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Pacto fáustico e resistência no poema “A máquina do mundo”1 1 Algumas ideias expostas neste ensaio tiveram uma primeira formulação no texto “Versuchung und Widerstand in ‘A Máquina do Mundo’”, publicado no volume Lyrik der Welt - Welt der Lyrik (Stuttgart: Metzler, 2022). Enfoquei então, de maneira mais cerrada, a tradução de Meyer-Clason (Die Weltmaschine), o que não foi possível no âmbito do presente ensaio.

RESUMO

Este ensaio enfoca o poema “A máquina do mundo”, de C. Drummond de Andrade, no contexto da literatura mundial, aproximando-o em especial do Fausto de Goethe. O ensaio também discute algumas facetas da resistência que, em reflexões teóricas de Alfredo Bosi, pode emanar do gênero lírico. Nessa perspectiva, o poema é ainda relacionado a duas devastadoras catástrofes ecológicas na história recente do Brasil, causadas por uma corporação contra a qual a biografia do poeta registra longo embate.

PALAVRAS-CHAVE:
Carlos Drummond de Andrade; “A máquina do mundo”; Alfredo Bosi; Lírica; Goethe; Ecologia

ABSTRACT

This essay focuses on the poem “Machine of the World”, by Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), in the context of world literature, collating it especially to Goethe’s Faust. The essay also discusses some facets of the resistance that, according to the ideas of A. Bosi, may emanate from lyric poetry. In this perspective, the poem also relates to two devastating ecological catastrophes in recent Brazilian history, caused by a corporation against which the poet struggled throughout his life.

KEYWORDS:
Carlos Drummond de Andrade; “The Machine of the World”; Alfredo Bosi; Lyric poetry; Goethe; Ecology

Num luminoso ensaio sobre “A máquina do mundo”, Alfredo Bosi (2003_______. A máquina do mundo entre o símbolo e a alegoria. In: ___. Céu, inferno. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2003., p.108) observou ser raro, na poesia brasileira, “que a luta fáustica pelo conhecimento em si mesmo venha assinalada de forma tão dramática, como se fora um embate de vida e morte”. Com essas palavras, o crítico aponta para um “conteúdo” poético de elevada gravidade e não surpreende que Drummond o tenha revestido da forma nobre e rigorosa, mas também bastante fluida, da tercina.

“O conteúdo traz consigo a forma. A forma jamais existe sem o conteúdo”, anotou Goethe (1987GOETHE, J. W. von. Goethes Werke. Weimarer Ausgabe. Hrsg. im Auftrag der Großherzogin Sophie von Sachsen Weimar, 1987., I, 14, p.287) por volta de 1798 num esboço para o Fausto que esquematizava fragmentos então já redigidos assim como cenas ainda a ser escritas. Vinte anos mais tarde, por ocasião de uma conversa sobre o poema em tercinas “A morte de Canova”, de Eduard von Schenk, o poeta voltou a tocar na relação entre forma e conteúdo: “Tercinas precisam ter sempre por base um material grandioso e rico, se quiserem agradar” (Müller, 1959MÜLLER, K. F. von. Unterhaltungen mit Goethe [1870]. Weimar: Böhlaus, 1959., p.91).

Por conseguinte, Goethe recorreu a essa mesma forma estrófica quando, em 1826, tomou o grave assunto da morte de seu congenial interlocutor dos tempos do Classicismo como fundamento para o poema “Ao contemplar o crânio de Schiller”. Nascido da circunstância da exumação dos restos mortais do poeta falecido em 1805, esse poema também tem em seu horizonte o motivo do desvendamento de leis da natureza e do universo, conforme se pode depreender do fecho que, em consonância com a tradição inaugurada por Dante, acrescenta um verso à tercina final: “Que pode o homem ganhar mais nesta vida / Do que se lhe revele a Natureza-Deus?” (Goethe, 1958, p.227).

Na vasta obra drummondiana o único poema que recorre a essa estrofe apropriada, na visão de Goethe, a um conteúdo “grandioso e rico” é “A máquina do mundo”, escrita em 1949, publicada nesse mesmo ano no Correio da Manhã (RJ) e, em versão definitiva, em Claro enigma (1951). Com seus 96 versos, esse poema não pode atender aos critérios de brevidade, condensação e, ainda, ao conceito de Stimmung (“atmosfera”), que se originaria da plena fusão entre sujeito e objeto (Staiger, 1983STAIGER, E. Grundbegriffe der Poetik. 5.ed. Munique: DTV, 1983., p.46). Do mesmo modo, dificilmente se poderia entender “A máquina do mundo” - numa definição mais recente (Lamping, 1993_______. Das lyrische Gedicht. Definitionen zu Theorie und Geschichte der Gattung. [1989]. 2.ed. Göttingen: Vandenhoeck, 1993., p.63) - como “discurso único em verso”, pois além da voz do Eu que caminha pela estrada pedregosa de Minas também irrompe no poema, num “só período cerrado em si mesmo” (Bosi, 2003_______. A máquina do mundo entre o símbolo e a alegoria. In: ___. Céu, inferno. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2003., p.112), o discurso da Máquina do Mundo, enquanto fala heterônoma à dimensão humana.

Construído em torno do insólito encontro entre um caminhante e a figura personificada do Cosmos, o poema de Drummond também poderia ser relacionado, pela simples presença do motivo do “caminhante”, à segunda “Canção noturna do peregrino”, de Goethe. Todavia, a opção formal daquele já sinaliza que o “conteúdo” desse encontro não poderia se desdobrar senão num extenso poema, distante da brevidade da canção. Também o título se constitui num “sinal” para o leitor, anunciando-lhe que será conduzido ao terreno da Literatura Mundial, pois “Máquina do mundo” evoca, como conhecido, o 10º canto d’Os lusíadas, quando a nereida Tétis faz o nauta Vasco da Gama galgar uma alta montanha para que, dessas alturas (estrofe 80ª), ela possa oferecer-lhe uma esplendorosa visão: “Vês aqui a grande Máquina do Mundo”.

Toda a “pintura” da astronomia ptolemaica-geocêntrica se estende por 76 estrofes, que alcançam em vários momentos admirável plasticidade, como na estança subsequente (81ª), em que mediante metáforas carregadas de luz, à qual o poema de Drummond fará alusão, as esferas, estrelas e todo o orbe surgem ao navegante em perfeito resplendor, que no entanto se revela, em virtude do excesso de luz, insuportável a olhos humanos - como insuportáveis também serão os raios solares aos olhos do Fausto que desperta de longo sono regenerador na cena, configurada igualmente em tercinas, “Região amena”: “Surge o astro! - e eu me desvio, ah não o aguenta, / Já deslumbrada, a dolorida vista”.2 2 A esse monólogo subjaz a concepção de que o conhecimento do Cosmo jamais pode se dar de maneira direta, mas sempre por via indireta, analogamente à contemplação do sol nas cores do arco-íris: “Temos, no espelho colorido, a vida”.

Contudo, o diálogo de Drummond com a Literatura Mundial não se limita à epopeia nacional de Portugal, como Bosi também traz à tona. O próprio recurso à forma da tercina presentifica o poema dantesco que se abre abruptamente com uma caminhada já em curso quando a narração se inicia. E, nas tercinas finais do canto XXII do Paraíso, descortinando-se igualmente a imagem de uma Máquina do Mundo, Beatriz exorta o peregrino do além a aguçar o olhar para dar-se conta de tudo o que se situava sob seus pés, a fim de ascender com alegria ao “éter rotundo” do Empíreo. Em seguida diz o caminhante dantesco em relação ao nosso planeta: “Coo olhos contemplei naquele instante / as sete esferas todas e este globo / vi tal, que me fez rir seu vil semblante”.

Se os passos subsequentes nesse canto XXII exprimem o conselho de se votar desprezo ao nosso hoje tão devastado astro - à “geira [que] nos torna tão ferozes” (XXII, v.151) -, pode-se pressupor que o peregrino de Drummond terá prestado ouvidos a essa advertência e, assim, rejeitado a aparição que súbita e inesperadamente se lhe oferecera. O poema que figura na última seção de Claro enigma representa, todavia, um marco na moderna poesia latino-americana, e as razões que levaram o andarilho mineiro à recusa diferem substancialmente daquelas que moveram Dante a questionar o apego a essa aiuola che ci fa tanto feroci. Pois em Drummond, nas palavras que fecham o ensaio de Bosi (2003_______. A máquina do mundo entre o símbolo e a alegoria. In: ___. Céu, inferno. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2003., p.20-1), “já não vigoram as robustas certezas que forravam a alma do Exilado e lhe permitiam afrontar o mundo com juízos de valor tão sobranceiros”, uma vez que a realidade, para o agnóstico mineiro, se tornou “infinitamente mais complexa, e a sua decifração, na era da ciência, infinitamente mais árdua”.

Mais adiante será levantada a hipótese de que a rejeição com que nos deparamos no poema brasileiro - expressão de um “modo de resistir [...] oblíquo e pertinaz” (Bosi, 2003_______. A máquina do mundo entre o símbolo e a alegoria. In: ___. Céu, inferno. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2003., p.116) - talvez possa ser vista como uma reverberação da “ideia de humanidade” delineada por Adorno nas páginas iniciais de sua Teoria estética. Assim, a atitude esquiva e fechada em si mesma do caminhante que rejeita a oferta da Máquina deverá ser entendida também enquanto expressão de um Eu que se subtraiu ao geral, à coletividade, e vivencia todo e qualquer sistema totalizante como heterônomo.

Se existe um poema brasileiro que mereça figurar com destaque numa “Poesia Mundial” - ideia lançada por Goethe3 3 O conceito de “Poesia Mundial” aparece no ensaio “Canções sérvias”, mediante as quais Goethe se mostrava convencido de que então se constituía por todos os continentes uma Weltpoesie, para cuja difusão “nem conteúdos nem formas precisam ser transmitidos, pois por todos os lugares em que o sol brilha seu desenvolvimento é certo”. Sobre o papel que poemas em tupi desempenham na constituição dessa Poesia Mundial ver o ensaio “Natureza ou Deus: afinidades panteístas entre Goethe e o ‘brasileiro’ Martius” (Estudos Avançados, n.69, p.183-202, 2010). - seria essa extensa composição em versos decassilábicos brancos e estruturada em 32 tercinas que, em sua dimensão épico-narrativa, podem ser segmentadas em seis partes, conforme opera não apenas Bosi, mas também outros eminentes intérpretes do poema: Alcides Villaça, José G. Merquior ou José Miguel Wisnik.4 4 Um panorama mais completo sobre a fortuna crítica do poema pode ser encontrado no verbete sobre “A máquina do mundo” elaborado por Vagner Camilo (2023, p.36-44).

As observações que se seguem não pretendem sistematizar uma interpretação abrangente do poema, mas apenas enfocar algumas de suas facetas; por exemplo, as referências intertextuais, diretas e implícitas, a obras de outras literaturas, em especial ao Fausto goethiano, algo ainda não suficientemente aprofundado na fortuna crítica da “Máquina do mundo”. E será precisamente em virtude dessa dimensão fáustica que procuraremos relacionar o poema - em diálogo com o estudo Maquinação do mundo, de J. M. Wisnik - aos acidentes devastadores ocorridos em novembro de 2015 e janeiro de 2019 em Minas Gerais: o rompimento de barragens de rejeito em Mariana e Brumadinho, causado por uma mineradora contra a qual o poeta travou longa luta.

O encontro com a máquina do mundo

A estrutura narrativa do poema pressupõe um acontecimento que, desdobrando-se num plano espaço-temporal determinado com certa clareza, vincula-se ao cronotopo (Michail Bakhtin) da “estrada”. Iniciando a narrativa com a associação de duas conjunções (a aditiva “e” e a causal “como”) e o verbo “palmilhar” flexionado no imperfeito do subjuntivo, uma voz em primeira pessoa situa a caminhada numa estrada de Minas Gerais, pedregosa e ladeada por montanhas, ao anoitecer. Apenas na quarta tercina o leitor ver-se-á, com o caminhante, diante do acontecimento que estrutura o poema, a epifania do Universo. Embora a assim nomeada “Máquina do Mundo” se dirija ao Eu, não emana dessa apóstrofe nenhum som real, de tal modo que não haverá diálogo efetivo a envolver o encontro. Todo o Cosmos, “abarcando Natureza e História, abre-se ao viajor e oferece-lhe o segredo do seu enigma, outrora procurado vãmente”, na síntese de Bosi.

E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco [...] a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.

Estamos diante do motivo da caminhada, que atravessa, por exemplo, toda a obra de Goethe5 5 Sobre esse motivo e a “Canção noturna” do caminhante ver a monografia A dupla noite das tílias (Mazzari, 2019, p.54 e 223-7). e abre a Comédia com o célebre nel mezzo del cammin di nostra vita. A referência à estrada pedregosa e à rouquidão do sino, ao céu plúmbeo e a uma escuridão ubíqua sugere ao leitor que se trata, em primeiro lugar, de uma caminhada simbólica, como a de Dante que se inicia em meio à selva oscura em que a via diritta havia sido perdida. Ao contrário, entretanto, das tercinas italianas, as brasileiras não são rimadas, mas sem que estejamos às voltas com o verso livre, que tem em Arthur Rimbaud um de seus pioneiros.6 6 No capítulo de sua Estrutura da lírica moderna dedicado a Rimbaud, H. Friedrich considera o poema Marine, de 1872, o primeiro exemplo na França de “verso completamente livre” (Friedrich, 1978, p.84). Os 96 versos do poema - que justamente por serem “brancos” não necessitam da inserção de um verso final para rimar em cruz com a última tercina - seguem sem exceção a métrica decassilábica, correspondente ao endecasillabo dantesco.

O entrelaçamento sintático, as complexas construções hipotáticas incluem o uso do imperfeito do subjuntivo, colocado em expressivo contraste com o particípio perfeito, do que resulta uma característica essencial do poema: por um lado, temos “palmilhasse”, “misturasse” etc. conotando a ideia do contingente, incerto ou mesmo irreal; e, pelo outro lado, a aparição única e indubitável da Máquina que “se entreabriu”.

O manejo magistral de estruturas hipotáticas permitiria nova referência ao mestre das tercinas, pois segundo Auerbach (2021_______. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. Trad. George Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021., p.154) é na Commedia que se encontram pela primeira vez extensas construções subordinadas: “Neste trecho há mais coisas concentradas do que em qualquer outra das passagens que tratamos até aqui neste livro, e não só há mais coisas, mais grave e dramaticamente reunidas num espaço tão estreito, mas também tudo é mais variado”.

Para fechar esse segmento sobre as quatro tercinas iniciais, valeria trazer à tona um ponto teórico em torno do qual “move-se muita coisa” na arte, segundo observou Goethe (1987GOETHE, J. W. von. Goethes Werke. Weimarer Ausgabe. Hrsg. im Auftrag der Großherzogin Sophie von Sachsen Weimar, 1987., IV, 16, p.365) numa carta a Schelling, isto é, a diferença entre símbolo e alegoria: “Se o senhor puder tornar-lhe [ao pintor J. M. Wagner]compreensível a diferença entre tratamento alegórico e simbólico, o senhor será seu benfeitor, pois muita coisa se move em torno desse eixo”.

É mérito de Alfredo Bosi ter chamado a atenção pioneiramente para a interação contrastante que Drummond opera entre os procedimentos alegórico e simbólico em seu poema.7 7 Já no estudo Reflexões sobre a arte, o crítico explicita com clareza essa interação (Bosi, 1985, p.64). Enfocando de início o procedimento que permite vislumbrar o geral no particular - para o Goethe clássico, a verdadeira “natureza da poesia” -, vale observar que a única indicação geográfica precisa, abrindo e fechando a narração do evento em torno da aparição, apresenta-se aos leitores de Drummond como um dos símbolos mais importantes de sua lírica, conforme vem à tona, por exemplo, na primeira estrofe de “Confidência do itabirano”.

Nessa paisagem também o caminhante da “Máquina do Mundo” tem raízes profundas, e são as relações com seu entorno que estabelecem as múltiplas analogias entre o geral e o particular a que Goethe se refere em sua definição de símbolo. Escuridão e lentidão reinam na atmosfera plúmbea que envolve montanhas e estrada, mas também animicamente, no íntimo do caminhante; e se seus passos são lentos, também a noite cai com lentidão e as aves parecem tão somente pairar no ar, enquanto suas formas negras se dissolvem na escuridão que emana da natureza e da alma. Além disso, o som rouco do sino se mistura ao som dos sapatos, intensificando a melancolia que se apoderou do caminhante - algo bem diferente, por exemplo, do sino que repica na primeira estrofe da ode “Fantasia ao anoitecer”, de Hölderlin: “Hospitaleiro soa ao caminhante na / aldeia pacífica o sino do anoitecer”.

E se Gerhard Kurz, num estudo sobre metáfora, alegoria e símbolo, constata em relação à literatura moderna “um emprego notório do símbolo de motivação metonímica”, esse postulado encontra expressiva ilustração na primeira parte do nosso poema, em que predominam relações de contiguidade entre o Eu, por um lado, e a estrada assim como toda a paisagem, pelo outro lado.8 8 No capítulo “Tipos de símbolos”, Kurz (2009, p.88-9) observa: “Espaço e tempo simbolizam situações psíquicas que acontecem em seu âmbito. Assim, também situações psíquicas surgem sob a impressão de espaço e tempo. Símbolos metonimicamente motivados tendem a fazer com que o ser humano apareça na dependência de seu entorno. E a fronteira entre mundo exterior e estado íntimo aparece como que abolida”. Entre os vários exemplos de símbolos com base metonímica apresentados pelo autor poder-se-ia incluir a pedregosa estrada de Drummond, envolta em escuridão e desolação.

A Máquina do Mundo se revela

A “abertura” da Máquina do mundo na segunda etapa do poema desloca o enredo da via simbólica para a alegórica. Entra em cena o diálogo com a correspondente alegoria de Camões, pautado, porém, por significativas particularidades: nos Lusíadas a luz irradiada pela máquina “elemental” ofusca e enceguece o olho humano, ao passo que no poema ela não emite brilho mais forte do que o suportável pelas pupilas fatigadas do caminhante. Também seus outros sentidos são poupados, pois o convite tentador da “Dama Mundo” - prosopopeia recorrente na literatura medieval, por exemplo, a alegoria da Fro Welt em Walther von der Vogelweide - desdobra-se sem alarde ou som, numa atitude de inteira consideração por uma pessoa cujo passado foi marcado por intenso desejo de conhecimento, justamente a excruciante e frustrada “luta fáustica” mencionada por Bosi:

Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, [...] assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha, a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo:

O discurso da Máquina do Mundo

Voluntária ou mesmo arbitrariamente, a sedutora aparição se oferece a um andarilho “noturno” que pode lembrar o célebre caminhante que se extravia na selva oscura, fazendo que o espectro de Virgílio venha em seu auxílio; ou evocar, entre outras figuras ‘noturnas e miseráveis’, o “bicho da terra tão pequeno”, no fecho do primeiro canto dos Lusíadas: “Onde pode acolher-se um fraco humano / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme e se indigne o céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?”9 9 Essa estrofe foi traduzida para o alemão por Stefan Zweig e afixada sobre sua escrivaninha na casa de Petrópolis em que se suicidou.

No drama de Goethe também topamos com uma epifania algo semelhante à que se materializa na pedregosa estrada de Minas. Entretanto, a eventual semelhança não se estende à gratuidade com que a Máquina assoma perante o andarilho, uma vez que o Espírito da Terra (em cuja manifestação pode-se reconhecer a influência de concepções heraclitianas e spinozistas assim como a ideia de Giordano Bruno sobre uma anima terrae) é intensa e ardentemente invocado pelo doutor. Mas se esse é impelido à invocação por transbordante sede de conhecimento, cumpre assinalar que, após o conjuro exitoso, ele não consegue suportar o brilho que dimana da aparição panteísta, envolta em chamas (princípio heraclitiano do “fogo”) e desvia o olhar ofuscado: “Atroz visão!” (v.482).

Mas é justamente dessa visão intolerável aos olhos de Fausto - como também o será, 4.200 versos adiante, a visão solar na “Região amena” - que se depreendem imagens que, pudesse o doutor dedicar-lhes atenção, desvelariam os princípios e forças responsáveis pelo funcionamento do mundo: “No ardor da ação, no afã da vida, / Fluo, ondulo, urdo, ligo, / Cá e lá, a tramar, / Berço e jazigo, / Perene mar, / Urdidura alternante, / Vida flamante, / Do Tempo assim movo o tear milenário, / E da Divindade urdo o vivo vestuário” (v.500-9).

A incapacidade de Fausto em sustentar o encontro com o Espírito da Terra lhe vale o desprezo desse, que lança então sobre o doutor não apenas a pecha irônica de “super-homem”, mas também a de “verme”: “larva de pavor torcida”, na tradução de J. K. Segall. Temos aqui outro elo na cadeia paradigmática de “errados e míseros Mortais”, no verso dos Lusíadas lembrado por Bosi (2003_______. A máquina do mundo entre o símbolo e a alegoria. In: ___. Céu, inferno. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2003., p.112), que acrescenta ainda o Islandês de Leopardi e o Brás Cubas do capítulo “O delírio”, o qual, “arrastado pelos cabelos até à origem dos séculos, ouve de Pandora a declaração de seu nada”.

Ao contrário, contudo, do “verme” machadiano (na apóstrofe da Natureza-Pandora ao Brás moribundo), e do doutor Fausto que em seu quarto gótico se entrega a invocações mágicas e depois se converte em “larva de pavor torcida”, o ser “noturno e miserável” de Drummond se depara com uma visão inteiramente suave a olhos humanos, cujo discurso se apresenta moderado em todas as etapas, modulado por aliciante retórica depersuatio. O ponto culminante do sedutor discurso é alcançado no último verso da 16ª tercina, com o convite ao caminhante no sentido de acolher em seu íntimo a oferta articulada sem “voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão” e, desse modo, selar um pacto com a Máquina do mundo:

[...] essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste... vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.

A Máquina do Mundo em abertura

Enquanto em Dante e Camões o universo é desvendado a um vivente por intermédio de uma alma e uma divindade, no poema a própria Máquina cósmica se expressa sem qualquer mediação. Tal personificação alegórica também o distingue do paradigma desse tipo de revelação, isto é, a passagem no Evangelho de Mateus (IV, 8) em que o diabo conduz o Filho de Deus a uma montanha e de seu cume lhe descortina e oferece “todos os reinos do mundo e sua glória”, sob a condição, contudo, de que Jesus, ‘agasalhando’ em seu peito o pacto proposto, prostre-se de joelhos para adorá-lo.10 10 Também Grande sertão alude a essa paradigmática cena bíblica, no momento em que Riobaldo, logo após o pacto, galga um “itambé” e de seu cume antegoza o novo poder adquirido: “Tinham me dado em mão o brinquedo do mundo”.

No poema de Drummond delineia-se - aspecto essencial para sua interpretação - uma cláusula semelhante: o caminhante deve abrir seu peito para acolher o “nexo primeiro e singular”, a “total explicação da vida” que sempre se mostrou inalcançável para a ardente “luta fáustica pelo conhecimento” travada longamente pelo quester mineiro. O foco principal do que agora lhe é oferecido reside inequivocamente na penetração cognitiva do mundo; diz respeito ao antigo anseio de conhecer “o que a este mundo / liga em seu âmago profundo” (Fausto, v.383). Encontramo-nos, portanto, perante um genuíno poema fáustico, não apenas em relação à Tragédia do Conhecimento, mas também à Tragédia do Colonizador, prefigurada pela primeira vez na cena “Alta região montanhosa”, quando Mefisto conduz o pactário ao cume de uma montanha e tenta em seguida aliciá-lo com todos os “reinos do Universo e suas maravilhas” (v.10.131), referência explícita de Goethe à passagem em Mateus.

A linha de enredo que se adensa a partir desse momento levará ao colossal complexo da colonização, guiado por um projeto de dominação plena sobre a natureza, passível de ser relacionado à reivindicação de totalidade por parte da Máquina do mundo, conforme se revela nas tercinas subsequentes:

As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos e tudo que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar, na estranha ordem geométrica de tudo, [...]

A visão que fora revelada ao peregrino passa a ser descrita agora de sua própria perspectiva. A “explicação total da vida” principia com o âmbito da técnica: “pontes e edifícios” bem como “o que nas oficinas se elabora”.11 11 Na tradução alemã, “elaborar” (“o que nas oficinas se elabora”) converte-se no substantivo plural “laboratórios” (Laboratorien). Entre esses produtos podemos incluir também a bomba atômica, que no poema “A bomba” (Lição de coisas, 1962) será chamada de “produto quintessente de um laboratório falido”. O que surge na sequência é a dinâmica de um pensamento que transcende todos os limites, inclusive a si mesmo, pois o próprio pensar logo atinge “distância superior ao pensamento”, formulação que poderia lembrar o postulado de Ernst Bloch “pensar significa transcender”, no sentido utópico que subjaz a sua concepção de um pensar que ultrapassa continuamente as próprias fronteiras.

O aspecto da dominação sobre a Natureza (“os recursos da terra dominados”) é então seguido pela perspectiva de explicação das mais diversas facetas da condição humana e de toda a existência terrestre: o reino animal, vegetal e, de especial importância para esse caminhante, o reino mineral, conotado pelo “sono rancoroso dos minérios”, “metáfora [que] revolve as raízes familiares do poeta e muda o registro alegórico em símbolo animista” (Bosi, 2003_______. A máquina do mundo entre o símbolo e a alegoria. In: ___. Céu, inferno. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2003., p.114).12 12 Sobre essa mesma metáfora o mencionado estudo Maquinação do mundo (Wisnik, 2018, p.211-19) traz uma interpretação muito original no segmento “O palácio de Moebius (vv.49-69)”. Na tradução alemã desse verso permuta-se o sentido de “rancoroso” pelo de “maligno” (böser Schlaf). Na tradução inglesa lemos rancorous sleep of mineral ores e, na francesa, rancunier sommeil des minéraux.

Nesse passo do poema se poderia lembrar, num aceno comparativo, que a totalidade agora acessível ao olhar humano inverte a ordem com que Goethe abraça o Cosmos em sua segunda “Canção noturna”: “sobre todos os cumes” (o inorgânico), começando com o reino que no poema brasileiro vem em último lugar; “em todas as frondes”, o reino vegetal; “os passarinhos” (reino animal); e, por fim, o ser mais instável de toda a criação que no poema brasileiro aparece em primeiro lugar. Além disso, a totalidade cósmica desvendada pela Máquina é subsumida, no meio exato desse segmento (na 20ª tercina, que traz à tona os “minerais”), sob a figura de uma “estranha ordem geométrica”. E, por fim, o caminhante “noturno e miserável” reproduz as palavras com as quais a estranha aparição procurou conduzi-lo a um pacto fundamentado na cláusula de abrir o peito para agasalhar o “nexo primeiro e singular” de tudo. Nesse relance em que a totalidade do Universo se abre para o sujeito, esse é convidado a penetrar o outrora tão almejado “reino augusto”, onde estariam à sua disposição todas as respostas às perguntas que, no passado de sua “luta fáustica”, foram sempre formuladas em vão.

A hesitação do viajante

O próximo desdobramento é dedicado ao hesitar do caminhante perante a sedução que emana da Máquina. Como no primeiro bloco de tercinas, é mais uma vez o imperfeito do subjuntivo que imanta todo o complexo de orações subordinadas, o qual se estende por 21 versos, com quatro ocorrências da conjunção causal “como”. Somente após essa intrincada estrutura hipotática vem a oração principal com o verbo no pretérito perfeito, estabelecendo-se o contraste entre o continuum da caminhada reflexiva e um evento único no passado, quando o Eu abaixa os olhos:

Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, [...] como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo, baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho.

Na tradução alemã de Meyer-Clason, o substantivo “coisa”, a “coisa oferta”, é traduzida por Gabe, “dádiva”, o que reforça a ideia de “dom tardio” que aparece na tercina anterior (“um presente tão tardio”, na tradução). Observe-se, porém, que no substantivo “coisa”, preterido pelo tradutor, Alfredo Bosi colheu o ensejo - tanto mais convincente por surgir (a “coisa”) “majestosa e circunspecta” - para mobilizar, citando a Estética de Lukács, a famosa passagem do estudo Origem do drama barroco alemão na qual Walter Benjamin observa que

[...] ainda hoje não é óbvio que ao representar a primazia das coisas sobre as pessoas, do fragmentário sobre o total, a alegoria seja o contrário polar do símbolo, mas por isso mesmo sua igual. A personificação alegórica obscureceu o fato de que sua tarefa não era a de personificar o mundo das coisas, e sim a de dar a essas coisas uma forma mais imponente, caracterizando-as como pessoas. (Benjamin, 1984BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p.209)

Na personificação alegórica, a facies hipocrática da história se apresentaria aos olhos do contemplador “como protopaisagem petrificada” e a “História em tudo o que nela desde o início é prematuro, sofrido e malogrado se exprime num rosto - não, numa caveira” (Benjamin, 1984BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p.188). Em relação ao poema de Drummond, esse postulado se tornaria procedente apenas se estendido à constelação total do poema, ou seja, englobando também o caminhante que se confronta com a imponente prosopopeia - um caminhante cujo passado frustrado e doloroso o fará dar as costas à coisa personificada, abaixar os olhos como gesto de recusa e prosseguir em seu ‘triste périplo sem roteiro’, com braços pensos em meio à “treva mais estrita”.

Também esse desdobramento do poema poderia ser comentado à luz de outro importante momento no Fausto, pois se o caminhante se consumiu ao longo dos anos na aspiração de conhecer “o que a este mundo / liga em seu âmago profundo”, agora seu peito se mostra liberto desse anseio, o que encontra correspondência em palavras do doutor antes e logo após a cena do pacto: “Do pensamento se partiu o fio, / Com a ciência toda me arrepio” (v.1748-913 13 O verbo “arrepiar-se” corresponde no original a “nausear-se”, “sentir náuseas”: “nauseio-me com todo conhecimento”. ) e “Meu peito, da ânsia do saber curado” (v.1768).

Nessas tercinas dedicadas à hesitação do Eu, a estrutura sintática da primeira parte do poema se repete, conforme assinalado. Com uma diferença essencial: o sujeito da estrutura sintática subordinativa e modelada pelo subjuntivo na primeira parte era a alegoria da Máquina, que se entreabriu na oração principal; agora, em contrapartida, trata-se do sujeito que perambulava pela estrada simbólica de Minas e que por fim abaixou os olhos após a complexa construção hipotática que reproduzira sua hesitação.

O poema parece extrair sua força estruturante precisamente dessa contradição entre o abrir-se da epifania e o retrair-se do olhar, à qual são remetidas as demais antíteses do poema: “raios do sol” e “treva mais estrita”; o ser de outrora, “habitante de mim há tantos anos”, e o atual, a “comandar minha vontade”; “flores reticentes / em si mesmas abertas e fechadas”; o antes “apetecível” e agora “despiciendo”.

Valeria observar a respeito dessa última contraposição entre dois adjetivos elevados, sobretudo o segundo, gerúndio do verbo latino despicere (olhar de cima para baixo), que todas as traduções do poema se mostram deficitárias, dada a inexistente de um equivalente mais preciso ao “despiciendo” português.14 14 Na tradução espanhola de Alfredo Fressia e na italiana de Giuseppe Butera “despiciendo” é vertido por “despreciando” e “disprezzato”.

No original, o emprego de “despiciendo” reforça a impressão que se impõe desde o início: “A máquina do mundo”, com sua dicção latinizante, constitui eminente exemplo do sermo sublimis na poesia moderna, perfilando-se também nesse aspecto estilístico na legítima descendência da Comédia, para Auerbach (2015AUERBACH, E. Introdução aos estudos literários. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cosacnaify, 2015., p.207) “um poema do mais elevado estilo, abarcando todos os conhecimentos humanos e toda a teologia”, e dos Lusíadas, cujo 10º canto vale como insuperável modelo do sermo gravis em língua portuguesa. Contudo, se nesse canto a nereida Tétis desvela ao Gama “o cosmo de mil esmaltes e figuras” (Bosi, 1985BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985., p.63), caberia ponderar, no tocante ao paralelo acima esboçado, que o noturno, humilde caminhante mineiro está muito distante da aura de sublimidade com que o herói luso é envolvido pelo inexcedível pintor das coisas do mar, na homenagem que Alexander von Humboldt presta a Camões em seu monumental Cosmos - Esboço de uma descrição física do mundo.15 15 “Camões é, no mais verdadeiro sentido da palavra, um grande pintor do mar”, formula-se no capítulo “Descrição da natureza e sentimento da natureza”, no segundo dos cinco volumes da obra publicada entre 1845 e 1862: Kosmos (v.II), Göttingen, 2019, p.42.

O caminhante prossegue em sua rota, a Máquina se fecha

Nas duas últimas tercinas, que narram a caminhada do Eu rumo a um futuro indeterminado, o estilo elevado é mantido, mas não o procedimento alegórico. Ao retomar a perambulação solitária pela estrada mineira, o poema se fecha sob o signo do símbolo, fusão de interior e exterior na imagem e ideia da escuridão comum às montanhas, às aves que pairam no céu de chumbo e ao “meu próprio ser desenganado”, indiciando o enraizamento do andarilho derrotado na paisagem mineral e pedregosa:

A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas.

Pensativo, pois sopesando o que foi perdido, com braços pensos e cabeça inclinada, o peregrino prossegue seu caminho triste e sem roteiro, também ele “um hóspede sombrio na terra escura”:16 16 Com essa imagem Goethe fecha o poema “Anelo aventurado” - na bela tradução de M. Bandeira: “‘Morre e transmuda-te’: enquanto / Não cumpres esse destino, / És sobre a terra sombria / Qual sombrio peregrino”. Cf. o ensaio “O Divã de Goethe no Brasil: Uma dança da poesia, harmônica no tumulto”, in Cadernos de Tradução, v.41, n.3, Florianópolis, 2021 (p.338-63). Acessível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/issue/view/3292>. inconfundivelmente a imagem do “melancólico”, no esboço de Jean Starobinski (2014STAROBINSKI, J. A melancolia diante do espelho. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2014., p.46) em seu estudo “Figuras inclinadas: ‘Le Cygne’”. E se em francês e outras línguas românicas “pensar” (penser) e “inclinar” (pencher) remontam ao verbo latino pendere, nas explanações do crítico suíço, podemos nos perguntar sobre o que o caminhante de Drummond se inclina ou sobre o que ele segue pensando nas duas tercinas conclusivas do poema. Em outras palavras: por que ele rejeitou a oferta da Máquina e o que perdeu com essa recusa?

Considerações finais

A tentativa de esboçar uma resposta teria que ocorrer no âmbito de uma interpretação abrangente do poema, o que extrapolaria os limites deste ensaio. Dada a aparência metafísica do poema, oferecer-se-ia em primeiro lugar - sugere Bosi na abertura de seu ensaio - uma interpretação filosófica. De fato, quando o próprio Drummond organizou a antologia de sua obra lírica (1962), “A máquina do mundo” foi incluída na última seção, “Tentativa de interpretação e de exploração do Estar-no-Mundo”.


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

A linguagem do existencialismo é inconfundível nesses decassílabos e, como modelo para a correspondente interpretação, poder-se-ia pensar, lembra Bosi, nas explanações de Heidegger sobre poemas de Hölderlin, em especial o célebre “Recordação”.17 17 In Explicações da Poesia de Hölderlin (trad. Claudia Drucker). Brasília: UnB, 2013. Manuel Bandeira traduz esse poema (Andenken) por “Lembrança”, que é também a opção de João Barrento (Friedrich Hölderlin. Todos os poemas. Porto: Assírio & Alvim, 2021, p.479-80). Paulo Quintela opta por “Recordação” (Hölderlin. Coimbra: Atlântida, 1959, p.381-5). Contudo, é sabido que Drummond se encontrava então mais próximo ao existencialismo de Sartre, o que se exprime com nitidez no poema de 1943, “A Flor e a náusea”. A experiência fundamental da nausée, suscitada pela experiência da absurdidade, da arbitrariedade da existência, parece despontar também na “Máquina do mundo” - p. ex., na referência ao “absurdo original e seus enigmas”, também à “coisa” gratuitamente oferta ao “engenho” do caminhante; ou ainda, de maneira mais sutil, nos adjetivos, de alta extração filológica, incurioso e lasso, derivados das palavras latinas incuriosus e lassus.


Alfredo Bosi (1936-2021).

No terreno da exegese teológica, Bosi apontou pioneiramente (nota VI) para uma possível leitura do poema à luz do conceito medieval de “acídia”, definido por Tomás de Aquino como “ausência de cuidado, tibieza para com as coisas mais sublimes, preguiça do coração, ‘torpor espiritual que impede [a pessoa] de encetar o bem’ ou procurar a verdade”. Se esse estado de alma impeliu o caminhante à atitude de rejeição que toma forma nos olhos baixos e nos braços pensos, pode-se especular se não terá sido da mesma acídia que o Senhor, no “Prólogo no Céu”, buscou salvar seu servo Fausto ao dar-lhe a companhia de Mefistófeles: “O humano afã tende a afrouxar ligeiro, / Soçobra em breve em integral repouso; / Aduzo-lhe por isso o companheiro [...]”.

No entanto, com a interpretação teológica ou ontológica corre-se o risco de hipostasiar tout court o gesto de rejeição à Máquina como manifestação intemporal e a-histórica da acídia ou de um enfaro existencial derivado da impossibilidade de aceder ao conhecimento da “coisa em si”, a Ding an sich, na epistemologia kantiana. Um tal passo se revelaria problemático em se considerando o engajamento anterior de Drummond, autor de poemas do mais alto pathos sobre a Segunda Guerra, a exemplo de “Carta a Stalingrado” ou “Visão 1944”.

Por certo tempo, Drummond esteve bastante próximo do partido comunista, mas em sua produção poética o protesto contra as diversas formas de opressão evitou exprimir-se de forma propagandística, como em canções de luta, mas antes no tom contido e melancólico que envolve p. ex. “Elegia 1938”, com os emblemáticos versos finais ditados pela impossibilidade de “dinamitar a ilha de Manhattan”.18 18 Em seu tom melancólico, mas também inconformado, “Elegia 1938”, cuja terceira estrofe traz a imagem de uma “Grande Máquina”, lembra o poema brechtiano “Aos que vão nascer”, cuja título inicial era “Elegia 1939”.

Após a guerra, o poeta começa a distanciar-se das ‘verdades altas’ (no leve hipérbato da “Máquina do mundo”, v.62) do partido e, consequentemente, a abandonar o engajamento político. Na desilusão que subjaz a esse ponto de viragem em sua biografia talvez se possa vislumbrar outra pista para a compreensão do poema. A rejeição se revelaria então enquanto metáfora para a recusa de toda visão de mundo impregnada de explicações totalizantes - derivadas, portanto, da categoria da “totalidade”, que no marxismo seria “o domínio absoluto e determinante do todo sobre as partes, a essência do método que Marx tomou a Hegel e converteu de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente nova” (Lukács, 1979LUKÁCS, Georg. Geschichte und Klassenbewusstsein. Studien über marxistische Dialektik. In: ___. Frühschriften II. Darmstadt: Luchterhand, 1979., p.199).

Assim, a atribuição ao caminhante de uma atitude metafísica deveria ser relativizada a partir de uma leitura na tradição da résistance; mas uma resistência, mais precisamente, empreendida - após a experiência do stalinismo - em nome da “ideia de humanidade”, na expressão que surge na primeira seção da Teoria estética de Adorno (1982ADORNO, T. W. Teoria estética. Trad. Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p.11):

A autonomia que ela [a arte] adquiriu após se ter desembaraçado da função cultual e dos seus duplicados, vivia da ideia de humanidade. Foi abalada à medida que a sociedade se tornava menos humana. Na arte, as constituintes que dimanaram do ideal de humanidade estiolaram-se em virtude da lei do próprio movimento.

A autonomia da arte, que para Adorno “permanece irrevogável” e se fundamenta, em seus estágios iniciais, na “ideia de humanidade”, refere-se em primeiro lugar à moderna “poesia absoluta”, à poésie pure aspirada por um Mallarmé, com sua exortação a excluir do poema a realidade, “pois é vulgar” (Friedrich, 1978FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. Trad. Marise M. Curioni e Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978., p.123). Se, contudo, a “ideia de humanidade” também pode ser atribuída a poetas engajados, impõe-se, na argumentação de outro teórico, trazer à mente a importante “restrição” de que “‘humanidade’ significa coisas diferentes para autores diferentes: protesto contra a guerra ou chamada à luta de classes, propaganda para um partido ou defesa de um direito humano” (Lamping, 1991LAMPING, D. Moderne Lyrik - Eine Einführung. Göttingen: Vandenhoeck, 1991., p.98).

Para o Drummond do pós-guerra, que se despediu de seu engajamento durante os anos de ameaça nazifascista mais direta, a ideia de “humanidade” parece estar próxima da “defesa de um direito humano”, da afirmação dos direitos da consciência individual em face da potência de todo e qualquer sistema totalizante. Nesse sentido, o comportamento do viajante solitário que se esquiva ao poder arbitrário da Máquina - esquiva-se à “coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho” - lembra as palavras de recusa que Kafka atribuiu ao protagonista do romance O castelo (para Max Brod um “Fausto do século XX”) em relação a uma “graça” (Gnade) oferecida pelo poder burocrático de funcionários intangíveis, metaforicamente “engrenagens” de um gigantesco maquinário: “Não quero favores do castelo, mas aquilo que é o meu direito” (Kafka, 2000, p.116, grifo meu).19 19 Segundo Max Brod, Kafka planejava concluir o romance com um “favor” gratuito do Castelo: às portas da morte, K. receberia permissão para estabelecer-se na aldeia próxima, administrada pelo Castelo.

Altivez semelhante parece ser explicitada pelo sujeito “noturno e miserável” do poema, que se sente impossibilitado de acolher em seu peito os favores arbitrariamente ofertados. Se, por esse prisma, pensarmos na tipologia de “Poesia Resistência”, delineada no 5º capítulo de O ser e o tempo da poesia, talvez seja possível sustentar que a modalidade “melodia dos afetos em plena defensiva” se apresente como a mais próxima à atitude de “recusa e ilhamento” (Bosi, 2000_______. O ser e o tempo da poesia. 6.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2000., p.167) do caminhante enraizado no chão pedregoso e ferruginoso de sua terra. Também outras reflexões desenvolvidas nesse capítulo - a resistência da poesia à “pseudototalidade forjada pela ideologia”, a resistência à opressão emanada de um “aparelho mental totalitário” - poderiam ser relacionadas ao confronto que se desdobra no poema.

“Na verdade, a resistência também cresceu junto com a má positividade do sistema”, assinala ainda o crítico referindo-se ao aguçamento da “consciência da contradição” que se manifestou na lírica de Leopardi, Hölderlin, Poe ou Baudelaire: “A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade” (Bosi, 2000_______. O ser e o tempo da poesia. 6.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2000., p.165). De tais considerações, poder-se-ia inferir que a renúncia do caminhante à “total explicação da vida”, com a qual a aparição procura seduzi-lo, também a rejeição à oferta de aceder ao “nexo primeiro e singular”, abrigaria em si a resistência do indivíduo a todo sistema que se arroga explicações inequívocas e totalizantes, instalado numa prepotência contra a qual Nietzsche dirigiu veemente protesto: “Desconfio de todos os sistemáticos e saio do seu caminho. A vontade de sistema significa falta de integridade” (Nietzsche, 1999, p.63, grifo meu).

O filósofo emprega nesse aforismo o substantivo Rechtschaffenheit (integridade, retidão), bastante significativo também para compreender o teor do poema que acaba por revelar-se o “Outro” de um estado social experimentado como heterônomo, estranho, opressivo. Ou, em outra formulação da Teoria estética: “Quanto mais total é a sociedade, quanto mais ela se reduz a um sistema unívoco, tanto mais as obras, que armazenam a experiência deste processo, se transformam no seu Outro” (Adorno, 1982ADORNO, T. W. Teoria estética. Trad. Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 44).

Na literatura existem várias maneiras de “armazenar” a experiência da heteronomia. Na canção (Lied) - que terá encontrado naquela mesma “Canção noturna” sua expressão máxima (Adorno, 2003_______. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003., p.71) - a plasmação literária é maciçamente lírica, enquanto na balada ela se realiza em chave dramática, para trazer à tona o aspecto do gênero. Nas tercinas de Drummond, o encontro do Eu com o mundo acontece sob fundamento épico-narrativo, ainda que nelas se manifestem elementos das duas outras “formas naturais da poesia”, variante goethiana para o conceito de “gênero” (Goethe, 2019_______. Divã ocidento-oriental. Trad. Daniel Martineschen. São Paulo: Estação Liberdade, 2019., p.341).

Elevada reflexividade, insistência nos direitos da própria consciência ocupam de fato o lugar do “autoesquecimento” do sujeito que na canção se entrega de modo intuitivo à linguagem; tratamento elaborado, em registro alto, do discurso sobrepondo-se ao impulso “imediato e involuntário” da expressão lírica, nas considerações do ensaio sobre lírica e sociedade (Adorno, 2003_______. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003., p.74). Mas ao Eu que se vê confrontado com a magnificente alegoria e se recusa a abrir o peito para ‘agasalhar’ suas altas verdades, seria possível estender um outro postulado que Adorno levanta em relação ao Eu da canção, que também “se determina e se expressa em oposição ao coletivo, à objetividade”, não se curvando a nenhum heterônomo na realização de sua autodeterminação (Adorno, 2003, p.69).

Bem diferente da Macchina Mundi camoniana, cuja epifania torna “felice” o nauta luso, a de Drummond alegoriza uma potência organizada em “estranha ordem geométrica”, a qual o caminhante não é capaz de acolher em seu seio, rechaçando assim a cláusula para o selamento do pacto proposto. E se na descrição da alegoria que surge numa estrada solitária com a reivindicação de totalidade o reino da técnica vem em primeiro lugar, ou seja, “soberbas pontes e edifícios” assim como “o que nas oficinas se elabora”; e se, além disso, faz-se referência aos minérios jacentes ‘rancorosos’ nas entranhas da terra, delineia-se o ensejo para lembrar que a biografia do poeta, conforme amplamente documentado no estudo A maquinação do mundo, registra longa e, em última instância, baldada luta contra a Companhia Vale do Rio Doce, fundada em 1942 como empresa estatal.

Uma das três maiores corporações mineradoras do mundo, a Vale não deixou de cobrar o chamado “preço do progresso” ao empreender a exploração dos “recursos da terra” na região de Itabira, convertendo em imensa cratera o Pico do Cauê, até então emblema da cidade. Entre as consequências ecológicas mais recentes de suas atividades mineradoras estão, como tragicamente sabido, os dois maiores desastres ambientais (até agora) na história do Brasil: o rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho, com centenas de mortos, milhares de desalojados e terrível contaminação ambiental.

Wisnik (2018WISNIK, J. M. Maquinação do mundo. Drummond e a mineração. São Paulo: Cia. das Letras, 2018., p.113) debruçou-se sobre o longo e desigual conflito entre o poeta e a poderosa corporação, que em 20 de novembro de 1970 (na fase mais repressiva da ditadura militar), publicou, com requintes de perfídia, um “patriótico” artigo no jornal O Globo: “Há uma pedra no meio do caminho do desenvolvimento brasileiro”. Sarcástica alusão ao famoso poema de Alguma poesia (1930) que, verdadeira “pedra de tropeço e de escândalo”, exporia esse poeta - “não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa” (“Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”) - a incontáveis zombarias, arrancando-lhe os amargos versos de “Legado”: “De tudo quanto foi meu passo caprichoso / na vida, restará, pois o resto se esfuma, / uma pedra que havia em meio do caminho”.

Para a onipotente Vale, a resistência do poeta às atividades mineradoras significava, como expresso em 1970, uma “pedra no meio do caminho” do desenvolvimento do país governado pela ditadura militar que também defendia na época o arroteamento do “inferno verde” no norte do país.20 20 Sobre os pressupostos e consequências da ideologia do “desenvolvimento”, ver o excelente ensaio “O projeto fáustico entre o mito e a ideologia” (Bosi, 2010, p.197-202). À luz desse conflito desproporcional seria legítimo recordar o empecilho que o casal de anciãos Filemon e Baucis - “espinho para os olhos” (v.11.161), também “pedra no meio do caminho” - representa, no Fausto II, ao gigantesco empreendimento desenvolvimentista que o colonizador e seu diabólico “superintendente” colocam em marcha para levar prosperidade aos habitantes das terras recém-conquistadas ao mar, o ‘povo livre trabalhando livremente em solo livre’, na idealização, ou antes racionalização do crime contra a vida humana e a natureza, articulada no monólogo final de Fausto.

Em vez, porém, de desdobrar esse paralelo entre o poema e a “tragédia do desenvolvimento” (Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar) no último ato do drama, reiteremos apenas que o profundo ceticismo com que o solitário caminhante mineiro reage ao apelo sedutor da Máquina traz em si o ceticismo em relação a toda visão de mundo totalizante, a todo e qualquer sistema que se apresenta com reivindicações universalizantes, incapaz de tolerar o que escapa às imposições de nivelamento e estandardização.21 21 Ao enfocar o domínio monolítico e ilimitado reivindicado pelo colonizador Fausto, Adorno observa que a simples esfera de vida de Filemon e Baucis é “tão intolerável ao senhor das novas terras submetidas aos homens como é intolerável a toda racionalidade ligada à dominação sobre a natureza tudo que não lhe seja semelhante” (Adorno, 1990, p.137). Nessa perspectiva, a negatividade que se desprende das tercinas poderia ser relacionada não só a advertências que subjazem a distopias do século XX, como também ao contexto da sombria descrição da conjuntura mundial delineada na abertura da Dialética do esclarecimento: “a terra totalmente esclarecida” (o poema fala em “explicação total” do mundo), mas que “resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”.

Nesta constatação espreitava a ameaça do “produto quintessente de um laboratório falido” (ou do labor das “oficinas”).22 22 A perversa apropriação de esforços científicos para finalidades de destruição desponta também no poema “1940”, de Brecht, em que dos laboratórios e bibliotecas surgem carniceiros: “apertando os filhos contra o peito / as mães perscrutam desalentadas / o céu, em busca das invenções dos sábios”. Decorridos, porém, sete decênios desde a redação da “Máquina do mundo” e daDialética do esclarecimento, seria legítimo sustentar que aquela “calamidade triunfal” se apresenta ao século XXI em configuração diferente, mas não menos sombria do que o cataclismo nuclear: sob a forma de uma crise ecológica que constitui possivelmente, como alertam cientistas no mundo todo, o maior problema jamais enfrentado pela humanidade. A espécie humana se vê confrontada assim, nas palavras do “Post-scriptum” à Dialética da colonização, com “os efeitos da industrialização cega e suja [...] a disseminação do lixo atômico, as manchas ácidas, o efeito estufa, o envenenamento das águas, o risco dos agrotóxicos, o inferno das megalópoles” (Bosi, 1992_______. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992., p.355). Cerca de vinte anos mais tarde, o crítico se alinharia, com os ensaios “Lendo o Segundo Fausto de Goethe” e o já mencionado sobre o “projeto fáustico”, entre os intérpretes da tragédia goethiana que veem na “industrialização cega e suja” uma das consequências do pacto desenvolvimentista selado com Mefistófeles.

Contudo, assim como no poema de Drummond o Eu que palmilha a pedregosa estrada mineira se recusa, em gesto de resistência, a acolher a cláusula do pacto proposto pela Máquina, toda a obra de Alfredo Bosi sempre procurou adensar a resistência às forças “mefistofélicas” que levaram aos imensos desafios da crise ecológica. Emblemática, nesse sentido, é a constatação no ensaio sobre o “projeto fáustico”:

Transcorridos dois séculos da concepção do drama goethiano, olhamos em torno de nós e, em meio ao que restou da natureza depois das investidas da revolução industrial, sentimos que é necessário lutar contra as mesmas forças que arrasaram a casa de Filemon e Baucis e queimaram as suas velhas tílias. Falamos em ‘desenvolvimento sustentável’, que os franceses exprimem com uma conotação temporal (développement durable), e temos a esperança de deter o processo de aquecimento global. Ainda e sempre o fogo, emblema dos ínferos! (Bosi, 2010_______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010., p.221)

Ao mesmo tempo, essa obra também nunca deixou de apontar para a urgência de um novo pacto do ser humano “com o universo que o rodeia e o constitui”, a fim de que se instaure outra forma de convívio entre sociedade e natureza, distante do “domínio de todos os seres vivos pelo Homo faber” (Bosi, 1992_______. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992., p.356). A perspectiva ecológica, que sempre foi tão forte no pensamento e na militância do crítico, possibilita hoje o descortino de novos significados no grandioso poema em que “a luta fáustica” aflora com força sem paralelo na poesia brasileira, “como se fora um embate de vida e morte”.

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  • VILLAÇA, A. O poeta, a máquina e o mundo. In: ___. Passos de Drummond. São Paulo: Cosacnaify, 2006.
  • WISNIK, J. M. Maquinação do mundo. Drummond e a mineração. São Paulo: Cia. das Letras, 2018.

Notas

  • 1
    Algumas ideias expostas neste ensaio tiveram uma primeira formulação no texto “Versuchung und Widerstand in ‘A Máquina do Mundo’”, publicado no volume Lyrik der Welt - Welt der Lyrik (Stuttgart: Metzler, 2022). Enfoquei então, de maneira mais cerrada, a tradução de Meyer-Clason (Die Weltmaschine), o que não foi possível no âmbito do presente ensaio.
  • 2
    A esse monólogo subjaz a concepção de que o conhecimento do Cosmo jamais pode se dar de maneira direta, mas sempre por via indireta, analogamente à contemplação do sol nas cores do arco-íris: “Temos, no espelho colorido, a vida”.
  • 3
    O conceito de “Poesia Mundial” aparece no ensaio “Canções sérvias”, mediante as quais Goethe se mostrava convencido de que então se constituía por todos os continentes uma Weltpoesie, para cuja difusão “nem conteúdos nem formas precisam ser transmitidos, pois por todos os lugares em que o sol brilha seu desenvolvimento é certo”. Sobre o papel que poemas em tupi desempenham na constituição dessa Poesia Mundial ver o ensaio “Natureza ou Deus: afinidades panteístas entre Goethe e o ‘brasileiro’ Martius” (Estudos Avançados, n.69, p.183-202, 2010).
  • 4
    Um panorama mais completo sobre a fortuna crítica do poema pode ser encontrado no verbete sobre “A máquina do mundo” elaborado por Vagner Camilo (2023, p.36-44).
  • 5
    Sobre esse motivo e a “Canção noturna” do caminhante ver a monografia A dupla noite das tílias (Mazzari, 2019, p.54 e 223-7).
  • 6
    No capítulo de sua Estrutura da lírica moderna dedicado a Rimbaud, H. Friedrich considera o poema Marine, de 1872, o primeiro exemplo na França de “verso completamente livre” (Friedrich, 1978, p.84).
  • 7
    Já no estudo Reflexões sobre a arte, o crítico explicita com clareza essa interação (Bosi, 1985, p.64).
  • 8
    No capítulo “Tipos de símbolos”, Kurz (2009, p.88-9) observa: “Espaço e tempo simbolizam situações psíquicas que acontecem em seu âmbito. Assim, também situações psíquicas surgem sob a impressão de espaço e tempo. Símbolos metonimicamente motivados tendem a fazer com que o ser humano apareça na dependência de seu entorno. E a fronteira entre mundo exterior e estado íntimo aparece como que abolida”. Entre os vários exemplos de símbolos com base metonímica apresentados pelo autor poder-se-ia incluir a pedregosa estrada de Drummond, envolta em escuridão e desolação.
  • 9
    Essa estrofe foi traduzida para o alemão por Stefan Zweig e afixada sobre sua escrivaninha na casa de Petrópolis em que se suicidou.
  • 10
    Também Grande sertão alude a essa paradigmática cena bíblica, no momento em que Riobaldo, logo após o pacto, galga um “itambé” e de seu cume antegoza o novo poder adquirido: “Tinham me dado em mão o brinquedo do mundo”.
  • 11
    Na tradução alemã, “elaborar” (“o que nas oficinas se elabora”) converte-se no substantivo plural “laboratórios” (Laboratorien). Entre esses produtos podemos incluir também a bomba atômica, que no poema “A bomba” (Lição de coisas, 1962) será chamada de “produto quintessente de um laboratório falido”.
  • 12
    Sobre essa mesma metáfora o mencionado estudo Maquinação do mundo (Wisnik, 2018, p.211-19) traz uma interpretação muito original no segmento “O palácio de Moebius (vv.49-69)”. Na tradução alemã desse verso permuta-se o sentido de “rancoroso” pelo de “maligno” (böser Schlaf). Na tradução inglesa lemos rancorous sleep of mineral ores e, na francesa, rancunier sommeil des minéraux.
  • 13
    O verbo “arrepiar-se” corresponde no original a “nausear-se”, “sentir náuseas”: “nauseio-me com todo conhecimento”.
  • 14
    Na tradução espanhola de Alfredo Fressia e na italiana de Giuseppe Butera “despiciendo” é vertido por “despreciando” e “disprezzato”.
  • 15
    “Camões é, no mais verdadeiro sentido da palavra, um grande pintor do mar”, formula-se no capítulo “Descrição da natureza e sentimento da natureza”, no segundo dos cinco volumes da obra publicada entre 1845 e 1862: Kosmos (v.II), Göttingen, 2019, p.42.
  • 16
    Com essa imagem Goethe fecha o poema “Anelo aventurado” - na bela tradução de M. Bandeira: “‘Morre e transmuda-te’: enquanto / Não cumpres esse destino, / És sobre a terra sombria / Qual sombrio peregrino”. Cf. o ensaio “O Divã de Goethe no Brasil: Uma dança da poesia, harmônica no tumulto”, in Cadernos de Tradução, v.41, n.3, Florianópolis, 2021 (p.338-63). Acessível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/issue/view/3292>.
  • 17
    In Explicações da Poesia de Hölderlin (trad. Claudia Drucker). Brasília: UnB, 2013. Manuel Bandeira traduz esse poema (Andenken) por “Lembrança”, que é também a opção de João Barrento (Friedrich Hölderlin. Todos os poemas. Porto: Assírio & Alvim, 2021, p.479-80). Paulo Quintela opta por “Recordação” (Hölderlin. Coimbra: Atlântida, 1959, p.381-5).
  • 18
    Em seu tom melancólico, mas também inconformado, “Elegia 1938”, cuja terceira estrofe traz a imagem de uma “Grande Máquina”, lembra o poema brechtiano “Aos que vão nascer”, cuja título inicial era “Elegia 1939”.
  • 19
    Segundo Max Brod, Kafka planejava concluir o romance com um “favor” gratuito do Castelo: às portas da morte, K. receberia permissão para estabelecer-se na aldeia próxima, administrada pelo Castelo.
  • 20
    Sobre os pressupostos e consequências da ideologia do “desenvolvimento”, ver o excelente ensaio “O projeto fáustico entre o mito e a ideologia” (Bosi, 2010, p.197-202).
  • 21
    Ao enfocar o domínio monolítico e ilimitado reivindicado pelo colonizador Fausto, Adorno observa que a simples esfera de vida de Filemon e Baucis é “tão intolerável ao senhor das novas terras submetidas aos homens como é intolerável a toda racionalidade ligada à dominação sobre a natureza tudo que não lhe seja semelhante” (Adorno, 1990, p.137).
  • 22
    A perversa apropriação de esforços científicos para finalidades de destruição desponta também no poema “1940”, de Brecht, em que dos laboratórios e bibliotecas surgem carniceiros: “apertando os filhos contra o peito / as mães perscrutam desalentadas / o céu, em busca das invenções dos sábios”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2023
  • Aceito
    03 Maio 2023
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