Acessibilidade / Reportar erro

Reflexões a partir de aspectos heideggerianos do ensaio de Lígia Gonçalves Diniz

A pergunta “O futuro dos estudos de literatura?” é o nome do último capítulo do livro Corpo e forma, de Hans Ulrich Gumbrecht, obra publicada, no Brasil, em 1998GUMBRECHT, H. U. Corpo e forma: ensaios para uma crítica não hermenêutica. Organização e introdução de João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: UERJ, 1998., pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O questionamento aparece, em incerta medida, como provocação contra o fechamento dos estudos de literatura por vezes em si mesmos e, concomitantemente, enquanto forma de estimular o arejamento de possibilidades para os tais estudos, incitando frestas e frentes abertas pelas reflexões transdisciplinares almejadas pela Literatura Comparada (Castro Rocha, 1998). É também o próprio Gumbrecht quem assina o prefácio de Imaginação como presença: o corpo e seus afetos na experiência literária, lançado, em 2020, pela Editora da Universidade Federal do Paraná - o que, de antemão, consegue assinalar a força das editoras universitárias brasileiras em momentos particularmente complicados dos cenários políticos. No preâmbulo que agora Grumbrecht assina, o pensador alemão declara: “Ligia Gonçalves Diniz tornou-se uma das poucas dentre meus jovens colegas que me fazem acreditar que, apesar dos erros e obsessões de minha própria geração, as humanidades e as artes acadêmicas podem ter um futuro” (Grumbrecht, 2020, p.15). Essa sinalização positiva do trabalho prefaciado indica, desde já, a tendência à abertura, aspecto visto em Imaginação como presença. Notar que há um futuro provável talvez seja uma forma de dizer que há caminhos transdisciplinares que vão além da polarização observada, pelo próprio teórico, nos estudos literários contemporâneos, isto é, o embate entre os desdobramentos da virada linguística e os posicionamentos favoráveis ao representacionismo (ibidem, p.12). Ligia Gonçalves Diniz evita, por assim dizer, ambas as alternativas e estimula outras formas de percepção da leitura literária.

O trabalho corresponde a uma versão reformulada da tese de doutorado da autora, defendida na Universidade de Brasília, em 2017, com período sanduíche, na Stanford University, sob orientação de Gumbrecht, e vencedora do Prêmio Capes de Tese, em 2017, além de a versão livro ter vencido na categoria Ciências Humanas o Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias, em 2021. Na edição publicada pela Ed. UFPR, o estudo conta com cerca de trezentas páginas divididas em cinco capítulos, nos quais se nota um pensamento movente, conscientemente ensaístico, não raro no cotejamento da dimensão do afeto que a leitura de literatura pode suscitar (p. ex., p.22 e 26). Nessa busca, se, por vezes, o texto trilha caminhos bibliográficos mais próximos de uma tarefa acadêmica, recorrendo à recolha de informações própria de uma tese, efetuando revisão amplificada de literatura filosófica e em diálogo com diversos campos de conhecimento, não perde uma expressão em primeira pessoa, espécie de colocação, em forma literária, de um ser-aí capaz de reposicionar para si os objetos do mundo a partir da potência de seu questionamento, ou de seu desejo por uma reabertura da pergunta sobre os Estudos Literários para além da polarização estanque e paralisante. Por sinal, é justamente nesse atrito entre os percursos de leitura ligados a uma tradição e os questionamentos propostos pela dicção individual que o trabalho de Ligia Gonçalves Diniz demonstra algumas forças de sua presença.

Para se ter uma ideia, o repertório de referências do livro passa, por exemplo, tanto por alusões mais sutis quanto por debates mais concentrados. No primeiro viés, cabe notar um título de seção, “Representação: modos de usar”, título que pode ser visto em diálogo intertextual com Georges Perec, em razão de, em certo sentido, retrabalhar A vida: modos de usar, livro lançado pelo escritor francês em 1978 e em consonância com o OuLiPo. Além do diálogo mais sutil, a seção já indica a possibilidade de o livro buscar novos modos de se desenvolver Estudos Literários e, em tal empreitada, passa por diferentes conceituações de representação, articulando um debate multifacetado a interagir, por exemplo, tanto com a questão representacional da mimese, em Erich Auerbach, quanto com a questão linguística do significante, em Jacques Derrida. Avançando, contudo, em suas considerações, a autora opta por definir “representação”, a priori, enquanto “o texto entendido como algo que alude a uma realidade que extrapola o interior da linguagem ou do discurso, devendo ser lido como tal” (p.47). Fora da circunscrição propriamente apenas textual da literatura e em busca de um mundo, uma vida, um corpo, outro conceito que, ademais, conversa com tal procura é a noção de “afeto”, tratado como “o impacto do outro literário sobre nossa consciência e nosso corpo, antes que se converta em sentido; mais do que isso, um impacto que carrega dentro de si aquele elemento primeiro, feito apenas de qualidades não preenchidas, e que é pura possibilidade, mas nem por isso menos real” (p.48, grifo da autora). Assim, para além da referência intertextual e passando pelo debate teó- rico, Ligia Gonçalves Diniz procura, ela mesma, abrir mundos ao lidar com o texto sem ficar na polarização entre o linguístico e o representacional, como apontado por Gumbrecht, e caminhando para o impacto - no corpo, via afeto - que a representação tem naquele que se relaciona com a literatura, chegando a afirmar que: “É esse também o tipo de imaginação que evoco neste livro, uma imaginação que habita e se deixa habitar sensorialmente, cineticamente, seja em momentos de suspensão da autoconsciência, seja às bordas dela, e que se disparem todos os tipos de afetos” (p.268). Ou ainda, “meu propósito aqui é tão somente estabelecer categorias que nos permitam pensar a dimensão afetiva na experiência estética” (p.87). É possível cotejar que as propostas, como se vê, propiciam uma espécie de fenomenologia dos afetos.

Nessa via de resposta à pergunta - o futuro dos estudos de literatura? - e à tensão - entre a linguística centrada na linguagem e a representação centrada no mundo - esboçadas por Hans Ulrich Gumbrecht, o estudo Imaginação como presença talvez possua, entre diversas compreensões possíveis, um viés heideggeriano na sua busca pelo sentido de ser um Estudo Literário. Amplificando, a propósito, é sensível que, no livro de Ligia Gonçalves Diniz, Martin Heideg- ger obtenha uma significativa ênfase, havendo até mesmo a compreensão, por parte da brasileira, de que o pensamento do autor alemão é disposto de modo espiralesco - e assim espero também, feitas as ressalvas de proporções, seguir na presente resenha que segue avançando e retomando elementos estruturais (p.58). Logo em seu texto de abertura, a ensaísta já indica a importância da dimensão de presença no autor de Ser e Tempo (p.22-3). Pouco depois, dedica ao filósofo alemão um subcapítulo nomeado “Heidegger à procura de casa”, trazendo para a argumentação leituras que o pensador faz da obra de Friedrich Hölderlin, bem como, ao longo do volume, repercutem, em variadas intensidades, conceitos feito “desvelamento do Ser” e Gelassenheit; sem falar que, por vezes, o texto recusa traços heideggerianos, em especial no que toca a alternativa de uma presença “não pensada” (p. ex., p.50-1, 155-6). Muito embora cada viés terminológico permita longas investigações - e torço para, em tempo oportuno, haver quem avance nesses debates -, a obra de Ligia Gonçalves Diniz guarda ainda outra relação com o pensamento de Heidegger e, em particular, com Ser e tempo. Talvez sub-repticiamente, Imaginação como presença suscite a importância do questionar a ontologia de uma área de conhecimento - tarefa que o Dasein pode (se) colocar - e localiza, por um prisma ôntico, sendas de respostas que passam pelo existir, pelo estar corporeamente no mundo, buscando, para os Estudos Literários, sentidos, possibilidades de leitura que tenham sempre no horizonte, da parte do leitor - essa espécie de ser-aí em sentido próprio, no modo da pergunta sobre a sua condição - a sua relação com o seu corpo-tempo.

Não por acaso, é também Hans Ulrich Gumbrecht quem, em seu prefácio, já aponta

No pensamento de Ligia, a decisiva (e não somente heideggeriana) noção de “estar no mundo”, em contraste, nos caracteriza como habitantes e, portanto, como parte do mundo. Diferentemente, pois, da ontologia cartesiana, que identifica exclusivamente a existência humana como pensamento e razão (“penso, logo existo”), “estar no mundo”, reintegra o corpo humano a referência que temos de nós mesmos e, assim, apresenta o mundo e nossa relação com ele como “ao alcance da mão”, sempre determinados e moldados por diferentes situações, funções e objetos do mundo interior. (Diniz, 2020DINIZ, L. G. Imaginação como presença: o corpo e seus afetos na experiência literária. Prefácio de Hans Ulrich Gumbrecht. Trad. Luísa Leite S. de Freitas. Curitiba: Ed. UFPR, 2020., p.13)

De fato, como se observa a partir de Verdade e método, de Hans-Georg Gadamer, o horizonte hermenêutico, e o seu “estar no mundo”, passa por e ultrapassa a filosofia de Martin Heidegger. De todo modo, o próprio Gumbrecht observa que, embora não somente, há ainda uma dimensão heideggeriana no trabalho de Ligia Gonçalves Diniz. O texto da autora, aliás, interessado no corpo, também não se identifica - em estrito - com a ontologia cartesiana, no sentido dado a ela por Gumbrecht. No seu cogitar sentidos para os Estudos Literários, ou seja, no seu interesse por uma reflexão que busque rediscutir o estatuto ontológico dos objetos dos Estudos Literários, e, simultaneamente, no seu colocar-se no mundo, Imaginação como presença - ou, metonimicamente, a sua autora - procura respostas que não percam de vista a noção, cara a Ser e Tempo, de que o perguntar ôntico-ontológico que - para Diniz, emerge onticamente, por um sentido de ser, embora condicionado pela pré-compreensão - talvez seja a única via possível de investigação. Assim, partindo do uso da primeira pessoa, como registro linguístico-epistemológico, Ligia Gonçalves Diniz demonstra que ler um poema é ser tocado, sensorialmente, pela presença da imaginação, estando no corpo e nos afetos a visibilidade invisível do texto que atravessa o leitor.

Tal repertório de Teoria se aproxima de reflexões atinentes ao sentido de que, talvez, diante de um poema, não caiba, a princípio, a pergunta pelo ser do Poema, em geral, ontologicamente; não sendo acessível - nem mesmo e, senão fenomenicamente - um verso em si, cabe sondar, na verdade, a dimensão do afeto diante do texto lido, ou ainda, analisar a criação literária como fenômeno capaz de impactar, via imaginação, no corpo do leitor, corpo que torna presente a leitura literária. Se me permito refletir sobre as ponderações de Imaginação como presença, a partir de Martin Heidegger, é conjecturável que, diante do poema, quando pergunto sobre o que sou, ou quando pergunto como o poema é em mim, pergunto, ao mesmo tempo, implicitamente, sobre o que é o poema. Desse modo, partindo da dimensão ôntica, e radicada no corpo, é possível, pela via ôntico-ontológica, perguntar em mim pelo poema e, na reflexão, perguntar, ciente dos limites do questionamento, pelo poema ele mesmo. Está certo que esse tipo de desdobramento é possível, ou quem sabe presumível, a partir das considerações vistas na obra de Ligia Gonçalves Diniz. Sem ignorar o aparato linguístico do texto e sem perder de vista o mundo, a literatura como presença no corpo do leitor define uma frente própria de investigação.

Destacados alguns méritos da obra, acredito que um risco possível seja, no caso de uma interpretação de texto literário, a leitura almejada pelo livro em questão muito se aproximar de uma crítica impressionista, isto se a leitura literária se afastar demasiadamente do aparato linguístico da literatura e se radicalizar nas impressões que são deixadas pelo texto no leitor. O que estou chamando de crítica impressionista é um modelo de leitura relativamente frequente antes de haver movimentos novecentistas empenhados em tomar o texto linguisticamente. Tendências teóricas como o Formalismo russo, a Nova Crítica americana, Estilística alemã e a Escola de Genebra almejaram, por vezes, procedimentos técnicos em rumo contrário à crítica das impressões, gostos e nuances psicológicas do leitor, de modo a dar preferência por uma análise mais imanente, centrada no texto. Não obstante, esse modelo de leitura também possui suas limitações e não faltou quem, ao longo do século XX, expusesse os riscos - por vezes políticos - das tendências formalistas. Desse modo, no final de Imaginação como presença, Ligia Gonçalves Diniz faz um convite à leitura literária, elencando alguns textos de sua preferência - com certa incidência de modernistas ocidentais - e interagindo de formas próprias com as obras selecionadas: em que medida o impressionismo crítico não é, também ele, revisitado pela autora? E, caso haja de fato essa revisitação, talvez possa caber uma reconsideração, uma releitura histórica, da própria crítica impressionista. Na medida em que novos sentidos para os Estudos Literários são abertos por Imaginação como presença, quais velhos sentidos ganham novas valorizações?

Agradeço ao Professor Eduardo Soares Neves Silva pela leitura atenta deste texto.

Referências

  • CASTRO ROCHA, J. C. de. Introdução: A materialidade da teoria. In: GUMBRECHT, H. U. Corpo e forma: ensaios para uma crítica não hermenêutica. Organização e introdução de João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.
  • DINIZ, L. G. Imaginação como presença: o corpo e seus afetos na experiência literária. Prefácio de Hans Ulrich Gumbrecht. Trad. Luísa Leite S. de Freitas. Curitiba: Ed. UFPR, 2020.
  • GADAMER, H.-G. Verdade e método. 3.ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Revisão da tradução de Ênio Paulo Giochini. Petrópolis: Vozes, 1997.
  • GUMBRECHT, H. U. Corpo e forma: ensaios para uma crítica não hermenêutica. Organização e introdução de João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.
  • ______. Uma proposta para a crítica literária? Por que e a quem este livro deve importar. In: DINIZ, L. G. Imaginação como presença: o corpo e seus afetos na experiência literária. Prefácio de Hans Ulrich Gumbrecht. Trad. Luísa Leite S. de Freitas). Curitiba: Ed. UFPR, 2020.
  • HEIDEGGER, M. Ser e tempo: edição em alemão e em português. Trad., org., nota prévia, anexos e notas de Fausto Castilho. Campinas: Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012.
  • PEREC, G. A vida: modos de usar: romances. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2022
  • Aceito
    16 Mar 2022
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br