Acessibilidade / Reportar erro

Nas brechas do cotidiano: construindo reflexões sobre práticas e saberes profissionais a partir da comida do território

RESUMO

A produção de dados em uma oficina de educação permanente em saúde sobre as práticas e saberes profissionais envolvendo a alimentação de crianças e adolescentes em territórios periféricos apontou a potência do encontro para o reconhecimento do próprio saber-fazer e do trabalho/conhecimento do outro no cotidiano do cuidado. Reconheceu o alimento como mediador de redes territoriais que envolvem a cadeia curta de produção-comercialização de alimentos que valorizam o saber popular para além do nutricionista como único detentor do saber sobre alimentação. A oficina convidou ao pensamento sobre as relações da equipe e da rede territorial, que não acontecem sem disputas e nem sempre resultam em respostas rápidas e fáceis.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação permanente em saúde; Trabalho em saúde; Alimentação no contexto urbano; Redes de cuidado

ABSTRACT

Data production in a Continuing Health Education workshop focused on professional practices and knowledge about children and adolescents’ eating in peripheral territories. It acknowledges food as a mediator within territorial networks and short food supply chains. The encounter as an important instance to recognize each other’s work/knowledge, valuing popular knowledge, and subverting the nutritionist’s role as the single authority on food and eating. The workshop as an intentional strategy, as well as other unintentional encounters of daily work, invites health professionals to reflect about their practice, initiating changes in the relationship within the team and the territorial network. This motion does not occur without disputes, and does not have easy answers.

KEYWORDS:
Continuing health education; Healthcare work; Food in urban areas; Care network

Ponto de partida

Neste artigo discutimos uma experiência de Educação Permanente em Saúde (EPS) com foco na comida da periferia da cidade de São Paulo. Colocamos em pauta as ações do Projeto Cultivando Horizontes (PCH) do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), intervenção iniciada nos primeiros meses da pandemia de Covid-19 que teve como ponto de partida a cadeia curta de produção-comercialização de alimentos para a sustentação das ações de cuidado em saúde e alimentar das famílias com crianças e/ou adolescentes em situação de má-nutrição atendidas pelo Cren.

A perspectiva de EPS que tomamos é a de que o mundo do trabalho é uma “escola permanente” em constante movimento que, a partir da experiência de si e com os outros, se repete e se diferencia, produzindo novas formas de conhecer e cuidar (Merhy, 2015MERHY, E. E. Educação permanente em movimento: uma política de reconhecimento e cooperação, ativando os encontros do cotidiano no mundo do trabalho em saúde, questões para os gestores, trabalhadores e quem mais quiser se ver nisso. Saúde em Redes, Porto Alegre, v.1, n.1, p.7-14, abr. 2015.). Nesse sentido, a construção das reflexões coletivas sobre o saber-fazer no contexto estudado considerou as brechas do cotidiano do trabalho e da vida, entendidas como abertura, acidental ou propositada, em obstáculo natural ou artificial. Com isso, procuramos dar visibilidade às lacunas e espaços não preenchidos, às circunstâncias oportunas e possibilidades, à abertura de caminhos e ao estar à espreita.1 1 Disponível em: <https://www.dicio.com.br/brecha/>.

A primeira brecha que identificamos foi a emergência da pandemia que pautou: como produzir saúde e cuidado alimentar diante das incertezas e adversidades impostas e/ou agravadas pela pandemia?

A aposta foi a de investir na construção de conexões, tramas e redes envolvendo trabalhadoras de saúde, agricultoras familiares e famílias. As primeiras com o desafio de reconstruir caminhos e práticas em um contexto desconhecido e com receio do adoecimento de si e dos familiares (Teixeira et al., 2020TEIXEIRA, C. F. et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.25, n.9, p.3465-3474, set. 2020.); as segundas com dificuldades de escoamento da produção após o fechamento das escolas e dos serviços essenciais, incluindo os de alimentação (Cavalli et al., 2020CAVALLI, S. B.; SOARES, P.; MARTINELLI, S. S.; SCHNEIDER, S. Family farming in times of Covid-19. Revista de Nutrição, Campinas, v.33, e200180, out. 2020.; Sambuichi et al., 2020SAMBUICHI, E. H. R. et al. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) como estratégia de enfrentamento aos desafios da Covid-19. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.54, n.4, p.1079-96, jul.-ago. 2020.); as terceiras em situações precarizadas de trabalho, na maioria das vezes informal, em decorrência do isolamento social (Santos et al., 2020SANTOS, K. O. B. et al. Trabalho, saúde e vulnerabilidade na pandemia de Covid-19. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, n.12, e00178320, dez. 2020.; Praun, 2020PRAUN, L. A espiral da destruição: legado neoliberal, pandemia e precarização do trabalho. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.3, e00297129, ago. 2020.).

Assumimos que a (re)construção de práticas de cuidado diante da singularidade de cada serviço, território e população atendida não acontece sem disputas e relações de poder e configuraram “um caminho que se faz caminhando” (Feliciano et al., 2020FELICIANO, A. B. et al. A pandemia de covid-19 e a educação permanente em saúde. Cadernos da Pedagogia, São Carlos, v.14, n.29, p.120-35, out. 2020.). No contexto periférico dessa experiência, além das redes assistenciais formais, visíveis e decisivas, ganharam visibilidade as redes informais para a sustentação do cotidiano e da vida, a partir do encontro e conexões comunitárias muitas vezes já existentes (Carneiro; Pessoa, 2020CARNEIRO, F. F.; PESSOA, V. M. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.3, e00298130, ago. 2020.; Souza et al., 2020SOUZA, C. T. V. et al. Cuidar em tempos da Covid-19: lições aprendidas entre a ciência e a sociedade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, n.6, e00115020, jun. 2020.).

Distante do intuito de esgotar as diferentes perspectivas e complexidade do estudo das redes, ressaltamos aqui a ideia de redes vivas que surgem de uma miríade de conexões existenciais de indivíduos e coletivos, em diferentes contextos e com influência direta na produção do cuidado (Merhy et al., 2014MERHY, E. E. et al. Redes vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulgação em Saúde para Debate, Londrina, v.52, p.153-64, out. 2014.).

O cenário adverso imposto pela pandemia, ao mesmo tempo que reforçou condutas já presentes, provocou reconfigurações nas práticas profissionais do CREN. Segundo Merhy (2015MERHY, E. E. Educação permanente em movimento: uma política de reconhecimento e cooperação, ativando os encontros do cotidiano no mundo do trabalho em saúde, questões para os gestores, trabalhadores e quem mais quiser se ver nisso. Saúde em Redes, Porto Alegre, v.1, n.1, p.7-14, abr. 2015., p.8):

[...] quando somos invadidos por novos regimes de visibilidades e de dizibilidades, por campo de afetações não previsíveis, em muitos casos, mas previsíveis em outros, novas possibilidades de mundos são criados, e em muitos deles uma fragilidade se potencializa; da desprodução da vida, vira-se o contrário.

Entra em cena o alimento agroecológico como conector e como parte da construção da rede de cuidado. Nesse sentido, as famílias atendidas pelo Cren passaram a receber uma sacola com alimentos agroecológicos (uma verdura para refogar, uma para consumo cru, um tempero e uma Planta Alimentícia Não Convencional (Panc)) adquiridos das agricultoras familiares que podiam acompanhar uma cesta com alimentos não perecíveis, produtos de higiene pessoal, livros e jogos. Sem negar - e colocando constantemente em análise - que a oferta de alimentos pode assumir um caráter assistencialista, o alimento agroecológico funcionou, nesta experiência, como parte da rede na constituição dos processos e redes de cuidado (Mol, 2010MOL, A. Actor-network theory: sensitive terms and enduring tensions. Documento eletrônico. 2010. Disponível em: < http://dare.uva.nl/document/2/90295>. Acesso em: 20 set. 2022.
http://dare.uva.nl/document/2/90295...
).

Pensar no PCH a partir do alimento como parte da rede de cuidado deu visibilidade ao que acontece nos espaços vulnerabilizados, diante da ausência de políticas públicas que produzem múltiplas violações de direitos (como o da alimentação digna) e da potência dos arranjos de sustentação da vida permeadas pela comida. Historicamente, as contradições nos territórios periféricos carregam o estigma da carência e das ausências e, ao mesmo tempo, a potência e possibilidades de criação, especialmente aquelas capitaneadas por mulheres (Nunes, 2018NUNES, N. R. Mulher de favela: o poder feminino em territórios populares. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. 284p.). A pandemia agravou o cenário de fome nunca superado e cabe pontuar a urgência da ausência de comida, como nos convoca Solano Trindade: “se tem gente com fome, dá de comer”.2 2 Solano Trindade. “Tem gente com fome”. Disponível em: <https://www.escrevendoofuturo.org.br/caderno_virtual/texto/tem-gente-com-fome/index.html>.

Nesse contexto, abre-se mais uma brecha para a escrita dessa experiência: a escrita no feminino - agricultoras, trabalhadoras, mães, avós assumindo que quem, predominantemente, dá de comer, são as mulheres. A agroecologia - e agricultura familiar urbana - é um movimento historicamente feminino (Siliprandi, 2015SILIPRANDI, E. Mulheres e agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.). O trabalho reprodutivo de cuidado é, predominantemente, de responsabilidade da mulher, incluindo as tarefas não remuneradas da casa, como a alimentação (Szabo, 2014SZABO, M. Men nurturing through food: challenging gender dichotomies around domestic cooking. Journal of Gender Studies, London, v.23, n.1, p.18-31, jan. 2014.; Batthyány, 2021BATTHYÁNY, K. Políticas del cuidado. Buenos Aires: Clacso, 2021.) e o trabalho remunerado das profissionais da saúde, educação e assistência social (Batthyány, 2021). A maior parte da equipe Cren é de mulheres, assim como as usuárias do serviço, responsáveis por levar as crianças/adolescentes às ações da Instituição e as representantes das organizações não governamentais que participam do PCH.

Essa escolha reconhece os profissionais, agricultores e pais/filhos/irmãos que, ainda que em minoria, fazem parte das redes de cuidado e do PCH e pretende forjar “micropolíticas contra hegemônicas nos espaços por nós ocupados” (Mendes et al., 2019MENDES, R. et al. Movimentos de partida, deslocamentos e ressonâncias. In: MENDES, R.; AZEVEDO, A. B.; FRUTUOSO, M. F. P. Pesquisar com os pés - deslocamentos no cuidado e na saúde. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2019. p.13-28., p.26), marcando o lugar predominante da mulher no cuidado, incluindo o alimentar, dentro e fora de suas casas e na construção de redes pautadas na comida como direito.

Neste texto, indagamos como os processos de EPS podem apoiar as trabalhadoras no reconhecimento do próprio (e da outra) trabalho-saber, na identificação dos limites e potências das ações e nas redes estabelecidas nos encontros entre a equipe, agricultoras familiares e famílias atendidas.

Os caminhos traçados: cenários e atrizes

O Cren é uma organização da sociedade civil parceira da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de São Paulo, como referência para o acompanhamento do público infanto-juvenil com diagnóstico de desvio nutricional, em especial em situação de pobreza.

A primeira unidade do Cren foi fundada em 1993 e desde sua origem propõe uma abordagem educativa no acompanhamento da população atendida, que busca dar centralidade à pessoa e aos seus recursos e patrimônios. A proposta de companhia para as famílias assistidas pelo Cren é norteada pelo conceito da educação do humano, em dar-se a razão das coisas, proposta esta que se coloca como risco e aposta na liberdade de resposta do outro (Giussani, 2004GIUSSANI, L. Educar é um risco: como criação de personalidade e de história. Bauru: Edusc, 2004. 222p.).

A equipe Cren é composta de 76 profissionais, que trabalham na sede administrativa e em dois ambulatórios localizados na Vila Jacuí, zona leste (AVJ) e na Vila Mariana, zona sul da capital. Profissionais da educação trabalham no Centro de Educação Infantil (CEI) Cren Vila Jacuí - Padre Ticão que divide o espaço físico do AVJ.

Compõem a equipe profissionais de Educação Física, Nutrição, Pediatria e Psicologia (equipe técnica); profissionais da Educação; motoristas, auxiliares de serviços gerais, recepcionistas, técnicas e auxiliares administrativas, profissionais de comunicação e captação de recursos, higiene (equipe de apoio e administrativa); voluntárias, residentes e estagiárias da área da saúde.

Foi realizada oficina com a equipe Cren para sistematização das ações do PCH e como momento para que toda a equipe pudesse se reconhecer e se apropriar do Projeto. Esse encontro se configurou como uma brecha, intencional, com o intuito de provocar reflexões sobre os lugares e fazeres das trabalhadoras na execução de um Projeto que parte do alimento, objeto da Nutrição: uma profissão feminina. O encontro foi conduzido pelo Grupo Gestor da Pesquisa (GGP), formado por gestoras e profissionais do Cren e uma docente da universidade pública parceira em ações de integração ensino-serviço-comunidade.

O espaço-tempo organizado da oficina, em formato virtual, considerou a interrupção das atividades matutinas da Instituição garantindo a participação da maior parte da equipe. Após momento de acolhimento, 48 profissionais de diferentes áreas se misturaram em oito grupos que, com a mediação de uma facilitadora, foram convidadas a observar fotos das ações do Projeto e responder: O que você sabe sobre o PCH? Cada grupo elegeu uma relatora para registro da discussão, compartilhada em momento final com todas as participantes.

Cabe pontuar que as facilitadoras eram membros do GGP e/ou gestoras da Instituição que participaram de dois momentos prévios de preparação para as oficinas e também produziram registros escritos dos encontros.

A técnica de análise do conteúdo foi usada para a análise do conjunto dos registros da oficina, seguindo as etapas de: pré-análise, organização e leitura flutuante do material; exploração do material, construção das operações de codificação, recorte das unidades de registro e identificação de palavras-chave; tratamento dos resultados, inferências e interpretação, captação dos conteúdos manifestos e latentes contidos em todo o material, apresentados em categorias que emergem da análise a partir de aspectos semelhantes e divergentes (Sousa; Santos, 2020SOUSA, J. R.; SANTOS, S. C. M. Análise de conteúdo em pesquisa qualitativa: modo de pensar e de fazer. Pesquisa e Debate em Educação, Juiz de Fora, v.10, n.2, p.1396-1416, dez. 2020.)

Usando o referencial teórico da EPS em Movimento (Merhy, 2015MERHY, E. E. Educação permanente em movimento: uma política de reconhecimento e cooperação, ativando os encontros do cotidiano no mundo do trabalho em saúde, questões para os gestores, trabalhadores e quem mais quiser se ver nisso. Saúde em Redes, Porto Alegre, v.1, n.1, p.7-14, abr. 2015.), procurou-se dar visibilidade às questões já conhecidas e instituídas do trabalho da equipe, bem como aos movimentos e deslocamentos que aparecem nas brechas do cotidiano do cuidado em saúde. As análises dos registros da oficina resultaram em duas categorias: (re)conhecendo os lugares; o que (não) se sabe.

Esse projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp (parecer número 5.192.086 de 4.1.2022).

(Re)conhecendo os lugares

A oficina organiza-se em torno de uma pergunta que pretende iniciar conversas sobre o PCH - é disparadora no roteiro, mas o que ela dispara? Dizer que a conversa parte do que se sabe sobre o PCH é verdade, mas disparam-se outros movimentos, talvez não tão óbvios, e dentre eles o questionamento da própria possibilidade de participação. Reunir as profissionais de todas as áreas e dirigir-lhes as mesmas questões foi recebido com estranhamento. Conectam-se todas na hora marcada pela gestão e abre-se um espaço para o diálogo, que aponta que se reconhecer não é óbvio e cava a brecha para que o lugar de cada uma seja percebido artesanalmente.

Com isso, além de enumerar o que se sabia sobre recursos e resultados do PCH, surgiu o movimento de olhar as práticas - as próprias e as das colegas - para entender se e como a atuação de cada uma se encaixa no panorama mais amplo do Cren. Conforme caminha o encontro, todas são inseridas. Costura-se coletividade.

Uma profissional do apoio diz que lá passa tudo e é tão automático que não percebem que é parte do processo de fortalecimento do Cren e da comunidade. Conta que agora faz a tratativa direta com a fornecedora e insere outra profissional na conversa, comentando que ela é nova e que tem contato com as notas fiscais, mas que talvez não saiba do Projeto como um todo.

As profissionais das áreas de apoio, ao se entenderem como parte do PCH, passam a compartilhar da legitimidade e do valor que o Projeto assume no Cren. Seu trabalho é validado enquanto peça fundamental do Projeto, que deixa de ser exclusivo àquelas com formação superior em saúde. Todas, dividindo o microfone na oficina, constroem um mosaico mais completo sobre o PCH e se apropriam desse conhecimento. Ao nomear as contribuições de cada uma, a oficina provoca um se ver e ser vista que vai construindo uma nova interpretação dos lugares e hierarquias nos serviços de saúde (Figueiredo et al., 2016FIGUEIREDO, E. B. L.; GOUVÊA, M. V.; SILVA, A. L. A. Educação permanente em saúde e Manoel de Barros: uma aproximação desformadora. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v.40, n.1, p.324-31, jul.-set. 2016.), em uma problematização de “processos naturalizados de habitar o cotidiano dos serviços de saúde” (Meyer et al., 2013MEYER, D. E.; FELIX, J.; VASCONCELOS, M. F. F. Por uma educação que se movimente como maré e inunde os cotidianos dos serviços de saúde. Interface, Botucatu, v.17, n.47, p.859-71, dez. 2013., p.865).

As ações individuais ganham novos sentidos no coletivo, em um movimento que problematiza leituras estanques da equipe. Sai-se do automático. Abre-se possibilidade para uma análise viva do trabalho como produto de um grupo, com múltiplos atravessamentos e subjetividades (Figueiredo et al., 2016FIGUEIREDO, E. B. L.; GOUVÊA, M. V.; SILVA, A. L. A. Educação permanente em saúde e Manoel de Barros: uma aproximação desformadora. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v.40, n.1, p.324-31, jul.-set. 2016.; Meyer et al., 2013MEYER, D. E.; FELIX, J.; VASCONCELOS, M. F. F. Por uma educação que se movimente como maré e inunde os cotidianos dos serviços de saúde. Interface, Botucatu, v.17, n.47, p.859-71, dez. 2013.).

É a partir daí que as respostas à pergunta disparadora podem ser formuladas. As etapas do PCH ganham nova complexidade conforme se amplia a compreensão das participantes sobre a intervenção. Aparecem não só as ações pontuais, mas também as redes que são estabelecidas dentro e fora da equipe, com parceiras e com o território.

Precisa ter recursos e enumera alguns processos: justificar o gasto perante à SMS, angariar doações, documentos e notas fiscais, identificar as famílias (ligações, teleatendimentos, atendimentos presenciais), além do tempo de cultivo, da disponibilidade da motorista e do planejamento como um todo.

Ao enumerarem processos, as participantes nomeiam pessoas e o projeto institucional vai também ganhando contornos concretos, nomes e vozes. É o “reconhecimento [...] do outro como sujeito produtor de conhecimento a partir de suas experiências” (Carvalho et al., 2019CARVALHO, M. S.; MEHRY, E. E.; SOUSA, M. F. Repensando as políticas de saúde no Brasil: educação permanente em saúde centrada no encontro e no saber da experiência. Interface, Botucatu, v.23, e190211, set. 2019., p.7).

Aparecem as estagiárias, as motoristas multitarefas, as profissionais do administrativo, da limpeza, as fornecedoras. A rede foi sendo construída nas falas. Quem participa sabe em que passo do projeto está envolvido, se reconhece e reconhece outras pessoas envolvidas nesta rede. Quem é nova no time identificou algo que viu, soube ou experimentou.

A pergunta disparadora parte do GGP, mas as conversas que dela nascem vão além, cavam novos espaços, novas brechas. Provocam outras percepções para gestoras e trabalhadoras, jogando luz à própria atuação e a outros entendimentos sobre o PCH. Uma trabalhadora da área administrativa, que tem suas ações entendidas muitas vezes como burocracia, compartilha mais dimensões do trabalho na oficina, e deixa claro como as profissionais de saúde, em geral detentoras do saber, não sabem de tudo:

Os técnicos não veem, mas tem um processo administrativo e descrevem tantas personagens envolvidas para possibilitar a compra dos alimentos. Se algo dá errado, tem que voltar tudo. Outra profissional acrescenta que não sabe se está claro o que pode dar errado e conta sobre os meios de conferência e registro do processo.

As trabalhadoras compartilham os processos administrativos que viabilizam a intervenção em saúde e dão visibilidade às pessoas responsáveis para que cada exigência seja cumprida - são mulheres que trabalham juntas, em equipe.

Despontam, portanto, as relações das quais emanam o PCH. Dentre estas, cabe nos demorar em uma em específico, dada a ênfase que ganha ao longo dos relatos: as Mulheres do GAU. Em suas próprias palavras, são “um coletivo de mulheres empoderadas que trabalham a terra e desenvolvem agricultura/culinária orgânica visando geração de renda”.3 3 Disponível em: <https://www.facebook.com/mulheresdogau/>. As agricultoras, próximas ao AVJ, foram as primeiras parceiras do PCH no fornecimento dos alimentos agroecológicos.

A equipe utilizou a articulação de rede dentro do território para iniciar uma parceria com as mulheres do GAU, coletivo feminino de agricultoras urbanas e cozinheiras empreendedoras do Jardim Pantanal. Uma das responsáveis pelo coletivo já tinha participado da votação para implementação do Cren na zona leste e foi uma grande parceira para o início do projeto.

A relação, porém, transborda os limites de uma simples transação e rede comercial:

A profissional reflete sobre como uma ação inicial com as Mulheres do GAU tem se expandido na participação das produtoras no bazar do Cren vendendo seus produtos e disseminando a moeda local.

Os relatos afastam-se de caracterizações genéricas e nomeiam as parceiras em sua singularidade - na história e no caminho. Não se trata apenas de um terreno de agricultura urbana, mas de um espaço de integração. Para além de agricultoras, elas são um coletivo feminino que cultiva e cozinha, evidenciando o caráter gendrado das ações de cuidado que envolvem a comida, do plantio ao preparo. Ainda que esse ponto não tenha sido discutido/aprofundado na oficina, os relatos tocam o lugar da mulher no tecido social e sua participação diferenciada nas ações relativas ao cuidado e à alimentação. Da leitura atenta dos registros emerge essa questão que não raro é invisibilizada nos serviços de saúde.

Tantas imbricações, presentes nos registros da oficina, denotam um olhar que transita em diferentes lentes, abrangendo temas que não se limitam às tarefas específicas de um ambulatório de especialidades em Nutrição, evidenciadas na história do Cren, inclusive pela marca da educação no nome da Instituição. A equipe, na oficina, constrói e sistematiza as ações em rede do PCH e se debruça sobre os saberes que nela são construídos, trocados e articulados. Analisa e produz conhecimento in loco.

O que (não) se sabe

Algumas pediram que as nutricionistas do grupo falassem mais por acharem que teriam mais propriedade sobre o assunto.

Nos relatos, toma-se como óbvio: as nutricionistas sabem sobre o PCH. Assume-se uma hierarquia dos saberes relacionados à alimentação, em que a nutricionista sabe mais. Aqui não se trata somente de o restante das trabalhadoras se compreender como parte (ou não) do Projeto, mas inclui o falar e saber sobre os temas que circundam o PCH: Nutrição, claro, mas só isso?

A legitimidade do conhecimento formal acadêmico ganha força junto a uma tendência a encarar o Projeto como uma intervenção nutricional. Assim, a pergunta se repete na oficina: qual o lugar nessa conversa das não-nutricionistas? Cabe pontuar que a condução do PCH era, no momento da oficina, de uma dupla masculina, sendo um não nutricionista.

Algumas participantes arriscam seus olhares curiosos e as nutricionistas afirmam um caminho de apropriação de conhecimento:

Eu já vi o que vai na sacola porque sou curiosa: tem alface, almeirão, uma alface pequenininha que eu não sei o nome, legumes diferentes.

A nutricionista sentiu necessidade de apropriar-se mais das Panc, pois na prática apresentava mais facilidade em orientar modos de preparo/receitas com outras folhas.

As falas das nutricionistas apontam a importância do saber adquirido na prática, acumulado na experiência profissional sobre a qual os livros acadêmicos pouco têm a dizer. Para além da ampliação recente da pauta das Panc na agenda do campo da Alimentação, foi preciso o corpo colocado em situação, no aqui e agora do trabalho, para que a nutricionista pudesse se apropriar do tema.

Essa fala nos remete à proposta da EPS em Movimento, que centra a experiência enquanto eixo central da produção de conhecimento (Carvalho et al., 2019CARVALHO, M. S.; MEHRY, E. E.; SOUSA, M. F. Repensando as políticas de saúde no Brasil: educação permanente em saúde centrada no encontro e no saber da experiência. Interface, Botucatu, v.23, e190211, set. 2019.). A EPS traz a aposta de que a formação também se dá no encontro com outros sujeitos, com o território e com as experiências que lá se dão, experiência enquanto palavreada por Larossa (2002LAROSSA, J. L. B. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n.19, p.20-8, abr. 2002., p.26): “o que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma”.

As Panc despertam perguntas a toda a equipe que nas entregas semanais das sacolas se deparam com essas folhosas - são desafios não previstos inicialmente. Ao longo do PCH surgem soluções autorais, construídas coletivamente pela equipe, em uma aposta na capacidade criativa das trabalhadoras:

Nem todo mundo sabe o que é Panc, às vezes nem conhecemos, temos em casa e não sabemos que é comestível. Construiu-se um catálogo com modo de preparo, de cultivo… usado para orientar as famílias e as profissionais. Só descobrem o que tem na sacola quando abrem. Todas aprendem.

Arriscam-se outras formas de conhecer, o próprio interesse e curiosidade são motores. As interações na equipe são vivas e no cotidiano de trabalho, as ações pulsam: as sacolas de alimentos agroecológicos acontecem no dia a dia de visitas domiciliares e atendimentos, sendo descobertas pelas trabalhadoras de tantas maneiras diferentes. É a potência de tomar o trabalho como “lugar de produção de cuidado, ao mesmo tempo em que é cenário de produção pedagógica, uma vez que coloca a realidade em análise e permite rever os atos produzidos pelos trabalhadores no cotidiano” (Figueiredo et al., 2016FIGUEIREDO, E. B. L.; GOUVÊA, M. V.; SILVA, A. L. A. Educação permanente em saúde e Manoel de Barros: uma aproximação desformadora. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v.40, n.1, p.324-31, jul.-set. 2016., p.325). É, portanto, a cada contato com as verduras, famílias, agricultoras e colegas de equipe, que se constrói a noção que se tem do PCH, que se adquire na experiência e ultrapassa o que estava dado na concepção do Projeto.

Eu divido a sala com a nutricionista e acompanho o Projeto. É comida de qualidade, alimentos mais bonitos que os produzidos em grande escala. Nunca tinha visto folha de beterraba. Fizeram refogada e apresentamos às crianças do CEI.

Essa profissional, da equipe de Educação, chama a atenção para o aprendizado que acontece não apenas nos espaços instituídos de discussão/formação, mas nas brechas do trabalho cotidiano. Falamos de uma dimensão da EPS que não pede “licença para nenhum organograma oficial de um serviço, nem para nenhuma hierarquia de uma organização” (Merhy, 2015MERHY, E. E. Educação permanente em movimento: uma política de reconhecimento e cooperação, ativando os encontros do cotidiano no mundo do trabalho em saúde, questões para os gestores, trabalhadores e quem mais quiser se ver nisso. Saúde em Redes, Porto Alegre, v.1, n.1, p.7-14, abr. 2015., p.8). O trabalho em ato, vivo, vai acontecendo nos interstícios em espaços não intencionais e as próprias trabalhadoras, de todas e quaisquer áreas incluindo a gestão, produzem um saber-fazer em constante (re)construção.

Não é um simples testemunhar o caminho da outra, mas é abrir-se e deixar-se encantar. Maravilhar-se com a aparência das verduras e se surpreender com a folha da beterraba. Pensar sobre a refeição preparada com os alimentos e o trabalho com as crianças, incorporar novos saberes e relacioná-los com a prática na sala de aula. A complexidade desse tipo de intervenção no contexto da educação alimentar e nutricional vale um aprofundamento, que foge ao escopo desse artigo, porém cabe notar a possibilidade de circulação de conhecimentos e novas práticas nas brechas em que o alimento agroecológico pode aparecer. E nos referimos tanto às brechas do cotidiano, como na brecha intencional concretizada na oficina que produz visibilidades e dizibilidades.

Nesse encontro programado, que acontece periodicamente no Cren, aos poucos vai se quebrando a ideia de um saber pronto e terminado, valorizando movimentos de aprendizagem em processo, que acontecem também quando a equipe tem a oportunidade de pausar o trabalho e discutir o PCH e que talvez só aconteçam por conta da coletividade. Os encontros que costuram o trabalho em saúde e as trocas de saberes efetuadas nesse contexto formam um “núcleo pedagógico central” (Mehry, 2015, p.10), ou seja, um centro com potência formativa e transformadora que os momentos de pausa do trabalho para reflexão das práticas podem produzir. Na produção do conhecimento e do cuidado a partir do PCH, então, as famílias, as parceiras de equipe e de território são incluídas:

Eu sou nutricionista, mas eu não sabia de muita coisa. Sublinha a etapa de conhecer as produtoras e entender o que é o projeto, se aproximar para dar valor; as agricultoras tornam-se nossa rede.

O PCH não versa sobre os alimentos agroecológicos pura e simplesmente e, ao se ocupar da agricultura familiar urbana na periferia de São Paulo, assume que as agricultoras têm muito a ensinar.

As Mulheres do GAU pedem para conversar, dão dicas de como entregar os alimentos e do que falar, organizam as sacolas. Aprendizado para as nutris e para as família.

As Mulheres do GAU ensinam a partir de sua experiência viva acumulada, de mãos na terra e na panela. Elas vendem sacolas de produtos conforme o acordo, mas o diálogo nesse contexto vai além da rede comercial. Há uma preocupação com o percurso percorrido pelos alimentos: as mulheres acomodam com cuidado os produtos nas sacolas para que não amassem, sugerem formas de acondicionamento e transporte, perguntam sobre os tempos de entrega evitando a perda de qualidade e querem conhecer quem as recebe. Com isso, cavam as brechas que fazem pensar nos outros componentes da cadeia de produção-comercialização de alimentos, como a relação produtor-consumidor, o consumo alimentar das famílias e o lugar do trabalho efetuado pelas mulheres nesse contexto (Carvalho; Bógus, 2020CARVALHO, L. M.; BÓGUS, C. M. Gender and Social justice in urban agriculture: the network of agroecological and peripheral female urban farmers from São Paulo. Social Sciences, Switzerland, n.9, p.127-39, jul. 2020.). Há uma dimensão ético-política dessa troca de saberes que potencializa o trabalho em saúde e o cuidado alimentar, que ganha visibilidade e dizibilidade em outros espaços.

A oficina é, então, oportunidade para todas as profissionais se reconhecerem, ensinarem e aprenderem, na partilha dos seus saberes e não saberes. O reconhecimento de que não se sabe tudo é motor para construir novos modos de relação e ação, colocar os corpos sensíveis para construir novas formas de pensar, agir e sentir.

A médica diz que gostou muito de conhecer melhor na oficina sobre a agricultura familiar, sobre as Panc e como utilizá-las.

Não só a equipe do setor administrativo se sentiu mais apropriada do projeto na oficina, mas também a médica. Desvia-se de uma lógica médico-centrada que não raro atravessa as relações no serviço de saúde (Meyer et al., 2013MEYER, D. E.; FELIX, J.; VASCONCELOS, M. F. F. Por uma educação que se movimente como maré e inunde os cotidianos dos serviços de saúde. Interface, Botucatu, v.17, n.47, p.859-71, dez. 2013.), bem como o lugar absoluto do saber acadêmico da nutricionista, rompendo com a noção de que há conhecimentos exclusivos dessas profissionais. Assim, torna-se possível a costura de uma teia de saberes, onde cabem as dúvidas e a potência do não sei, iluminando a beleza das imperfeições:

As “derrotas” comuns no cotidiano humano podem figurar ferramentas pedagógicas do aprender e do ensinar com o outro quando geram autoanálise, troca e afeto em um coletivo de trabalho. A partir do saber-se inacabado e da visão crítica sobre si e sobre o outro como sujeito imperfeito e falível é que se funda a educação como processo permanente. (Figueiredo et al., 2016FIGUEIREDO, E. B. L.; GOUVÊA, M. V.; SILVA, A. L. A. Educação permanente em saúde e Manoel de Barros: uma aproximação desformadora. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v.40, n.1, p.324-31, jul.-set. 2016., p.327)

Nesse sentido, afirma-se a humanidade dos encontros e, ainda que não exclua as relações de poder, retira dos especialistas a hegemonia de produção de saberes (Figueiredo et al., 2016FIGUEIREDO, E. B. L.; GOUVÊA, M. V.; SILVA, A. L. A. Educação permanente em saúde e Manoel de Barros: uma aproximação desformadora. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v.40, n.1, p.324-31, jul.-set. 2016.; Lopes et al., 2007LOPES, S. R. S. et al. Potencialidades da educação permanente para a transformação das práticas de saúde. Comunicação em Ciências da Saúde, Brasília, v.18, n.2, p.147-55, abr. 2007.). Afirma os afetos4 4 Larossa (2002, p.27) aborda a dimensão subjetiva do saber da experiência, que afeta de modo diferente os sujeitos: “O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade, ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo [...]”. - na formação e também no cuidado em saúde.

Conta que as famílias esperam caixas com os produtos que estão acostumadas a receber e se surpreendem com as verduras e legumes, se emocionam. Fico pensando o que precisamos fazer para não perder a capacidade de se emocionar com a vida.

Há algo que se passa com a pessoa que recebe as verduras e legumes que diz respeito ao que lhe é humano e que não pode ser resumido a uma orientação específica sobre como usar um ou outro alimento. A surpresa, o inesperado, a emoção.

A equipe, durante a oficina, reconhece o aprendizado que se dá no contexto do PCH e que engloba diferentes dimensões da vida - a educação alimentar como ação vibrante, afetiva, que inclui o saber nutricional e tantas outras temáticas que contribuem para o cuidado em saúde humanizado e integral. Comida, cuidado, agricultura familiar, cidade, e a lista se estende. Sobre tudo isso, muita gente tem o que dizer, de muitas formas diferentes. A profissional do apoio abre seu microfone e faz ouvir sua voz - de mãe, avó e moradora da cidade.

Conta que o pai da filha é agricultor e desde sempre soube do valor de um alimento agroecológico e da importância de ter informação como mãe e avó que é.

A profissional não é nutricionista e fala da produção dos alimentos com profundidade. O alimento é vivo e essas mulheres também - no Cren, nas casas, nos campos de cultivo.

É mais que uma cesta com alimentos padrão. É algo não esperado. Muitas vezes as pessoas reconhecem que já comeram e que o consumo se perdeu porque não encontram para comprar. Tem o saber das famílias.

O catálogo das Panc, por exemplo, é dispensável para algumas das mães e avós que recebem os alimentos e compartilham com as profissionais as próprias receitas com as plantas. Ao falar sobre a comida, as famílias tensionam o lugar de pacientes5 5 Freire (2007, p.43) nos convida a pensar sobre as dimensões da paciência: “Se você rompe em favor da paciência, você cai refém das vozes e dos poderes dominantes, não impondo sua palavra e seu poder de reinvenção”. e colocam em evidência os próprios saberes, dando maior complexidade para o próprio PCH e colocando como parte do processo e não somente como foco das intervenções.

Quando as usuárias dizem que conhecem a verdura, mas que o consumo é raro porque os alimentos são de difícil acesso, as mulheres rebatem que o PCH não se limita à entrega dos itens. No contexto da problemática lógica de produção-comercialização dos alimentos, produtora de insegurança alimentar, práticas em saúde são (re)criadas, com uma composição de saberes em que as mulheres da rede do Projeto têm muito a dizer. Nesse sentido cabe perguntar: plantas não convencionais para quem?

No encontro com as famílias, abre-se a possibilidade para problematizar as diversas dimensões da comida e do comer e para questionar: é apenas de orientação nutricional que as famílias precisam?

A sacola aproximou o que antes ficava tão distante das salas dos consultórios. Esse recurso deu concretude a orientações antes genéricas e frias e os efeitos foram notórios: uma família passou a se organizar com vizinhos para ir ao Ceagesp recolher frutas, legumes e verduras gratuitamente.

As brechas provocam um olhar mais amplo sobre o cuidado - quando a sacola aproxima o que estava distante - e os efeitos do PCH, que extrapola aquilo que é mediado e/ou ocorre somente com a presença das profissionais da área técnica - quando as famílias vão à Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), parte da cadeia de abastecimento de produtos hortícolas. As brechas também marcam a subjetividade, escuta e vínculo.

Cuidado é relação: das profissionais do Cren com as produtoras/alimentos/famílias.

Neste contato e vínculo conhecemos a realidade das famílias e percebemos outras dificuldades, buscando caminhos de apoio.

As reflexões produzidas na oficina não são unânimes, tampouco são imediatamente incorporadas pela equipe - a novata pergunta: as famílias incorporam?

Trata-se da discussão de uma concepção de cuidado que não se limita a elencar e valorar se os itens são consumidos. Muito acontece no acompanhamento das famílias, na entrega dos alimentos e nas consultas de acompanhamento das crianças. Para além de uma intervenção que visa a melhoria do consumo alimentar e do estado nutricional, as ações do PCH assumem a usuária do serviço de saúde em seus direitos cidadãos, com espaço de decisão e agência. Ainda que não elimine as disputas, incluindo aquelas dentro da própria equipe, a oficina amplifica e qualifica o PCH e seus objetivos, inclusive a construção de reflexões sobre as práticas de saúde hegemônicas em que “as relações de poder-saber estão fixadas e definidas” (Meyer et al., 2013MEYER, D. E.; FELIX, J.; VASCONCELOS, M. F. F. Por uma educação que se movimente como maré e inunde os cotidianos dos serviços de saúde. Interface, Botucatu, v.17, n.47, p.859-71, dez. 2013., p.864), com clara assimetria entre as profissionais e as usuárias do serviço de saúde.

Sendo assim, a entrega das sacolas é mediadora de relações e parte da rede, cujos sentidos são particularizados de acordo com a história de cada uma das envolvidas. As profissionais relatam o fortalecimento do vínculo com as famílias e os diferentes caminhos trilhados com cada uma delas - que em algumas situações, denunciavam outras dificuldades e convidaram a outras articulações, na medida em que uma trabalhadora anuncia: “o que fazemos ainda é muito pequeno. A comida é meio”.

Assumir a comida como recurso mediador é uma aposta descentralizadora. Retira das mãos daquela que entrega as sacolas um poder absoluto de dar, de garantir a compra e a entrega todos os meses. A sacola de agroecológicos insere-se em uma teia de relações que é muito mais ampla e complexa. Imbrica-se no tecido social, inclui e ultrapassa o valor nutricional dos alimentos e a adequação de desvio nutricional. Ao se afastar de uma garantia incondicional e assumir a insuficiência das sacolas - e a impotência dos profissionais - diante de questões estruturais que produzem cenários de fome, inaugura-se o esforço de escavação - de abertura de brechas. Brecha em um cuidado de saúde hegemônico em disputa que busca exclusivamente a correção da alimentação, movimento que não raro cai no discurso julgador das mulheres chefes de família que não preparam uma refeição balanceada para suas famílias (Meyer et al., 2013MEYER, D. E.; FELIX, J.; VASCONCELOS, M. F. F. Por uma educação que se movimente como maré e inunde os cotidianos dos serviços de saúde. Interface, Botucatu, v.17, n.47, p.859-71, dez. 2013.; Seixas et al., 2020SEIXAS, C. M. et al. Fábrica da nutrição neoliberal: elementos para uma discussão sobre as novas abordagens comportamentais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.30, n.4, e300411, dez. 2020.).

Assim, cava brecha também na lógica de produção e consumo da alimentação, dominada por dinâmicas estritamente econômicas que pautam o sistema alimentar, que capturam as dimensões de vida e naturalizam interpretações neoliberais, que colocam a comida como mercadoria (Seixas et al., 2020SEIXAS, C. M. et al. Fábrica da nutrição neoliberal: elementos para uma discussão sobre as novas abordagens comportamentais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.30, n.4, e300411, dez. 2020.). Nesse contexto, discutir a intervenção para além do assistencialismo ganha novas apropriações. São várias as menções nos registros da oficina sobre o PCH enquanto não-assistencialismo. Há a preocupação de que o Projeto se resuma a isso e de que a sacola seja entendida como resposta. Daí vem um movimento de qualificar o PCH de outra maneira e conforme a palavra circula na oficina, novas perspectivas são adicionadas.

Comenta a necessidade de pensar as sacolas para além de um viés assistencial e de investir nas relações em visitas constantes às Mulheres do GAU: para fortalecer vínculo e na verdade, bater um papo.

As sacolas são, aos poucos, afirmadas como mediadoras e é na relação com as mulheres - da equipe, do GAU, das famílias - que os sentidos da intervenção vão cavando espaço, em discussões sempre abertas.

Entre a gratidão e o direito social, entre o assistencialismo e a fragilidade do papel do Estado, a vida vai nos dando pistas, mas nunca nos dá respostas prontas e rápidas.

Considerações provisórias

Se o questionamento produz movimento, sua existência em si já é uma brecha cavada, que dá lugar à possibilidade da pergunta, ao raciocínio crítico que pode ser construído em uma manhã de pausa das atividades institucionais para a discussão do PCH. É pergunta que dispara e nos provoca a pensar nas possibilidades de construir coletivamente um entendimento ampliado e aprofundado do Projeto, em sua complexidade, com suas potências e seus desafios.

Encontrar brechas no cotidiano e respirar nelas não é óbvio. Pelo contrário. Abrir fendas em discursos instituídos é movimento que demanda esforço e neste sentido, pensar a oficina a partir do referencial teórico da EPS em Movimento convida à transformação, ao questionamento e coloca em análise a ação, o encontro, a pessoa.

As profissionais da equipe, ao fim da oficina, avançam no reconhecimento de si mesmas e das outras e conhecem mais sobre o PCH. Questionam e abrem a possibilidade de que o encontro não se encerre em si e que suas reverberações sigam expandindo as brechas. Questões que concernem a precarização da vida; aos direitos; aos lugares da criança, família e mulher; a fome e que não podem - e nem devem - ser encerradas. Os registros da oficina tocam em temas relevantes, pontuam as potências e os limites do PCH e das redes territoriais, mas despertam outras discussões e convidam a mais.

A oficina, e as decorrentes palavras nesse artigo, não pretendem encerrar a argumentação ou oferecer uma resposta completa e final - o que daí adviria, se não a captura da realidade em uma leitura ingênua e estática? Apostamos, sim, nas trilhas da equipe, que em movimento coletivo junto ao território pode seguir atenta aos senões e às (re)invenções das práticas de trabalho. Continuamos à espreita.

Referências

  • BATTHYÁNY, K. Políticas del cuidado. Buenos Aires: Clacso, 2021.
  • CARNEIRO, F. F.; PESSOA, V. M. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.3, e00298130, ago. 2020.
  • CARVALHO, L. M.; BÓGUS, C. M. Gender and Social justice in urban agriculture: the network of agroecological and peripheral female urban farmers from São Paulo. Social Sciences, Switzerland, n.9, p.127-39, jul. 2020.
  • CARVALHO, M. S.; MEHRY, E. E.; SOUSA, M. F. Repensando as políticas de saúde no Brasil: educação permanente em saúde centrada no encontro e no saber da experiência. Interface, Botucatu, v.23, e190211, set. 2019.
  • CAVALLI, S. B.; SOARES, P.; MARTINELLI, S. S.; SCHNEIDER, S. Family farming in times of Covid-19. Revista de Nutrição, Campinas, v.33, e200180, out. 2020.
  • FELICIANO, A. B. et al. A pandemia de covid-19 e a educação permanente em saúde. Cadernos da Pedagogia, São Carlos, v.14, n.29, p.120-35, out. 2020.
  • FIGUEIREDO, E. B. L.; GOUVÊA, M. V.; SILVA, A. L. A. Educação permanente em saúde e Manoel de Barros: uma aproximação desformadora. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v.40, n.1, p.324-31, jul.-set. 2016.
  • FREIRE, P. Pacientes impacientes. In: BRASIL, Ministério da Saúde. Caderno de Educação Popular em Saúde. Brasília. 2007, p.32-45.
  • GIUSSANI, L. Educar é um risco: como criação de personalidade e de história. Bauru: Edusc, 2004. 222p.
  • LAROSSA, J. L. B. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n.19, p.20-8, abr. 2002.
  • LOPES, S. R. S. et al. Potencialidades da educação permanente para a transformação das práticas de saúde. Comunicação em Ciências da Saúde, Brasília, v.18, n.2, p.147-55, abr. 2007.
  • MENDES, R. et al. Movimentos de partida, deslocamentos e ressonâncias. In: MENDES, R.; AZEVEDO, A. B.; FRUTUOSO, M. F. P. Pesquisar com os pés - deslocamentos no cuidado e na saúde. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2019. p.13-28.
  • MERHY, E. E. Educação permanente em movimento: uma política de reconhecimento e cooperação, ativando os encontros do cotidiano no mundo do trabalho em saúde, questões para os gestores, trabalhadores e quem mais quiser se ver nisso. Saúde em Redes, Porto Alegre, v.1, n.1, p.7-14, abr. 2015.
  • MERHY, E. E. et al. Redes vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulgação em Saúde para Debate, Londrina, v.52, p.153-64, out. 2014.
  • MEYER, D. E.; FELIX, J.; VASCONCELOS, M. F. F. Por uma educação que se movimente como maré e inunde os cotidianos dos serviços de saúde. Interface, Botucatu, v.17, n.47, p.859-71, dez. 2013.
  • MOL, A. Actor-network theory: sensitive terms and enduring tensions. Documento eletrônico. 2010. Disponível em: < http://dare.uva.nl/document/2/90295>. Acesso em: 20 set. 2022.
    » http://dare.uva.nl/document/2/90295
  • NUNES, N. R. Mulher de favela: o poder feminino em territórios populares. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. 284p.
  • PRAUN, L. A espiral da destruição: legado neoliberal, pandemia e precarização do trabalho. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.3, e00297129, ago. 2020.
  • SAMBUICHI, E. H. R. et al. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) como estratégia de enfrentamento aos desafios da Covid-19. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.54, n.4, p.1079-96, jul.-ago. 2020.
  • SANTOS, K. O. B. et al. Trabalho, saúde e vulnerabilidade na pandemia de Covid-19. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, n.12, e00178320, dez. 2020.
  • SEIXAS, C. M. et al. Fábrica da nutrição neoliberal: elementos para uma discussão sobre as novas abordagens comportamentais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.30, n.4, e300411, dez. 2020.
  • SILIPRANDI, E. Mulheres e agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.
  • SOUSA, J. R.; SANTOS, S. C. M. Análise de conteúdo em pesquisa qualitativa: modo de pensar e de fazer. Pesquisa e Debate em Educação, Juiz de Fora, v.10, n.2, p.1396-1416, dez. 2020.
  • SOUZA, C. T. V. et al. Cuidar em tempos da Covid-19: lições aprendidas entre a ciência e a sociedade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, n.6, e00115020, jun. 2020.
  • SZABO, M. Men nurturing through food: challenging gender dichotomies around domestic cooking. Journal of Gender Studies, London, v.23, n.1, p.18-31, jan. 2014.
  • TEIXEIRA, C. F. et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.25, n.9, p.3465-3474, set. 2020.

Notas

  • 1
    Disponível em: <https://www.dicio.com.br/brecha/>.
  • 2
    Solano Trindade. “Tem gente com fome”. Disponível em: <https://www.escrevendoofuturo.org.br/caderno_virtual/texto/tem-gente-com-fome/index.html>.
  • 3
    Disponível em: <https://www.facebook.com/mulheresdogau/>.
  • 4
    Larossa (2002, p.27) aborda a dimensão subjetiva do saber da experiência, que afeta de modo diferente os sujeitos: “O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade, ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo [...]”.
  • 5
    Freire (2007, p.43) nos convida a pensar sobre as dimensões da paciência: “Se você rompe em favor da paciência, você cai refém das vozes e dos poderes dominantes, não impondo sua palavra e seu poder de reinvenção”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br