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Alimentação Saudável, Agricultura Urbana e Familiar

RESUMO

Produto dos debates realizados por ocasião do XI Seminário Serviço, Pesquisa e Política Pública, sobre o tema “Agricultura Urbana e Segurança Alimentar e Nutricional: o alimento orgânico na alimentação escolar”, este artigo sintetiza a fala de pesquisadores, produtores agrícolas, representantes de instituições da sociedade civil e de órgãos governamentais sobre a produção urbana de alimentos. Tendo como perspectiva a contribuição da agricultura urbana para a qualidade da alimentação, são tratados temas relativos aos alcances e limites para a distribuição destes alimentos por equipamentos públicos e destinação a políticas públicas como a alimentação escolar, à luz de experiências nas cidades de São Paulo e Castro, no Paraná. Considerações sobre o abastecimento de centros urbanos e a importância de ambientes organizacionais e ambientes alimentares tomaram como referencial diretrizes nacionais e internacionais sobre os determinantes sociais da situação de saúde e nutrição na contemporaneidade. São apontadas as dificuldades que marcam a produção da agricultura urbana, e as ações de iniciativas locais que possibilitaram avançar na direção de uma atividade econômica viável e promotora de alimentação saudável e de equidade. O papel das políticas públicas de alimentação, ainda limitado no que se refere à agricultura urbana, é patente para promover o fortalecimento do trabalho de agricultores e gestores públicos engajados nas iniciativas que já apontam o potencial de crescimento desta forma de produzir alimentos.

PALAVRAS-CHAVE:
Agricultura urbana; Políticas públicas de alimentação e nutrição; Segurança alimentar e nutricional; Ambientes alimentares

ABSTRACT

As a result of the debates held during the XI Seminar on Service, Research and Public Policy, on the theme “Urban Agriculture and Food and Nutrition Security: organic food in school meals”, this article summarizes the speeches of researchers, agricultural producers, representatives of civil society institutions and government agencies on urban food production. From the perspective of the of urban agriculture contribution to the quality of food, issues related to the scope and limits of the distribution of these foods through public facilities and destination to public policies, such as the school meal program, are addressed in light of experiences in the cities of São Paulo and Castro, in Paraná. Considering the supply of urban centers and the importance of organizational and food environments, debate took national and international guidelines on the social determinants of contemporary health and nutrition as a theoretical reference. The difficulties that mark the production of urban agriculture were addressed, and the actions of local initiatives that made it possible to advance towards a viable economic activity that promotes healthy eating and equity were presented. The role of public food policies, still limited in the field of urban agriculture, is evident to strengthen the work of farmers and public managers engaged in initiatives that already point to the potential for growth in this form of food production.

KEYWORDS:
Urban agriculture; Public policies on food and nutrition; Food and nutritional Security; Food environments

Introdução

O presente artigo apresenta o resultado dos debates ocorridos por ocasião do XI Seminário Serviço, Pesquisa e Política Pública, sobre o tema “Agricultura Urbana e Segurança Alimentar e Nutricional: o alimento orgânico na alimentação escolar” organizado conjuntamente pelo Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza e o Grupo de Estudo Agricultura Urbana, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

O evento, de caráter interdisciplinar, reuniu pesquisadores, produtores agrícolas, representantes de instituições da sociedade civil e de órgãos governamentais que atuam na condução de políticas públicas de alimentação para discutir as condições de produção e acesso das comunidades urbanas a uma alimentação saudável; os ambientes alimentares urbanos e a qualidade da alimentação; o papel do agricultor urbano; o uso de alimentos orgânicos na merenda escolar; e experiências de apoio governamental à agricultura urbana e à agricultura familiar, em São Paulo, Paraná e Cuba. O evento contou com a participação dos seguintes palestrantes: Patrícia Jaime professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Terezinha Matos agricultora da zona leste de São Paulo e coordenadora do Espaço Sabor da Vitória, Cyra Malta Olegário da Costa Coordenadora do programa de agricultura urbana do município de São Paulo e Luiz Humberto da Silva, técnico da Coordenação de Segurança Alimentar e Nutricional - Programa Nacional de Alimentação Escolar, e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (PNAE/FNDE).

Ressaltaram-se, de um lado, a importância dos ambientes alimentares nas comunidades com foco nas condições de abastecimento nos centros urbanos; e, de outro, a importância dos ambientes alimentares organizacionais, onde a ênfase foi dada à alimentação nas escolas, enquanto espaço de formação das práticas alimentares dos estudantes.

Quanto ao acesso aos alimentos, foram apontadas referências teóricas e técnicas relevantes para avaliar os determinantes da situação de saúde e nutrição das comunidades, tendo em vista o ambiente alimentar no Brasil. A esse respeito foram objeto de maior atenção as seguintes publicações: (a) “Guia Alimentar para a População Brasileira” (Brasil, 2014); (b) “A Sindemia Global da Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas” (Swinburn et al., 2019SWINBURN, B. A. et al. The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report. The Lancet, v.23, n.393(10173), p.791-846, fev. 2019. DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)32822-8 .
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); (c) os estudos sobre disponibilidade e o perfil dos equipamentos varejistas e de equipamentos públicos de alimentação e nutrição no Brasil (Brasil, 2010; Fortes et al., 2018FORTES, M. F. et al. Mapeando as desigualdades socioeconômicas na distribuição do comércio varejista local. Segurança Alimentar e Nutricional, v.25, n.3, p.45-58, set./dez. 2018. DOI: https://doi.org/10.20396/san.v25i3.8651966
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); e (d) a metodologia para a realização de auditorias no ambiente alimentar, em especial no ambiente alimentar do consumidor (Borges; Jaime, 2019BORGES, C. A.; JAIME, P. C. Desenvolvimento e avaliação de instrumento de auditoria do ambiente alimentar: AUDITNOVA. Rev. Saúde Pública [online], v.53, 2019. DOI: https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2019053001316.
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).

No tocante à produção de alimentos, foram analisadas as dificuldades enfrentadas cotidianamente pelos agricultores urbanos, bem como os avanços e desafios de políticas públicas nacionais, estaduais e municipais comprometidas com o apoio à agricultura familiar. Adicionalmente, foi apresentado um panorama geral dos caminhos trilhados pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), nos anos recentes, sinalizando os esforços já empreendidos, e a serem ampliados, para associar a melhoria das condições de alimentação dos estudantes ao apoio aos agricultores familiares, especialmente a produtores de alimentos orgânicos.

Dadas a dimensão e o potencial de irradiação do PNAE, destacou-se sua importância para subsidiar uma reflexão sobre iniciativas locais, como aquelas desencadeadas nos municípios de São Paulo e de Castro (PR), que investiram fortemente, por exemplo, no aprimoramento da logística e na regulamentação dos processos de aquisição de alimentos. O crescimento sustentável da agricultura Cubana pós-crise e embargo econômico, é também trazido como exemplo de atividade econômica integradora e promotora de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e de equidade.

Dos elementos extraídos nos debates, fica patente a importância de envidar esforços para conferir a devida prioridade às políticas públicas de alimentação e nutrição, envolvendo a participação dos diversos atores, de modo a promover o fortalecimento institucional e a necessária intersetorialidade no trato dessa questão.

Como a agricultura urbana pode fomentar a segurança alimentar e nutricional?

Contemporaneamente está pacificado que os determinantes sociais - classe, renda e escolaridade - são fundamentais na abordagem da epidemiologia crítica para a compreensão do cenário de saúde e nutrição da população. A partir dos anos 2000, a exemplo do que Josué de Castro trouxe nos anos 1940, adotou-se o referencial da geografia humana e do território ou dos condicionantes ambientais, para compreender as situações de saúde e nutrição. Esta perspectiva mais abrangente é especialmente relevante no espaço de grandes metrópoles, onde concorrem diferentes contextos dentro de um mesmo espaço geográfico (Herforth; Ahmed, 2015HERFORTH, A.; AHMED, S. The food environment, its effects on dietary consumption, and potential for measurement within agriculture-nutrition interventions. Food Security, v.7, p.505-20, 2015. DOI: https://doi.org/10.1007/s12571-015-0455-8.
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).

Com base em uma melhor compreensão sobre o ambiente alimentar na cidade, ganham relevo outras formas de intervenção que impactam profundamente as condições de saúde e nutrição como, por exemplo, aquelas relativas ao abastecimento. Construídas em espaços institucionais diversos, essas intervenções externas ao campo da saúde tornam-se cada vez mais conectadas às políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), por meio da construção dos nexos entre os diferentes setores que interferem na superação da insegurança alimentar. Ainda nesse sentido, o modelo socioecológico dos determinantes sociais em saúde (Dahlgren; Whitehead, 2006DAHLGREN, G.; WHITEHEAD, M. Levelling up (‎part 2): a discussion paper on European strategies for tackling social inequities in health. Regional Office for Europe. (‎2006)‎ Copenhagen: WHO Regional Office for Europe. 2006. Disponível em: <https://apps.who.int/iris/handle/10665/107791> Acesso em: 15 abr. 2021.
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) contribui para a compreensão das relações dos indivíduos com ambientes alimentares nas organizações locais; iniciativas locais que reúnam desde redes formadas por escolas e comunidades até projetos mais abrangentes e intersetoriais, em modelos que articulam instituições e governos (Glanz et al., 2005GLANZ, K. et al. Healthy nutrition environments: concepts and measures. American Journal of Health Promotion, v.19, p.330-33, 2005. DOI: https://doi.org/10.4278/0890-1171-19.5.330.
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; Sinclair, 2019SINCLAIR, J. R. Importance of a One Health approach in advancing global health security and the Sustainable Development Goals. Revue Scientifique Et Technique de L’Oie, v.38, n.1, p.145-154, 2019. O.I.E (World Organisation for Animal Health). DOI: https://doi.org/10.20506/rst.38.1.2949.
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).

A desigualdade dos ambientes alimentares urbanos e dos equipamentos de abastecimento

Os determinantes comerciais e econômicos das condições de saúde e de alimentação na contemporaneidade decorrem de um sistema alimentar hegemônico produtor das pandemias da obesidade e da subnutrição, e que gera de 25 a 30% das emissões dos gases de efeito estufa no mundo (Willett et al., 2019WILLETT, W. et al. Food in the Anthropocene: the EAT-Lancet Commission on healthy diets from sustainable food systems. The Lancet, v.393, p.447-92, 2019. DOI: https://doi.org/10.1016/s0140-6736(18)31788-4.
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). A reversão deste cenário desloca o foco tradicionalmente colocado no indivíduo para a natureza, tendo em vista a importância dos sistemas naturais para a saúde do planeta. Esta é uma perspectiva revolucionária ao partir da articulação de sistemas micro e macro intermediários - indivíduo, comunidade, famílias, sociedade, natureza - a partir de um modelo de governança ancorado em direitos e na construção de políticas públicas e sociais.

O Guia Alimentar para a População Brasileira (Brasil, 2014) tem sido proposto como referencial teórico e técnico para avaliar os determinantes da situação de saúde e nutrição das diversas comunidades no país. As diretrizes para uma Alimentação Adequada e Saudável (AAS), trazidas pelo Guia derivam de um sistema alimentar socialmente justo e ambientalmente sustentável; este é um dos únicos guias alimentares nacionais onde a concepção de AAS está associada ao ambiente. A esta premissa acrescenta-se que a boa alimentação é muito mais do que adequação de nutrientes e grupos alimentares e deve ser entendida como um direito humano a ser garantido pelo Estado, conforme estabelecido na Constituição brasileira, e ela deve ser socialmente referenciada.

A importância do ambiente comunitário, um dos pilares de políticas públicas de segurança alimentar, revela-se na desigualdade de acesso a equipamentos de abastecimento por parte da população; tomando o município de São Paulo como exemplo, nas áreas periféricas, às vezes com grande adensamento populacional, há baixa densidade de equipamentos, sejam os supermercados, ou aqueles reconhecidos como mais próximos da oferta de alimentos saudáveis, como as tradicionais feiras de rua (Santiago et al., 2018). Regiões com estas características são consideradas como desertos alimentares: compostas por agrupamentos de pelo menos 500 pessoas que precisam se deslocar um quilômetro e meio ou mais para ter acesso a estabelecimentos que vendem comida saudável. Localidades em que 90% dos equipamentos de varejo vendem produtos alimentares ultraprocessados (UP), são identificadas como pântanos alimentares. Estes alimentos são formulações originadas por processamento possíveis exclusivamente por meios industriais e que recebem aditivos para preservação ou para simular características sensoriais agradáveis, como cor e sabor; padrões alimentares caracterizados por elevado consumo de UP estão associados ao adoecimento (Monteiro et al., 2016; Pagliai et al., 2020PAGLIAI, G. et al. Consumption of ultra-processed foods and health status: a systematic review and meta-analysis. British Journal of Nutrition, p.1-11, 2020. DOI: https://doi.org/10.1017/s0007114520002688 .
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; Askari et al., 2020). A existência de desertos e pântanos alimentares, presentes sobretudo em grandes centros urbanos, evidencia um dos desafios para a promoção do direito humano à alimentação a partir de políticas públicas que garantam o pleno acesso aos alimentos, incluindo a questão da distribuição espacial dos equipamentos de abastecimento.

A temática relativa ao ambiente alimentar no Brasil passou a ser objeto de publicações relevantes nos anos 2010 (Duran et al., 2015DURAN, A. C. et al. The role of the local retail food environment in fruit, vegetable and sugar-sweetened beverage consumption in Brazil. Public Health Nutrition, p.1-10, 2015. DOI: https://doi.org/10.1017/S1368980015001524.
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; Borges; Jaime, 2019BORGES, C. A.; JAIME, P. C. Desenvolvimento e avaliação de instrumento de auditoria do ambiente alimentar: AUDITNOVA. Rev. Saúde Pública [online], v.53, 2019. DOI: https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2019053001316.
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). Um destes estudos avaliou as 31 subprefeituras da cidade de São Paulo, e revelou uma grande concentração de feiras e sacolões nas regiões de maior poder aquisitivo; este estudo mostrou ainda haver correlação significativa entre a existência desses equipamentos de abastecimento e o consumo de frutas e hortaliças, apontado pela Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) (Duran et al., 2013). Outro estudo, conduzido no município de Santos, apontou que nas áreas de menor nível socioeconômico há maior desigualdade no acesso e maior preço dos alimentos; quanto maior a distância entre a moradia e estes equipamentos, maior é o risco para a qualidade do consumo (Cremm et al., 2012CREMM, E. C. et al. Factors associated with overweight in children living in the neighbourhoods of an urban area of Brazil. Public Health Nutrition, v.15, n.6, p.1056-64. 2012. DOI https://doi.org/10.1017/S1368980011002771.
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).

Outra dimensão relevante sobre os equipamentos de abastecimento se refere ao tipo de alimento que comercializam. Um estudo nacional sobre desertos alimentares realizado pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, classificou os equipamentos de abastecimento em três grupos, segundo o percentual de produtos UP que compõem seu portfólio de vendas (Brasil, 2018). O estudo mostrou que a maioria dos estabelecimentos brasileiros, independentemente do porte do município ou da região, comercializa proporções semelhantes de alimentos in natura e de ultraprocessados. Confirmou a existência de verdadeiros desertos alimentares nos espaços urbanos. E mostrou que os pequenos comércios, mercados, armazéns, lanchonetes e pequenos restaurantes correspondem a 61% dos estabelecimentos que fornecem alimentos para o país. Estes dados revelam, portanto, que não há profunda dependência dos hipermercados e dos supermercados para o abastecimento de grande parte da população brasileira. No seu conjunto, estes achados trazem importantes informações para o desenho de políticas nacionais de abastecimento e indicam que não se pode considerar apenas as regiões metropolitanas como referência.

O papel do agricultor urbano: o caso da cidade de São Paulo

A agricultura urbana pode ser definida como aquela que se localiza no interior e nos arredores das cidades em conexão íntima com o meio ambiente urbano. Por apresentar diferentes tipologias, a caracterização e o mapeamento da agricultura urbana são atividades bastante complexas, e possivelmente incompletas nas tentativas já realizadas. Sua ocorrência varia desde pequenos quintais produtivos e hortas comunitárias, iniciativas de médio porte típicas da agricultura familiar, até maiores empreendimentos agrícolas (Biazotti; Sorrentino, 2018). Segundo o último censo do IBGE de 2017, existem cadastrados 550 estabelecimentos agropecuários na cidade de São Paulo, em uma área de quase 11 mil hectares e ocupando mais de 1900 pessoas (Biazoti; Sorrentino, 2018BIAZOTI, A. R.; SORRENTINO, M. Agricultura urbana no município de São Paulo: uma proposta de caracterização. In: CONFERENCE PROCEEDINGS: THIRD INTERNATIONAL CONFERENCE ON AGRICULTURE AND FOOD IN AN URBANIZING SOCIETY. Porto Alegre: UFRGS/FAO, 2018.; Biazoti et al., 2021).

Uma pequena parcela destes agricultores, principalmente aqueles localizados na zona leste e na zona sul de São Paulo, está organizada em associações ou cooperativas e tem praticado a transição agroecológica e orgânica por meio de certificação participativa. Estes agricultores conseguem escoamento local de sua produção, mas também tem alcançado o centro expandido em equipamentos como feiras orgânicas, institutos de comércio sustentável, entre outros.

Por outro lado, a despeito da crescente demanda por alimentos agroecológicos e cultivados localmente, a agricultura urbana enfrenta grandes desafios, que contribuem para a dificuldade em fixar o trabalhador à atividade agrícola. É exemplar o testemunho da agricultora urbana Terezinha Matos1 1 O protagonismo da agricultora Terezinha Matos, que iniciou o cultivo de alimentos orgânicos em uma área de 300 m2, deu origem a esta experiência, que hoje comercializa a produção de uma área de 6 mil m2. da Associação dos Agricultores da Zona Leste. Sua experiência, como pequena produtora, revela a diversidade de obstáculos que a agricultura urbana enfrenta e pode ser assim resumida:

  • O acesso à água. O elevado custo da água proveniente do sistema de abastecimento inviabiliza a produção; assim, há grande dependência do regime de chuvas, fortemente afetado pelas mudanças climáticas.

  • O escoamento da produção. Com pouca estrutura de auxílio nas tarefas não agrícolas, o agricultor urbano é forçado a extrair parte importante do tempo necessário à produção para cuidar das atividades de comercialização do seu produto.

  • Dificuldade de fixação de trabalhadores. A desvalorização do trabalho, a informalidade e a precarização das condições de trabalho criam um cenário pouco atraente, o que aumenta a volatilidade dos interessados em se dedicar à agricultura.

  • Disputa por áreas de cultivo. A pouca disponibilidade de espaços, sobretudo públicos, e a ausência de uma ação por parte da gestão pública para a identificação de áreas cultiváveis, é uma limitação para aqueles agricultores que ainda não alcançaram a condição de posse de terra. Desde 2011, quando um grupo de agricultores na região de São Mateus discutia onde plantar - o pequeno agricultor urbano começa sem posse de terra, prospectando terrenos disponíveis, especialmente os não privados - estas dificuldades comprometem grandemente a produção urbana de alimentos.

Experiências de gestão pública e agricultura urbana em São Paulo

Algumas experiências de São Paulo ilustram o papel que poderia ser cumprido pela gestão pública para o fortalecimento da Agricultura Urbana. O Departamento de Agricultura da Secretaria Municipal de Subprefeituras do município de São Paulo, por exemplo, desenvolve algumas iniciativas voltadas ao estímulo à agricultura urbana e ecológica. Ainda que pequenas e pouco abrangentes, há exemplos interessantes a partir da participação de outras estruturas de gestão, como as concessionárias de energia elétrica que concedem áreas para as grandes hortas dos linhões urbanos (Claudino, 2015CLAUDINO, V. Casa da Agricultura Ecológica é um ponto de apoio ao produtor rural e urbano. Prefeitura de São Paulo. 2015. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento/abastecimento/noticias/?p=202268>.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/...
).

O trabalho no sistema cooperativo de assentados, por exemplo, revela certa frustração com a agricultura urbana, diante da hegemonia de um modelo de desenvolvimento marcado pela sociedade industrial. Um processo complexo como a produção agrícola, não coaduna com a visão fracionária da lógica industrial, que limita a capacidade de olhar para a cadeia produtiva como um todo. Dito de outra forma, não cabe na agricultura a visão de transformação que marca a produção industrial; as etapas de preparo de solo, colheita e todo o cuidado com a produção, obedecem a uma dinâmica particular, em que o tempo e o processo de trabalho são bastante singulares e sujeitos a determinantes da natureza. O grande desafio da gestão pública é, portanto, compreender a importância do papel a ser desempenhado pelo estado, tendo em conta que o estado deve garantir governabilidade e governança.

Esta discussão é particularmente importante em um município como São Paulo, que percebe menos o efeito de políticas públicas federais comparativamente a municípios de pequeno porte. Por exemplo, em cidades pequenas, o repasse de recursos do PNAE condiciona e estrutura a produção agrícola local.

Os interesses e as formas de ocupação do território por diferentes atores representam outros aspectos importantes para entender a complexidade dos mecanismos de produção de políticas públicas para agricultura urbana. O plano diretor estratégico de São Paulo criou, em 2014, o Sistema Municipal de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres (Sapavel). Este instrumento trata da ocupação de espaços livres como as linhas de transmissão de energia, as áreas da Sabesp, ou outras áreas não utilizadas pelo poder público, para atividades de agricultura urbana. O Sapavel traz quatro planos verdes: pagamento por serviços ambientais, plano municipal de mata atlântica, plano de áreas verdes e áreas protegidas, e o plano de arborização urbana, todos com impacto na agricultura. Além disso, há o plano de desenvolvimento rural sustentável (Prefeitura de São Paulo, 2020).

Vale ressaltar que o tema da agricultura urbana teve destaque no Relatório Final de Declarações e Proposições da 6ª Conferência Municipal de SAN (Conselho...., 2015) no Eixo I - Comida de verdade: avanços e obstáculos para a conquista da alimentação adequada e saudável e da soberania alimentar e nutricional (O que é comida de verdade?). As propostas feitas durante o evento foram incorporadas no 1º Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Plamsan 2016-2020; Câmara..., 2016) e são: a) fortalecimento e ampliação de iniciativas de agricultura urbana e periurbana; b) reconhecimento da agroecologia; c) garantia do desenvolvimento de programas associados ao ciclo do alimento e proteção das nascentes, mananciais, rios e florestas da cidade de São Paulo.

O Plamsan 2016-2020 evidenciou os avanços da Segurança Alimentar e Nutricional no cenário municipal. Um aspecto importante foi a garantia de uma representação ampla para tratar da questão, onde pudessem estar presentes e colaborar todos os atores importantes para a agricultura urbana. Com esse propósito, a composição da Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan Municipal) conta com a participação de sete secretarias municipais, além da liderança do Conselho Municipal de SAN onde estão presentes conselheiros representantes de várias organizações e grupos sociais. Esta configuração garantiu a adequada intersetorialidade e a participação social no processo de construção do Plano, que refletiu no caráter abrangente e estrutural das políticas públicas voltadas para a segurança alimentar e nutricional e que incluem a produção agrícola no meio urbano (Ribeiro; Bógus; Lins, 2019RIBEIRO, S. M.; BÓGUS, C. M.; LINS, J. D. 1º plano municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo/SP (PLAMSAN). Segurança Alimentar e Nutricional, v.26, p.1-12, 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.20396/san.v26i0.8655894.
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).

Outro aspecto a ser ressaltado da intersetorialidade no trato da agricultura urbana na cidade de São Paulo pode ser ilustrado pela diversidade de programas em diferentes secretarias: Secretaria do Verde, Secretaria de Saúde com as hortas fitoterápicas, Secretaria de Educação com as hortas pedagógicas, Secretaria do Trabalho e o Departamento de Agricultura. A organização desse processo depende da construção de um pacto social de governança, com a participação da sociedade e de uma coordenação eficiente por parte do estado. A Lei Municipal de gestão participativa de Praças e outros instrumentos normativos preveem diversas modalidades de incentivo à agricultura urbana, como a implementação de hortas comunitárias orgânicas, composteiras, e a realização de ações educativas nas praças públicas. Estas são possibilidades de espaços para aproximação entre produtores de alimentos e consumidores. A legislação avança ainda mais, e aponta diretrizes consistentes para a promoção da SAN, para além do fortalecimento de ações de caráter local como a implantação de hortas. Apesar disso, importantes conquistas poderiam ter ocorrido com a implantação plena da Lei n.13.727, de 12 de janeiro de 2004 (São Paulo, 2004), o que não aconteceu. Por meio deste instrumento, se criou o Programa de Agricultura Urbana e Periurbana (Proaurp) no município de São Paulo, mas seu impacto foi pequeno.

Em suma, o planejamento de política agrícola demanda articulação entre União, estado e município e desmontes recentes nas diversas esferas de gestão pública comprometem as estruturas que foram responsáveis por iniciar transformações importantes no perfil agrícola do Estado de São Paulo.

A pandemia de Covid-19, com imensas e ainda não totalmente estimadas consequências na segurança alimentar e nutricional das camadas menos favorecidas, proporciona um ótimo momento para os gestores públicos colocarem em prática as legislações sobre a agricultura urbana da cidade de São Paulo. É fundamental o licenciamento das áreas debaixo de linhões, o fortalecimento da assistência técnica aos agricultores e o aumento do número de hortas urbanas nas suas mais diversas tipologias.

Como garantir a compra de alimentos orgânicos na alimentação escolar?

Iniciado em meados dos anos de 1950, o PNAE foi se fortalecendo e expandindo ao longo das últimas décadas. Hoje ele atende cerca de 40,5 milhões de alunos, envolvendo recursos da ordem de R$ 4 bilhões ao ano. Por sua importância e dimensão, ele tem sido visualizado, desde a aprovação do II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição em 1976, como um potencial instrumento de apoio à agricultura familiar e de estímulo a uma alimentação saudável. Não obstante, durante sua trajetória essa premissa nem sempre foi atendida e predominou no cardápio escolar a presença dos alimentos altamente processados fornecidos pelas grandes indústrias de alimentos, nacionais ou multinacionais, especialmente nos anos 1960 a 2000.

Para mudar essa situação foi aprovada a Lei n.11.947/2009 que representou um avanço significativo na condução do PNAE (Brasil, 2009). Com esse novo arcabouço legal foi possível promover uma remodelação da sistemática de implementação do programa, cabendo destacar a obrigatoriedade de todas as unidades federativas participantes destinarem, no mínimo 30% dos recursos financeiros repassados pelo FNDE2 2 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/Ministério da Educação. para a aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural, ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas. Quatro anos mais tarde, por meio da Resolução n.26 (art. 19) foi ainda estabelecido que a aquisição de gêneros alimentícios deveria obedecer ao cardápio planejado por nutricionistas e ser realizada, sempre que possível, no mesmo ente federativo em que se localizam as escolas, priorizando os alimentos orgânicos e/ou agroecológicos (Brasil, 2013).

Desde então, apesar das dificuldades enfrentadas para cumprir a nova legislação, muitos avanços podem ser observados na direção de integrar uma política pública de distribuição de alimentos ao apoio e estímulo à agricultura familiar e orgânica. Assim, entre 2011 e 2017 quase dobrou o número de municípios brasileiros que destinaram mais de 30% dos seus recursos para a aquisição de alimentos fornecidos pela agricultura familiar, ou seja, esse número passou de 1404 para 2704. Um avanço ainda mais expressivo se manifesta no percentual dos recursos destinados à compra da agricultura familiar sobre o total de recursos transferidos pelo FNDE: nesse mesmo período ele subiu de 7,85% para 21,61%.3 3 Fonte: FNDE/ME. Informações apresentadas por Luiz Humberto da Silva no XI Seminário Serviço, Pesquisa e Política Pública, sobre o tema “Agricultura Urbana e Segurança Alimentar e Nutricional: o alimento orgânico na alimentação escolar” realizado no IEA/USP em novembro de 2019. É interessante destacar que dentre os sete estados da federação nos quais foram alocados mais de 30% dos recursos para a aquisição de alimentos junto aos agricultores familiares, três deles se situam na região Norte (RR, AM e AC); outros três na região Sul (SC, RS E PR) e um no Nordeste (SE). No estado de São Paulo, esse percentual foi de 14,85%, ou seja, abaixo até mesmo da média nacional.4 4 Fonte: Extrações (data 03/2019) baseadas em cruzamento de CPF/CNPJ com banco de DAP. Elaborado por Luiz Humberto da Silva, Técnico da Coordenação de Segurança Alimentar e Nutricional (PNAE/FNDE).

Em relação aos valores destinados à aquisição de produtos orgânicos para a alimentação escolar, os resultados apontam uma queda de 36% entre os anos de 2013 a 2017, uma vez que eles passaram de R$ 108,3 milhões para R$ 69,6 milhões. Em compensação ampliou-se, ligeiramente, o montante dos recursos dirigidos à aquisição dos alimentos orgânicos junto à agricultura familiar e, dessa forma, sua participação no fornecimento total passou de 46%, em 2013, para 73% em 2017. As informações relativas ao comportamento dos estados, em 2017, indicam que São Paulo foi o que mais comprou produtos orgânicos e, isoladamente, aplicou R$ 11,7 milhões, o que representa 17% do total investido. Em segundo e terceiro lugares, com valores bem mais reduzidos, vieram os estados do Paraná (R$ 7,5 milhões) e da Bahia (R$ 6,3 milhões).5 5 Organizado pelo Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza em parceria com o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo. 2019.

Ainda que os dados sinalizem avanços, especialmente se olharmos para a história anterior do programa da alimentação escolar, eles também refletem a existência de diversos obstáculos estruturais e históricos, que terão que ser superados para que o cumprimento da legislação vigente se estenda a todo o território nacional. Ilustra essa afirmação o fato de que, em 2017, 792 municípios do país ainda não adquiriam alimentos junto a agricultura familiar e outros 2070 não atingiam o percentual de 30% previsto na legislação atual. Entraves de diversas ordens repercutem nesses resultados destacando-se, dentre outros, as dificuldades inerentes: à realização do mapeamento da produção local, o que é essencial para a elaboração dos cardápios de acordo com a oferta local; ao envolvimento dos segmentos rurais mais vulneráveis, a exemplo dos assentados da reforma agrária ou quilombolas; à garantia da oferta regular de alimentos provenientes da agricultura familiar; à garantia da certificação de qualidade dos produtos, especialmente dos produtos orgânicos; à gestão dos processos de aquisição (chamada pública); e à precariedade na estrutura de cozinhas escolares, inclusive para o armazenamento dos alimentos. A esses entraves operacionais, somam-se as dificuldades para promover mudanças de comportamento dos gestores, para valorizarem a proposta do programa em toda sua complexidade, e garantir o apoio político institucional por parte dos dirigentes.

A gestão de um programa dessa natureza exige um trabalho integrado da administração pública para dar conta da amplitude e diversidade das medidas requeridas que abrangem, dentre outras: o aprimoramento dos sistemas de informação; o fornecimento de assistência técnica especializada, desde a área de produção agrícola até a gestão da logística de aquisição, de certificação sanitária e abastecimento das escolas; a capacitação dos diversos agentes envolvidos com a alimentação escolar, com atenção especial à elaboração de cardápios conforme os padrões estabelecidos e à promoção de uma educação alimentar e nutricional que valorize a cultura local quanto à alimentação saudável e à segurança alimentar e nutricional; e o fortalecimento dos mecanismos de participação e controle social, para citar apenas alguns exemplos especialmente relevantes.

Não obstante, as oportunidades geradas pela implementação do programa de alimentação escolar justificam os esforços para engajar um leque tão grande de atores e implementar medidas tão complexas (Hawkes et al., 2016HAWKES, C. et al. How to engage across sectors: lessons from agriculture and nutrition in the Brazilian School Feeding Program. Revista Saúde Pública, 2016. DOI: 10.1590/S1518-8787.2016050006506. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102016000100231>.
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). O caminho percorrido até agora mostra que é possível estimular e ampliar a participação dos agricultores familiares no fornecimento de gêneros alimentícios, contribuir para produção ecológica de alimentos e promoção da conservação ambiental, estimular o consumo de alimentos saudáveis e contribuir para qualidade de vida dos produtores e consumidores. Além disso, é fundamental fortalecer a produção local de alimentos e circuitos curtos de comercialização, com uma estratégia relevante para a promoção de alimentos também no espaço urbano.

Aquisição de alimentos orgânicos para consumo escolar: relato de experiências

Para enfrentar os desafios mencionados, algumas experiências são apresentadas nos quatro subitens que seguem. Uma caraterística dessas experiências é a busca de uma ampla articulação entre os diversos níveis de governo e entre diversas organizações da administração pública, especialmente das áreas da educação, agricultura e saúde.

A Experiência do Estado do Paraná

O estado do Paraná foi pioneiro em estruturar a compra da Agricultura Familiar, conforme previsto na lei do PNAE. Apesar de o estado não ter a Lei 16.751/2010 (Paraná, 2010), ainda regulamentada, realiza a maior aquisição de produtos orgânicos e de base agroecológica da Agricultura Familiar do país. Com um grande número de gêneros alimentícios adquiridos por diferentes procedimentos e entregas centralizadas e descentralizadas, as estratégias adotadas beneficiam em torno de 20 mil famílias de agricultores familiares e atende quase a totalidade das escolas estaduais. Em especial, o Paraná tem superado alguns desafios jurídicos para a aquisição da agricultura familiar como, por exemplo, a tomada de preços, adotando o modelo preconizado pela Resolução n.4 do FNDE (Brasil, 2015) que calcula a média dos preços encontrados no mercado. A seguir, são apresentadas algumas estratégias adotadas:

• Acesso à informação:

Sistema eletrônico da Alimentação Escolar: sistema de uso gratuito e desenvolvido com tecnologia nacional que disponibiliza informações de forma organizada, segura e integrada de todas as etapas do processo que envolve a alimentação escolar, otimizando recursos e tempo, e gera subsídios para o gerenciamento e a tomada de decisão.

Chamada Pública Eletrônica (CP): por meio de um processo online, o cadastro e a classificação dos fornecedores da agricultura familiar possibilitam uma aquisição de alta complexidade em função do número de escolas, fornecedores envolvidos e critérios de classificação. As CPs são lançadas com pelo menos quatro meses de antecedência para propiciar que o agricultor planeje a sua produção com tempo suficiente para o fornecimento.

• Flexibilidade, sazonalidade e regionalização:

Cardápio flexível: a flexibilização dos cardápios leva em conta a produção sazonal de hortaliças e frutas e a biodiversidade e permite a realização da compra por grupo de alimentos facilitando a substituição de produtos, bem como a adoção de um calendário diferenciado para a entrega dos produtos.

Adequação da alimentação às características regionais: programas diferenciados de alimentação escolar que respeitem as características regionais e de infraestrutura dos equipamentos educacionais inclusive para escolas em comunidades indígenas.

• Construção de uma relação de confiança:

Para o bom andamento do programa é fundamental o estabelecimento de uma relação mútua de confiança e comprometimento entre todos os envolvidos. Para tanto, anualmente, gestores e fornecedores avaliam o processo e realizam o planejamento para o próximo ano.

• Processo de razoabilidade na fiscalização dos estabelecimentos agropecuá- rios de empreendimento familiar rural:

Com objetivo de favorecer a inclusão produtiva e geração de renda, a Secretaria de Estado da Saúde - Sesa, publicou a resolução nº 004/2017, que aprova o Regulamento Técnico sobre Boas Práticas de Fabricação de Alimentos Processados pelo Empreendimento Familiar Rural (Paraná, 2017).

• Declaração de agrotóxicos e Programa Alimento Rastreado:

Estabelece que cooperativas e associações de agricultores convencionais devem declarar quais agrotóxicos utilizam em suas culturas. A Secretaria de Estado da Saúde do Paraná regula a rotulagem e realiza rastreamento dos produtos, favorecendo maior controle de segurança dos alimentos fornecidos para a alimentação escolar e maior transparência na cadeia produtiva.

Programa de Análise de Resíduos Agrotóxicos Escolar - Para Escolar: é uma forma de garantir que os alimentos orgânicos ofertados aos escolares sejam livres de resíduos. As coletas de alimentos da agricultura familiar são realizadas pelas vigilâncias municipais e encaminhadas para laboratórios contratados pela Secretaria Estadual de Saúde.

• Programas complementares:

Projetos de Educação Alimentar e Nutricional por ensino à distância (EAD): capacitações continuadas são realizadas com cozinheiras, diretores e professores, utilizando-se o EAD para atualizações constantes. Há estímulo à implantação de hortas escolares e educação alimentar e nutricional nas escolas.

Programa de Monitoramento do Estado Nutricional: o monitoramento do estado nutricional (peso e estatura) evidenciou que 25% dos alunos da rede estadual apresentam sobrepeso ou obesidade. O programa visa ainda promover a saúde e prevenir doenças crônicas não transmissíveis, bem como gerar subsídios para as políticas na área de Segurança Alimentar e Nutricional, especialmente na alimentação escolar.

A Experiência do Munícipio de Castro (PR)

No município de Castro, a associação de agricultores orgânicos reúne 425 famílias, a maioria delas vivendo em assentamentos. Esse município buscou encontrar caminhos para superar o grande obstáculo da falta de planejamento da produção por parte das entidades de agricultura familiar. E isso se fez pelo estabelecimento de uma comunicação direta entre os responsáveis técnicos pelo programa e o pessoal responsável pela produção e distribuição dos produtos da agricultura familiar. Dentre as diversas lições extraídas dessa experiência se destacam: (a) a importância da aproximação dos responsáveis pela elaboração da chamada pública junto às entidades que representam os agricultores familiares, estabelecendo um canal de discussão e de concertação sobre tipos de produtos, sazonalidade e quantidades a serem oferecidas; e (b) a importância da capacitação técnica para a produção orgânica, viabilização da certificação dos produtos e apoio à organização de cooperativas e associações.

Em relação aos equipamentos escolares várias ações foram realizadas para estimular e garantir a compra de alimentos orgânicos provenientes da agricultura familiar para o mercado institucional da alimentação escolar. Dentre elas, pode-se citar a realização de diversas iniciativas junto às escolas, como visitas monitoradas às chácaras dos produtores; a criação de programas de treinamento das merendeiras para a utilização dos produtos in natura; e a realização de testes de aceitabilidade para novos produtos.

A Experiência do Município de São Paulo

O primeiro município no país a regulamentar uma lei que prevê a compra progressiva de produtos orgânicos e de base agroecológica na alimentação escolar foi São Paulo. Para se alcançar esse resultado foram necessários seis anos de colaboração e discussão entre a sociedade civil e o Poder Legislativo, de forma suprapartidária, e de várias secretarias do Poder Executivo como a da Educação por meio da Coordenadoria de Alimentação Escolar (Codae), do Verde e Meio Ambiente, Saúde, e Trabalho e Empreendedorismo, além de uma consulta pública para que ocorresse a regulamentação da lei. A formação de uma Comissão Gestora Intersecretarial de acompanhamento do Plano de Introdução Progressiva de Alimentos Orgânicos que conta com dois terços da sociedade civil organizada, e que se reúne mensalmente, foi de extrema importância para a implementação da lei. Além desse importante mecanismo de controle social que garante à lei características de uma política de Estado e não de um governo, destacam-se os seguintes avanços:

• Incentivo à transição agroecológica:

O pagamento até 30% a mais na compra de alimentos orgânicos, bem com daqueles produzidos no município em propriedades que estão em transição agroecológica;

• Implantação de hortas escolares agroecológicas:

A presença de hortas escolares que devem incluir além das plantas usualmente consumidas, também as Plantas Alimentícias Não Convencionais (Panc), podendo complementar e enriquecer nutricionalmente o cardápio escolar, além de ter caráter pedagógico. Um exemplo dessa experiência é o Projeto Viva Ecologia implantado em uma escola Municipal de São Paulo, no Butantã (Emef Desembargador Amorim Lima), com apoio do Instituto Kairós e da Faculdade de Medicina da USP, além de vários parceiros. Os materiais desse projeto estão disponíveis no blog Viva Agroecologia.

A experiência de Cuba

A importância da agricultura urbana pode ser ilustrada com o caso de Cuba, que desde 1989 passou a viver consequências sociais dramáticas decorrentes do embargo econômico, acompanhado pela redução da perspectiva de participar do mercado internacional. Entre as restrições às quais teve que se adaptar, houve limitado acesso ao combustível, que levou a uma crise de abastecimento. Diante da necessidade de desenvolver uma produção de autoconsumo que fosse mais perto das pessoas, organizou-se um sistema de unidades básicas de Produção Cooperativa Agropecuária (UBPC) que recebeu apoio da Universidade da Califórnia - Berkeley e da FAO, com efeitos muito positivos (Paz, 2011PAZ, J. V. The Cuban Agrarian Revolution: achievements and challenges. Estudos Avançados, v.25, n.72, p.73-87, agosto 2011. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142011000200007.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142011...
; González; Alfonso, 2018GONZÁLEZ, A. N.; ALFONSO, G. F. Recent transformations in Cuban agricultural policy and impacts on markets and production. Elementa: Science of the Anthropocene, v.6, p.78, 2018. DOI: https://doi.org/10.1525/elementa.323.
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). Houve estímulo aos fitoterápicos e à produção orgânica de alimentos, diversificação de produtos e de formas de comercialização. Em Cuba, o fortalecimento de circuitos curtos e da autonomia dos atores, com menor dependência do estado, foi decisivo para os bons resultados que o país experimenta.

Neste exemplo há um aprendizado: pensar estrategicamente o que cabe e o que não cabe em cada lugar, especialmente frente a crises sanitárias como a que o mundo experimentou com a chegada da Covid-19.

Agradecimentos

Aos palestrantes do XI Seminário Serviço, Pesquisa e Política Pública, promovido pelo Grupo Nutrição e Pobreza: Patrícia Jaime, Terezinha Matos, Rita de Cássia Goltz; Ana Flávia Borges Badue; Cyra Malta Olegário da Costa e Luiz Humberto da Silva.

Referências

Notas

  • 1
    O protagonismo da agricultora Terezinha Matos, que iniciou o cultivo de alimentos orgânicos em uma área de 300 m2, deu origem a esta experiência, que hoje comercializa a produção de uma área de 6 mil m2.
  • 2
    Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/Ministério da Educação.
  • 3
    Fonte: FNDE/ME. Informações apresentadas por Luiz Humberto da Silva no XI Seminário Serviço, Pesquisa e Política Pública, sobre o tema “Agricultura Urbana e Segurança Alimentar e Nutricional: o alimento orgânico na alimentação escolar” realizado no IEA/USP em novembro de 2019.
  • 4
    Fonte: Extrações (data 03/2019) baseadas em cruzamento de CPF/CNPJ com banco de DAP. Elaborado por Luiz Humberto da Silva, Técnico da Coordenação de Segurança Alimentar e Nutricional (PNAE/FNDE).
  • 5
    Organizado pelo Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza em parceria com o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo. 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2021
  • Aceito
    02 Ago 2021
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