais, pois o texto literário não finaliza um significado único nas palavras. O conjunto de palavras que o compõe possui uma significação complexa e ampla, e as suas relações com o contexto instauram a natureza literária de um texto. As relações do contexto com o texto são os elementos responsáveis pela capacidade formadora da literatura.

Ao discutir os estímulos da criação literária, Candido (2000_______. Literatura e sociedade. 8.ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000., p.63) mostra que uma justa interpretação da literatura das sociedades “iletradas”, dado que as atividades artísticas se encontram “mais direta e perceptivelmente sobre os estímulos imediatos da vida social”, só é possível numa perspectiva interdisciplinar, pois um ponto de vista unívoco da obra literária apresenta uma série de reducionismos que impedem a compreensão da criação e das manifestações literárias em sua complexidade. Essas só podem ser bem apreendidas, por meio da combinação de algumas disciplinas e pontos de vistas como a ciência do folclore, a sociologia e a análise literária.

O predomínio de uma ou de outra imprimem um caráter fragmentário, permitindo a interpretação apenas de um único fator da obra. Por exemplo, o ponto de vista sociológico acerca dos textos literários, “costuma despi-los do sentido estético, essencial para compreender a sua natureza, manipulando-os como traços entre outros de um sistema cultural ou social. E para entender a função da literatura é preciso não perder de vista também a sua integridade estética” (Candido, 2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.44).

Educação e o método crítico: aspectos estéticos e sociológicos da obra literária

Em Formação da literatura brasileira, Candido demonstra em sua prática reflexiva a legitimidade do ponto de vista histórico no estudo da literatura, sem abandonar a perspectiva estética. Evitando o método da historiografia tradicional, que reduz literatura a documento e reflexo da sociedade, assim como o “esteticismo formalista”, que absolutiza a autonomia da obra, Antonio Candido formulou um método crítico que é histórico e estético a um só tempo.

A compreensão da obra literária em sua amplitude e profundidade, tanto “dos povos civilizados” como a dos “grupos iletrados”, passa necessariamente pelo não sacrifício dos aspectos estéticos em detrimento dos sociológicos ou vice-versa. Para que isso ocorra as análises devem considerar simultaneamente as três funções da literatura: a função total, a função social e a função ideológica. A função total diz respeito aos elementos estéticos da obra:

[...] deriva da elaboração de um sistema simbólico, que transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos expressivos adequados. Ela exprime representações individuais e sociais que transcendem a situação imediata, inscrevendo-se no patrimônio do grupo. Quando, por exemplo, encaramos a Odisseia, o aspecto central que fere a sensibilidade e a inteligência é esta representação de humanidade e beleza, que por meio dela se fixou no patrimônio da civilização [...]. A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende de sua intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um momento determinado e a um determinado lugar. (Candido, 2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.45, grifo meu)

A função social diz respeito ao papel desempenhado pela obra no estabelecimento de relações sociais, “na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade” (Candido, 2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.45). Essa função não depende da consciência ou da vontade dos autores e dos leitores, mas da natureza da própria literatura, da inserção em um universo simbólico cultural da qual se constitui sistema de expressão.

A terceira função, a ideológica, englobada nas duas primeiras, se refere a um sistema de idéias que se tenciona mostrar. É o caráter “interessado” que algumas manifestações literárias apresentam e, embora, essa função seja importante “para o destino da obra e para a sua apreciação crítica, de modo algum é o âmago do seu significado”. Desse modo,

[...] a criação literária corresponde a certas necessidades de representação do mundo, às vezes como preâmbulo a uma práxis socialmente condicionada. Mas isso só se torna possível graças a uma redução ao gratuito, ao teoricamente incondicionado, que dá ingresso ao mundo da ilusão e se transforma dialeticamente em algo empenhado, na medida em que suscita uma visão de mundo. (Candido, 2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.46)

Nessa diretriz, Candido afirma que de todas as formas de fantasiar a literatura é a mais rica, pois oferece ao leitor novas perspectivas, ou seja, cria um universo fictício no qual o homem se aprofunda e dele sai com a possibilidade de ampliar sua “capacidade de ver e sentir”, enriquecendo sua percepção e visão de mundo.

Pelas relações com a realidade, a literatura passa a exercer sua segunda função, denominada por Candido de função formadora. Ao discutir essa função, o autor elabora algumas questões para melhor explicitá-la. “A literatura tem uma função formativa do tipo educacional?”; “tomadas em si mesmas, seriam as letras, humanizadoras, do ponto de vista educacional?”; “Teria a literatura uma função de conhecimento do mundo e do ser?”.

A literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial [...] Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela [...] Dado que a literatura ensina na medida em que atua em toda sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e de boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com as realidades que se tenciona escamotear-lhe. (Candido, 2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.79)

A natureza da função educativa da literatura é mais complexa e mais ampla do que o ponto de vista puramente pedagógico, pois a ação exercida pela literatura ultrapassa a noção de atividade limitada e direcionada segundo as regras e normas sociais vigentes. Ao contrário, ela também pode exprimir realidades que não são aceitas pelos grupos responsáveis por manter a ordem social, pode proporcionar novas maneiras de encarar a realidade. Por isso em determinados processos históricos e sociedades, alguns livros e autores foram expressamente proibidos, entre outros, no período em que a Congregação do Index ou o Santo Ofício elaborou a lista de livros proibidos aos católicos, durante as ditaduras militares no Brasil e em vários países da América Latina.

A esse respeito, Candido enfatiza as atitudes ambivalentes que a literatura pode suscitar. Se por um lado, ela é vista como instrumento de educação, concebida como meio de instrução e por isso inserindo-se nos currículos, por outro, é temida e proibida como fonte de subversão e perversão. Na realidade, isso diz respeito às diferentes faces da literatura, pois “os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática” (Candido, 1989b, p.113).

Desse modo, as concepções acerca do papel da literatura na formação do homem apresentam perspectivas paradoxais: por um lado, há a idéia comum de uma literatura que eleva e edifica, por outro, há a noção de corrupção que sua força pode causar segundo os padrões oficiais. Esses conflitos são gerados, porque os seus efeitos transcendem as normas estabelecidas:

[...] a literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas [...] A respeito dos dois lados da literatura, convém lembrar que ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade. (Candido, 1989b_______. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, A. C. R. Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989b. p.107-26., p.113)

O cunho ideológico da noção de que a literatura edifica ou corrompe é visível. Já no século XVII, essa noção encontra-se presente entre os teóricos da literatura e romancistas. Ao refletir acerca de “A timidez do romance” (Candido, 1973CANDIDO, A. A timidez do romance. Alfa, v.18, n.19, p.61-80, 1973., p.61-80) até o século XVIII e a proeminência da ficção alegorizante - em uma nota o crítico literário esclarece que: “considero alegórico o modo que pressupõe a tradução da linguagem figurada por meio de chaves uniformes, conscientemente definidas pelo autor e referidas a um sistema ideológico” (ibidem, p.65) -, Candido ressalta as três justificativas-objetivos que contribuíram para esse acontecimento na história da literatura.

A partir da tríade “edificar, instruir e divertir”, nesse período, o romance foi condenado e negado como gênero literário válido e digno, e o livre jogo da fantasia criadora foi relegado a segundo plano, em detrimento de um propósito moral e o reforço das ideologias dominantes. “Com efeito, “edificar” significa elevar a alma segundo as normas da religião e da moral dominantes; “instruir” significa inculcar os princípios e conhecimentos aceitos; “divertir” significa quase sempre facilitar as operações anteriores por meio de um chamariz agradável, ou proporcionar “honesto passatempo” (ibidem, p.64). Na medida em que essa fórmula não é obedecida, isto é, não serve para justificar ou legitimar a ordem estabelecida, ela passa a corromper.

Na realidade, essa noção nega a natureza da literatura que é “uma atividade sem sossego”, e isto explica o fato de

[...] não só os “homens práticos”, mas os pensadores e moralistas questionarem sem parar a sua validade, concluindo com freqüência e pelos motivos mais variados que não se justifica: porque afasta de tarefas mais sérias, porque perturba a paz da alma, porque corrompe os costumes, porque cria maus hábitos de devaneio. Outro modo de questioná-la, às vezes inconscientemente, é justificá-la por motivos externos, mostrando que a gratuidade e a fantasia podem ser convenientes como disfarce de algo ponderável [...] isto faz que a literatura quase nunca tenha consciência tranqüila e manifeste instabilidades e dilaceramentos, como tudo que é reprimido ou contestado: tem dramas morais, renuncia, agride, exagera a própria dignidade. (ibidem, p.61)

Nas palavras de Candido (2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.81), a literatura “não corrompe nem edifica [...], mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, por que faz viver”. Assim, pode-se perceber claramente o quanto a literatura atua na formação do indivíduo que, através da fruição da arte, pode adquirir conhecimentos, perspectivas e valores que interessam ou não à pedagogia oficial propagar. E estes podem ser aquisições “consciente de noções, emoções, sugestões, inculcamentos, mas na maior parte se processa nas camadas do subconsciente e do inconsciente, incorporando-se em profundidade como enriquecimento difícil de avaliar [...] através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo” (Candido, 1989b, p.116).

Assim, a literatura tem importância equivalente às das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação escolar, grupal, familiar. Além do conhecimento, da organização das emoções e do enriquecimento da visão de mundo, a literatura promove outro tipo de conhecimento. O conhecimento intencional, o que é planejado pelo autor - posição política, ideologia, crença - é conscientemente assimilado pelo leitor. “Nestes casos a literatura satisfaz, em outro nível, a necessidade de conhecer os sentimentos e as sociedades, ajudando-nos a tomar posição em face deles” (ibidem, p.117).

Considerações finais

A “literatura social” ou de cunho social, como no caso de Os miseráveis de Victor Hugo ou no caso da literatura realista no Brasil, em que a crítica assumiu o papel de investigação da nossa sociedade, as convicções dos autores, explícita ou implicitamente, a partir de sua visão da realidade, em tonalidade crítica, resultam numa “literatura empenhada”. Ao focalizar situações de restrições como a miséria, a escravidão, as iniqüidades sociais, essa literatura pode tornar-se instrumento consciente de denúncia e desmacaramento dessas situações.

Contudo, não é correto afirmar que a literatura cumpre sua função formadora somente quando o autor explicita sua posição em relação aos problemas sociais e políticos. Candido chama a atenção para o equívoco dessa concepção, exemplificando com a concepção de literatura autêntica do regime soviético, que defendia e aceitava unicamente a literatura que celebrava as lutas operárias e a concretização do socialismo.

[...] são posições falhas e prejudiciais à verdadeira produção literária, porque têm como pressuposto que ela se justifica por meio de finalidades alheias ao plano estético, que é o decisivo. De fato, sabemos que em literatura uma mensagem ética, política, religiosa ou mais geralmente social, só tem eficiência quando for reduzida à estrutura literária, à forma ordenadora. Tais mensagens são válidas como quaisquer outras, e não podem ser proscritas; mas a sua validade depende da forma que lhes dá existência como um certo tipo de objeto. (Candido, 1989b_______. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, A. C. R. Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989b. p.107-26., p.119)

Ao negar o acesso a outros tipos de literatura ou ao considerar somente a literatura que denuncia as iniqüidades sociais, mutila-se a natureza da produção literária e a sua capacidade de humanização do homem. A capacidade ou o papel que a literatura desempenha na formação e humanização encontra-se na função da eficácia estética da obra, pois o que age como fator de humanização é a própria literatura e a sua capacidade de, ao organizar o caos, criar formas pertinentes, cujo significado influi em nossos conhecimentos e sentimentos.

Para se compreender o processo de restrição e ampliação da fruição desse instrumento de formação e humanização que é a literatura, torna-se necessário levar em consideração o relevante e decisivo fator que é a organização da sociedade. Em contextos e por motivos diversos, nos casos soviético e brasileiro a fruição da literatura dependeu da organização social, política e cultural desses países. conforme o crítico literário, no caso brasileiro a negação da fruição da literatura se dá pela não difusão de formas literárias, devido à organização “estratificada” da nossa sociedade.

No Brasil a fruição desse bem se dá pela divisão de classes, enquanto a literatura erudita é privilégio de pequenos grupos, esse direito é negado às classes espoliadas. Contudo, nesse contexto é necessário esclarecer o “preconceito segundo o qual as minorias” que têm acesso às formas de artes “são sempre capazes de apreciá-las - o que não é verdade. As classes dominantes são freqüentemente desprovidas de percepção e interesse real pela arte e a literatura ao seu dispor, e muitos dos seus segmentos as fruem por mero esnobismo, porque este ou aquele autor está na moda, porque dá prestígio gostar deste ou daquele pintor” (Candido, 1989b_______. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, A. C. R. Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989b. p.107-26., p.125-6).

O elevado índice de analfabetismo no Brasil, o número reduzido de leitores reais - menor que o número de portadores de diploma, já que aqui possuir um não significa saber ler e escrever -, fatores de ordem econômica e política, formam um quadro em que a maioria da população fica privada ao acesso a esse bem. Antonio Candido em “Literatura e subdesenvolvimento”, ao estudar as condições da difusão e as das produções das obras, enfatiza que nos países latino-americanos o problema da difusão da cultura se deve, entre outros fatores, aos:

[...] níveis insuficientes de remuneração e a anarquia financeira dos governos, articulados com políticas educacionais ineptas ou criminosamente desinteressadas [...]. Na maioria dos nossos países há grandes massas ainda fora do alcance da literatura erudita, mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do rádio, da televisão, da história em quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de massa. Daí a alfabetização não aumentar proporcionalmente o número de leitores da literatura, como a concebemos aqui; mas atirar os alfabetizados, junto com os analfabetos, diretamente da fase folclórica para essa espécie de folclore urbano que é a cultura massificada. (Candido, 1989, p.143-4)

A terceira função formativa da literatura, conforme explicitado, a função social, se constitui na relação da obra literária com a realidade social e humana, ou seja, a identificação do leitor e de seu mundo representados na obra. Desse modo, ao entrar em contato com o texto, o leitor pode reconhecer a realidade que o cerca quando transposta para o mundo da ficção.

Ao causar a integração do leitor ao universo vivencial das personagens retratadas na obra, pode culminar na identificação de uma realidade que não é a sua, mas o leitor incorpora a realidade da obra às suas experiências ampliando seus conhecimentos. Contudo, esse reconhecimento também pode causar uma perspectiva ou visão equivocada, quando a obra literária expressa uma realidade deformada ideologicamente e tomada pelo leitor como realidade ideal.

Desse modo, essa função pode ser ao mesmo tempo humanizadora e alienadora, dependendo da obra e do autor. Ao discutir esse aspecto da função social exemplifica com o movimento literário que ocorreu após o Indianismo no século XIX, Candido (2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.80) afirma: “o Regionalismo, que o sucedeu e se estende até os nossos dias, foi uma busca do tipicamente brasileiro [...]. Ao mesmo tempo documentário e idealizador, forneceu elementos para a autoidentificação do homem brasileiro e também para uma série de projeções ideais”.

Se, por um lado, a temática desse movimento literário resgatou o homem rural pobre, isto é, a escolha por esse tema representa em si uma perspectiva humana do autor, por outro lado, é o tratamento estilístico e a forma lingüística que vai imprimir uma representação humanizada ou desumanizada do homem “rústico”. Dessa forma, a tensão entre tema e linguagem presente no regionalismo confirma um sentido humanizador ou um sentido reificador da obra.

Candido mostra então como Coelho Neto (1864-1934), no conto “Mandovi”, representa um modelo ideológico de distanciamento entre o homem rústico e o homem urbano, através da dualidade de discurso. A diferença entre esses mundos é sublinhada pela fala dos personagens, enquanto o primeiro apresenta um discurso com sotaque e palavras deformadas, o segundo apresenta um requinte gramatical e culto.

Assim, o personagem urbano, em sua narração, se mostra em posição social mais elevada, culta e erudita, enquanto confina o personagem rústico “por meio de um ridículo patuá pseudo-realista, no nível infra-humana dos objetos pitorescos, exóticos para o homem culto da cidade”. Na realidade, a forma como os personagens são tratados demonstra “uma falsa admissão do homem rural ao universo dos valores éticos e estéticos” (Candido, 2002_______. A literatura e a Formação do Homem. In. ___. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p.77-92., p.82).

As três funções que Candido atribui à literatura, na formação do homem, são complementares e simultâneas, partindo da função psicológica, que atua restritamente no universo cognitivo do leitor, passando através da função social a relacionar-se com a sociedade na qual o leitor encontra-se inserido. E à medida que se dá a ampliação da relação texto, leitor e sociedade, a literatura exerce sua função humanizadora, expandindo, ao mesmo tempo, o universo de conhecimento dos leitores.

Através da formação intelectual e cognitiva, da ampliação do conhecimento e enriquecimento da personalidade e do grupo a literatura promove a humanização. Vista desse modo a literatura é fator indispensável de humanização, pois confirma o homem na sua humanidade. A guisa de conclusão, é importante ressaltar que para Antonio Candido, humanização é:

[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade a medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (Candido, 1989b_______. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, A. C. R. Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989b. p.107-26., p.117)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2021
  • Aceito
    02 Out 2021
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