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Cinema de mulheres como resistência à ditadura a partir de uma fonte de pesquisa

RESUMO

Os estudos sobre cinema e ditadura brasileira partem geralmente da produção fílmica do período, buscando realizar análises de conteúdo, forma e discurso. A proposta deste artigo é percorrer um trajeto pouco convencional, partindo de um catálogo como documento histórico que incentivou pesquisas sobre mulheres cineastas que dirigiram filmes durante a vigência do regime ditatorial militar brasileiro. Com esse mapeamento, torna-se possível perceber que o cinema de resistência apresenta especificidades, e é por meio delas que serão tratados, ao mesmo tempo, o apagamento e o protagonismo das mulheres nessa história. Ao transgredirem normas sociais e papéis tradicionais, por meio de suas personagens, algumas cineastas se tornaram elementos de uma política e uma estética de resistência que confrontavam tanto a ditadura quanto as normas e relações patriarcais.

PALAVRAS-CHAVE:
Cinema de mulheres; Ditadura brasileira; Resistência; Quase catálogo 1

ABSTRACT

Studies on cinema and Brazilian dictatorship are generally based on the film production of that period and seek to analyze content, form and discourse. What this article proposes is to follow an unconventional path, starting from a catalog as a historical document that encouraged research on women filmmakers who directed films during the Brazilian military dictatorial regime. With this mapping, it becomes possible to perceive that resistance cinema has specificities, and it is through them that the erasure and the prominence of women in this history will be addressed at the same time. By transgressing social norms and traditional roles, through characters of their films, some women filmmakers became elements of a politics and an aesthetics of resistance that confronted both the dictatorship and patriarchal norms and relations.

KEYWORDS:
Women’s cinema; Brazilian dictatorship; Resistance; Quase catálogo 1

Introdução

Dizer que filmes dirigidos por mulheres durante a ditadura militar1 1 Estou entre as/os autoras/es que consideram o golpe como sendo civil-militar, mas a ditadura e o regime de poder entre 1964 e 1985 como militares, já que os militares de fato detinham esse poder em suas mãos. Por isso a escolha da nomenclatura “ditadura militar”. brasileira, entre 1964 e 1985, foram raros não apresenta qualquer novidade, a menos que se faça uma pesquisa mais acurada que aponte, em termos quantitativos, quantas mulheres cineastas dirigiram e lançaram filmes nesse período. Ainda assim, há uma grande variação entre filmes amadores e aqueles que atingem o circuito profissional. Em tempos de ditadura, esses últimos ainda teriam que passar pelo crivo da censura.

Quando se parte do campo da História, especificamente, as investigações são estimuladas ou limitadas de acordo com a documentação encontrada, as chamadas “fontes” para a historiografia. No cruzamento transdisciplinar entre cinema e história, isso não é diferente. Mas, onde estariam as fontes, para além dos filmes, que abrissem caminhos para esse tipo de pesquisa de caráter panorâmico?

Este artigo demonstra interesse em falar sobre cinema dirigido por mulheres e ditadura, partindo de uma fonte específica. Trata-se da obra Quase catálogo 1: realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988), que trouxe a público um rol de mulheres cineastas que rodaram suas películas no século XX. Interessa para essa pesquisa aquelas que estiveram em atividade entre os anos 1964 e 1985, no período e nos moldes daquilo que ficou conhecido como o cinema moderno brasileiro - um leque que incluía tanto produções do Cinema Novo quanto filmes da Boca do Lixo paulistana ou as chamadas pornochanchadas.

Não que as “senhoras diretoras”, como bradava uma notícia do Jornal da Tarde no começo dos anos 1980,2 2 “As senhoras diretoras”. Jornal da Tarde, São Paulo, 7.2.1981. não estivessem presentes pelo menos desde os anos 1930. É que nos novos cinemas elas traziam muitas vezes temáticas próprias, que hoje entenderíamos anacronicamente como de gênero, na perspectiva dos feminismos contemporâneos. É o caso de um dos filmes que inauguram essa produção, datado de 1966 e intitulado A entrevista. A assinatura desse curta é de Helena Solberg, uma das cineastas mais reconhecidas na atualidade e que fez história a partir daí.

É certo que fazer cinema é um trabalho coletivo, que conta, além da direção, especialmente com as funções específicas de fotografia e montagem, muitas vezes executadas por homens. No caso do primeiro filme de Helena, a fotografia era de Mário Carneiro e a montagem, de Rogério Sganzerla, um conhecido diretor do cinema underground (ou “udigrudi”).

Essa história é repleta de situações específicas, de filmes proibidos pela censura, de circuitos alternativos de exibição. Falo a partir das margens de um cinema brasileiro que passa a ser visto como arte e política, no calor daqueles anos. Os filmes realizados por mulheres, e suas temáticas muitas vezes militantes, protagonizam nesses anos um lugar muitas vezes despercebido, mas que ganha relevância diante do controle moral, fosse da Igreja católica, tão preponderante no período, fosse dos órgãos governamentais de censura, sempre empenhados em passar a imagem de um Brasil perfeito, berço da moral e dos bons costumes. Foi nas brechas desse discurso repleto de porosidades que muitas diretoras fizeram seus filmes, enfrentando ou contornando os rigores da ditadura, sua tesoura e sua truculência, quando o assunto era a liberação das mulheres, suas vozes e desejos.

Do lado de fora da fronteira nacional, o movimento feminista instigava e reivindicava liberdade, o direito ao próprio corpo, ao desejo, enquanto por aqui as mulheres precisavam da assinatura dos maridos para poderem receber seus salários nos bancos, isso até o final dos anos 1970. A cena é ainda incrementada pelas reivindicações do movimento negro e das mulheres negras, que sinalizariam a complexidade do domínio do dispositivo cinematográfico por pessoas brancas e sem problemas financeiros. Só quase no final da ditadura militar brasileira uma mulher negra (Adélia Sampaio) se tornou cineasta.

Nesse contexto, Quase catálogo 1 aparece, no final da década de 1980, como obra única, que busca mulheres diretoras de cinema até o período pós-ditadura. Embora costumes e vícios sociais tenham continuado a existir, esse trabalho deu visibilidade a uma história ignorada dessas mulheres que faziam filmes nas rachaduras de um regime autoritário e vazio moralmente, que apoiava as pornochanchadas enquanto buscava a todo custo preservar valores como a virgindade das mulheres até o casamento, a punição e o estigma das separadas ou divorciadas, a fatalidade trágica das solteironas, balzaquianas.

Este estudo destaca o valor dessa obra como marco, um documento que possibilitou e possibilita pesquisas diversas, suscitando o interesse por uma história sujeita a apagamentos e à marginalidade. Nos campos do Cinema e da História, Quase catálogo 1 é, ao mesmo tempo, um marco e uma referência, que continua proporcionando o uso de novas abordagens e do estudo minucioso sobre essas mulheres diretoras de cinema.

Dito isso, pretendo abordar a influência da obra sobre pesquisadoras do tempo presente que investigam as diretoras de cinema. Para isso, será realizado um breve mapeamento de citações em artigos e capítulos e de que forma essas referências aparecem como base de estudos sobre mulheres cineastas, especialmente no período ditatorial brasileiro. Será abordado ainda um exemplo de pesquisa, indicando a produção de um projeto e sua realização. Por fim, será tratada a atualidade de uma fonte potente, que continua motivando estudos e a produção de conhecimento científico.

A fonte como farol da pesquisa histórica

O exemplar aqui explorado de Quase Catálogo 1 foi adquirido durante a pesquisa de campo ao acervo do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), coordenado então por Heloísa Buarque de Hollanda, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. O ano era 2010.

Refletir sobre quais mulheres começaram a fazer seus filmes nos anos 1960, 1970 e 1980 é um exercício complexo, quando visualizamos um amplo leque, que vai desde as diretoras de um único filme, geralmente de curta-metragem,3 3 Nesta pesquisa, considero curta-metragem os filmes até 30 min. de duração; média-metragem de 31 a 69 min.; longa-metragem a partir de 70 min. até algumas poucas que conseguiram rodar mais de um filme de longa-metragem no decorrer da carreira. Mesmo a produção fílmica passa por variações, com películas dirigidas como trabalho de conclusão de curso, ou de alguma disciplina, e aquelas que tiveram pretensões profissionais mais efetivas.

Não se pode perder de vista que os primeiros cursos de Cinema em algumas universidades, como USP, UFF e UnB, começariam a dar seus frutos, em termos de realização cinematográfica, a partir do final dos anos 1960. Na fonte aqui privilegiada, a Escola de Comunicação e Arte (ECA) da Universidade de São Paulo ganha destaque nas fichas técnicas de diversas produções, como é possível observar na Tabela 1. Foram 16 filmes realizados por mulheres dentro da ECA nos anos 1970 e 6 filmes até o limite temporal de 1985. Há, inclusive, um curta-metragem de Salma Buzzar, datado de 1973, que critica, satirizando, a experimentalidade das produções uspianas de cinema nesses anos (Hollanda, 1989HOLLANDA, H. B. de. (Org.) Quase Catálogo 1 - Realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988). Rio de Janeiro: CIEC, Escola de Comunicação UFRJ, 1989., p.80).

A Tabela 1, simplificada, foi elaborada pela autora deste artigo nos termos de uma análise quantitativa, que pode auxiliar a pensar analiticamente sobre essa produção das cineastas mulheres em tempos de ditadura (Veiga, 2022_______. Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades. Curitiba: Appris, 2022.), suas trajetórias e a complexidade de suas obras.

A Tabela 1 esquematizada partiu do interesse de quantificar as mulheres cineastas no período recortado, priorizando informações sobre as temáticas e a duração de seus filmes. Quanto às temáticas, a ênfase maior foi colocada em filmes que abordam mulheres e questões de gênero/raça, mas também assuntos indigestos para o regime ditatorial militar brasileiro, sejam manifestados por meio de críticas mais diretas, sejam por temas que demonstravam a fragilidade social brasileira e o abismo aprofundado pelo chamado “milagre econômico”, que trouxe mais oportunidades endereçadas à camada média da população, apoiando-se no endividamento do Brasil que viria mais adiante como um fator de empobrecimento agudo da parte mais carente da população.

Como fica evidente, há um predomínio absoluto da produção de curtas metragens, e boa parte das mulheres listadas na obra foram cineastas de apenas um filme, e de curta-metragem. Isso remete a uma incapacidade de encontrar meios de transpor a muralha de um veículo de comunicação ainda caro e elitizado, que dependia muitas vezes do apoio de grupos de colegas para que pudesse ser apropriado. Foram 11 curtas nos anos 1960; depois 191 na década de 1970; e mais 115 películas de curta-metragem nos anos 1980. O que já começava a aparecer, ainda que timidamente, eram produções em vídeo, com a utilização da tecnologia das câmeras Super-8. Mesmo não sendo baratas, já começava a haver uma democratização do acesso aos meios audiovisuais para muitas mulheres.

Tabela 1
Mapeamento de cineastas brasileiras no período de 1964 a 1985

Outro dado que chama a atenção é a produção de filmes com temáticas das mais diversas, desde encomendas comerciais e homenagens até películas de ficção e experimentais. Dos 375 filmes mapeados por este estudo, 267 foram realizados com base nessas temáticas mais amplas.

Aos poucos, vamos nos acercando da amostragem que de fato interessa a esta investigação, que são os filmes que, direta ou indiretamente, contestaram a ditadura e aqueles que tiveram como foco mulheres e relações de gênero. Quanto aos primeiros, podem ser localizados, por meio das sinopses, filmes que trataram de temas como a anistia, a tortura e a morte de sujeitos da resistência, como foi o caso de Frei Tito, morto no exílio e que teve mais de um filme dedicado à sua trajetória; mas também películas que tratavam de temas como a precariedade social, a vida nas favelas em contraste com as camadas médias urbanizadas, a agressão à natureza, pessoas vivendo de restos de lixo, doenças, entre outras temáticas que expunham uma realidade que o governo militar ditatorial buscava frequentemente reprimir.

Independentemente de adotarem ou não uma postura feminista ou uma identificação com os ideais que se espalhavam pelo mundo ocidental e pós-colonizado, partindo das mulheres, 46 cineastas produziram seus filmes como instrumentos de resistência ao regime ditatorial durante sua vigência. Foram apenas 4 na década de 1960 (partindo do ano 1964); 26 nos anos 1970; e 18 na década de 1980, tendo como limite temporal o marco do final da ditadura, 1985. No total, foram 46 filmes de resistência, abordando temáticas sociais e políticas. Enquanto a grande maioria das produções era composta por curtas-metragens de circulação restrita, não houve maiores problemas para as cineastas. Como será tratado mais adiante, a censura recairia sobre os longas-metragens de endereçamento comercial.

Finalmente, chegamos às cineastas que abordaram questões de gênero e da chamada “condição feminina” durante a vigência da ditadura militar brasileira. Muitas delas tiveram influência do debate feminista, especialmente nos anos 1970, e a maioria iniciou sua carreira por meio dos curtas metragens - considerados escolas práticas para se chegar aos longas. Enfatizo que dirigir um longa-metragem de ficção era a meta de cineastas, mulheres e homens; era o momento de mostrar de fato sua capacidade e autonomia de ação, atingindo o respeito profissional avalizado pela crítica cinematográfica especializada.

No chamado cinema moderno brasileiro, 62 diretoras rodaram filmes sobre mulheres e questões de gênero durante a ditadura militar, num período de 21 anos, muitas delas levando adiante a resistência ao colocar em cena suas críticas à moral e aos bons costumes, à estrutura tradicional de família, enaltecendo mulheres rebeldes ou denunciando violências de gênero. Várias delas não passaram despercebidas pelos olhos dos censores e tiveram que amargar meses ou anos de espera até verem seus filmes, com ou sem cortes, exibidos nas telas grandes dos cinemas brasileiros e estrangeiros. Foram apenas 4 filmes sobre mulheres nos anos 1960 (pós-64); 34 durante toda a década de 1970; e 24 filmes até 1985. Além disso, é relevante constatar que cerca de 40 diretoras permaneceram na realização cinematográfica por mais de uma década.

Quanto às produções de longa-metragem, elas não estiveram presentes na década de 1960 (de 1964 em diante), foram 16 filmes e uma série nos anos 1970, e mais 13 filmes e duas séries de 1980 a 1985. Ou seja, das 381 películas mapeadas, apenas 29 foram realizadas no formato longa-metragem, mesmo juntando todas as temáticas aqui abordadas. Os números demonstram a restrição do acesso das mulheres ao meio cinematográfico, se considerarmos que a partir de 1969 a Embrafilme esteve em atividade, financiando inúmeras películas de diretores brasileiros, especialmente nos anos 1970 e começo dos 1980, inclusive filmes eróticos da categoria que ficou conhecida como pornochanchada.4 4 Para maiores informações sobre as pornochanchadas, ver Abreu (1996).

Entre a produção levantada pela Tabela 1, os filmes de média-metragem também ganham espaço, sendo produzidos diversos documentários nesse formato. Nos anos 1960, apenas uma produção foi detectada; nos anos 1970 foram 18 filmes; e mais 16 na primeira metade da década de 1980. Dito isso, a impressão que fica é a de uma grande atividade das diretoras brasileiras no período, porém, isso nem se compara à quantidade de filmes produzidos por diretores homens durante a última ditadura brasileira. Esse número totalizante é difícil de ser alcançado, especialmente depois da apropriação instrumental da Ancine pelo último governo de direita (2019-2022), quando dados e tabelas sobre a produção fílmica brasileira foram suprimidos, assim como o próprio sítio eletrônico da Ancine.

Tendo pensado em uma sistematização quantitativa da presença das mulheres na direção de cinema no Brasil no período da ditadura militar, buscarei mapear, qualitativamente, algumas citações e possibilidades abertas pela obra Quase catálogo 1 nas investigações sobre a realização de filmes por mulheres no Brasil.

Quase catálogo 1 e a redescoberta das cineastas brasileiras

Depois de um longo silêncio sobre as diretoras brasileiras de cinema, algumas pesquisas começaram a se voltar para os filmes e as reportagens a respeito das mulheres cineastas, especialmente nos anos 1970 e 1980. Esses estudos, que partem em sua maioria dos anos 2010, enfileiraram pesquisadoras e pesquisadores em um conjunto de trabalhos transdisciplinares, envolvendo o campo do Cinema, mas também das Ciências Humanas.

Uma das pioneiras a trabalhar com a obra Quase catálogo 1: realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988) foi Flávia Cópio Esteves, que pesquisou o cinema de Ana Carolina. No artigo intitulado “‘Sob’ sentidos do político: história, gênero e poder no cinema de Ana Carolina”, Esteves (2009) já reverberava sua dissertação de mestrado sobre o tema, influenciando e abrindo caminho para as que vieram depois.

Seguindo a produção de artigos e teses diversas, a obra Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro, organizada por Karla Holanda e Marina Cavalcanti Tedesco (2017HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017.), reuniu textos de pesquisadoras/es envolvidas/os com a temática. A partir desses trabalhos vieram à tona histórias de mulheres cineastas, e de seus filmes, em suas especificidades e relações, muitas vezes conflituosas, com o poder ditatorial e a censura.

No texto de apresentação da coletânea, Holanda e Tedesco (2017HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017., p.9-10) se referem a duas obras essenciais para que os estudos sobre mulheres no cinema se tornassem possíveis. A primeira, publicada em 1982 e assinada por Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira, é As musas da matinê. Trata-se de um levantamento minucioso sobre a participação das mulheres no meio cinematográfico como diretoras - lugar de maior prestígio nesse meio. Porém, o livro de Munerato e Oliveira traz interpretações e análises sobre a situação assimétrica das mulheres diretoras, além de seus lugares como atrizes e assistentes na produção fílmica.

Quanto à obra Quase catálogo 1: realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, e que é o ponto de partida deste texto, Karla Holanda e Marina Tedesco (2017HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017., p.10) a compreendem como um inventário de filmes dirigidos por mulheres que traz informações básicas sobre essas obras e chega ao número de 195 diretoras entre 1930 e 1988, e à produção de cerca de 500 obras. As organizadoras de Feminino e plural entendem que o catálogo abre possibilidades de pesquisas, como algumas que foram publicadas no próprio livro, além de outras obras e revistas.

Destaco aqui o texto “Cineastas brasileiras (feministas) durante a ditadura civil-militar”, assinado por Alcilene Cavalcante (2017CAVALCANTE, A. Cineastas brasileiras (feministas) durante a ditadura civil-militar. In: HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017. p.59-76.), em que a historiadora trabalha sobre filmes de três cineastas que considera feministas; são elas Maria do Rosário Nascimento e Silva (Marcados para viver - 1976), Vera de Figueiredo (Feminino plural - 1976) e Adélia Sampaio (Amor maldito - 1983). A autora é uma das que foram buscar referências para seu estudo na obra organizada por Heloísa Buarque de Hollanda.

Cavalcante (2017CAVALCANTE, A. Cineastas brasileiras (feministas) durante a ditadura civil-militar. In: HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017. p.59-76., p.60-1) destaca pesquisas sobre as longa-metragistas, como Tereza Trautman, Ana Carolina e Vera de Figueiredo, que despontavam nos anos 2010, especialmente. De acordo com essa autora, as cineastas mencionadas direcionavam o olhar para “diferentes modos de existência, que, ao inventar novos personagens e percursos, desestabilizavam, já no ato de fazer filmes, os comportamentos que lhes eram socialmente reservados” (ibidem, p.61).

A colocação em cena de personagens considerados à margem da sociedade e o sentido atribuídos a eles é uma das características desse cinema dirigido por mulheres. Embora houvesse estranhamentos por parte da crítica, esse foco em sujeitos/as até então irrepresentáveis e no cotidiano das mulheres, sempre desprezado nas produções fílmicas do período, trouxe um novo modo de resistência inventado por mulheres cineastas. Sua mensagem por vezes passa pelo subentendimento, pela leitura dos jogos entre falas e silenciamentos.

Para Alcilene Cavalcante (2017CAVALCANTE, A. Cineastas brasileiras (feministas) durante a ditadura civil-militar. In: HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017. p.59-76., p.63), filmes como Marcados para viver (1976), de Maria do Rosário Nascimento e Silva, projetam em tela “questões sobre sexualidade e gênero relativas à afetividade e, especialmente, à monogamia heterossexual”. Para além dos costumes, o filme de Maria do Rosário traz a truculência policial e a tortura, vivida com intensidade por quem resistia aos moldes prescritos para a sexualidade e a conduta moral, especialmente das mulheres. A pauta feminista estava presente e se fazia notar, engrossando as fileiras de resistência à ditadura.

O mesmo se deu com Vera Figueiredo, que teve contato com as reivindicações feministas e as levou para seus filmes, especialmente Feminino plural (1976). A sequência de abertura do filme mostra sete mulheres motoqueiras que chegam a uma fazenda. Para Cavalcante (2017CAVALCANTE, A. Cineastas brasileiras (feministas) durante a ditadura civil-militar. In: HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017. p.59-76., p.67), ganham destaque a liberdade, o encontro, a cumplicidade, o afeto, a sensualidade, a confraternização e a amizade entre as mulheres. A partir disso, podemos pensar no que Adrienne Rich (2010RICH, A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica (1980). Bagoas: estudos gays, gêneros e sexualidades. Natal, v.4, n.5, p.17-44, jan./jun. 2010.) denominou “continuum lésbico”, que diz respeito a uma cumplicidade, à solidariedade e a experiências de amor e identificação entre mulheres, sem necessariamente envolver sexualidade.

A pluralidade étnica, etária e social é colocada em cena em Feminino plural, um filme que passou pela tesoura da censura - fato que a diretora deixou bem marcado na própria montagem refeita, de acordo com Cavalcante (2017CAVALCANTE, A. Cineastas brasileiras (feministas) durante a ditadura civil-militar. In: HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017. p.59-76., p.69). Mas não foi só com a censura que Vera Figueiredo teve problemas, uma vez que a crítica cinematográfica também não estava disposta ao diálogo com as reivindicações das mulheres (ibidem, p.70).

Já Adélia Sampaio, considerada a primeira cineasta brasileira negra, colocou em cena em Amor maldito (1983). um drama lésbico verídico, tendo como mote um julgamento em sentido duplo - ao mesmo tempo jurídico e moral. Mesmo sendo uma mulher negra, não foram questões sobre raça que a diretora abordou, mas sobre a lesbiandade de personagens reais e toda a pressão social mobilizada a partir da morte de uma das mulheres. A centralidade dessa relação e a seriedade com que é abordada também aparece como inovação no filme de Sampaio (Cavalcante, 2017CAVALCANTE, A. Cineastas brasileiras (feministas) durante a ditadura civil-militar. In: HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017. p.59-76., p.73).

Para Érica Sarmet e Marina Tedesco (2017SARMET, E.; TEDESCO, M. C. Articulações feministas no cinema brasileiro nas décadas de 1970 e 1980. In: HOLANDA, K.; TEDESCO, M. C. (Org.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017. p.115-29., p.117), predominam “diferenças expressivas entre homens e mulheres atrás e na frente das câmeras, fosso que se aprofunda quando incluímos recortes de raça, classe, região, orientação sexual, identidade de gênero, dentre outros”. As autoras buscam as articulações feministas no cinema brasileiro dos anos 1970 e 1980 e colocam um marco no ano de 1975, Ano Internacional da Mulher - pela ONU -, momento em que foi realizado o evento “A mulher no cinema brasileiro: da personagem à cineasta”, no MAM, Rio de Janeiro, que reuniu 20 produções de diretoras. Na década seguinte, formava-se o Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro, fechando o recorte temporal aqui proposto. Sarmet e Tedesco igualmente situam a obra Quase catálogo 1 como referência para uma visão ampla sobre as mulheres cineastas até o final dos anos 1980.

Outra coletânea organizada por Karla Holanda é Mulheres de cinema, publicada em 2020HOLANDA, K. (Org.) Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2020.. Nela, o texto “O outro lado da lua no cinema brasileiro”, assinado pela própria organizadora, traça um panorama do cinema dirigido por mulheres no Brasil, que ela divide em duas partes: dos primórdios até os anos 1960 e 1970, e o período que ficou conhecido como “retomada”, já nos anos 1990, pós-restrições ao cinema impostas pelo governo Collor de Mello.

Com Karla Holanda percebemos que é impossível narrar essa história sem passar pela obra de referência Quase catálogo 1: realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988). Com base nesse documento, cria-se o consenso de se considerar o curta-metragem A entrevista, dirigido por Helena Solberg em 1966, como “[...] fundante do cinema moderno de autoria feminina, em especial do cinema documentário” (Holanda, 2020, p.141). Já com relação aos tão almejados longas metragens de ficção, Os homens que eu tive (1973), de Tereza Trautman, acabou assumindo esse lugar de filme pioneiro do cinema moderno brasileiro dirigido por mulheres (ibidem, p.142).

Ao abordar a teoria e a crítica feministas do cinema em outro trabalho (Veiga, 2020VEIGA, A. M. Teoria e crítica feminista: do contracinema ao filme acontecimento. In: HOLANDA, K. (Org.) Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2020. p.261-78., p.276), argumento que a inspiração de boa parte dos estudos sobre as cineastas brasileiras e suas possibilidades de fazerem um contracinema partem da leitura do catálogo organizado por Heloísa Buarque de Hollanda (1989HOLLANDA, H. B. de. (Org.) Quase Catálogo 1 - Realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988). Rio de Janeiro: CIEC, Escola de Comunicação UFRJ, 1989.).

Figura 1
Capa da obra Quase catálogo 1.

Nesta parte específica da discussão proposta neste capítulo, compartilho a trajetória de pesquisa que levou à escrita da tese Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas especificidades, hoje adaptada em livro homônimo (Veiga, 2022_______. Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades. Curitiba: Appris, 2022.).

O primeiro passo da pesquisa foi conseguir contato com Heloísa Buarque de Hollanda, que gentilmente forneceu e-mails e telefones das três cineastas que eu pretendia abordar na pesquisa - Helena Solberg, Tereza Trautman e Ana Carolina -, e essa última não respondeu às mensagens enviadas. Programada a viagem para o Rio de Janeiro, Heloísa orientou que eu visitasse o acervo do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, dentro da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos - CIEC/UFRJ.

Foi nesse acervo que deparei com um rico material que incluía gravações e transcrições de entrevistas com várias diretoras e as peças de divulgação de seus filmes, incluindo cartazes. Foi no PACC que conheci e adquiri Quase catálogo 1, manual incontornável para a compreensão do que foi a movimentação das mulheres diretoras no Brasil até o ano de 1988. O catálogo me levou ao estreitamento do que seria o foco da pesquisa: mulheres diretoras que fizeram filmes durante a ditadura militar brasileira, mas na perspectiva de gênero, com roteiros que tocassem questões específicas das mulheres. As três cineastas selecionadas foram as que mais atenderam às demandas da pesquisa, mesmo tendo forçado uma análise de suas especificidades, já que a obra e a trajetória de cada uma delas eram totalmente distintas das outras. Com a tese, inaugurava-se um novo momento para o estudo do cinema de mulheres. Outros trabalhos seriam publicados a partir desse momento.

A ditadura brasileira pelas lentes das cineastas

Partindo da abordagem sobre o cinema de mulheres realizado durante os anos de ditadura (1964-1985), não é difícil entender as dificuldades que tiveram e as estratégias que as diretoras traçaram para conseguir levar seus filmes adiante. Se qualquer menção de resistência ao regime era tolhida pela censura, com cortes e retenção de obras finalizadas, a temática feminista trazia algo mais no que se relacionava à liberação das mulheres.

Mesmo em Quase catálogo 1 encontramos títulos de filmes que poderiam ser classificados como pornochanchadas, como os longas metragens A deusa de mármore, escrava do diabo (1978) e A mulher que põe a pomba no ar (1978), ambos dirigidos por Rosângela Maldonado. O olhar “feminino” no cinema não necessariamente seria um olhar e uma atitude de emancipação para todas as mulheres. Por outro lado, havia cineastas dispostas a dedicar seu trabalho, ou parte dele, à discussão dessa questão.

Helena Solberg, por exemplo, participava de coletivos feministas nos Estados Unidos, onde esteve na criação de um grupo de mulheres reunido para fazerem filmes nessa perspectiva. Além disso, a abordagem social esteve presente em filmes como The emmerging woman (1974), Double day/La doble jornada (1976) e Simplemente Jenny (1979). Se o primeiro filme listado tinha como tema 200 anos de história das mulheres nos Estados Unidos, os outros dois estavam relacionados ao abismo social vivido nas sociedades latino-americanas, neste caso específico, na Bolívia. Em Double day/La doble jornada, a equipe de mulheres percorreu diversos países da América Latina, incluindo Brasil e Argentina, para realizar um diagnóstico das experiências das mulheres trabalhadoras em um continente empobrecido, em que boa parte dos países já lidava com as agruras das ditaduras militares.

A dupla jornada se refere ao trabalho doméstico que as mulheres são costumeiramente forçadas a realizar, mesmo tendo passado o dia em trabalhos externos ao lar. Trabalhando o mesmo que seus maridos, suas casas eram o espaço de um tipo de escravidão consentida, em que elas trabalham para alimentar, lavar, limpar e organizar a vida de toda a família, ao mesmo tempo em que servem de lugar de descanso para esses homens, quando não estão no trabalho formal.

Por estar afastada do Brasil no período, Helena Solberg não teve maiores problemas com a censura, mesmo com a realização do filme The Brazilian connection, de 1982, em que analisava os 18 anos do regime militar no país e as promessas de abertura política. Seu primeiro curta-metragem, A entrevista (1966), realizado ainda no Brasil, trazia aleatoriamente, depois de toda uma discussão sobre as frustrações e a infelicidade das mulheres nos casamentos, uma cena dos militares tomando as ruas, no golpe de 1964. Embora o curta não tenha sido tão divulgado naquele momento, hoje ele se tornou uma referência para os estudos de mulheres no cinema, e a cena que traz diretamente a ditadura e sua truculência não é ignorada.

No caso de Ana Carolina Teixeira Soares, a diretora já vinha de uma carreira em consolidação desde os anos 1960, inicialmente com filmes de curta-metragem, depois arriscando outros formatos. Na trilogia que discute a “condição feminina” - termo utilizado na época -, a cineasta não apenas trata de mulheres, suas protagonistas, como provoca e dialoga, em termos de resistência, com o regime ditatorial. Em Mar de rosas (1977), Felicidade (Norma Bengell) e Betinha (Cristina Pereira) fogem de um perseguidor violento e armado, Barde (Otávio Augusto), que as caça em uma viagem de aventura e alegoria, adentrando uma pequena cidade do Vale do Paraíba, entre São Paulo e Rio de Janeiro. Palhaços na rua, ditados populares e palavras de ordem e moral são proferidos o tempo todo, em um filme que pode ser lido em sua ambiguidade.

O mesmo acontece em Das tripas coração (1982), quando o clima de perseguição e censura é dado pelas diretoras de um colégio prestes a ser fechado. Os hinos assoviados na ida ao banheiro, as menções à pátria e aos rigores do governo repressivo... Tudo isso é justificado pelo sonho do interventor (Antônio Fagundes) indicado para efetuar o fechamento da instituição. A alegoria é a chave cênica de Ana Carolina, que teve o filme censurado não pela crítica direta à ditadura, mas por um suposto “despudor” com relação à Igreja católica como instituição religiosa hegemônica naqueles anos. Dez meses depois, o filme acabou sendo liberado.

Sonho de valsa (1986), último filme da trilogia, embora tenha estreado após o período recortado, carregava os rescaldos dos 21 anos de regime. Desde a primeira cena esse diálogo é posto, com a mulher que literalmente “entra pelo cano” e sai, toda suja, no meio de um desfile militar de 7 de setembro. A cena mostra que todo o trauma vivido não cessou com o final oficial do regime militar.

Com Tereza Trautman foi diferente. O confronto com a ditadura passou a ser direto, por meio do seu órgão de censura, com o lançamento do primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher no chamado cinema moderno brasileiro. Trata-se de Os homens que eu tive (1973), um exemplar do cinema erótico do período, tão amplamente divulgado e incentivado, inclusive pela própria Embrafilme. O longa de Trautman não trazia cenas explícitas ou polêmicas de envolvimento sexual, nem mesmo uma linguagem abusiva ou mais ousada. Depois de estar em cartaz durante dois meses, o filme foi alvo de uma denúncia, que o acusava como sendo depreciativo para a imagem da “mulher brasileira”. O que isso significa? Que a cineasta resolveu responder aos colegas que colocavam em cena mulheres disponíveis ao desejo masculino, reforçando a assimetria de gênero e o privilégio dos homens dentro das relações sexo-afetivas. Trata-se de um filme cuja protagonista é uma mulher liberada, de classe média e bem casada, que gozava de total liberdade para viver aventuras amorosas com quem bem entendesse. Sem desafiar diretamente a ditadura, Tereza Trautman questionou uma de suas bases: a moral e os bons costumes, necessários à manutenção da ordem repressiva então vigente.

O longa-metragem foi recolhido e interditado por quase dez anos, visto que, mesmo com sua liberação, datada de 1980, o filme passou por um processo de remixagem, de acordo com a tecnologia daquele momento, sendo relançado efetivamente em 1983. Nos anos 1980, seu efeito bombástico já havia se diluído, passando simplesmente por um lançamento anacrônico, transmitindo ideias que eram relevantes para a década anterior, mas que perdiam sentido naquele contexto histórico.

Outros filmes foram importantes quando pensamos sobre o denominado cinema de mulheres como resistência à ditadura militar. Entre eles podemos destacar os já mencionados Feminino plural (1976), de Vera Figueiredo, que também apresenta a liberação das mulheres como modo de contestação a o que se vivia naqueles anos, em termos de Brasil. Enquanto a contracultura e o movimento feminista movimentavam e faziam pensar e agir mulheres de outras partes do mundo, esse impulso teve de ser refreado entre as mulheres brasileiras, incluindo as cineastas. De todo modo, a mobilidade controlada não gerou estagnação e, aos poucos, elas foram encontrando espaço para a criação de coletivos e o planejamento de atividades que fizessem ruir esse bloco poroso denominado ditadura militar brasileira.

Fazer filmes engajados, uma necessidade para as mulheres?

Assim como na política, uma mulher cineasta por trás da câmera não significa qualquer garantia de que o produto de seu trabalho será um filme engajado com as questões das mulheres ou, na melhor das hipóteses, um filme feminista e de resistência. No entanto, várias diretoras apresentaram uma maior sensibilidade para discutir a situação das mulheres brasileiras na sociedade e a permanência dos moldes patriarcais reforçados pela mentalidade predominante no interior do regime militar e que alcançava setores amplos da população brasileira.

Alfredo Bosi (1996BOSI, A. Narrativa e resistência. Itinerários, Araraquara, n.10, p.11-27, 1996. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2577>. Acesso em: 24 fev. 2023.
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) argumenta, em seu artigo “Narrativa e resistência”, que o conceito de resistência é uma noção originariamente ética, não estética. Quando associada à narrativa - aqui priorizo a modalidade fílmica -, a resistência pode se dar tanto como tema quanto como processo inerente à escrita, ou seja, à roteirização do filme. Os valores dos e das cineastas (na minha adaptação livre) combatem os “antivalores” impostos socialmente, no caso, pela truculência da ditadura militar: a liberação das mulheres e a equidade de gênero em oposição à heteronorma, conservadora e patriarcal.5 5 Sobre resistência aos antivalores, ver Bosi (2002; 2015).

Os filmes de resistência dirigidos por cineastas brasileiras adotaram linguagens próprias e formas específicas de representação de mulheres, seja pelo conteúdo ou pela forma. A estética fílmica esteve intrinsicamente relacionada à política, correspondendo muitas vezes às demandas da crítica feminista do cinema, que influenciava mulheres cineastas em várias partes do mundo. No Brasil não foi diferente, embora o contexto político-social não fosse favorável à emergência desse tipo de manifestação.

Teresa de Lauretis (2007) argumenta sobre as figuras de resistência (figures of resistance) que as diretoras de cinema colocaram em cena, especialmente na década de 1970, respondendo às demandas dessa crítica - naquele momento ainda concentrada na Grã-Bretanha (Claire Johnston e Laura Mulvey) e nos Estados Unidos (em torno da revista Women & Film, em especial). Para essa teórica feminista do cinema, a repressão de gênero estaria no centro da representação de um cinema de mulheres engajado, sendo o maior desafio construir outros objetos e sujeitos de visão (De Lauretis, 2007, p.34). Um conceito útil trazido por De Lauretis é o de endereçamento, que significa buscar saber quem está fazendo filmes e a quem são endereçados, quem está olhando e falando, como, onde e para quem. O endereçamento pode ser um elemento de definição do público espectador, não apenas de mulheres, mas sempre com a possibilidade de uma abertura para a conscientização sobre sua situação, a partir dos filmes (ibidem, p.35-7).

Voltando a Bosi (1996BOSI, A. Narrativa e resistência. Itinerários, Araraquara, n.10, p.11-27, 1996. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2577>. Acesso em: 24 fev. 2023.
https://periodicos.fclar.unesp.br/itiner...
, p.22), para este autor, é necessário que se abra o campo de visão, detectando em certas obras “uma tensão interna que as faz resistentes”, enquanto escrita, e não só enquanto tema. Isso passa pelo ponto de vista e pela estilização da linguagem, entre outros elementos, que colocam em tensão estilos e mentalidades dominantes. As palavras deste teórico literário cabem perfeitamente ao processo cinematográfico de criação, quando ele entende que “a resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico” (ibidem, p.26). Mesmo no curso de uma conversa banal entre personagens, valores autênticos afloram do texto de ficção, contrapondo-se aos seus próprios antivalores; “a narrativa descobre a vida verdadeira”, que transcende a vida real (ibidem, p.27).

No caso das cineastas brasileiras mencionadas ao longo do texto, é perceptível que cada uma delas encontrou seu meio narrativo de representação de mulheres e adotou estratégias de endereçamento, que iam desde o confronto moral com o regime ditatorial, a proposição de novas subjetividades para personagens mulheres emancipadas, a alegoria e a ambiguidade, que contavam com a recepção do público ao mesmo tempo em que apelavam para um duplo sentido no entendimento das cenas, do vocabulário ou da banda sonora - com sons e canções completando o significado do filme. O endereçamento muitas vezes era lançado com meias-palavras, esperando pela conexão imediata no ato da recepção.

Pensar no cinema dirigido por mulheres no Brasil ainda é pensar em resistências que se dão no cotidiano de uma sociedade que se autopreserva no conservadorismo e nas mais distintas fobias possíveis. Durante os anos de ditadura militar, essa força das mulheres no cinema se fez necessária, no entanto, nos dias atuais ela continua sendo fundamental para a sensibilização das relações sociais e o reconhecimento do lugar das mulheres e sua atuação na história recente do país, incluídas aí as “senhoras diretoras”.

Referências

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Notas

  • 1
    Estou entre as/os autoras/es que consideram o golpe como sendo civil-militar, mas a ditadura e o regime de poder entre 1964 e 1985 como militares, já que os militares de fato detinham esse poder em suas mãos. Por isso a escolha da nomenclatura “ditadura militar”.
  • 2
    “As senhoras diretoras”. Jornal da Tarde, São Paulo, 7.2.1981.
  • 3
    Nesta pesquisa, considero curta-metragem os filmes até 30 min. de duração; média-metragem de 31 a 69 min.; longa-metragem a partir de 70 min.
  • 4
    Para maiores informações sobre as pornochanchadas, ver Abreu (1996).
  • 5
    Sobre resistência aos antivalores, ver Bosi (2002; 2015).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2023
  • Aceito
    05 Maio 2023
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