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Política agrícola para o agronegócio: uso de recursos públicos em benefício indireto de multinacionais estrangeiras

RESUMO

A política agrícola brasileira, focada em crédito rural utilizado para a compra de insumos agrícolas que são, cada vez mais, controlados por empresas multinacionais estrangeiras, poderia estar indiretamente financiando corporações internacionais com os recursos públicos. Este trabalho analisa a alocação do crédito agrícola no Brasil e a participação dos grupos brasileiros nos segmentos de insumos produtivos para as duas principais cadeias produtivas consolidadas no país: a da soja e da bovinocultura. Os resultados revelam que a maior parte dos recursos de custeio vai para a cadeia produtiva da soja, em detrimento da bovinocultura, que representa grande parcela de estabelecimentos rurais. Os recursos investidos em produtores rurais que participam de cadeias de produção controladas por grupos multinacionais estrangeiros acabam, indiretamente, financiando empresas internacionais em detrimento ao agronegócio doméstico.

PALAVRAS-CHAVE:
Cadeia produtiva; Soja; Bovinocultura; Participação doméstica

ABSTRACT

The Brazilian agricultural policy is focused on credit used by farmers to purchase agricultural inputs. As these inputs are increasingly controlled by foreign multinational companies, the Brazilian government might be using the taxpayers’ money to indirectly finance international corporations. This paper assesses the endowment of agricultural credit in Brazil and the market share of Brazilian groups in agribusiness supply chains. The study examined the two largest supply chains in the country: those of soybeans and cattle. Results reveal that most of the subsidized credit goes to the soybean supply chain, which encompasses only a small number of farmers. Beef and dairy farming, on the other hand, encompass a large portion of farms, but get a smaller share of the credit. These results show that resources invested in farmers that compose supply chains controlled by multinational foreign groups end up indirectly financing foreign companies to the detriment of domestic agribusiness.

KEYWORDS:
Agricultual supply chain; Soy; Cattle; Domestic participation

Introdução

Há décadas a política agrícola brasileira tem focado especialmente em crédito subsidiado para produtores rurais e a maior parte dos recursos vai para custeio de grandes produtores (Moraes, 2014MORAES, L. A. M. de. Brazil’s agricultural policy developments. Revista de Política Agrícola, v.1, n.2, p.55-64, 2014.). O último Plano Safra trouxe a previsão de R$ 236,3 bilhões, dos quais R$ 56,92 bilhões foram para crédito de investimento e R$ 179,38 para custeio e comercialização (Mapa, 2020). A maior parte desses montantes foi alocada para grandes produtores que receberam R$ 39,52 bilhões para investimentos e R$ 130,58 para custeio (Mapa, 2019).1 1 Aos médios produtores foram alocados R$ 3,8 bilhões para investimento e R$ 29,4 bilhões para custeio por meio do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor (Pronamp). Aos agricultores familiares foram destinados R$ 13,6 bilhões para investimento e R$ 19,4 bilhões para custeio por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) (Mapa, 2019).

Betarelli Júnior, Faria e Albuquerque (2019) destacam que o crédito de custeio é utilizado como capital de giro pelo produtor rural para comprar insumos produtivos como sementes, agrotóxicos, adubos, medicamentos, sendo realizado para um ciclo produtivo, com o pagamento efetuado ao final da produção. Já o crédito de investimento permite compra de máquinas agrícolas, implementos, matrizes que se configuram como investimentos a longo prazo (ibidem). O crédito é oferecido com capital privado por instituições bancárias e conta com a equalização das taxas de juros (subsídios) realizada pelo governo com o uso de recursos públicos.

A atual política agrícola brasileira e a manutenção do crédito são defendidas dada a relevância do agronegócio para a balança comercial brasileira e em benefício do produtor rural que teria como alternativa recorrer a financiamento de tradings no sistema barter ou reservar recursos para capital de giro (Xavier, 2021XAVIER, L. F. Recursos do orçamento público federal destinados ao meio rural: dinâmica das contas brasileiras entre 2000 e 2017. Revista de Economia e Sociologia Rural, v.59, n.2, p.1-20, 2021.). O crédito subsidiado pelo governo é também uma garantia no caso de perdas significativas dada a possibilidade de renegociar a dívida com o Estado, o que é mais difícil no setor privado que conta com mecanismos como a garantia de pagamento pela cédula do produto rural.2 2 Tendo em vista que os recursos da política agrícola são escassos, o poder público entendeu a necessidade da participação de investidores privados para o melhor desenvolvimento do setor. Nesse contexto, a Lei n.8.929/94 introduziu a Cédula de Produto Rural (CPR), que possibilita que o produtor faça a liquidação física ou financeira a seus credores. No vencimento determinado pelo título, o titular da CPR poderá exigir do emitente o produto, na quantidade e qualidade estabelecidas. Particularmente associações de produtores como Aprosoja e CNA são defensoras do crédito subsidiado para produtores rurais (CNA, 2018).

No entanto, acumulam-se críticas ao atual modelo da política agrícola brasileira que há décadas prioriza crédito subsidiado (Medina, 2018MEDINA, G. Agropecuária brasileira diante das dinâmicas internacionais. Goiânia: Editora UFG, 2018. v.39.), diferente das políticas agrícolas de outros países como Estados Unidos e os da União Europeia (Mcfadden; Hoppe, 2017MCFADDEN, J. R.; HOPPE, R. A. The Evolving Distribution of Payments From Commodity, Conservation, and Federal Crop Insurance Programs. USDA, 2017.; Potter; Tilzey, 2007POTTER, C.; TILZEY, M. Agricultural multifunctionality, environmental sustainability and the WTO: Resistance or accommodation to the neoliberal project for agriculture? Geoforum, v.38, n.6, p.1290-303, 2007.; Prokopy et al., 2019PROKOPY, L. S. et al. Adoption of agricultural conservation practices in the United States: Evidence from 35 years of quantitative literature. Journal of Soil and Water Conservation, v.74, n.5, p.520-34, 2019.). Estudos também chamam a atenção para a “suposta contribuição” do agronegócio para a economia nacional, que desconsidera a rolagem de dívidas do setor que se acumulam historicamente (Mendonça, 2015MENDONÇA, L. M. A crise permanente do agronegócio. In: Direiros Humanos no Brasil. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Outras Expessões, 2015. p.238.). Adicionalmente, investigações revelam que o crédito tem sido alocado para os mesmos produtores e para cadeias produtivas convencionais (soja, carne, leite), apesar do aumento no volume de recursos (Corcioli, 2019CORCIOLI, G. Evolução do Pronaf no Estado de Goiás: Tendência de Concentração de Investimentos em Atividades Pecuárias Tradicionais. Boletim Goiano de Geografia, v.39, p.1-21, 2019.).

Essas críticas revelam o agronegócio brasileiro como um segmento cuja competitividade deve-se a alto grau de benefícios que tem recebido ao longo de décadas. Esses benefícios incluem a política agrária que tem sido conivente com grilagem de terras (Torres et al., 2017TORRES, M.; DOBLAS, J.; ALARCON, D. F. Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo: Urutu-branco; Altamira: Instituto Agronômico da Amazônia, 2017. 243p.), a política ambiental leniente com desmatamentos ilegais em fronteiras agrícolas (Mello-Théry, 2019) e a renúncias fiscais como as da lei Kandir, que isenta de tributos exportações de produtos primários como soja em grãos (Marinho; Duca, 2019MARINHO, M. S.; DUCA, F. M. F. Desoneração das exportações e seus impactos jurídico-econômicos: uma agenda de pesquisa para um novo modelo tributário do setor primário exportador. In: 18º SEMINÁRIO DE DIAMANTINA, 2019, Diamantina. Caderno de Resumos. Belo Horizonte: Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, v.1, p.141-2, 2019.). O agronegócio conta com o apoio do Estado brasileiro, seja por meio das políticas indiretas, como as voltadas à infraestrutura, câmbio e de incentivos fiscais, seja por meio das políticas diretas como as políticas de crédito rural (Leite, 2020LEITE, S. P. Ruralidades, enfoque territorial e políticas públicas diferenciadas para o desenvolvimento rural brasileiro: uma agenda perdida? Estudos Sociedade e Agricultura, v.28, n.1, p.227-54, fev. maio, 2020.). Apesar dos inúmeros benefícios, o agronegócio brasileiro segue demandando a redução do Custo Brasil com investimentos públicos para a melhoria das condições de escoamento da produção e crédito subsidiado para produtores rurais a partir de recursos públicos.

Os estudos em agronegócio chamam a atenção para um aspecto adicional a ser considerado: a política agrícola diante da participação brasileira nas cadeias produtivas do agronegócio estabelecido no Brasil (Santos; Glass, 2018SANTOS, M.; GLASS, V. Atlas do Agronegócio: Fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2018.). Esses estudos revelam a importância de analisar toda a cadeia de produção (Koberg; Longoni, 2019KOBERG, E.; LONGONI, A. A systematic review of sustainable supply chain management in global supply chains. Journal of Cleaner Production, v.207, p.1084-98, jan. 2019.) uma vez que os fornecedores dos insumos produtivos no Brasil são cada vez mais empresas multinacionais estrangeiras (Medina; Ribeiro; Brasil, 2016MEDINA, G.; RIBEIRO, G.; BRASIL, E. M. Participação do capital brasileiro na cadeia produtiva da soja: lições para o futuro do agronegócio nacional. Revista de Economia e Agronegócio, v.13, n.1, 2016.).

Esse fato leva à hipótese de que a atual política agrícola indiretamente financia corporações estrangeiras com os recursos públicos sem contribuir para o desenvolvimento do agronegócio doméstico. Estudos recentes apontam para o fato de que os recursos da política agrícola são transferidos para um pequeno número de empresas transnacionais que controlam o mercado de insumos agrícolas no Brasil sobretudo o segmento de sementes e agrotóxicos, mas também, no caso dos recursos de investimento, direcionados para a compra de máquinas agrícolas, setor altamente controlado por multinacionais estrangeiras (Wesz Junior; Grisa, 2017).

Algumas cadeias produtivas de commodities com grande demanda internacional receberam vultosos investimentos feitos por grupos multinacionais inclusive na compra de empresas locais, como é o caso da cadeia produtiva da soja, especialmente a partir da liberalização econômica ocorrida no Brasil na década de 1990 (Bassi; Silva; Santoyo, 2013BASSI, N. S. S.; SILVA, C. L. da; SANTOYO, A. Inovação, pesquisa e desenvolvimento na agroindústria avícola brasileira. Estudos Sociedade e Agricultura, v.21, n.2, p.392-417, 2013.; Costa; Santana, 2014COSTA, N. L.; SANTANA, A. C. Estudo da Concentração de Mercado ao Longo da Cadeia Produtiva da Soja no Brasil. Revista de Estudos Sociais, v.16, n.32, p.111-35, 2014.). Outras cadeias produtivas também receberam investimentos significativos, mas com maior participação de investimentos locais como é o caso da cadeia produtiva da bovinocultura que também é caracterizada pela maior participação de agricultores familiares (Meurer et al., 2015MEURER, P. A. S. et al. Análise da Agroindústria Canavieira nos Estados do Centro-Oeste do Brasil a partir da Matriz de Capacidades Tecnológicas. Revista de Economia e Sociologia Rural, v.53, n.1, p.159-78, 2015.).

Este trabalho busca avaliar a efetividade da política agrícola brasileira atual em apoiar o desenvolvimento do agronegócio brasileiro a partir do conhecimento sobre a participação brasileira nas cadeias produtivas. Especificamente, pretende-se:

  • Levantar a alocação efetiva do crédito agrícola subsidiado pelo Estado brasileiro;

  • Avaliar a participação de grupos brasileiros em relação a grupos estrangeiros em segmentos-chave de duas cadeias produtivas incluindo sementes, fertilizantes/nutrição animal, agrotóxicos/saúde animal, máquinas, produção e processamento e comercialização;

  • Discutir em que medida o uso dos recursos públicos está se dando de acordo com os interesses do país e a necessidade de ajustes.

Metodologia

A análise da alocação efetiva do crédito rural brasileiro foi feita com base nos dados publicados pelo Banco Central do Brasil obtidos na Matriz de Dados do Crédito Rural.3 3 Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/micrrural>. A análise considera os recursos aplicados na cadeia produtiva da soja e na bovinocultura de carne e de leite no período de 2013 a 2020, pois os dados referentes ao crédito rural passaram a compor a matriz a partir de 2013. Para demonstrar a estratificação do recurso aplicado, o estudo considerou o crédito liberado nas transações de investimento, custeio e comercialização, com destaque para o Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor (Pronamp) e Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

Foi dado enfoque maior do crédito de custeio uma vez que os dados de investimentos não permitem distinguir o investimento por cadeia produtiva. Parte importante dos créditos de investimento vai para máquinas que são usadas em diferentes cadeias produtivas (soja, cana, leite, carne etc.). Os dados analisados foram personalizados considerando cinco categorias da Matriz de Crédito Rural, sendo que para o crédito total utilizou-se o filtro Quantidade e Valor dos Contratos por Região, UF e Gênero.4 4 Para a cultura da soja utilizaram-se dois filtros: Quantidade e Valor dos Contratos de Custeio Agrícola por Produto, Segmento e IF e Quantidade e Valor dos Contratos de Comercialização Agrícola por Produto, Segmento e IF. Já para a bovinocultura, utilizaram-se os filtros Quantidade e Valor dos Contratos de Custeio Pecuário por Produto, Segmento e IF e Quantidade e Valor dos Contratos de Comercialização Pecuária por Produto, Segmento e IF. Esses dados foram computados integralmente, de maneira a estabelecer os valores e os percentuais aplicados em cada modalidade e/ou atividade.

Para a estimativa da participação de grupos domésticos, o primeiro passo deste trabalho foi a identificação dos principais segmentos da cadeia de produção de soja e da bovinocultura de carne e leite no Brasil. Conforme definido pelo próprio setor produtivo, esses segmentos incluem sementes, fertilizantes/nutrição animal, agrotóxicos/saúde animal, máquinas, produção e processamento e comercialização (Embrapa, 2019). Em seguida, foram identificadas as principais empresas operando em cada segmento produtivo, o que foi feito a partir de uma pesquisa documental dos materiais institucionais das associações setoriais e das próprias empresas.5 5 No Brasil, as associações de produtores organizados por segmentos produtivos estimam a participação de seus associados no mercado e divulgam essas informações em anuários estatísticos, muitas vezes disponíveis em suas páginas de internet. São exemplos a Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Leite Brasil - <http://www.leitebrasil.org.br/>), o Sindicato Nacional da Indústria de Alimentação Animal (Sindirações - <https://sindiracoes.org.br/>) e outras associações citadas ao longo do trabalho. Com a lista das empresas operando em cada segmento produtivo, foi feito o levantamento dos materiais institucionais disponíveis na página de internet de cada uma das empresas identificadas.

A partir das informações levantadas, estimou-se a participação (market share) das empresas atuando em cada segmento analisado. Primeiro, quantificamos as vendas totais no país para cada insumo em cada segmento das quatro cadeias de abastecimento (por exemplo, 5.580 colhedoras de soja vendidas no Brasil em 2019). Em seguida, identificamos as principais empresas internacionais e nacionais que operam em cada segmento (por exemplo, CNH, John Deere e AGCO no caso de colhedoras de soja), e suas vendas totais (por exemplo, 2.903 colheitadeiras de soja por CNH, 2.269 pela John Deere e 408 por AGCO). Em todos os casos, as fontes foram citadas ao longo do trabalho.

Adicional à estimativa do market share nos principais segmentos produtivos, foi levantada a composição acionária das empresas como forma de identificar a participação de grupos domésticos em relação aos multinacionais. Para estimar a participação de mercado total dos grupos domésticos (P) em cada segmento da cadeia produtiva, foram somadas as participações de mercado de todas as empresas com capital brasileiro (∑ni=1 Br). A participação doméstica na cadeia produtiva (PD) resultou da soma ponderada das participações de grupos empresariais com capital brasileiro em cada um dos seis segmentos analisados (de sementes a comercialização), conforme a Equação 1 a seguir. Os resultados são apresentados na Figura 4 deste trabalho.

P D = ( P 1 + P 2 + P 3 + P 4 + P 5 + P 6 ) / 6, s e n d o q u e P = Σ n i = 1 B r (1)

Em que, PD - Participação doméstica na cadeia produtiva; P - Participação doméstica em cada segmento (de sementes à comercialização); ∑ni=1 Br - Soma da participação doméstica de cada segmento da cadeia produtiva

Resultados

Alocação do crédito

A Figura 1 apresenta a distribuição do crédito rural entre as modalidades investimento, custeio e comercialização, com destaque para as linhas específicas para médios produtores rurais (Pronamp) e agricultores familiares (Pronaf).

Na Figura 1 é possível observar que, em todos os anos estudados, os recursos aplicados na modalidade custeio superou as demais modalidades, representando, nos últimos cinco anos, mais de 60% dos valores totais aplicados. Além disso, percebe-se maior alocação de recursos para grandes produtores uma vez que os recursos aplicados por médios produtores nunca ultrapassou 19% do montante total, enquanto os agricultores familiares aplicaram em média 18% do volume total de recursos do crédito rural. A modalidade comercialização não foi utilizada por médios produtores e agricultores familiares nos anos estudados.

A modalidade custeio representou, em média, 62% do volume de recursos do crédito rural aplicado na agropecuária brasileira no período de 2013 a 2020. Desse volume aplicado no custeio, que atualmente está na casa dos R$ 93 bilhões, cerca de 33%, em média, foram aplicados apenas na cultura da soja. Dos 33% alocados para a soja, 6% e 4% foram aplicados por médios produtores e agricultores familiares, respectivamente, enquanto os grandes produtores rurais aplicaram 23% dos valores do custeio total apenas na cultura da soja (Figura 2).

A Figura 3 apresenta os dados de outra atividade bastante desenvolvida no Brasil, a bovinocultura de corte e de leite. Nela é possível observar que essa atividade recebeu, em média, 28% do valor total do custeio agrícola e pecuário entre os anos de 2013 e 2020.

Os médios produtores e agricultores familiares aplicaram 8% e 5% em média, respectivamente, enquanto os grandes produtores rurais aplicaram em média 16% dos valores do custeio na bovinocultura de carne e leite (Figura 3).

Comparando os recursos aplicados no custeio da soja e na bovinocultura, é possível constatar que na bovinocultura há maior participação de médios produtores e de agricultores familiares. Essa constatação é importante dada a quantidade de estabelecimentos familiares e de médios produtores no campo que, em 2017, representavam juntos 99,87% dos estabelecimentos agropecuários brasileiros (IBGE, 2020).

Segundo o Censo Agropecuário de 2017, o número de estabelecimentos que cultivavam soja é de 237.118, que representam 5% do total de estabelecimentos agropecuários do país. Desses, 95% são estabelecimentos da agricultura familiar e de médios produtores rurais. No entanto, quando se trata de área colhida, quantidade produzida e valor da produção, os médios produtores e agricultores familiares respondem por apenas 9% e 23%, respectivamente.

Assim, diante dos dados do BCB e do Censo Agropecuário 2017, pode-se afirmar que, entre os anos 2013 e 2020, 5% do total de estabelecimentos agropecuários brasileiros utilizaram 20% do total do crédito rural apenas no custeio da soja. Nessa situação, todas as outras modalidades de crédito (investimento, comercialização e industrialização), as outras atividades e os outros 95% de estabelecimentos, ficam com 80% dos recursos do crédito rural.

Essa afirmação se torna mais importante quando verificamos que apenas 4,15% dos estabelecimentos que cultivam soja no Brasil são de grandes produtores e esses produtores utilizaram 14,3% de todo o recurso de crédito rural aplicado entre os anos 2013 e 2020 apenas no custeio da soja.

Já para a atividade de bovinocultura, o Censo Agropecuário de 2017 apresenta dados que indicam que existem 2.522.487 estabelecimentos que desenvolvem a atividade. Esses estabelecimentos representam 50% dos estabelecimentos agropecuários do país, sendo que todos eles são de médios produtores e agricultores familiares (IBGE, 2020).

Figura 1
Crédito rural aplicado nas modalidades investimento, custeio e comercialização entre os anos de 2013 e 2020.

Figura 2
Valores e percentual de crédito rural aplicados no custeio total, custeio total da soja, custeio aplicado na cultura da soja por grandes, médios e agricultores familiares entre os anos de 2013 e 2020.

Figura 3
Valores e percentual de crédito rural aplicados no custeio total, custeio total da bovinocultura, custeio aplicado na bovinocultura por grandes, médios e agricultores familiares entre os anos de 2013 e 2020.

Participação brasileira

• Sementes

No Brasil, 91,8% das sementes de soja cultivadas são transgênicas e o mercado brasileiro de sementes transgênicas é dominado por corporações estrangeiras, especificamente a alemã Bayer, com uma participação de mercado de 90% (Soendergaard, 2018SOENDERGAARD, N. Modern Monoculture and Periphery Processes: a World Systems Analysis of the Brazilian soy expansion from 2000-2012. Revista de Economia e Sociologia Rural, v.56, n.1, p.69-90, 2018.). Dois terços do lucro do preço final das sementes de soja ficam com o licenciador multinacional, enquanto os 35% restantes vão para os produtores de sementes, uma vez que eles pagam royalties pelo uso de transgênicos patenteados (Marin; Stubrin, 2015MARIN, A.; STUBRIN, L. Innovation in natural resources: New opportunities and new challenges The case of the Argentinian seed industryInnovation. Maastricht: [s.n.]. 2015. Disponível em: <http://www.merit.unu.edu/publications/wppdf/2015/wp2015-015.pdf>.
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). No segmento de produção de sementes de soja, as empresas brasileiras detêm 25% do market share (Medina; Ribeiro; Brasil, 2016MEDINA, G.; RIBEIRO, G.; BRASIL, E. M. Participação do capital brasileiro na cadeia produtiva da soja: lições para o futuro do agronegócio nacional. Revista de Economia e Agronegócio, v.13, n.1, 2016.) . Assim, no segmento de sementes, o capital nacional equivale a apenas 8,7% (35% dos lucros com 25% do mercado).

O mercado brasileiro de sementes de pastagens para a criação de bovinos é fragmentado e conta com grande participação de grupos domésticos. A Matsuda, empresa brasileira de capital fechado, é um grande player nesse segmento. As cultivares lançadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em parceria com empresas, em sua maioria selecionadas com base na variabilidade natural, respondem por mais de 70% do mercado brasileiro de sementes forrageiras (Embrapa, 2020). Recentemente, algumas multinacionais também começaram a entrar no mercado, como por exemplo, a Barenbrug do Brasil, empresa do Grupo Royal Barenbrug com sede na Holanda, que começou a operar no Brasil em 2012. Assim, estima-se a participação de grupos domésticos em 95% do mercado de sementes de pastagens no Brasil (Medina, 2020_______. Participação do capital brasileiro na cadeia produtiva do leite: Estratégia para investimentos em segmentos do agronegócio nacional. Revista de Estudos Sociais, v.22, n.44, p.146-67, 2020.).

• Fertilizantes/nutrição

Na cadeia de fertilizantes utilizados no plantio da soja atuam dois tipos de empresas: as que produzem matéria-prima e as que utilizam a matéria-prima para a fabricação de fertilizantes específicos. Visto que a cultura da soja não demanda aplicação de adubo nitrogenado, os principais insumos são os macronutrientes fósforo (44% importados) e potássio (95% importados) (Anda, 2020). A multinacional brasileira Vale era o maior produtor de fósforo e o único produtor de potássio no Brasil. A produção desses dois insumos, no entanto, é hoje controlada pela multinacional Mosaic, e a participação geral dos grupos domésticos caiu para menos de 9%. No que diz respeito aos fabricantes de fertilizantes, o mercado brasileiro é dominado pelas multinacionais Yara e Mosaic. Os grupos brasileiros detêm menos de um terço do mercado, com destaque para os grupos Fertipar e Heringer. Considerando uma participação nacional de 8,7% na produção de matérias-primas e de 29,8% na produção de fertilizantes, a participação brasileira no mercado de fertilizantes para soja foi estimada em 19,2% (Quadro 1).

As maiores empresas do segmento de ração para gado são as multinacionais estrangeiras Cargill e DSM. Juntas, elas produzem 15 milhões de toneladas de ração por ano, o equivalente a 20% do mercado brasileiro (Sindirações, 2019). No entanto, devido aos altos custos de transporte dos produtos, o mercado brasileiro de rações tem grande participação de várias empresas brasileiras regionais. Entre eles, a Premix se destaca com uma participação de mercado de 10%. A participação de mercado dos grupos domésticos no segmento de rações é estimada em 70,7% (Quadro 1).

• Agrotóxicos/Saúde animal

O segmento de agrotóxicos é dividido em produtos com patentes e produtos genéricos autorizados após o período de exclusividade da patente. As patentes são totalmente controladas por grupos multinacionais estrangeiros, em particular ChemChina (que comprou a Syngenta), Bayer e Basf. Os produtos genéricos estão sob amplo controle de empresas multinacionais, mas algumas empresas com capital nacional, como Nortox e Ourofino Agrociência, ainda têm participação relevante. No geral, as empresas de capital nacional produzem menos de 6% dos agrotóxicos comercializados no Brasil (Aedna, 2020).

O segmento de saúde animal no Brasil é amplamente controlado pelos quatro grupos multinacionais estrangeiros MSD, Zoetis, Boehringer Ingelheim e Elanco, uma vez que possuem as patentes dos medicamentos (Sindan, 2019). A MSD Saúde Animal é o braço veterinário da farmacêutica americana Merck que comprou brasileira Vallée em 2017. A Zoetis, líder no mercado global de saúde animal, foi criada depois que a Pfizer Inc. transformou sua unidade de saúde animal em uma empresa independente. Os grupos domésticos controlam 15,3% do mercado, com destaque no segmento de produtos genéricos que têm participação importante da Ourofino Saúde Animal, empresa de capital aberto (Sindan, 2019).

Quadro 1
Participação de grupos domésticos nos principais segmentos das cadeias produtivas da soja e bovinocultura em 2019

• Produção

Mais de 93% de um total de 57,2 milhões de hectares usados para o cultivo de grãos no Brasil pertencem a agricultores brasileiros. Mas o setor vem passando por mudanças estruturais pois grandes corporações nacionais e alguns grupos multinacionais estrangeiros passaram a arrendar (por exemplo, Los Grobo) ou comprar terras (por exemplo, Agrinvest).

Em 2017, o Brasil possuía 5.073.324 domicílios rurais e 1.176.295 fazendas produzindo 30,1 bilhões de litros de leite de vaca (IBGE, 2019). Além disso, são importados 0,971 bilhão de litros de leite por ano, volume equivalente a 3,2% da produção nacional. Isso significa que 96,8% do leite consumido no país é produzido internamente. Da mesma forma, a pecuária de corte é setor tradicionalmente controlado por famílias brasileiras proprietárias de fazendas (Magro et al., 2019MAGRO, T. et al. Produção bovina e desmatamento: Análise da distribuição espacial da atividade pecuária no estado de Rondônia. IGepec, v.23, n.1, p.112-26, 2019.).

• Máquinas e equipamentos

O mercado da soja para máquinas pesadas é controlado por um oligopólio mundial liderado pelos grupos internacionais: John Deere, CNH (detentora das marcas Case e New Holland) e AGCO (detentora das marcas Massey Ferguson e Valtra). Os três grupos combinados controlam 99,6% das vendas de tratores e 100% das vendas de colhedoras no Brasil (Anfavea, 2020). A Agrale, única empresa com capital nacional no setor, produz tratores de pequeno porte com aplicação limitada na cultura da soja. Há uma participação de mercado maior, mas indefinida, de empresas domésticas de implementos agrícolas, como arados e cultivadores.

As multinacionais DeLaval e GEA lideram o mercado de máquinas e equipamentos para a produção de leite. Enquanto a DeLaval se destaca em maquinários para ordenha e conforto animal, a GEA domina a construção de grandes instalações industriais. Grupos multinacionais como Weizur e Plurinox também controlam os mercados de tanques de resfriamento, nos quais grupos brasileiros como Reafrio, Haramaq e Ordermilk têm apenas uma participação marginal. Os dois principais equipamentos mais utilizados na pecuária de corte são o tronco de contenção (ou brete) e a balança. Não foram identificados investimentos estrangeiros nessas empresas e o setor é controlado por grande número de empresas domésticas.

• Processamento e comercialização

Grandes tradings multinacionais como ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus (conhecidas como Grupo ABCD) dominam os segmentos de processamento e comercialização de soja. Recentemente, a China National Cereals, Oils and Foodstuffs Corporation (COFCO) adquiriu a brasileira Noble Agri (comércio). Grupos domésticos, incluindo empresas e cooperativas (por exemplo, Coamo e Comigo), controlam 16,1% do processamento e comercialização da soja produzida no Brasil (Quadro 1).

Os maiores captores do mercado formal de leite brasileiro são as multinacionais Lactalis (da França) e Nestlé (da Suíça). No entanto, a maior parte do mercado ainda está sob o controle de empresas e cooperativas regionais. Entre as empresas domésticas com maior participação estão a Goiasminas (da marca Italac) e a Laticínios Bela Vista (da marca Piracanjuba), ambas goianas (LeiteBrasil, 2019). O segmento de frigoríficos no Brasil está concentrado em três grandes empresas brasileiras de capital aberto: JBS, Marfrig e Minerva. Apesar da concentração do mercado, há 1.334 frigoríficos cadastrados no serviço de inspeção federal (Mapa, 2020). Como exemplo, a JBS é controlada pela brasileira J&F Investimentos S.A e sua composição acionária está dividida em: grupo de controle (J&F Investimentos S.A. e Formosa) com 39,8%; tesouraria com 2,3%; BNDESPar com 21,3%; e acionistas minoritários com 36,6% (JBS, 2020).

• Total proporcional

Considerando o conjunto da cadeia produtiva, a cadeia da soja possui apenas 23,9% de participação proporcional de grupos domésticos, enquanto 76,1% são controlados por multinacionais estrangeiras. No conjunto dos segmentos mais intensivos em capital (excluindo a produção em campo), a participação doméstica foi estimada em apenas 8,4%, com a seguinte distribuição: 1,5% em sementes, 3,2% em fertilizantes, 1,0% em agrotóxicos, 0,04% em máquinas, e 2,7% em comercialização (Figura 4).

De forma comparada, na cadeia produtiva da pecuária bovina (leite e corte), estimou-se a participação proporcional dos grupos brasileiros em 67,5%, e a participação dos grupos estrangeiros em 32,5%. No conjunto dos segmentos mais intensivos em capital (excluindo a produção em campo), a participação doméstica foi estimada em 51,3%, com a seguinte distribuição: 15,8% no segmento de sementes, 11,8% no segmento de nutrição animal, 2,6% em saúde animal, 8,8% em máquinas e 12,3% em processamento e comercialização.

Figura 4
Participação do capital doméstico nas cadeias produtivas da soja e da bovinocultura no Brasil em 2019.

Discussão

Acumulam-se críticas ao enfoque da política agrícola brasileira que, há décadas, investe principalmente em crédito subsidiado para produtores rurais (Medina, 2018MEDINA, G. Agropecuária brasileira diante das dinâmicas internacionais. Goiânia: Editora UFG, 2018. v.39.). Merecem destaque críticas de que os recursos beneficiam número restrito de produtores (Corcioli, 2019CORCIOLI, G. Evolução do Pronaf no Estado de Goiás: Tendência de Concentração de Investimentos em Atividades Pecuárias Tradicionais. Boletim Goiano de Geografia, v.39, p.1-21, 2019.) e muitas vezes os créditos não são pagos integralmente pela rolagem de dívidas feitas pelos produtores (Mendonça, 2015MENDONÇA, L. M. A crise permanente do agronegócio. In: Direiros Humanos no Brasil. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Outras Expessões, 2015. p.238.).

A manutenção da política agrícola no Brasil da forma como está, assim como em outros grandes países produtores (Mcfadden; Hoppe, 2017MCFADDEN, J. R.; HOPPE, R. A. The Evolving Distribution of Payments From Commodity, Conservation, and Federal Crop Insurance Programs. USDA, 2017.; Potter; Tilzey, 2007POTTER, C.; TILZEY, M. Agricultural multifunctionality, environmental sustainability and the WTO: Resistance or accommodation to the neoliberal project for agriculture? Geoforum, v.38, n.6, p.1290-303, 2007.; Prokopy et al., 2019PROKOPY, L. S. et al. Adoption of agricultural conservation practices in the United States: Evidence from 35 years of quantitative literature. Journal of Soil and Water Conservation, v.74, n.5, p.520-34, 2019.), dá-se pelo lobby de entidades representantes de produtores rurais, particularmente grandes produtores (CNA, 2018). No Brasil, estas entidades tendem a exercer grande influência na indicação para o cargo de ministro da agricultura que é a pasta responsável pela política agrícola.

Ao analisar a alocação de recursos da política agrícola a partir da perspectiva das cadeias produtivas do agronegócio, este trabalho faz contribuições importantes ao demonstrar que:

A maior parte dos recursos da política agrícola brasileira vai para crédito de custeio e a maior parte é alocada para o custeio da soja, que envolve pequena parcela relativa dos produtores rurais brasileiros. Já bovinocultura está presente na maior parte dos estabelecimentos, mas fica com uma fatia menor de recursos. Vale destacar que há várias outras cadeias produtivas no país com grande participação de produtores e que não recebem investimentos significativos da política agrícola;

O crédito de custeio é utilizado pelos produtores rurais para adquirir insumos produtivos como sementes, agrotóxicos e adubos. Na cadeia produtiva da soja, esses insumos são fornecidos principalmente por corporações estrangeiras, embora em outras cadeias haja maior participação de empresas domésticas, como é o caso da bovinocultura. Além de não priorizar a maioria dos estabelecimentos, o crédito alocado para o plantio de soja ainda beneficia as transnacionais em detrimento de empresas brasileiras que possuem pequena participação na cadeia produtiva da soja.

Esses resultados permitem concluir que recursos investidos para fornecer crédito subsidiado a produtores rurais que participam de cadeias produtivas controladas por grupos multinacionais acabam indiretamente financiando empresas estrangeiras com recursos dos brasileiros que pagam impostos. Estudos recentes apontam que a transferência de recursos da política agrícola brasileira para empresas transnacionais que controlam o mercado de insumos agrícolas no Brasil acontece tanto no caso de recursos de custeio quanto também no caso dos recursos de investimento direcionados para a compra de máquinas agrícolas, setor controlado por multinacionais (Wesz Junior; Grisa, 2017). Esses resultados corroboram ainda as análises de Leite (2020LEITE, S. P. Ruralidades, enfoque territorial e políticas públicas diferenciadas para o desenvolvimento rural brasileiro: uma agenda perdida? Estudos Sociedade e Agricultura, v.28, n.1, p.227-54, fev. maio, 2020., p.242) que afirma que parte da produção de soja e “seu respectivo esmagamento passaram a ser objeto de controle de grupos estrangeiros (argentinos, americanos, chineses etc.)”.

Diante desse fato, existe a necessidade de uma política que invista em cadeias produtivas com maior participação doméstica e na consolidação de grupos brasileiros ao longo das cadeias produtivas. Em cadeias com possibilidade de consolidação de grupos domésticos, como o caso da bovinocultura, além de investimentos no setor primário (produtores), é necessário construir estratégias de apoio a grupos domésticos estabelecidos ao longo da cadeia de suprimentos.

Considerações finais

No período de 2013 a 2020, o crédito destinado ao custeio da produção, que no último ano analisado foi de R$ 93 bilhões, representa mais de 60% do volume total de recursos do crédito rural aplicado na agropecuária brasileira. Do volume total do custeio, cerca de 33% foram destinados apenas à cultura da soja, sendo 23% para grandes produtores, 6% para médios produtores e 4% para agricultores familiares.

A cadeia produtiva da soja possui apenas 23,9% de participação de grupos domésticos, enquanto 76,1% são controlados por multinacionais estrangeiras. No conjunto dos segmentos de insumos e processamento (excluindo a produção em campo), a participação doméstica foi estimada em apenas 8,4%, com a seguinte distribuição: 1,5% em sementes, 3,2% em agrotóxicos, 0,04% em máquinas, e 2,7% em comercialização.

Considerando que 33% do crédito de custeio vão para a soja, estima-se que apenas 8,4% desses recursos são utilizados pelos produtores rurais para adquirir insumos da indústria nacional, enquanto 91,6% são utilizados em compras de insumos fornecidos por multinacionais estrangeiras instaladas no país. De forma comparativa, o recurso alocado para a cadeia produtiva do gado, além de beneficiar número maior de produtores, tende a apoiar mais a indústria doméstica já que 51,3% dos fornecedores de insumos são domésticos.

Esses resultados revelam que recursos de crédito subsidiado investidos em produtores rurais que participam de cadeias produtivas controladas por grupos multinacionais acabam indiretamente financiando empresas estrangeiras, em detrimento do fomento ao agronegócio nacional. Em cadeias produtivas com possibilidade de consolidação de grupos domésticos, além de investimentos no setor primário (produtores), é necessário também construir estratégia de apoio a grupos domésticos estabelecidos ao longo da cadeia.

Tanto a consolidação de grupos domésticos existentes quanto o esforço para a conquista de mercados hoje com baixa participação de empresas brasileiras podem aumentar os ganhos do Brasil com o agronegócio desenvolvido no país. Para isso, a política agrícola brasileira precisa evoluir do atual enfoque quase exclusivo em crédito subsidiado para grandes produtores rurais para uma estratégia de desenvolvimento das cadeias produtivas como um todo, incluindo não só a fazenda, mas também os segmentos de insumos à montante e os segmentos de processamento à jusante da fazenda.

O futuro do agronegócio brasileiro passa pela construção de uma estratégia de integração vertical do capital doméstico ao longo dos segmentos agroindustriais estabelecidos a montante e a jusante da produção agropecuária. É nos setores industriais e tecnológicos que estão os negócios mais rentáveis do agronegócio feito no país. A ampliação da participação dos grupos brasileiros requer uma política agrícola e industrial em favor dos empreendedores locais. Essa estratégia implica ir além da visão atual para a competitividade do setor que, muitas vezes, tem ficado restrita à expansão horizontal para novas fronteiras agrícolas pela redução do Custo Brasil.

A expansão do capital nacional ao longo dos segmentos agroindustriais que melhor remuneram capital e trabalho é uma possibilidade para superar a atual estratégia de crescimento pela expansão para novas fronteiras agrícolas com altos custos sociais e ambientais. A cadeia produtiva da carne revela a possibilidade de consolidação de empresas domésticas competindo em um mercado liberal, de livre concorrência e aberto a investimentos estrangeiros. Um aspecto importante é que a concentração no segmento agroindustrial não resulte em aumento de poder de mercado sobre produtores rurais e outros segmentos da cadeia produtiva.

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Notas

  • 1
    Aos médios produtores foram alocados R$ 3,8 bilhões para investimento e R$ 29,4 bilhões para custeio por meio do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor (Pronamp). Aos agricultores familiares foram destinados R$ 13,6 bilhões para investimento e R$ 19,4 bilhões para custeio por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) (Mapa, 2019).
  • 2
    Tendo em vista que os recursos da política agrícola são escassos, o poder público entendeu a necessidade da participação de investidores privados para o melhor desenvolvimento do setor. Nesse contexto, a Lei n.8.929/94 introduziu a Cédula de Produto Rural (CPR), que possibilita que o produtor faça a liquidação física ou financeira a seus credores. No vencimento determinado pelo título, o titular da CPR poderá exigir do emitente o produto, na quantidade e qualidade estabelecidas.
  • 3
    Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/micrrural>.
  • 4
    Para a cultura da soja utilizaram-se dois filtros: Quantidade e Valor dos Contratos de Custeio Agrícola por Produto, Segmento e IF e Quantidade e Valor dos Contratos de Comercialização Agrícola por Produto, Segmento e IF. Já para a bovinocultura, utilizaram-se os filtros Quantidade e Valor dos Contratos de Custeio Pecuário por Produto, Segmento e IF e Quantidade e Valor dos Contratos de Comercialização Pecuária por Produto, Segmento e IF. Esses dados foram computados integralmente, de maneira a estabelecer os valores e os percentuais aplicados em cada modalidade e/ou atividade.
  • 5
    No Brasil, as associações de produtores organizados por segmentos produtivos estimam a participação de seus associados no mercado e divulgam essas informações em anuários estatísticos, muitas vezes disponíveis em suas páginas de internet. São exemplos a Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Leite Brasil - <http://www.leitebrasil.org.br/>), o Sindicato Nacional da Indústria de Alimentação Animal (Sindirações - <https://sindiracoes.org.br/>) e outras associações citadas ao longo do trabalho. Com a lista das empresas operando em cada segmento produtivo, foi feito o levantamento dos materiais institucionais disponíveis na página de internet de cada uma das empresas identificadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2021
  • Aceito
    26 Nov 2021
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