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Castanhais & quilombos do Alto Trombetas (PA): uma proposta de justiça socioambiental

RESUMO

Este artigo analisa a bioeconomia da cadeia produtiva da castanha-do-pará de acordo com parâmetros socioeconômicos de justiça socioambiental. As metodologias utilizadas foram: (1) revisão bibliográfica, (2) observação participante in loco, (3) a descrição da cadeia por meio do valuelinks, (4) a análise dos discursos dos atores envolvidos, (5) a comparação dos valores de compra e venda entre atores, e (6) um estudo de viabilidade de acordo com o conceito de economia justa (fairtrade). Observando a apropriação conceitual como estratégia, notam-se novas versões de manutenção das injustiças presentes na cadeia produtiva da castanha-do-pará oriunda dos castanhais do Alto Trombetas. E conclui que há uma relação mútua entre modo de vida tradicional quilombola e os castanhais, a qual é fundamental para existência da cadeia de produção, por isso há necessidade de maior participação dos extrativistas na governança da cadeia, a fim de equilibrar a distribuição da rentabilidade, e se adequar ao real conceito de fairtrade.

PALAVRAS-CHAVE:
Apropriação verde; Amazônia; Comércio justo; Sociobiodiversidade; Justiça socioambiental

ABSTRACT

This article analyzes the bioeconomy of Brazil’s nut production chain according to socio-economic parameters of socio-environmental justice. The methods used were: (1) review of the literature, (2) participant observation in loco, (3) description of the chain through value links, (4) analysis of the sayings of the main actors, (5) comparison of the values of buying and selling between the actors, and (6) a feasibility study according to the concept of fair trade. Seeing conceptual appropriation as a strategy, we find new versions of age-old injustices in the production chain of nuts from the chestnut groves of Alto Trombetas. the article concludes that there is a mutual relationship between the traditional quilombola way of life and the chestnut groves that is fundamental for the existence of the production chain. Thus, there is need for greater participation of extractivist stakeholders in the governance of the chain to balance the distribution of profitability, and adapt it to the real concept of fair trade.

KEYWORDS:
Green grab; Amazon; Fairtrade; Sociobiodiversity; Environmental justice

Introdução

Estudos comprovam que o extrativismo da castanha-do-pará, embora auxilie na regeneração dos castanhais, não tem sido uma atividade tão rentável para os quilombolas do Alto Trombetas. Apesar de vários projetos econômicos vestidos de filantropia que pudessem melhorar a condição social e econômica das famílias através do comércio de produtos da sociobiodiversidade ou de políticas públicas, dados socioeconômicos mostram que na prática isso não ocorre. O caso da cadeia de produção da castanha-do-pará extraída pelos remanescentes de quilombo no Alto Trombetas é exemplar.

Diante das questões ambientais, a região que se entende por Amazônia é considerada como a maior remanescência de floresta ombrófila do mundo. Os recursos naturais e humanos da região historicamente foram alvos da cobiça da sociedade globalizada, a fim de suprir com matérias-primas e mão de obra o sustento de um modo de vida ambientalmente insustentável. A castanha-do-pará, semente do fruto da Bertholletia Excelsa, é um dos bens naturais mais comercializados da Amazônia. Contudo, esse comércio bem consolidado não é revertido em bem-estar e riqueza para os extrativistas.

Por “impactos” de forças naturais sobre a habitação humana na Terra, como “desastres”, “pragas”, acidentes nucleares, a partir do século XX, a relação humanidade e meio ambiente se tornou foco de questionamentos e teorias. Esses questionamentos iniciaram com a I “Revolução Industrial” do século XVIII, como a teoria malthusiana. O debate se acentua com a globalização da economia ocidental no século XX, quando o pensamento ambientalista questiona as políticas de “desenvolvimento econômico” (Meadows et al., 1978MEADOWS, D. L.; RANDERS, J.; MEADOWS, D, H.; BEHRENS III, W. Limites do crescimento: um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1978., p.71).

Dentre eles, a crítica de Georgescu-Roegen contra o positivismo do desenvolvimento econômico resultou na não adoção de sua teoria da entropia pelos economistas da época (Cechin, 2008CECHIN, A. D. Georgescu-Roegen e o desenvolvimento sustentavel: dialogo ou anatema? São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado Internunidades em Ciência Ambiental) - Universidade de São Paulo., p.103; Cechin; Veiga, 2010, p.452). Apesar de não ter sido aderida, a teoria da entropia estabelece uma base científica ambientalista, e traz para a biologia a missão de responder os principais questionamentos dos estudos do meio, a ecologia. Desde então, o prefixo “bio” e “eco” se tornaram símbolos do ambientalismo.

O debate ambiental entre o positivismo e o ambientalismo chegou às vias de fato durante a Conferência do Meio Ambiente em Estocolmo em 1972. Foi então que começaram a ser difundidos termos ecológicos, ainda pouco fundamentados, como o de sustentabilidade, além de outros neologismos com os radicais “eco” e “bio” nos relatórios documentos e discursos oficiais. Foi então que a ONU em 1982 criou o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que estabeleceu a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD). A CMMAD elaborou o relatório de Brundtland, intitulado “Nosso Futuro em Comum”. Nesse relatório então surge o conceito “desenvolvimento sustentável”, que, basicamente, trata de um desenvolvimento que atenda às necessidades do presente, sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem às suas necessidades (ONU/CMMAD, 1987).

Apesar da manutenção do caráter positivista de desenvolvimento, também se inicia uma perspectiva social relacionada à questão ambiental, quando cita os povos e comunidades tradicionais no relatório. São esses povos e comunidades que resistem à vertiginosa perda da biodiversidade do planeta em prol do “desenvolvimento econômico”.

Dados biológicos relacionados à ecologia provam que o modo de vida globalizado tem comprometido as futuras gerações de atenderem às suas necessidades. Isso quebra acordos firmados tanto no relatório de Brundtland, quanto na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro em 1992, quando foi assinada a Convenção da Diversidade Biológica (CDB). A convenção trata sobre a biossegurança, ou seja, a segurança da biodiversidade tendo em vista o avanço das pesquisas em biotecnologias relacionadas a Organismos Geneticamente Modificados (OGM).

Diante das críticas, pensando num novo modelo de desenvolvimento econômico a ser proposto para Amazônia, diversos países signatários de acordos, convenções, relatórios e protocolos resultantes de conferências do clima e do trabalho, através da ONU e da OIT durante todo o século XX, se aliam às grandes corporações mundiais, onde visam alcançar um mercado consumidor “consciente”, sob o apelo da responsabilidade social e ambiental. É neste contexto que surge com um termo de duas palavras, “fair trade”, “troca justa”.

Paralelo a isso, economicamente, há um tipo de poder (Foucault, 2014, p.23) que atua como frente de expansão do meio técnico-científico informacional, o capital (Marx, 2011MARX, K. O capital: Crítica da economia política. Livro 1 Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2011., p.169). Mesmo com novos horizontes políticos e científicos, o poder econômico do capitalismo cria diversos arranjos para “financerizar” a natureza e transformá-la em “recurso” (Leff, 2001LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade e poder. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2001., p.62; Porto-Gonçalves, 2004, p.6). A apropriação do discurso é um dos arranjos com inversão de valores, que tem se portado como uma das estratégias do capital para ganhar uma nova roupagem, um novo discurso “verde”. Por isso a necessidade de rever as bases conceituais e documentar como um desses arranjos de manutenção da colonialidade opera.

Assim, o presente artigo relaciona dados socioeconômicos a uma estratégia capitalista de exploração da natureza e da mão de obra tradicional originária. E mostra que um caminho de justiça pode ser traçado. Milton Santos (2000SANTOS, M. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p.74) vê na globalização do mundo uma oportunidade de voz e visibilidade para comunidades e povos tradicionais, que se torna necessária ao passo que o meio técnico-científico-informacional e a sociedade globalizada alcançam as terras tradicionalmente ocupadas (Almeida, 2008ALMEIDA, A. W. B. D. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA/UFAM, Brasil, 2008., p.5). É quando o capital transpassa suas fronteiras. As estratégias apuradas são ressignificações de colonialidades do capital, diante das críticas dos movimentos sociais e das catástrofes ambientais.

Castanhais e quilombos do Alto Trombetas

A mutação das formas de exploração predatória dos recursos naturais e da mão de obra da classe trabalhadora e dos povos e comunidades tradicionais, é uma realidade na cadeia de produção da castanha-do-pará. Após uma década de observação in loco a respeito das condições de acesso ao bem-estar de algumas comunidades tradicionais da Amazônia, especialmente dos remanescentes de quilombo do Alto Trombetas, nota-se a carência de acesso à direitos básicos, constituído o que Josué de Castro trata como fome epidêmica (Castro, 1984CASTRO, J. Geografia da fome. 10.ed. Rio de Janeiro: Editora Antares, 1984., p.25).

A começar com a bauxita, recurso mineral explorado abundantemente nas adjacências dos territórios quilombolas do Alto Trombetas pela Mineração Rio do Norte (MRN). A prefeitura de Oriximiná, o estado do Pará e a União recebem seus royaltys, ainda assim recursos básicos como educação e saúde estão atrelados à vontade da Mineradora Rio do Norte (MRN). A empresa executa diversos projetos junto às comunidades, inclusive voltados para geração de renda, como compensação dos impactos da atividade mineradora. No entanto, o presente artigo traz dados que ratificam consequências das debilidades do sistema público de ensino e saúde nas comunidades quilombolas, demandando assim o apoio de capitais privados da MRN.

A situação socioeconômica das famílias extrativistas poderia e deveria ser melhor. Os projetos deveriam objetivar um empoderamento integral. Visto que, à medida que o extrativista se emancipa, a demanda por apoio de capitais da MRN diminui. Observando os discursos em sítios virtuais, talvez não seja conveniente para a MRN e os outros atores da cadeia de produção utilizar a imagem e a cultura quilombola nas divulgações de seus negócios sem algum contrato de imagem. A partir desses pressupostos, a pergunta é: Atualmente, o que impede os povos e as comunidades tradicionais de se inserirem de forma justa nas cadeias de produção?

A história da formação social brasileira retrata uma sociedade com resquícios coloniais em relação aos descendentes de povos nativos e aos afrodescendentes, além da exclusão de ordem econômica que impede que seus descendentes ascendam socialmente. Então, o artigo se aprofunda na temática econômica e social, de como e por que a Amazônia e as culturas nativas amazônidas são introduzidas numa lógica de mercado, até internacionais, por uma via periférica, que os exclui da governança das cadeias produtivas? Conhecendo os empecilhos históricos à ascensão socioeconômica dos extrativistas até hoje estão presentes no sistema de produção (ou cadeia de produção) capitalista, sob uma nova roupagem de exploração da mão de obra.

Por que o produtor/extrativista/agricultor familiar amazônida não ocupa uma função central nas cadeias de produção, e sim periférica? Por que a condição socioeconômica dessas famílias não permite negociarem o valor de venda de forma igualitária com os compradores? Por que as possibilidades de comércio se apresentam reduzidas e limitadas, mesmo que a função do extrativismo seja imprescindível para as cadeias de produção?

Há a hipótese de os extrativistas quilombolas agirem sob a fome, sob o preconceito, com a falta de informação, com as pressões estado-empresariais, com a sedução de um modo de vida cada vez mais distante da harmonia com a natureza, e com outros fatores que se tornam preponderante no momento da negociação do valor do produto. Com o desenvolvimento das ciências humanas, a física quântica e a astronomia, o meio científico vem ampliando o campo do conhecimento, e se aproximando das áreas da subjetividade do ser, do cosmo, da vida, pode nos ajudar a trazer respostas.

Segundo o IBGE, mesmo com grandes safras (2015; 2018), a castanha-do-pará foi o produto com menor preço médio pago ao produtor em 2017. De acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), de 2005 a 2016 houve um acréscimo de 600% da média do produto pago ao produtor, passando de uma média anual de R$ 0,37/Kg em 2000 para R$ 2,70/Kg em 2015. Entretanto, o aumento não passou de uma correção, pois os valores pagos pelos comerciantes eram irrisórios e de caráter explorador (Conab, 2016, p.7).

Considerando os custos da produção, em 2014, o extrativista quilombola do Alto Rio Trombetas, ao comercializar com o atravessador, obteve um lucro de R$ 0,50 por lata (20L), R$ 2,50 por Hectolitro (HL) (Krag; Santana, 2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017., p.375). Atualmente, são as empresas de beneficiamento que determinam o preço da castanha (ibidem).

Outro parâmetro utilizado é a governança, o quanto o extrativista participa das tomadas de decisões, especialmente na negociação de preço com o comprador, dono ou representante da indústria. O que ocorre somente no discurso, e não na prática. Por uma via da cadeia produtiva, é o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) quem decide o valor a ser comprado, e quem investiu em capital de giro para as primeiras compras da Coopaflora. Por outra via pesquisada, são as usinas de castanha, empresas beneficiadoras e comercializadoras localizadas nas cidades dos municípios de Óbidos e Oriximiná. O que expõe a prioridade em fazer o sistema funcionar, sob preços irrisórios pagos aos extrativistas.

Então, de acordo com dados coletados nos mercados nacionais em 2019, percebe-se que a castanha-do-pará é um produto bem valorizado em relação ao poder aquisitivo da maior parte da população brasileira, a qual tem público consumidor bem específico. Fora da Região Amazônica não pode ser considerado um alimento popular. A média entre os valores mais baratos de quatro estabelecimentos comerciais na Zona Cerealista de São Paulo (SP) foi de R$ 34,90/Kg.

Tendo em vista que o público consumidor já exige determinada responsabilidade na procedência, onde, normalmente, preferem produtos de cadeias que respeitem a natureza, livres de agrotóxicos, que passem por um tipo de comércio justo, tais produtos acabam por sofrer um acréscimo no valor final. Isso ocorre sob o álibi de que produzir orgânico ou realizar um comércio justo custa mais do que como vem sendo feito. Por isso o presente artigo projeta em dados econômicos uma proposta de fairtrade com a média dos menores valores encontrados no mercado nacional.

O artigo compara com propostas vigentes, como a da certificadora Fairtrade Labelling Organizations International (FLO), que certifica o comércio internacional da castanha-do-pará baseada numa fórmula onde:

Preço de referência do mercado + diferencial de orgânico + prêmio de fairtrade = valor do produto.

A certificadora possui uma tabela de preços mínimos para ser utilizado caso a referência de mercado esteja abaixo desse valor. O prêmio Fairtrade é um valor fixo de USD$0,11 centavos/libras que não pode sofrer nenhuma dedução. No caso da castanha-do-pará orgânica com casca vendida, hipoteticamente, no preço mínimo pelas cooperativas quilombolas para empresas exportadoras com a certificação da FLO seria assim:1 1 Valores válidos até o ano de 2015.

0,65 + 0,11 = 0,76 U $ / L i b r a 2

Sendo a cotação do dólar americano = R$ 5,1512, então o valor seria R$ 3,91/Libra.

Sabendo que 1 libra = 0,453 Kg, então o valor seria R$ 8,63/Kg.

Tendo em vista a complexidade da atividade extrativista exercida pelos quilombolas do Alto Trombetas e a pouca cientificidade que a certificadora trata a estimativa de custo da produção,3 3 Guideline for Estimating Costs of Production (Cosp). esse valor não pode ser considerado justo. Baseado no mínimo utiliza métodos semelhantes ao de commodities. Porém esboça um caminho para o comércio internacional, que objetiva a estabilidade do preço do produto. O que beneficia mais os compradores do que extrativistas.

Em depoimentos coletados, um informante afirma que “o castanhal escravizava o negro” (Acevedo Marin; Castro, 1998, p.142). Nota-se que o informante não diz sobre a época do depoimento, mas refere-se aos tempos seguintes após o fim do regime de escravidão. Atualmente, são as empresas de beneficiamento que determinam o preço da castanha (Krag; Santana, 2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017., p.375). Os atravessadores/agentes intermediários dificultam o empoderamento do extrativista, pois visam à troca de produção por mercadoria, o que tende a se tornar análogo ao sistema de escravidão. Ademais o valor pago é o valor do momento da negociação, não o da entrega (Bayma et al., 2014BAYMA, M. M. A. et al. Aspectos da cadeia produtiva da castanha-do-brasil no estado do Acre, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.9, n.2, p.417-26, maio-ago. 2014., p.423; Krag; Santana, 2017, p.376).

O sistema de valoração da castanha-do-pará vendida pelas comunidades do Alto Rio Trombetas encontra-se incompleto. Considerando os custos da produção, em 2014, o extrativista, ao comercializar com o atravessador, obteve um lucro de R$ 0,50 por lata (20L), qual seria o método de valoração utilizado pelas empresas? E no caso de valoração sob a perspectiva dos povos tradicionais, os quais possuem valores imensuráveis, como serviços ambientais? Os serviços ambientais realizados pelas comunidades? A partir desses questionamentos, o presente artigo aborda um dos gargalos da cadeia, que é o valor pago ao extrativista (Krag; Santana, 2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017., p.380), partindo do princípio que isso seja uma questão de justiça.

Isso porque, de acordo com Lobo (2016LOBO, M. F. S. Impactos socioambientais da coleta de castanha-do-para (Bertholletia excelsa, Bonpl.) na reserva biologica do rio Trombetas e entorno, Oriximina, PA. Santarém, 2016. Dissertação (Mestrado em Recursos Naturais da Amazonia) - Programa de Pós- Graduação em Recursos Naturais da Amazonia, Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, Santarém, 2016.), para os extrativistas quilombolas do Alto Rio Trombetas, a castanha-do-pará é o produto responsável pela maior parte da renda das famílias durante o primeiro semestre, época da safra. No Alto Rio Trombetas há o tipo de fruto de maior tamanho da espécie na Região Amazônica. A venda da castanha-do-pará é realizada de forma individual, familiar ou coletiva através das cooperativas.

Em 2005, foi fundada a Cooperativa Mista Extrativista dos Quilombolas do Município de Oriximiná (CEQMO), sob assessoria da ONG Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) com o intuito de organizar principalmente a produção da castanha-do-pará. A CEQMO é uma cooperativa vinculada à Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná (ARQMO), que, por sua vez, funciona como incubadora de outras associações representantes dos territórios quilombolas, como, por exemplo, a Associação Mãe Domingas (AMD) e a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Alto Trombetas II (ACRQAT), representante das comunidades localizadas na área Alto Trombetas 1 e 2, área de estudo desta pesquisa. Conforme o Mapa 1.

De acordo com Krag e Santana (2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017., p.370), a ARQMO/CEQMO possui uma embarcação que realiza o transporte da produção de castanha-do-pará da cidade de Oriximiná até o município de Óbidos, onde estão localizadas duas empresas de beneficiamento. O transporte da castanha-do-pará, desde a embarcação até a empresa de beneficiamento, é custeado pela CEQMO (Krag; Santana, 2017, p.370).

Mapa 1
Territórios quilombolas na Bacia do Rio Trombetas e Erepecuru.

A Cooperativa Mista dos Povos e Comunidades Tradicionais da Calha Norte (Coopaflora) foi fundada com assistência do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e conta com o apoio de quatro Unidades de Beneficiamento de Alimentos (UBA) no Rio Trombetas e Cuminá/Erepecuru, construídas com apoio do Fundo Amazônia/BNDES. Contudo as UBA não beneficiam o fruto para ser comercializado para o Imaflora ou para a empresa de beneficiamento, mas sim utiliza a semente descascada pelas famílias para fazer produtos da merenda escolar.

Em consequência das mudanças históricas das funções dos agentes presentes nas cadeias de produção, atualmente, são poucos os atravessadores independentes. Krag e Santana (2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017.) tratam atravessadores e agentes intermediários como uma unidade, porém, após observações participantes in loco, o presente artigo identificou diferentes especificidades das funções de cada agente na cadeia da castanha-do-pará, especialmente na diferença entre atravessadores e agentes intermediários.

Os atravessadores eram descendentes de famílias de brasileiros, portugueses e italianos que estabeleceram a base do seu poder econômico na comercialização dos gêneros extrativos (Acevedo; Castro, 1998, p.140). A presente pesquisa observou que hoje são agentes vinculados às empresas de beneficiamento. Antigamente, suas comissões eram retiradas na conversão da caixa para o hectolitro. Segundo Acevedo e Castro (1998), utilizavam a caixa de 42L e não de 40L, como estipulado, e recebiam salário dos grandes atravessadores ou donos das empresas de beneficiamento. Krag e Santana (2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017., p.376) identificaram três empresas de beneficiamento na região do Rio Trombetas. Em princípio, na Bacia do Rio Trombetas foram verificadas duas empresas de beneficiamento em Óbidos e uma Oriximiná.

As etapas de beneficiamento da castanha nessas usinas incluem: triagem, lavagem, secagem, descasque e torração. O produto do beneficiamento é a castanha-do-pará descascada, torrada e embalada a vácuo em caixas de 20 Kg. Como visto, de acordo com Krag e Santana (2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017., p.375), a empresa de beneficiamento é o ator/agente que determina o valor da castanha-do-pará a ser pago ao extrativista. Por isso há a necessidade de investigar como ocorre o processo de regulação do preço de compra da castanha dos extrativistas, pois é algo externo a eles e determinante em relação à rentabilidade do trabalho.

A castanha comercializada pelos extrativistas quilombolas através da Coopaflora, com o selo Origens Brasil, é vendida para empresas do ramo de panificação (Wickbold) e varejista exportadora (Purorgânico). Fica por saber para onde as empresas de beneficiamento de Óbidos e Oriximiná vendem? Foram encontradas algumas empresas que compram a castanha-do-pará no mercado nacional. Krag e Santana (2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017.) afirmam que o valor de venda pelas empresas de beneficiamento em 2014 era de R$ 20,00/Kg.

Método

O artigo analisa duas vertentes da cadeia de produção da castanha-do-pará extraída pelas comunidades quilombolas do Alto Trombetas: uma via empresa de beneficiamento, e a outra vendida com a casca sob negociação do Imaflora. Os métodos empregados para coleta de dados foi a observação participante in loco, a esquematização pelo método Valuelink (GTZ, 2007), a pesquisa de mercado na Zona Cerealista em São Paulo, a revisão bibliográfica e a coleta de discursos em sítios virtuais dos atores envolvidos. Para processamento dos dados foi utilizado método de comparação dos valores praticados por cada ator. E por fim, o estudo de viabilidade de cadeia produtiva da castanha-do-pará ainda não praticado, amparado sob determinado conceito de justiça e fairtrade.

Foram pesquisados os preços do quilo da castanha-do-pará em diferentes lojas especializadas e supermercados de São Paulo, e o quilo variou entre R$ 34,00 e R$ 170,00, com média de R$ 100,00/Kg. Assim, a metodologia valuelink (GTZ, 2007) aplicada ao mapeamento da cadeia de produção da castanha é uma ferramenta que explicita de forma mais didática o sistema de valoração, conforme os valores de compra e venda entre os atores da cadeia.

Primeiro, o caminho da castanha-do-pará do Alto Trombetas por meio das empresas de beneficiamento até chegar ao consumidor.

Esquema 1
Diagrama de bloco da cadeia produtiva da castanha-do-pará oriunda da atividade extrativista dos quilombolas do Alto Trombetas vendida por meio da CEQMO, sob assistência da CPI-SP, para empresas de beneficiamento de Óbidos e Oriximiná.

Segundo, por meio da certificadora Imaflora e o selo Origens Brasil, passando pelas empresas certificadas e pelo comércio varejista até chegar ao consumidor. Como representado no Esquema 2.

Esquema 2
Diagrama de bloco da cadeia produtiva da castanha-do-pará oriunda da atividade extrativista dos quilombolas do Alto Trombetas vendida por meio da Coopaflora, sob assistência do Imaflora e certificação de “comércio ético” do selo Origens Brasil.

Krag e Santana (2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017., p.374) informam que em 2014 a castanha-do-pará foi vendida pelo extrativista ao atravessador com a média de R$ 1,10/Kg, a empresa de beneficiamento informa que compra a castanha-do-pará pelo preço médio de R$ 2,50/Kg e vende a R$ 20,00/Kg para as indústrias de óleo e comerciantes varejistas nacionais e internacionais. O comerciante varejista nacional vende a castanha-do-pará de R$ 31,90 a R$ 170,00. As Fotos 1 e 2 mostram alguns valores pelos quais a castanha-do-pará é vendida.

As Fotos 1 e 2 foram feitas no maior polo varejista de castanha-do-pará fora da Amazônia. Esses foram os menores preços encontrados e que serão utilizados como base de preço do comércio varejista pela presente pesquisa. Nos supermercados foram encontrados os preços mais altos, sendo encontrada desde in natura em embalagens de 200g, misto de cereais (granola), no pão da Wickbold, até em óleo de castanha-do-pará com selo Origens Brasil sendo distribuído na rede de supermercados Pão de Açúcar.

O método valuelinks proposto na cadeia de produção possui uma fórmula: onde o valor do produto final (VF) equivale à soma dos rendimentos de cada atividade produtiva e seus atores (R n): VF = R extrativista + R atravessador + R empr. de Beneficiamento + R comerc. Varejista

Foto 1
Foto realizada na Zona Cerealista em São Paulo no dia 26 de dezembro de 2019.

Foto 2
Foto realizada na Zona Cerealista em São Paulo no dia 26 de dezembro de 2019.

Onde o rendimento (Rn) é dado pela diferença entre o valor de venda (VV) e o valor de compra (VC):

R n = V V n

Então, sabendo que a empresa de beneficiamento vende a R$ 20,00/Kg para o comércio varejista, que por sua vez vende para o consumidor por uma média de R$ 34,85/Kg,4 4 Média obtida através da pesquisa de mercado realizada na maior concentração de estabelecimentos de comercialização de castanha-do-pará do Brasil fora da Amazônia (Zona Cerealista de São Paulo). completa-se o ciclo da cadeia produtiva da castanha-do-pará oriunda do extrativismo quilombola no Alto Trombetas.5 5 Foi considerado os menores valores devido à proposta de comércio justo (fairtrade), que se estende até o consumidor final. Considerando a possibilidade de aquisição da castanha-do-pará não somente por consumidores de grande poder aquisitivo. Assim, as Figuras 1 e 2 apresentam os valores em reais (R$) que cada ator da cadeia produtiva vendeu a castanha-do-pará no ano de 2014, de acordo com os valores apresentados por Krag e Santana (2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017., p.374) e a pesquisa de mercado em 2019.

Figura 1
Valor do quilo de castanha-do-pará vendido por cada ator da cadeia em reais (R$). * Não aparece o consumidor, pois ele não vende, somente compra.

Figura 2
Valor do quilo de castanha-do-pará comprado por cada ator da cadeia em reais (R$). * Não aparece o extrativista, pois ele não compra, somente vende.

Discussão

O conceito de Fairtrade normalmente é - ou deveria ser - utilizado para referenciar alguma atividade comercial onde todos os atores se beneficiem mutuamente, de acordo com o tempo e a força de trabalho empregados na cadeia de produção, a qual cada atividade produtiva tenha o rendimento de valor de equiparado e relação às outras, de acordo com a penosidade de cada etapa da cadeia, em condições de igualdade.

Com o objetivo voltado para a conscientização do consumidor, ou para descargo de consciência ambiental também do consumidor, trazendo o termo “ética”, conceito-chave da sociologia e da ciência do direito, as grandes corporações poluidoras em conluio com os Estados-Nação, onde o objetivo do desenvolvimento econômico se resume em transpor as resistências ao capitalismo, buscam o acesso a um mercado “diferenciado” (Briant; Goodman, 2004, p.359), os consumidores conscientes. Na tradução para o português, o termo assume algumas roupagens diferentes, porém com o mesmo sentido cognitivo, como troca justa, comércio justo, comércio ético, ou até mesmo “fértreide” (fairtrade) em inglês, trazendo a noção de responsabilidade socioambiental.

De acordo com a Fair Trade Labelling Organization International (FLO), comércio justo é uma abordagem alternativa ao comércio convencional, e está baseado em uma parceria entre produtores e consumidores, oferecendo aos produtores negócios melhores e permitindo que eles melhorem suas vidas e planejem seus futuros (FLO, 2010). Como se somente consumidores bastassem para determinadas cadeias de produção, como a cadeia de produtos naturais ou in natura ou sintetizados pela natureza como mel e resinas naturais. Já Raynaud et al. (2002RAYNAUD, E.; SAUVEE, L.; VALCESCHINI, E. Quality Enforcement Mechanisms and the Governançe of Supply Chains in the European Agro-food Sector In: 673 Annual Meeting of the International Society for New Institutional Economics. Institutions and Performance, 2002., p.25) entendem como uma cadeia entre o produtor e consumidor final.

Como conceito que ainda está em construção de paradigmas, há diversas linhas de pensamentos e áreas da ciência que contribuem etmologicamente. No interessante estudo de Cantalice e Silva-Filho (2011CANTALICE, F. L. de M.; SILVA-FILHO J. C. L. Fair Trade (comércio justo) como um ‘Tópico Quente” internacional e sua abordagem no Brasil. R. eletr. estrat. neg., Florianópolis, v.4, n.2, p.223-244, jun./dez. 2011.), os autores afinam com a metodologia h-b (Banks, 2006BANKS, M. G. An Extension of the Hirsch Index: Indexing scientific topics and compounds. Scientometrics, Holanda, v. 69, p. 161-168, 2006), classificando o tópico fairtrade como “tópico quente” nas publicações científicas. Os autores afirmam que o fairtrade tem como objetivo fornecer a garantia aos compradores de que determinados produtos foram produzidos de maneira ética, levando em conta aspectos como o bem dos produtores e dos trabalhadores, incluindo alguns critérios sociais e ambientais (Cantalice; Silva-Filho, 2011, p.3).

O conceito de fairtrade surgiu no contexto da emergência ambiental, visto que a relação industrial entre a sociedade e o meio ambiente apontava caminhos desastrosos de insustentabilidade energética, poluição ambiental e relações socioeconômicas desiguais. Como alternativa ao sistema de comércio convencional surgiu a Alternative Trade Organizations (ATO), que produz feiras em espaços públicos que unem redes independentes de comércio alheios ao sistema econômico. A acumulação de capital através do lucro derivado da exploração do meio ambiente e da mão de obra do trabalhador desde o século XIX foi alvo de críticas tanto por Marx e Engels quanto por Proudhon, Bakunin e Kropotikin; quanto pelos artesãos, pela comunidade cigana, circense, hippies, quanto por Gandhi e outras culturas e indivíduos.

Sabendo-se a diferença entre o valor de compra e o valor de venda por quilograma de castanha-do-pará que cada ator pratica, subtraindo os custos de produção que cada ator tem para executar a etapa da cadeia, como descascar, secar, transportar, embalar, coletar, entre outros, o que resta é a rentabilidade do exercício da função. E partindo do princípio de que cada etapa tem sua função, e que o arranjo entre as funções/etapas/atores é o que integra a cadeia, o presente artigo analisa na íntegra o equilíbrio justo da rentabilidade entre os atores. A começar pelos valores de compra:

Figura 3
Valor de venda menos o valor de compra do quilo de castanha-do-pará de cada ator em reais (R$) do ano de 2014, independentemente dos custos da atividade produtiva.

Esses valores são dados do ano de 2014 e representam o valor de venda menos o valor de compra. Já os dados de venda do comércio varejista em São Paulo são do ano de 2019, e representam dados atuais sobre o comércio de castanha in natura. Juntos na Figura 3 representam quanto cada ator cobra para exercer a atividade produtiva, independentemente da penosidade da atividade, das tecnologias empregadas, dos serviços ambientais, do número de pessoas envolvidas, da complexidade ou da nobreza da atividade. A Figura 4 mostra a parte de cada ator da cadeia no preço do produto final (R$ 34,85), obtido através da pesquisa de mercado. Na Figura 4 pode-se observar melhor quanto do valor do produto final fica com cada ator da cadeia produtiva.

Figura 4
A parcela que cada ator lucra do produto final. Que nesse caso equivale a R$ 34,85/Kg de castanha-do-pará em dezembro de 2019 na Zona Cerealista em São Paulo (SP).

Nesse caso, a empresa de beneficiamento retém 50,21% do valor do produto final, o comércio varejista retém 40,17%, enquanto os extrativistas retêm 3,16%; as cooperativas, 4,3%; e os atravessadores, 2,15%. Os dados de compra e venda das castanhas-do-pará que passam pela Coopaflora/Imaflora certificada pelo selo Origens Brasil não foram obtidos por serem de caráter sigiloso. Apesar de serem organizações de direito privado, as ONG têm utilidade pública intrínseca, de acordo com a Lei n.13.204/15. Sendo essa uma pesquisa de utilidade pública, de uma universidade pública, financiada com recursos públicos, então para que interesses esses dados possuem caráter sigiloso?

A proposta de fairtrade consiste num equilíbrio dos rendimentos de cada atividade produtiva, com base na fórmula utilizada anteriormente.

V F = Σ R N

Onde RN = VV - VC

Então, em caso que os extrativistas se organizem a ponto de valorizar a mão de obra em 1000%, não aumentar o valor a ser vendido para o consumidor e os rendimentos forem equilibrados entre os atores da cadeia de produção, como mostra a Figura 5.

Figura 5
Quanto cada ator lucraria com essa hipotética forma de fairtrade, sem alterar o valor da castanha-do-pará a ser vendida para o consumidor, que é de R$ 34,85.

Assim, a proposta de fairtade para a cadeia produtiva da castanha-do-pará oriunda dos castanhais do Alto Trombetas para um quilo de castanha-do-pará ser vendida a R$ 34,85 para os consumidores e indústrias transformadoras teria que distribuir a rentabilidade igualmente em três etapas da produção: Extrativismo, beneficiamento e comercialização.

Como a cooperativa ela é formada por extrativistas, então entende-se como a etapa do extrativismo. Somando as duas rentabilidades obtém-se R$ 11,25/Kg. Como as empresas de beneficiamento estão exercendo a atividade de atravessador, então entende-se como etapa de beneficiamento. Somando as duas rentabilidades obtém-se R$ 11,50/Kg. E o comerciante varejista na etapa de comercialização obtém-se R$ 11,25/Kg. Assim, a Figura 6 pode representar melhor o equilíbrio entre os diferentes atores.

Figura 6
O rendimento de cada ator da cadeia de produção sobre o valor do produto final na proposta de fairtrade.

Na presente proposta de fairtrade o comerciante varejista retém 32,28% do valor do produto final; a empresa de beneficiamento retém 29,41%; o extrativista retém 28,69%; enquanto as cooperativas e os atravessadores retêm 3,58%. As três etapas são fundamentais para que haja uma cadeia de produção completa. Cada etapa possui suas particularidades, seus custos, seus tempos de execução e a mão de obra empregada.

Nesse caso a pesquisa usa como base a medida de 1 Kg de castanha-do-pará, sabendo que em todas as etapas os atores precisam de uma área para estoque ou secagem, precisam empacotar ou ensacar e precisam beneficiar o produto de alguma forma. O extrativista retira o ouriço, o atravessador transporta, a empresa de beneficiamento retira a casca, o comerciante necessita de uma embalagem mais aperfeiçoada e de uma estratégia de marketing. Então, de certa forma, os custos em cada etapa da produção estão equilibrados. Com essa proposta a rentabilidade acaba por se reequilibrar também.

Muitas propostas de fairtrade citam a precificação participativa, o que efetivamente, na prática, apenas tem servido para fotografar as comunidades tradicionais para colocarem no sítio virtual do produto. Basta observação in loco, ou através de áudio e vídeo sobre o processo de precificação, que se nota uma submissão à proposta de preço dada pelo comprador, diferentemente do retratado nos relatórios e nos sítios virtuais atribuídos aos outros atores da cadeia.

Normalmente os compradores precificam muito abaixo do valor real, não corrigindo monetariamente o valor do seu produto/trabalho de acordo com a inflação. Isso ocorre pelo fato de os extrativistas estarem alheios às variações dos preços nos mercados devido ao seu modo de vida estar ligado com o seu território.

Realizar uma precificação participativa na atual condição socioeconômica não é justo. Por isso, a necessidade de uma assessoria antropológica que possa auxiliá-los numa caracterização do perfil do seu comprador (atravessador ou empresa de beneficiamento) para determinar um valor para seu produto. Então, cabe uma assessoria para que continuem com seu modo de vida, e se atualizem em relação às astúcias do capital e às variações de preços.

Para que isso aconteça, é necessário um trabalho de base junto às comunidades tradicionais. Quando se fala de trabalho de base refere-se a educação, saúde e bem-estar, ou seja, um projeto deve ter uma quantidade significativa de horas de profissionais qualificados, com experiência em educação no campo ou áreas afins, em cima dos tablados de barracões comunitários ou em escolas do campo, ensinando matemática, economia comunitária, português, direito, contabilidade e outras disciplinas fundamentais para exercerem tal função. Antes de tudo, começar a realizar trabalhos educativos, trazendo informação e conhecimento.

Como mostram Krag e Santana (2017KRAG, M. N; SANTANA, A. C de. A cadeia produtiva da castanha-do-brasil na região da Calha Norte, Pará, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Nat., Belém, v.12, n.3, p.363-86, set.- dez. 2017.), o atravessador, assim como o extrativista, é um dos que exercem atividade menos rentável, e ainda está sendo executada pela empresa de beneficiamento. O que antes ganhava por produção se tornou um funcionário da empresa de beneficiamento. Ele ainda tem sua função na cadeia de produção baseada no fairtrade, tendo em vista que é uma atividade de pouca complexidade, poderia ser exercida pelas cooperativas ou pelos próprios extrativistas. Mas a empresa de beneficiamento, como ator mais organizado da cadeia, tem exercido essa atividade. Esse é o efeito “tubarão” da cadeia de produção, onde os “grandes” “engolem” os “pequenos”.

As empresas de beneficiamento e exportação são os coletivos mais organizados na cadeia e que exercem a atividade mais rentável, não coincidentemente exercem o maior poder, pois são os que determinam o valor a ser pago aos extrativistas. Para que haja um equilíbrio na rentabilidade, no caso de uma organização e de um empoderamento do extrativista, as empresas seriam os primeiros notar os efeitos.

Por exemplo, se o extrativista se organizar e vender a castanha-do-pará por R$ 15,00/Kg para manter o status quo a empresa de beneficiamento terá que aumentar o preço de venda, assim como o comerciante varejista. Por fim, o consumidor perceberá que o preço da castanha-do-pará subiu. Determinado público consumidor retirará ou substituirá a castanha-do-pará de sua dieta, e outros consumidores comprarão em menor quantidade.

Num Estado neoliberal, sem leis para fiscalizar a justiça nas relações comerciais, resta a “mão invisível” da lei da oferta e da procura para regular, ao passo que algum dos atores valoriza sua mão de obra. Então há a possibilidade de os outros atores manterem o status quo e transferirem esse aumento para o consumidor, e há a possibilidade dos outros atores diminuírem sua rentabilidade para manterem a demanda do público consumidor.

Conclusões

  1. Os atores que têm maior rentabilidade na cadeia de produção da castanha-do-pará oriunda do extrativismo quilombola no Alto Trombetas são as empresas de beneficiamento, seguidas pelo comércio varejista. Apesar de terem os maiores rendimentos com a atividade, nunca ocultaram que sua finalidade lucrativa precede ao bem-estar dos outros atores, inclusive do extrativista quilombola. E há um conluio ou pacto social entre atores da cadeia da castanha, que agem em prol da manutenção do status quo.

  2. Os extrativistas quilombolas, apesar de protegerem e auxiliarem na regeneração dos castanhais, são os que exercem a atividade com menor rentabilidade. Em relação à governança da cadeia produtiva, os extrativistas, assim como os atravessadores, são os que menos têm influência no valor a ser comercializado.

  3. Para estar associada ao conceito de fairtrade para a cadeia da castanha-do-pará do Alto Trombetas e para os extrativistas, deve-se passar por atividades de assessorias educacionais, que podem ser realizadas tanto pelas ONG quanto pelas Universidades Públicas. Essa assessoria é necessária na medida em que os outros atores vão se aperfeiçoando em relação ao capitalismo de exploração, estabelecendo relações predatórias para com o (a) próximo (a) e para com o meio ambiente.

  4. A atual condição socioeconômica dos extrativistas não permite uma governança efetiva na cadeia de produção da castanha-do-pará. Mesmo que forçada, fazendo-o exercer um papel, o qual a família extrativista deva se formar, se informar, se empoderar para tal. Por isso, não basta executarem projetos assistencialistas, cujos resultados são materialidades efêmeras, mas sim que passam por pedagogias que gerem autonomia aos povos da floresta.

  5. A estrutura colonial da cadeia de produção da castanha-do-pará do Alto Trombetas é mantida na sua forma econômica através dos valores irrisórios pagos aos extrativistas, e na forma social por meio do baixo nível do ensino de educação básica nas escolas rurais, por meio dos projetos assistencialistas executados pelas ONG, e por meio da desarticulação estratégica das cooperativas e associações comunitárias também exercida pelo estado e pelas ONG.

  6. Há a viabilidade de uma proposta, baseada nos princípios fairtrade trazidos pelo presente trabalho, como um modelo de justiça socioambiental. A partir de dados reais e atuais, prova-se que um modelo de cadeia produtiva justa é possível, e que os parâmetros do conceito de justiça podem ser aplicados na, ou pelo menos em toda, Amazônia. E que só não ocorre pela ganância e pelas disputas de poder que permeiam as relações comerciais capitalistas, as quais individualizam os atores e não os permitem pensar a cadeia de produção da castanha-do-pará e a sociedade em si de forma igualitária, justa e em harmonia com o meio ambiente.

  7. Além de utilizar da mão de obra tradicional, o mercado capitalista se apropria de aspectos culturais das culturas extrativistas através da propaganda para alcançar um perfil de consumo com consciência socioambiental. O que a pesquisa trouxe foi apenas uma dentre as demais estratégias de manutenção das injustiças. Onde os benefícios do conjunto de merchandising, como a mercadoria de qualidade (orgânica) e do marketing cultural, não são repassados aos extrativistas amazônidas.

  8. Pode-se concluir que aqui se trata de mais um caso exemplar do que Nepomuceno et al. (2019NEPOMUCENO, I.; AFFONSO, H.; FRASER, J. A.; TORRES, M. Counter-conducts and the green grab: Forest peoples‟ resistance to industrial resource extraction in the Saracá-Taquera National Forest. Brazilian Amazonia. Global Environmental Change, v.56, p.124-33, 2019., p.1) atentam para um fenômeno que ocorre nas cadeias de produção do rio Trombetas, quando remete ao que Fairhead et al. (2012FAIRHEAD, J.; LEACH, M.; SCOONES, I. Green Grabbing: a new appropriation of nature? The Journal of Peasant Studies, v.39, n.2, p.237-61, 2012., p.1) chamam de greengrab, o que significa “garra verde”.

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Notas

  • 1
    Valores válidos até o ano de 2015.
  • 2
    No dia 21.12.2020.
  • 3
    Guideline for Estimating Costs of Production (Cosp).
  • 4
    Média obtida através da pesquisa de mercado realizada na maior concentração de estabelecimentos de comercialização de castanha-do-pará do Brasil fora da Amazônia (Zona Cerealista de São Paulo).
  • 5
    Foi considerado os menores valores devido à proposta de comércio justo (fairtrade), que se estende até o consumidor final. Considerando a possibilidade de aquisição da castanha-do-pará não somente por consumidores de grande poder aquisitivo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2021
  • Aceito
    21 Set 2022
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