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Cristianismo libertário e redenção em Roberto Rossellini e Pier Paolo Pasolini1 1 Este artigo é dedicado alla cara, lieta, familiare memoria de Alfredo e Ecléa Bosi.

RESUMO

Este artigo intenta realizar uma articulação entre a literatura e o cinema através do conceito desenvolvido por Alfredo Bosi no campo literário da resistência como forma de oposição a qualquer tipo de violência e exploração. Para o pensador brasileiro, esse conceito ético é o elo inquebrantável que une o escritor ao seu momento histórico. Em Stromboli terra de Deus (Stromboli terra di Dio, 1949-50) e Francisco arauto de Deus (Francesco giullare di Dio, 1950) Roberto Rossellini se volta para o sagrado para reafirmar as forças da vida num mundo que acabara de sair da Segunda Guerra Mundial. Em sua adaptação para o cinema do Evangelho segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964) Pier Paolo Pasolini se serve do texto das escrituras como instrumento de oposição ao frio capitalismo da técnica, do pensamento utilitário e das formas cada vez mais exacerbadas de consumo.

PALAVRAS-CHAVE:
Literatura; Cinema; Resistência; Religião

ABSTRACT

This article attempts to link literature and cinema through the concept of resistance, developed by Alfredo Bosi in the literary field, as a form of opposition to any type of violence and exploitation. For Bosi, this ethical concept is the unbreakable link that unites a writer to his or her historical moment. In Stromboli land of God (1949-50) and Francis, God’s Jester (1950), Rossellini turns to the sacred to reaffirm the forces of life in a world that had just emerged from the Second World War. In his film adaptation of the Gospel according to Saint Matthew (1964), Pier Paolo Pasolini uses the Scriptures as an instrument of opposition to a form of capitalism based only on technique, on utilitarian thinking and on increasingly exacerbated forms of consumption.

KEYWORDS:
Literature; Cinema; Resistance; Religion

Introdução

O primeiro quarto do século XXI se caracteriza como um período de desigualdades sociais cada vez mais profundas, do reavivamento do fascismo e de uma exacerbada crise ambiental. Diante do contexto desalentador dessas duas décadas iniciais do século XXI, seria oportuno se nos voltássemos para a palavra viva e redentora dos Evangelhos.

No que consiste essa voz divina das sagradas escrituras? Começamos nossa tentativa de definição por aqui que essa voz não significa.

Ela é uma palavra que não tem relação com a violência praticada contra a tradição helênica pelos cristãos dos primeiros tempos. Ela também não se manifestou através da hipocrisia dos religiosos do continente americano, católicos e protestantes, que eram senhores dos negros trazidos à força da África como escravos e de seus descendentes nascidos no Novo Mundo. O mesmo pode ser dito sobre as igrejas alemãs de todas a denominações cristãs que permaneceram em silêncio ou apoiaram explicitamente as atrocidades perpetradas nos campos de concentração nazistas.2 2 A bibliografia sobre o tema é extensa. Indico como ponto de partida sobre os terríveis pecados cometidos em nome de Cristo os seguintes trabalhos: Nixey (2017); Gerbner (2018); Kellerman SJ (2022),

Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça e os misericordiosos como o frei Bartolomé de Las Casas que ergueu sua voz contra as iniquidades cometidas pela Europa contra os povos da América. Bem-aventurado foi o reverendo da igreja batista negra Martin Luther King que desafiou a mão pesada e cruel dos supremacistas brancos dos Estados Unidos. Bem-aventurado foi o teólogo protestante alemão Dietrich Bonhoeffer que se opôs ao extermínio de judeus nos campos de concentração e que faleceu num desses campos. Bem-aventurados os nomes de Gustavo Gutiérrez, Pedro Casaldáliga e Leonardo Boff, religiosos da Teologia da Libertação, e se transformaram em vozes potentes contra a exploração das minorias da América Latina.

Impedir que a palavra das escrituras não se transforme em letra morta leva, necessariamente, à realização de uma prática solidária e renovadora junto aos grupos subalternos da sociedade por meio de uma luta sem tréguas em prol da emancipação espiritual, econômica e social desses grupos historicamente oprimidos pelos setores hegemônicos de suas respectivas regiões. Para esses deserdados da terra, Jesus Cristo veio oferecer a leveza ainda nesta vida terrena (Mateus, 11-28): “Δεῦτε πρός µε, πάντες οἱ κοπιῶντες καὶ πεφορτισµένοι κἀγὼ ὑµᾶς ἀναπαύσω” (“Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso de vosso fardo e vos darei descanso”).

Pesada é a gravidade da força cruel do tirano. A graça reside em todo movimento que nos eleva e nos devolve à vida plena e que só se manifesta através do amor desinteressado, que se recusa a cair nas armadilhas do preconceito e na submissão do espírito ao egoísmo frio da indiferença. Essa foi a lição que Simone Weil nos ensinou em A gravidade e a graça.

A humanidade foi submetida às forças ao mesmo tempo criadoras e destruidoras da modernidade capitalista, processo teve início na Europa durante passagem do século XV para o XVI, na Itália do Renascimento para se tornar, 300 anos depois, o modelo hegemônico em todo o planeta (Martin, 2016MARTIN, A. von. Die neue Dynamik. In: _____. Soziologie der Renaissance und weitere Schriften. Wiesbaden: Springer VS, 2016, p.14-52). Os caminhos percorridos por esta modernidade foram marcados por avanços e retrocessos com o surgimento de formas de governos democráticas e de violentos regimes ditatoriais e totalitários. Descobertas científicas que trouxeram alívio e conforto enquanto outras possibilitaram as conexões entre seres e lugares distantes no tempo e no espaço viram a criação de armas de guerra que poderiam, num curto espaço de tempo, exterminar toda a vida na Terra. Essas antinomias, como a história tem nos revelado, são inerentes ao programa capitalista ocidental.

Shmuel N. Eisenstadt observa que, embora as guerras e genocídios não foram eventos exclusivos da modernidade, esta os transformou radicalmente, gerando modos de barbárie especificamente modernos. O autor comenta ainda que a violência, o terror e a guerra passaram por um processo de “ideologização”, que teve na Revolução Francesa seu momento inaugural. Para Eisenstadt (2005, p.55) isso se deve a uma nova e específica manifestação ideológica fundamental para a consolidação dos Estados modernos - a identidade nacional:3 3 Sobre o surgimento do Estado-nação, sugiro ao leitor o livro de Hobsbawn (2012), Nações e nacionalismo desde 1780. Já sobre a questão da identidade nacional a referência clássica, ver Anderson (2013).

A tendência para estas ideologias de violência tornou-se intimamente relacionadas ao fato de que o estado-nação passou a ser símbolo mais importante de identidade coletiva. O Holocausto, ocorrido no próprio centro da modernidade, tornou-se o exemplo mais evidente do potencial negativo e destrutivo, da barbárie que está à espreita em seu âmago.

Escritas da resistência

Há uma passagem no Manifesto comunista, obra escrita por Karl Marx e Frederic Engels e publicada em 1948, em que os autores comentam sobre as profundas transformações causadas na Europa pela nova classe dominante que surgiu dos escombros da antiga sociedade feudal - a sociedade burguesa capitalista. Nas regiões onde chegou ao poder essa burguesia (Marx; Engels, 2005, p.42):

Destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais”, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço frio do interesse, as duras exigências do “pagamento a vista”. Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substitui as numerosas liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio. (grifo nosso)

O poder oriundo do controle dos sistemas de produção, de troca de mercadorias e da oferta de mão de obra permitiu a esses grupos hegemônicos cooptar os Estados Nacionais para que esses estabelecessem políticas de seu interesse. No entanto, essa posição não poderia ser completamente assegurada se o poder desses grupos não se desse também através da imposição de sentidos às demais camadas da sociedade.

Ao ser humano foi concedida por Deus a tarefa de nomear os demais seres viventes que coabitavam com ele no Paraíso recém-criado, incluindo tudo aquilo que a natureza produzia: “Depois que formou da terra todos os animais do campo e todas as aves do céu, o Senhor Deus os trouxe ao homem para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome” (Gênesis, 2-19).

Alfredo Bosi (2000_______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora 34, 2000., p.163) afirma que o ato de nomear, na tradição da cultura judaica, significava “dar às coisas a sua verdadeira natureza, ou reconhecê-la”. Essa é a qualidade por excelência da linguagem e, por extensão, da poe- sia, acrescenta o autor. O capitalismo altera essa configuração ao despojar “de sua auréola todas as atividades reputadas até então como dignas e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio seus servidores assalariados” (Marx; Engels, 2005MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005., p.42).

O impacto dessa “proletarização” do fazer poético apontado acima pelos pensadores alemães fez que a poesia, conforme notou Bosi, deixasse de ter a relação estreita com o “rito e as palavras sagradas que abriam o mundo ao homem e o homem a si mesmo”. Os principais artífices dessa cisão foram a ideologia burguesa e a fala fácil do senso comum passaram a ocupar os espaços do sagrado. Esses elementos, portanto, se transformaram nos novos doadores de sentidos. Tal situação acentuou-se a parir do século XIX (Bosi, 2000, p.142):

No mundo moderno a cisão começa a pesar mais duramente a partir do século XIX, quando o estilo capitalista e burguês de viver, pensar e dizer se expande a ponto de dominar a Terra inteira. O Imperialismo tem construído uma série de esquemas ideológicos de que as correntes nacionalistas ou cosmopolitas, humanistas ou tecnocráticas, são momentos diversos, mas quase sempre integráveis na lógica do sistema.

No início da Era Moderna os impérios europeus ampliam seus domínios para regiões do globo até então ignoradas. Esse processo teve como seu evento mais emblemático a anexação do continente americano pelas potências marítimas do Velho Mundo. A abertura para o Atlântico resultou numa das maiores tragédias da história da humanidade: o genocídio, que perdurou por mais de três séculos, dos habitantes que já se encontravam no continente quando os europeus desembarcaram em suas praias. Outro pecado ignominioso do colonialismo foi a escravidão dos indígenas num primeiro momento e depois, de forma maciça, dos negros trazidos à força da África nos porões dos tumbeiros, esses primeiros protótipos marítimos dos campos de concentração nazistas.4 4 A escravidão no continente americano se manteve durante boa parte do século XIX. O Brasil foi o último a abolir a prática, pelo menos formalmente, em 1888, cerca de dez anos antes da chegada do cinematógrafo dos irmãos Lumière ao país.

A modernização atingiu também a organização do Estado e de suas respectivas forças militares. Nesse segundo grupo a capacidade destrutiva aumentou significativamente em razão da utilização de novas tecnologias na fabricação de armamentos, dos avanços nas áreas de estratégia e organização das tropas e da vontade política dos governos de investir no setor. A regulação administrativa do Estado se tornou mais rigorosa e suas agências oficiais começaram a registrar e classificar a população,5 5 A fotografia teve um papel fundamental nesse processo. Na década de 1840 as autoridades britânicas reconheciam o potencial desse novo meio de registro mecânico da realidade para o controle da incômoda e “perigosa” e cada vez mais numerosa de desempregados que viviam nas ruas das principais cidades do país. Ver Sekula (2006). bem como suas propriedades e seus respectivos potenciais fiscais. Diante dessa nova razão, voltada para o lucro e controle, o mundo sucumbiu à reificação e se desencantou (Bosi , 2000_______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora 34, 2000., p.164):

Furtou-se à vontade mitopoética aquele poder originário de nomear, de com-preender a natureza e os homens, poder de suplência e união. As almas e os objetos foram assumidos e guiados, no agir cotidiano, pelos mecanismos do interesse, da produtividade; e o seu valor foi se medindo quase automaticamente pela posição que ocupam na hierarquia de classe ou de status. Os tempos foram ficando - como já deplorava Leopardi - egoístas e abstratos.

Nesse movimento de constante desumanização a arte sai em busca de estratégias que visa compreender esse momento histórico onde “tudo que é sólido desmancha no ar”. E, como acontece em todos os campos da atividade humana, a literatura seguiu o duplo caminho da ideologia dominante e da contraideologia resistente que opta, parafraseando o Hamlet de William Shakespeare, “pegar em armas contra esse oceano de novas calamidades para combatê-las”. Este foi o caso, por exemplo, da poesia de um Hölderlin, um Heine, um Leopardi, um Baudelaire, e da prosa de Victor Hugo, Dickens, Carlyle e Balzac, para ficarmos apenas na seara dos autores contraideológicos dos Oitocentos.

A arte cinematográfica é filha direta dessa modernização técnica capitalista6 6 Como o projetor necessitava de energia elétrica para operar, o cinema só consolida a partir do momento em que a produção de eletricidade se expande em todas as direções. e nela encontramos vários realizadores que se rebelaram contra a violência e a coisificação extremas que se desenvolveram no breve século XX. Esse é o caso dos filmes comentados nesse artigo.

O Evangelho segundo Pasolini

O comunismo de Pier Paolo Pasolini não o impedia de reconhecer a força liberadora dos Evangelhos. O cineasta elabora um discurso que visa colocar numa perspectiva dialética as visões marxista e cristã sem, no entanto, “perder qualquer das dimensões sensíveis que as mesmas crenças assumem” (Bosi, 2003_______. Paixão e ideologia. In: ___. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Editora 34; Duas cidades, 2003. p.371-6., p.272), Pasolini (1999, p.1577-8) via no Evangelho Segundo São Mateus uma obra fundamental na resistência contra a exploração do capital da metade da década de 1960:

É necessário distinguir entre os clericais e os espíritos verdadeiramente, autenticamente religiosos. Com estes últimos, com os católicos evangélicos, parece-me certamente possível encontrar um inimigo comum, identificável no materialismo ateu e desumanizador que é precisamente a base do neocapitalismo e que é a síntese de tudo o que é condenado pelo Evangelho.

Περίλυπός ἐστιν ἡ ψυχή µου ἕως θανάτου·

É noite no vale de Cedron. Os treze homens que se aproximam haviam acabado de compartilhar o pão e o vinho durante o serviço que antecedia o Nisâ, a ceia do Pessach, que seria realizada no dia seguinte. Ao chegarem ao pé do monte onde vicejavam as oliveiras Jesus diz aos seus discípulos que aguardassem onde estavam pois ele iria orar ao Pai. Poucos passos foram dados quando o Mestre se volta para os doze e pede a Pedro, Tiago e João, filhos de Zebedeu, que o acompanhasse.

O pequeno grupo chega ao local pretendido e o Messias mostra-se tenso. Seu comportamento deixa transparecer o temor que se instaura em seu coração naquele momento crucial de sua trajetória. Diz ele então para seus três discípulos: “Περίλυπός ἐστιν ἡ ψυχή µου ἕως θανάτου· µείνατε ὧδε καὶ γρηγορεῖτε µετ’ ἐµοῦ” (“Minha alma está triste até a alma. Permanecei aqui e vigiai comigo”).

O que antes era uma entidade una, que continha a existência simultânea do humano e do divino na mesma consciência, agora vê essas duas metades exiladas dentro do corpo que as contém. Essa cisão resulta numa forma de solidão radical pois a quem ele poderia recorrer, entre os seres humanos, que pudesse compreender esse paradoxo e, consequentemente, encontrar algum consolo? Jesus sente o mais comum dos temores da humanidade - o medo da morte.

Blaise Pascal observa que a passagem de Jesus pela Terra apresenta dois momentos de grande dor. A primeira reside na agonia do flagelo e da crucificação e a segunda é este momento que se passa no Monte das Oliveiras. Se a primeira é causada pela mão humana, a segunda é imposta pelo Cristo a si mesmo e, como tal, somente ele pode superá-la (Pascal, 1973, p.171 ): “Jesus sofre em sua paixão os tormentos que os homens lhe infringem; mas na agonia sofre os tormentos que ele mesmo se impõe: turbare semetipsum.7 7 Expressão retirada do Evangelho segundo São João: “Quando Jesus a viu chorar e também aqueles que a acompanhavam, comoveu-se interiormente e ficou perturbado” (J 11, 33). É um suplício de mão não humana, mas onipotente, e é preciso ser onipotente para suportá-lo”

O Cristo crucificado e as vozes da África no Novo Mundo

Quando os reis magos encontram a sagrada família na cidade de Belém começamos a ouvir uma canção que fala sobre uma criança mergulhada num abandono profundo que a leva a dizer que, às vezes, ela se sente como um filho que perdeu sua mãe. Trata-se de uma música sacra afroamericana, ou “spiritual”, intitulada Sometimes I feel like a motherless child, composta no período da escravidão e de autor desconhecido. A música foi registrada pela primeira vez em 1808, por William Barton, no livro Old plantation hymns (Barton, 1889BARTON, W. E. Old plantation hyms. Boston: Lamson, Wolffe and Company, 1889.). A versão utilizada pelo realizador foi gravada ao vivo pela cantora afro-americana Odetta Holmes e que se encontra no disco Odetta at Carnegie Hall, de 1963.

A trajetória dos negros na América, segundo o teólogo James H. Cone (1999CONE, J. H. Risks of Faith: The Emergence of a Black Theology of Liberation, 1968-1998. Boston: Beacon Press, 1999., p.14), se configurou como “uma história de servidão, um registro de dor e tristeza, de navios negreiros e leilões. É a história da vida negra acorrentada e do significado que isso teve para as almas e os corpos dos negros”. O teólogo via nos spirituals uma forma de expressão que assumia a libertação negra como algo intrínseco da revelação divina da fé cristã (ibidem, p.13): “São canções de liberdade negra que enfatizam a libertação negra como consistente com a revelação divina. Portanto, nenhuma intepretação teológica dessas canções seria válida se não levasse em conta o contexto em que elas foram criadas”.

Em La nuit, livro autobiográfico de Elie Wiesel onde ele rememora o período que passou no campo de concentração de Auschwitz, nos deparamos com o relato de um enforcamento de dois homens e um rapaz judeu pelos nazistas. Os prisioneiros foram obrigados a assistir a execução de seus companheiros de infortúnio no pátio do campo.

Os dois adultos morrem rapidamente. O mesmo não acontece com o jovem, pois esse leva cerca de meia hora para exalar seu último suspiro. Diante da prolongada agonia do rapaz um dos prisioneiros repete a mesma pergunta: “Onde Deus está agora?”. A resposta ecoa silenciosamente na mente de Wiesel que não tem forças para expressá-la em voz alta: “Deus está ali, agonizando nos galhos daquela árvore”.

O que nos ensinam os trechos do filme de Pasolini comentados acima? Qual a relação que se estabelece entre o medo do Cristo no Monte das Oliveiras e o sofrimento do ser humano causado a ele por seus próprios semelhantes?

O pavor manifestado pelo Messias diante da morte é um exemplo de sua humanidade. Exilada do sagrado sua parte mortal deseja que o cálice amargo dele se afaste. Isso dura alguns instantes pois ele sabe que é necessário superar todas as fraquezas para que se cumpra a vontade redentora do Pai em relação à humanidade.

Ao relatar essa experiência radical de Jesus nos instantes que antecedem sua Paixão, o Evangelista permite que atentemos para o fato de que no sofrimento injusto do inocente reside a mais cruel das opressões. Gustavo Gutiérrez, em sua análise do livro de Jó, observa que o personagem-título começa a superar sua dolorosa condição no momento em que descobre que o sofrimento não é só dele, mas também a de muitos outros privados das condições mínimas de existência e que vivem em época e lugares diferentes: “Trata-se da situação dos pobres deste mundo que, mais do que viver, morrem nas margens dos caminhos e longe da terra destinada a dar-lhes sustento”. A questão que deve ser endereçada a Deus, acrescenta o fundador da Teologia da Libertação, “deixa de ser apenas algo pessoal, ela toma corpo na dor dos pobres desse mundo” (Gutiérrez, 1995, p.77).

Μαριάµ κεχαριτωµένη

Hans Küng disse certa vez que a mulher se transformou num problema para a maior parte das religiões do mundo. Para o teólogo alemão, que participou do Concílio Vaticano II, se desde tempos imemoriais elas têm sido colocadas numa posição irrelevante sobre temas familiares, políticos, econômicos, nas questões religiosas isso não foi diferente. Küng exorta a Igreja a ser uma instituição onde a plena comunhão entre homens e mulheres se torne a regra e que essa atitude deveria ser incentivada em toda a sociedade (Küng, 2005, p.97-8). Vejamos, a seguir, como Pasolini defendeu essa mesma posição de relevância para as mulheres.

Os momentos iniciais do filme de Pasolini referem-se à narração que abre o Evangelho Segundo São Mateus, onde seu autor relata a ascendência e a concepção de Jesus. Iniciamos nossos comentários por esta última (Mt 1, 18-20):

A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, comprometida8 8 O compromisso judaico entre os casais se aproxima daquilo que chamamos de noivado. Todavia, para a cultura judaica do período, o noivado era praticamente um casamento oficial que só podia ser desfeito através do repúdio. em casamento com José, antes que coabitassem, achou-se grávida pelo Espírito Santo. José, seu esposo, sendo justo e não querendo denunciá-la9 9 A denúncia poderia levar a mulher à morte pois esta, tal como está prescrito em Deuteronômio 22, 20-21, será levada “até a porta da casa de seu pai e os homens da cidade a apedrejarão até que morra, pois ela cometeu uma infâmia em Israel, desonrando a casa de seu pai. Deste modo extirparás o mal do teu meio”. publicamente, resolveu repudiá-la em segredo.

A face de traços suaves em close-up da jovem Maria que mostra uma expressão um tanto melancólica é a primeira imagem do filme. Ao fundo, do lado superior direito da tela, vislumbramos com nitidez nuvens brancas que tomam o céu e, entre este último e a jovem, notamos um arco de pedra divido ao meio pela cabeça da Virgem coberta por um véu. A câmera mostra a construção com uma clareza que nos permite quase sentir fisicamente a superfície irregular das pedras que a formam. A seguir vemos o contracampo da cena anterior que exibe o objeto do olhar de Maria que é o rosto em close-up José, seu marido. O homem, com sua expressão que denota dignidade, apresenta certa apreensão. A câmera exibe mais uma vez o close da face de Maria, que delicadamente volta seu olhar para o chão sob seus pés. Retornamos para o rosto de José, que continua apreensivo.

Na tomada seguinte, a Virgem é filmada num plano médio e pela primeira vez seu corpo toma toda a tela, exibindo sua resplandecente gravidez. Vemos então José personagem deixar o local através do ponto de vista de sua esposa. Maria se move em direção à câmera e atrás dela, através da escuridão da casa que a porta de entrada deixa entrever, surgem lentamente quatro mulheres trajando roupas escuras. Enquanto isso José se distancia.

Pasolini faz uma série de citações às obras de Piero della Francesca e de Giotto em sua transposição do Evangelho. A imagem do corpo inteiro de Maria mencionada acima tem como referência o afresco da Madonna del Parto (1450-60) de Piero (Figura 1).

Não é estratégia comum em filmes sobre a vida de Jesus Cristo iniciar a narrativa com a presença de Maria. Citamos, como exemplo, duas produções de Hollywood feitas no mesmo período da adaptação do realizador italiano.

Rei dos Reis (King of Kings, Nicholas Ray, 1961) abre com o plano geral do exército romano invadindo Jerusalém. Maria será apresentada por volta dos 10 minutos num plano geral, montada num jumento com José à frente, conduzindo o animal em direção à Belém. Diferentemente do que ocorre em Pasolini a gravidez da Virgem mal aparece, encoberta que está pelas vestes da mulher.

Figura 1
Madonna del Parto de Pasolini.

Na sequência inicial de A maior história de todos os tempos (The Greatest Story Ever Told, George Stevens, 1965), acompanhamos a câmera que passeia pelo teto de uma capela, decorada com pinturas que representam momentos da vida de Cristo extraídas do próprio filme. O dispositivo desce lentamente para mostrar as paredes do local, até parar numa imagem onde vemos com o ator Max von Sydow, que interpretou o protagonista do filme de Stevens. Maria aparecerá pela primeira vez aos onze minutos da projeção, na sequência da manjedoura em Belém, quando os três sábios do oriente chegam ao local para render homenagens ao Messias. Retornemos ao Jesus de Pasolini.

No sermão pronunciado no Concílio de Éfeso, realizado em 431 AD, São Cirilo de Alexandria define Maria como “o tesouro venerável de toda a humanidade”, “a chama inextinguível”, aquela que “que conteve em seu sagrado e virginal útero Aquele que não pode ser contido” (Schwartz, 1922SCHWARTZ, E. (Ed.) Acta Conciliorum Oecumenicorum. (ACO) tome I: Concilium universale Ephesenum. Berlin & Leipzig: Walter de Gruyter, 1922-30. 5v.-30, p.102-103). Novamente recorremos a Piero della Francesca, mais precisamente ao seu afresco sobre A lenda da cruz (1452).

Nessa obra encontramos uma representação da Anunciação, no momento em que o Arcanjo Gabriel pergunta a Maria se esta aceitaria o papel fundamental que Deus estava para lhe propor dentro do drama da salvação. O anjo parece recuar humildemente diante da Virgem, como se estivesse esperando pela aprovação para se aproximar.

A futura Mãe de Deus parece acenar ao emissário celestial com a mão direita sutilmente erguida, num gesto que condensa, ao mesmo tempo, aprovação e benção. O emissário celestial não vem impor uma ordem e nem a Virgem aceitaria o que lhe estava por vir se assim não lhe aprouvesse, conforme observou Massimo Cacciari (2021CACCIARI, M. Gerar Deus. Belo Horizonte: Âyiné, 2021., p.17-18):

E, se o Sim da mulher parecesse óbvio, um ato necessário, seu ventre se reduziria um supérfluo repositório daquela mesma epifania. Gabriel não veio dar uma ordem, não determina tarefas a uma serva; é Maria quem escuta e torna-se obediente à Palavra dele. Ela bebe de seu cálice, como fará o Filho. Sua obediência não tem nada de simplesmente submisso, quietista. Ela consegue querer o querer divino. Só depois de ter padecido o próprio sofrimento, deixará que Deus “decida por ela”. (grifo do autor)

Figura 2
A lenda da cruz - detalhe da Anunciação. Piero della Francesca (1452).

A fé emancipadora das filhas do Senhor

Maria e sua família estão prestes a deixar sua terra em direção ao exílio no Egito. O anjo de Deus havia avisado José para levar a mulher e a criança para aquele país, pois o rei Herodes estava atrás do menino com o desejo de matá-lo. Montada sobre seu jumento Maria volta-se para trás e lança seu último olhar para a casa onde vivia. A tristeza toma a jovem e lágrimas escorrem sobre sua face. Essa amargura resulta do abandono forçado de suas raízes, com o consequente distanciamento das pessoas que lhe são caras e das tradições de seu povo, que comungava com ela a mesma fé e a mesma língua.

Na condição de exilada, em consequência da ameaça imposta a ela e aos seus pelos poderosos, a Virgem passa a fazer parte das figuras femininas da Bíblia que foram consideradas como párias e que sentiram a violência de forças externas superiores a elas. Quatro dessas mulheres estão presentes na ascendência de Jesus na lista que abre o relato do Evangelho de Mateus: Tamar, Raabe, Rute e Betsabeia.

Tamar era esposa de Er mas esse morreu antes de fecundar a mulher. O patriarca Judá entrega Tamar para Onã, seu segundo filho, para que este honre a memória de seu irmão dando a este uma descendência. No entanto, antes que os dois se conhecessem Onã também falece. A mulher se vê obrigada a se prostituir com o próprio patriarca da nação judaica para, finalmente, gerar um filho que dará continuidade à família de Judá (Gênesis 38, 1-30).

Raabe era uma prostituta que vivia em Jericó, cidade inimiga dos filhos e filhas de Abraão, que acolhe e protege em sua residência dois espiões enviados por Josué à cidade. Raabe se converterá ao judaísmo e será louvada pelos hebreus devido à sua coragem e generosidade mostradas durante o conflito contra Jericó, que resultou na vitória do exército comandado por Josué (Josué 2, 1 -24).

Após a morte de seus dois filhos em Moabe, terra considerada maldita pelos judeus, Noemi decide retornar para Israel. A moabita Rute se recusa a deixar que a sogra volte sozinha à casa de seus ancestrais e decide acompanhar a mãe de seu falecido esposo.

O rei David armou uma armadilha para que Urias morresse em batalha, pois não queria que este soubesse que seu rei havia engravidado Betsabeia, esposa de seu súdito. O relato bíblico diz apenas que Davi desejou a mulher e simplesmente a tomou. Entre as quatro mulheres mencionadas por Mateus na ascendência do Cristo, Betsabeia foi a única vítima que sofreu no corpo a violência de um homem que, devido ao posto máximo no poder que ocupava, impedia que ela sequer esboçasse qualquer tipo de reação.

O elo que liga essas mulheres à Theotokos reside no fato de elas serem pessoas deslocadas na sociedade de suas respectivas épocas. A cidade natal da Virgem é a distante Nazaré, localizada na região da Galileia. Entre a obscura Nazaré e a cidade santa de Jerusalém está a amaldiçoada Samaria.

A Mãe do Messias vive na divisa entre o mundo terreno e o Reino dos céus. Inserida na tradição religiosa de seu povo ela também representa a transição do Antigo Testamento para a Boa Nova que se constitui na chegada do Messias. Nas palavras de Massimo Cacciari (Cacciari, 2021CACCIARI, M. Gerar Deus. Belo Horizonte: Âyiné, 2021., p.14): “Maria está entre dois mundos, como ponte e sinal de sua diferença. Como Rute, ela ama incondicionalmente; como Betsabeia sofre a violência dos poderosos, como Tamar, luta para gerar e proteger o que gerou”. São mulheres humildes, que estão deslocadas na sociedade da região em que vivem. Como o Messias, elas “são de fora”.

O caminho da redenção - entre o vulcão e a simplicidade da fé

Para Roberto Rossellini, levar as palavras e atos de São Francisco de Assis às telas, cinco anos após o término da Segunda Guerra Mundial, significava encontrar respostas para as mais profundas necessidades e aspirações de uma humanidade que havia se tornado escrava de suas ambições por dinheiro e poder, o que a levou a perder a alegria de viver. O cineasta havia demonstrado esse descaminho em sua Trilogia da Guerra, composta por Roma cidade aberta (1945), Paisá (1946) e Alemanha ano zero (1947). A luta que se estabelece nessa trilogia entre as forças da vida e as da destruição ocorre de forma precária, com a balança pendendo fortemente para o segundo lado (Gallagher, 1998GALLAGHER, T. The adventures of Roberto Rossellini: His Life And Films. Nova York: Da Capo Press, 1998., p.349):

Em Roma e Paisá todos os atos de heroísmo, de gentileza tem sua origem na fé e as brutalidades da guerra vem do cinismo e da ausência de um código moral. No trágico vazio do mundo pós-guerra mostrado em Ano zero, o embate entre fé e mero oportunismo é ainda mais acentuado. Para a criança que se encontra de forma inconsciente entre esses dois extremos isso é como andar na corda bamba.

A narrativa de Roma se desenrola no contexto específico da Itália durante a Guerra, que compreende os anos de 1943-1944, logo após a queda de Benito Mussolini e da ocupação do país pelas tropas da Alemanha de Adolf Hitler. Paisá é um filme dividido em seis episódios e se passa na última fase da Guerra em território italiano, quando os exércitos aliados começam a avançar pelo país e derrotar as forças nazifascistas. Ano zero, a última parte da trilogia, se passa nos escombros da Alemanha do pós-Guerra onde somos conduzidos pelas ruínas humanas e físicas do país através do olhar da criança que caminha no nos liames da perdição e da redenção, segundo as palavras do próprio diretor. A obra de Rossellini que antecede a obra sobre o poverello de Assis foi Stromboli terra de Deus (1949-1950).

A germinação da giesta e a simplicidade da fé

Num campo de prisioneiros na Itália imediatamente posterior à Segunda Guerra, soldados italianos e expatriados esperam o momento da libertação pelas tropas do exército aliado. Entre essas pessoas estão Antonio, pescador de origem humilde oriundo da ilha de Stromboli, localizada na região norte da costa siciliana, e a lituana Karin que pretende imigrar para a Argentina com o propósito de reencontrar alguns amigos que vivem n país da América do Sul.

Os dois se conhecem e iniciam um relacionamento que, num primeiro momento, parecia que não ir além dos limites do campo. No entanto, as coisas tomam outro rumo quando Karin constata que não terá autorização de imigrar para a Argentina. Poucos momentos antes disso ela havia recebido uma proposta de casamento feita pelo pescador. A reusa do visto faz com que ela veja nessa proposta sua única chance de liberdade. Os recém-casados deixam o confinamento e rumam para a ilha vulcânica de Stromboli.

Levada pelas condições de extrema pobreza da ilha e pelo preconceito dos habitantes locais, Karin toma a decisão de abandonar tudo e fugir do lugar. Numa sequência do filme ela procura o pároco local em busca de ajuda para escapar da penúria de sua nova vida, chegando até mesmo a tentar seduzir o religioso. Ante o insucesso de suas súplicas e de sua malograda tentativa de sedução, ela endereça um olhar irritado ao padre e diz: “Seu Deus não ajuda!”.

O único caminho para deixar a ilha obriga Karin a atravessar a região próxima ao vulcão de Stromboli, que havia entrado em erupção poucos dias antes. A mulher caminha sobre o solo pedregoso e calcinado entre colunas de fumaça que emanam das entranhas da terra. A cena nos remete à descrição da paisagem vulcânica do poema A flor do deserto, de Giacomo Leopardi. Paisagem esta que funciona no filme de Rossellini como metáfora da condição interna não apenas da personagem, mas da humanidade do pós-guerra. Que o leitor avalie a proximidade entre a construção da cena pelo realizador e alguns versos do poema, que reproduzimos a seguir (Leopardi, 1997, p.115):

Or ti riveggo in questo suol, di triste Lochi e dal mondo abbandonati amante, E d’afflitte fortune ognor compagna Questi campi cosparsi Di ceneri infeconde, e ricoperti Dell’impietrata lava. 10 10 “Vejo-te agora neste chão, dos tristes / E desertos locais do mundo amante, / E da ingrata fortuna eterna amiga. Estes campos cobertos / De cinzas infecundas, e sepultos / Pela empedrada lava.”

O diretor nos coloca diante da força sublime e impassível da natureza que “ignora os desejos e os medos do homem. Ela é aquela figura terrível e indiferente e que Leopardi esculpiu no Diálogo da Natureza com um islandês” (Bosi, 2000_______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora 34, 2000., p.222). Vejamos uma passagem significativa desse texto mencionado pelo crítico literário (Leopardi, 1997, p.535):

Immaginavi tu forse che il mondo fosse fatto per causa vostra? Ora sappi che nelle fatture, negli ordini e nelle operazioni mie, trattone pochissime, sempre ebbi ed ho l’intenzione a tutt’altro, che alla felicità degli uomini o all’infelicità. Quando io vi offendo in qualunque modo e con qual si sia mezzo, io non me n’avveggo, se non rarissime volte: come, ordinariamente, se io vi diletto o vi benefico, io non lo so; e non ho fatto, come credete voi, quelle tali cose, o non fo quelle tali azioni, per dilettarvi o giovarvi. E finalmente, se anche mi avvenisse di estinguere tutta la vostra specie, io non me ne avvedrei. 11 11 “Você imaginou que o mundo foi feito por sua causa? Saiba que em minhas obras, em minhas leis e em minhas operações, com raras exceções, sempre governei, segundo meu conhecimento, resoluções que muito pouco tem relações com a felicidade ou infelicidade do ser humano. Quando eu lhe ferir de alguma forma ou por qualquer meio, geralmente tenho noção disso, como também não faço ideia se lhe proporciono algum prazer ou benefício; e não faço determinadas coisas ou executo certas funções, como você acredita, para seu prazer ou lucro. Finalmente, se por acaso lhe destruir faria isso sem perceber” (tradução do autor).

Rossellini afirmou que Alemanha ano zero poderia ser definida como a representação de um mundo que havia abandonado Deus. Diante das ruínas de uma sociedade que foi capaz de cometer contra seus semelhantes a suprema ofensa dos campos de concentração e de lançar duas bombas atômicas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki a afirmação do diretor era plenamente compreensível.

A via dolorosa de Karin que é sua travessia pelo terreno vulcânico de Stromboli resultou em sua reconciliação com Deus. A natureza, sublime manifestação da criação divina, mostrou a ela o caminho. As sementes da giesta, a flor do deserto de Leopardi, começaram a germinar. Ela florescerá, em todo seu esplendor, em Francisco arauto de Deus.

Francisco de Assis foi o santo que acolheu o mundo inteiro em seus braços. Sua época se caracterizava pela exclusão de judeus, leprosos, hereges e homossexuais e por uma Igreja que se interessa mais em decretos, legislações e nas sutilizas do direito canônico e que se afasta cada vez mais da vida concreta. Esses são comentários de Jacques Le Goff sobre o Santo de Assis. Mais adiante o historiador afirma que “Francisco proclama, sem qualquer panteísmo, nem o mais longínquo, a presença divina em todas as criaturas” (Le Goff, 2011, p.27-8).

Ainda segundo Le Goff, para o “pobrezinho” a alegria era a prova dos nove da fé. Contra tristeza que reinava no mundo monástico e a massa de desocupados com suas falsas exultações o Santo “propõe a imagem alegre, sorridente, daquele que sabe que Deus é alegria” (ibidem).

Francisco arauto de Deus, de Roberto Rossellini, é uma obra sobre a alegria e a simplicidade da fé. A serenidade do Santo e sua generosidade voltada para a glorificação do Criador e de toda a vida na terra impossibilitaram o diretor, segundo suas próprias palavras, de fazer uma biografia dentro dos limites de duração de um filme convencional. Daí a opção expressada por Rossellini em fazer de seu personagem um singular “bobo da corte”, ou melhor, um palhaço de Deus - giullare de Dio (Gallagher, 1998GALLAGHER, T. The adventures of Roberto Rossellini: His Life And Films. Nova York: Da Capo Press, 1998., p.341).

Conclusão

Nos últimos quatro anos o Brasil optou por trilhar um caminho semelhante àquele percorrido pela protagonista de Stromboli terra de Deus. Na eleição de 2022 a giesta deu sinais de vida na terra árida sob nossos pés.

Esse pequeno ensaio procurou levantar alguns temas que não deveriam ser meramente descartados como ilusórios ou ingênuos. São valores de uma fé que visa expulsar do templo os mercadores do templo e os falsos profetas, e também de um Evangelho que, em sua essência libertadora, está integralmente comprometido com a causa dos pobres e oprimidos deste mundo, sem exceção.

A origem das ideias apresentadas neste artigo surgiu a partir da leitura de um ensaio de Alfredo Bosi (2013_______. Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013., p.329) intitulado “Teologias, sinais dos tempos” e do qual retiramos a seguinte passagem: “As diversas teologias que se construíram desde a Patrística até hoje não fizeram mais do que arrancar do fundo comum da memória cristã tudo quanto fazia sentido para os grupos religiosos em cada encruzilhada da História”. Compreender a mensagem de Deus significa acreditar que o dever de cada um que aceita essa palavra é o de lutar pela redenção a partir da vida terrena, entre as forças sociais e históricas onde a existência floresce.

Michael Löwy (2020LÖWY, M. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo: Perspectiva, 2020.), em Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central, traça um perfil da geração de escritores e pensadores judeus da Mitteleuropa que nasceram no final do século XIX. Era uma geração formada por nomes como Franz Kafka, Gustav Laudauer, Georg Lukács, Gershom Scholem e Walter Benjamin. Eles tinham em comum o pensamento e a ação articulados em torno do conceito judaico cabalístico de Tikkoun, termo de múltiplos significados - redenção, restituição, reparação, reforma, restabelecimento da harmonia perdida. Uma geração utópica e sonhadora que, segundo Löwy (2020, p.2), aspirava a “um mundo radicalmente outro, ao Reino de Deus na Terra, ao Reino do Espírito, ao Reino da Liberdade, ao Reino da Paz. Seu ideal era a comunidade igualitária, o socialismo libertário, a revolta antiautoritária, a revolução permanente do espírito”.

Amém.

Referências

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  • SEKULA, A. The body and the archive. London: Routledge, 2006.

Notas

  • 1
    Este artigo é dedicado alla cara, lieta, familiare memoria de Alfredo e Ecléa Bosi.
  • 2
    A bibliografia sobre o tema é extensa. Indico como ponto de partida sobre os terríveis pecados cometidos em nome de Cristo os seguintes trabalhos: Nixey (2017); Gerbner (2018); Kellerman SJ (2022),
  • 3
    Sobre o surgimento do Estado-nação, sugiro ao leitor o livro de Hobsbawn (2012), Nações e nacionalismo desde 1780. Já sobre a questão da identidade nacional a referência clássica, ver Anderson (2013).
  • 4
    A escravidão no continente americano se manteve durante boa parte do século XIX. O Brasil foi o último a abolir a prática, pelo menos formalmente, em 1888, cerca de dez anos antes da chegada do cinematógrafo dos irmãos Lumière ao país.
  • 5
    A fotografia teve um papel fundamental nesse processo. Na década de 1840 as autoridades britânicas reconheciam o potencial desse novo meio de registro mecânico da realidade para o controle da incômoda e “perigosa” e cada vez mais numerosa de desempregados que viviam nas ruas das principais cidades do país. Ver Sekula (2006).
  • 6
    Como o projetor necessitava de energia elétrica para operar, o cinema só consolida a partir do momento em que a produção de eletricidade se expande em todas as direções.
  • 7
    Expressão retirada do Evangelho segundo São João: “Quando Jesus a viu chorar e também aqueles que a acompanhavam, comoveu-se interiormente e ficou perturbado” (J 11, 33).
  • 8
    O compromisso judaico entre os casais se aproxima daquilo que chamamos de noivado. Todavia, para a cultura judaica do período, o noivado era praticamente um casamento oficial que só podia ser desfeito através do repúdio.
  • 9
    A denúncia poderia levar a mulher à morte pois esta, tal como está prescrito em Deuteronômio 22, 20-21, será levada “até a porta da casa de seu pai e os homens da cidade a apedrejarão até que morra, pois ela cometeu uma infâmia em Israel, desonrando a casa de seu pai. Deste modo extirparás o mal do teu meio”.
  • 10
    “Vejo-te agora neste chão, dos tristes / E desertos locais do mundo amante, / E da ingrata fortuna eterna amiga. Estes campos cobertos / De cinzas infecundas, e sepultos / Pela empedrada lava.”
  • 11
    “Você imaginou que o mundo foi feito por sua causa? Saiba que em minhas obras, em minhas leis e em minhas operações, com raras exceções, sempre governei, segundo meu conhecimento, resoluções que muito pouco tem relações com a felicidade ou infelicidade do ser humano. Quando eu lhe ferir de alguma forma ou por qualquer meio, geralmente tenho noção disso, como também não faço ideia se lhe proporciono algum prazer ou benefício; e não faço determinadas coisas ou executo certas funções, como você acredita, para seu prazer ou lucro. Finalmente, se por acaso lhe destruir faria isso sem perceber” (tradução do autor).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2023
  • Aceito
    08 Maio 2023
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