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Império e governo representativo: uma releitura

Empire of representative government: rediscussion

L'empire de gouvernement représentatif: une nouvelle lecture

Resumos

Este artigo analisa o governo representativo no Brasil, no decorrer do século XIX, de modo a apontar como a monarquia constitucional brasileira não se afastou dos modelos de representação política então vigentes na Europa. Com esse objetivo, o artigo examina o Poder Moderador, os critérios de cidadania e a legislação eleitoral.

governo representativo; monarquia constitucional; eleições; cidadania; poder moderador


This paper analyzes the representative government in Brazil, in the closing of the XIX century, so as to show that the Brazilian constitutional monarchy did not stand apart of the models of political representation then effective in Europe. With that aim, the paper examines the Poder Moderador, the citizenship criteria and the electoral legislation.

representative government; constitutional monarchy; elections; citizenship; poder moderator


Cet article fait une analyse du gouvernement représentatif au Brésil, au XIXe siècle. Il essaie de montrer combien la monarchie constitutionnelle brésilienne ne s'est guère éloignée des modèles de représentation politique en vigueur, à l'époque, en Europe. C'est dans ce but qu'on y étudie le Pouvoir Modérateur, les critères de citoyenneté et la législation électorale.

gouvernement représentatif; monarchie constitutionnelle; élections; citoyenneté; pouvoir modérateur


DOSSIÊ

Império e governo representativo: uma releitura

Empire of representative government: rediscussion

L'empire de gouvernement représentatif: une nouvelle lecture

Miriam Dolhnikoff

Doutora em História Econômica pela USP. Professora do Departamento de História da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento-CEBRAP. Cidade Universitária - Butantã - Sao Paulo, SP - Brasil. miriamdk@uol.com.br

RESUMO

Este artigo analisa o governo representativo no Brasil, no decorrer do século XIX, de modo a apontar como a monarquia constitucional brasileira não se afastou dos modelos de representação política então vigentes na Europa. Com esse objetivo, o artigo examina o Poder Moderador, os critérios de cidadania e a legislação eleitoral.

Palavras-chave: governo representativo, monarquia constitucional, eleições, cidadania, poder moderador.

ABSTRACT

This paper analyzes the representative government in Brazil, in the closing of the XIX century, so as to show that the Brazilian constitutional monarchy did not stand apart of the models of political representation then effective in Europe. With that aim, the paper examines the Poder Moderador, the citizenship criteria and the electoral legislation.

Keywords: representative government, constitutional monarchy, elections, citizenship, poder moderator.

RÉSUMÉ

Cet article fait une analyse du gouvernement représentatif au Brésil, au XIXe siècle. Il essaie de montrer combien la monarchie constitutionnelle brésilienne ne s'est guère éloignée des modèles de représentation politique en vigueur, à l'époque, en Europe. C'est dans ce but qu'on y étudie le Pouvoir Modérateur, les critères de citoyenneté et la législation électorale.

Mots-clés: gouvernement représentatif, monarchie constitutionnelle, élections, citoyenneté, pouvoir modérateur.

O processo de construção do Estado nacional no Brasil, no decorrer do século XIX, envolveu uma série de fatores complexos, incluindo perspectivas diferentes sobre qual deveria ser seu perfil institucional. Nesse contexto, a opção pela monarquia constitucional foi a derrota da república, mas sem que a elite política abdicasse, pelo menos em seu discurso, da adoção de um governo representativo. O modelo de monarquia vinha da Europa, onde, a partir da experiência inglesa e da revolução francesa, estava associado à representação política dos diversos setores da sociedade através do parlamento. Contudo, a presença da escravidão, a fraude e a violência nas eleições, o Poder Moderador, com sua atribuição de dissolver a Câmara dos Deputados, levaram os historiadores a desconfiarem da afirmação dos políticos oitocentistas de que estavam construindo um governo representativo.

O objetivo deste texto é recolocar essa discussão em outros termos. Esta pesquisa deriva de trabalho anterior no qual foi analisada a organização institucional do Estado brasileiro no século XIX, de modo a averiguar a forma de inserção das elites provinciais no jogo político. Utilizando o arcabouço conceitual da ciência política e uma vasta pesquisa documental, de modo a examinar não apenas o discurso dos políticos, mas também a dinâmica desse Estado, concluiu-se que predominou, no século XIX, um arranjo de tipo federativo. O que significava, entre outras coisas, a capacidade de as elites provinciais participarem do jogo político nacional através da sua representação na Câmara dos Deputados (Dolhnikoff, 2004). Essa conclusão colocou a necessidade de repensar o papel da Câmara na condução do Estado e considerar a hipótese de que ela efetivamente foi um espaço de negociação de conflitos intra-elite e de formulação de políticas nacionais. O que, por sua vez, passa pela análise do conteúdo do governo representativo no Brasil dos oitocentos.

Este texto apresenta os primeiros resultados da pesquisa, perseguindo a hipótese de que a monarquia constitucional brasileira preenchia os critérios definidos como essenciais para a existência de um governo representativo, tal como ele era entendido no século XIX. O que significa abrir caminho para uma nova compreensão do período que não seja pautada pela idéia de falseamento das instituições, da importação inadequada de modelos alheios. Ao contrário, trata-se de averiguar como o desenho institucional previsto na constituição se concretizou, de um lado em harmonia com os modelos que lhe serviram de inspiração, de outro ganhando especificidades ditadas pelo contexto brasileiro.

A historiografia que tem se dedicado ao estudo da história política tem, em geral, uma abordagem pessimista dessa primeira experiência liberal. Para parte dos historiadores, a iniciativa política estava concentrada nas mãos do imperador, tendo em vista o que ficou conhecido como poder pessoal. Segundo essa visão, o governo representativo era falseado no Brasil na medida em que, no exercício do Poder Moderador, o imperador nomeava livremente o ministério, sem compromisso com a maioria parlamentar, e, na ausência dela, também como atribuição do quarto poder, dissolvia a Câmara dos Deputados. Graças ao uso indiscriminado da fraude eleitoral, seria possível eleger uma nova Câmara, composta quase exclusivamente por deputados pertencentes ao partido no ministério e, conseqüentemente, submissa a ele. Esse mecanismo retiraria qualquer caráter de representação do governo. O governo representativo, assim, não expressaria efetivamente a vontade popular, e a Câmara eletiva deixava de ser o espaço de formulação de políticas nacionais (Holanda, 1985; Faoro, 1987; Barman, 1985).

Aceitar a hipótese de que a representação política era uma realidade no regime monárquico, tendo em vista os modelos vigentes no século XIX, é vantajoso na medida em que coloca novas questões para a pesquisa sobre o período: Qual era sua especificidade, em comparação com seus congêneres europeus e norte-americano? Qual era o peso da Câmara dos Deputados na formulação da política nacional? Essa última pergunta é de especial relevância, dada a magnitude de atribuições da Câmara naquele período e leva à novas perguntas: Que tipo de representantes eram selecionados através das eleições? Como isso afetava a formulação das políticas nacionais? Quem eram os representados? Quais os interesses em jogo? Em que medida imprensa e sociedades organizadas influenciavam as decisões parlamentares? Como os conflitos intra-elite se traduziram em diferentes concepções de representação? Neste texto, não pretendo responder a todas essas perguntas, mas apontar elementos que ajudem a formular as respostas, de modo a não apenas conhecer melhor o funcionamento do Estado brasileiro no século XIX, mas também jogar novas luzes sobre os conflitos intra-elite que determinaram a dinâmica política.

Para compreender o arranjo institucional brasileiro do século XIX, é útil a aproximação com a ciência política, de modo a analisá-lo de acordo com o modelo de representação política predominante nos oitocentos. Os estudos baseados na compreensão do governo representativo a partir do seu nascimento, no final do século XVIII, são de especial interesse. A abordagem histórica permite desvincular representação de democracia contemporânea, sendo esta uma variação que surgiu apenas no século XX. Assim, evita-se o risco de analisar o caso brasileiro a partir dos padrões de representação que só foram formulados no século seguinte. Autores como Bernard Manin, Hanna Pitkin e Giovani Sartori ressaltam o caráter elitista dos governos representativos organizados na Inglaterra, França e Estados Unidos, nos quais prevaleciam restrições e controles estranhos às democracias modernas. Também não se tratava de uma emulação das democracias antigas. Como aponta Bernard Manin, o governo representativo se opunha à democracia ateniense justamente porque selecionava uma elite que se acreditava capaz de agir de acordo com o interesse nacional, a partir de restrições à participação.

No Brasil, acabou prevalecendo um arranjo peculiar que combinava características dos modelos inglês e francês. Da França vieram a divisão entre cidadãos ativos e passivos, sendo que só os primeiros tinham direito de voto, e a eleição em duas fases, onde os votantes votavam nos eleitores que, por sua vez, votavam nos deputados. Da França e da Inglaterra veio o voto censitário. Da França e da Inglaterra veio a monarquia constitucional bicameral, com uma câmara eletiva temporária e outra vitalícia. Também da França veio o modelo de monarquia constitucional no qual a nomeação do ministério pelo rei não precisava corresponder à maioria parlamentar. Dos Estados Unidos veio, a partir da década de 30, a inspiração federativa que tornava os deputados representantes dos interesses provinciais.

Uma vez que as restrições à cidadania obedeciam ao espírito da época, o eleitorado brasileiro não estava fora dos padrões do período. No que diz respeito ao universo de votantes, conforme aponta José Murilo de Carvalho, 13% da população total (excluindo os escravos) tinham direito de voto, de acordo com o recenseamento de 1872. Em torno de 1870, na Inglaterra, eram apenas 7%, na Itália, 2%, e, na Holanda, 2,5% (Carvalho, 2001). Mas é preciso tomar com cuidado essas comparações. No Brasil, as eleições eram realizadas em dois graus (votantes escolhiam eleitores que, por sua vez, escolhiam deputados e senadores), seguindo-se o modelo adotado na França revolucionária. Como aponta Rosanvallon, o voto de primeiro grau tem uma natureza distinta do de 2º. grau. Só esse último é efetivamente uma decisão política, enquanto os votantes de 1º. grau exercem apenas um papel de legitimação do processo eleitoral:

as assembléias primárias não fazem mais que designar os eleitores: procedem somente a uma espécie de legitimação original do procedimento representativo. Porém, as verdadeiras eleições têm lugar em outra parte, nas assembléias eleitorais, as de segundo grau, que só reúnem a centésima parte dos cidadãos ativos. (Rosanvallon, 1999, p.174).

Não se pode comparar como iguais a participação dos votantes de primeiro grau no Brasil com a participação em eleições em países onde o pleito era direto. São participações de naturezas distintas, uma de legitimação, outra de decisão. Considerando que o número de eleitores de segundo grau no Brasil era muito inferior ao de votantes (cada 40 votantes escolhiam um eleitor, segundo lei aprovada em 1846), provavelmente, se tomarmos apenas os eleitores de segundo grau, o padrão de participação no Brasil não se apresentaria tão superior ao padrão europeu. De todo modo, dele não se distanciava e não se pode negar que, mesmo com função apenas de legitimação, o voto de primeiro grau era uma forma de incluir setores mais amplos da população no jogo político.

Na concepção de cidadania política prevalecente no século XIX, a exclusão do escravo também se tornava natural. Como aponta José de Alencar, sua incapacidade política derivava, antes de tudo, da incapacidade civil,

... antes de cidadão, o homem é pessoa. Dessa qualidade depende o título de membro da comunhão. Desde, pois, que o indivíduo se acha privado da atividade de seu direito civil, fica virtualmente impedido de exercer o direito político (Alencar, 1997, p.89).

O escravo estava fora da sociedade civil e, portanto, não cabia considerá-lo como membro da sociedade política. O mesmo problema foi enfrentado nos Estados Unidos. Madison, por exemplo, advogava que o escravo sequer deveria ser contabilizado no cálculo da população que deveria servir de base para estabelecer o número de deputados a que cada estado teria direito:

os escravos são considerados propriedades, não pessoas. Devem, portanto, ser incluídos em cálculos de tributação, que se fundam na propriedade, e ser excluídos da representação, que é regulada pelo censo das pessoas (Madison; Hamilton; Hay, 1993, p.363).

Madison argumentava, neste ponto, contra as pretensões dos grandes proprietários de escravos do sul dos Estados Unidos, que reivindicavam serem os escravos contabilizados para efeito de cálculo da população, de modo a garantirem para seus estados um número maior de representantes. Acabou prevalecendo, na constituição norte-americana, uma solução intermediária, pela qual o escravo contava como três quintos de uma pessoa.

No Brasil, como se sabe, os libertos, pela Constituição de 1824, tinham direito de voto. Uma vez libertado, o ex-escravo adquiria cidadania civil e, conseqüentemente, a possibilidade de cidadania política. É bem verdade que o liberto poderia ser apenas votante, mesmo que preenchesse os requisitos para ser eleitor ou candidato, mas isso se justificava pelo fato de que era aceitável que houvesse limites para que o portador de cidadania civil gozasse também de direitos políticos. As mulheres livres, por exemplo, desfrutavam de cidadania civil, mas não política, uma vez que eram consideradas intelectualmente limitadas. O mesmo valia para o liberto, com o seu passado de escravo. O interessante é que, nesse ponto, o liberto era considerado mais apto do que qualquer mulher, mesmo branca e pertencente à elite, pois nem direito de ser votante ela tinha. A restrição ao liberto, além disso, restringia-se a uma geração, pois o filho do ex-escravo tinha plenos direitos políticos, desde que preenchesse os requisitos constitucionais.

Além da escravidão e as restrições ao direito de voto, a existência do Poder Moderador tem sido argumento para negar o caráter representativo da monarquia brasileira, pois supostamente concentraria a iniciativa política nas mãos do imperador, principalmente porque, com sua atribuição de dissolver a Câmara, podia, através da fraude eleitoral, garantir a eleição de deputados fiéis ao ministério nomeado por ele. No entanto, o governo representativo era condizente também com a presença do Poder Moderador. A opção pelo quarto poder era uma solução, entre outras, para uma questão presente em todas as monarquias constitucionais representativas do século XIX: definir o papel do rei em um governo representativo, dada a natureza hereditária e irresponsável do cargo.

Antes de continuar o argumento, é útil lembrar que a interferência de um poder sobre o outro é da natureza dos governos representativos. A divisão de poderes, com atribuições definidas pela Constituição, e a independência entre eles não era e não é entendida como ausência de interferência, já que sempre foi considerada como um elemento necessário para o equilíbrio dos poderes na medida em que é a condição para evitar abusos. Assim, o veto do Executivo à lei promulgada pelo Legislativo é um exemplo de interferência que garante o controle necessário para que o Legislativo não abuse de seu poder. A interferência de um poder sobre outro era condição para evitar o abuso de poder e no século XIX, e a dissolução da câmara eletiva era aceita como forma de interferência legitima. Como aponta Constant,

... elevaram-se reclamações contra o direito de dissolver as assembléias representativas, direito atribuído, tanto por nosso ato constitucional [Constant se refere à França] como pela constituição da Inglaterra, ao depositário do poder supremo. [...] Nenhuma liberdade, sem dúvida, pode existir num grande país sem assembléias fortes, numerosas e independentes; mas essas assembléias não são isentas de riscos, e no interesse da própria liberdade, cumpre preparar meios infalíveis para prevenir seus desvios (Constant, 2005, p.31).

A dissolução era coerente com a representação, uma vez que obrigatoriamente eram convocadas novas eleições para deputados no prazo de alguns meses, de modo que a dissolução significava o funcionamento essencial do governo representativo: no conflito entre Executivo e Legislativo, a decisão voltava às mãos do eleitor. Caberia a ele, através do voto, reconduzir ao parlamento os deputados da legislatura dissolvida, afirmando, assim, sua preferência pela política por eles defendida, ou renovar a Câmara de modo a modificar a tendência predominante.

Pode-se argumentar que as eleições não eram livres no Brasil, devido à fraude e à violência. Mas é preciso relativizar o papel da fraude como empecilho para a representação. A fraude eleitoral não era exclusividade brasileira. Era amplamente praticada nos países que constituíram o berço desse tipo de governo. Basta lembrar dos burgos podres da Inglaterra. Como observa Wanderley Guilherme dos Santos,

com o sistema representativo, e com essa institucionalização [da participação política via eleição] na Inglaterra, nos Estados Unidos, vieram, como vieram no Brasil no século XIX, [...] a violência, a corrupção endêmica, a fraude, a compra de votos (Santos, 1998).

A fraude e a violência obviamente influenciavam a representação, mas é preciso qualificá-las para compreender até que ponto a comprometiam. Dois elementos devem ser considerados para pensar a fraude no contexto do governo representativo brasileiro. Em primeiro lugar, sua extensão. É difícil, quase impossível, medir o quanto a fraude contaminava o processo eleitoral. O famoso livro de Belisário Soares de Souza, O sistema eleitoral no Império, publicado em 1872, apresenta um quadro no qual a fraude parece ser onipresente. No entanto, é preciso considerar que Belisário escreveu seu livro com um propósito: a defesa de uma nova legislação eleitoral que eliminasse a figura dos votantes, com o argumento de que se tratava de homens ignorantes e, portanto, sujeitos a todo tipo de manipulação. Sem querer menosprezar a dimensão da fraude naqueles tempos, é licito supor que ela não tinha magnitude de ordem a comprometer inteiramente o processo eleitoral, uma vez que este foi um instrumento importante de estabilidade do regime. A eleição periódica de deputados era reconhecida pelos atores como forma de garantir que a vontade nacional fosse ouvida na formulação de políticas, de modo que foi possível manter a monarquia constitucional por quase um século sem grandes abalos institucionais.

Um segundo ponto a considerar em relação à fraude diz respeito aos esforços empreendidos pela elite imperial no seu combate. Uma profusão de leis debatidas e promulgadas tinha como objetivo expresso eliminar as fraudes. Pode-se argumentar que essas tentativas eram mera formalidade. Mas o empenho com que deputados e senadores debatiam a legislação eleitoral denuncia uma real vontade de normatizar as eleições. Além disso, como aponta Bolívar Lamounier, a opção pelo governo representativo era a opção pela criação de um espaço institucional de resolução dos conflitos inter pares, de modo a conferir estabilidade ao regime. Nesse sentido, havia "interesse em eleger interlocutores válidos, e não indivíduos desprovidos de liderança, ou meras criações ministeriais" (Lamounier, 2005, p.70). Havia, portanto, interesse das próprias elites que os representantes fossem assim considerados por aqueles que representavam.

Por outro lado, é preciso avaliar se, no funcionamento efetivo do regime, o quarto poder não acabava sendo um obstáculo à representação, na medida em que resultasse no constrangimento da liberdade de decisão dos deputados. No entanto, a dificuldade do Executivo, em determinados momentos, para conseguir a aprovação de seus projetos na Câmara (como a Lei do Ventre Livre promulgada em 1871 e a dos Sexagenários de 1886) evidencia que, mesmo sob a ameaça de dissolução, os deputados impunham resistência à vontade do imperador. Além disso, o alto custo político da dissolução provavelmente funcionava como um freio para que ela não fosse praticada com freqüência. Como nota Sérgio Buarque de Holanda, era um "recurso extremo, que a própria carta de 1824 só admite em casos de exceção [...] e é de supor que seu uso seguido e indiscriminado poderia ameaçar a própria segurança do sistema." (Holanda, 1985, p.11). O autor dá como exemplo a situação de 1862, quando um ministério conservador foi derrubado por moção de desconfiança aprovada na Câmara, com apenas um voto de diferença. O ministério liberal que o substituiu teria de enfrentar, assim, uma câmara dividida, na qual contava com o apoio apenas de cerca de metade dos deputados. A solução seria a dissolução, mas o imperador decidiu não fazê-lo, apesar das dificuldades que o ministério nomeado por ele com certeza enfrentaria, por considerar, conforme confidenciou a interlocutores, muito alto o custo político da dissolução.

Além disso, a análise das relações entre Legislativo, Executivo e Moderador não indica a submissão do primeiro aos outros dois. As atribuições constitucionais do Legislativo conferiam aos parlamentares grande poder de influência no jogo político, desde a elaboração do orçamento anual, que determinava os recursos para o funcionamento dos outros poderes, até o controle da constitucionalidade que, no século XIX, concentrou-se no exame das leis provinciais.

As decisões de política nacional eram todas tomadas no parlamento: escravidão, organização institucional, força militar, criação de tributos, obras públicas, etc. Por se tratar de monarquia constitucional, praticamente todas as políticas nacionais assumiam o formato de lei, conferindo à Câmara papel fundamental no jogo político. No que diz respeito, por exemplo, à abolição da escravidão, a opção por uma emancipação gradual e com indenização, que se materializou com a Lei do Ventre Livre em 1871, já estava em discussão no Senado desde 1862, quando o conservador Silveira da Mota apresentou um projeto nesse sentido. O debate se intensificou na Câmara na discussão da resposta à Fala do Trono, em 1867, na qual havia uma rápida menção à necessidade de se resolver o problema do elemento servil. Na discussão da Câmara, a tônica foi a defesa do parlamento como o espaço institucional onde a questão deveria ser resolvida. O deputado Martim Francisco expressou o que muitos deputados insistiram em seus discursos: o bom governo deve ter o voto e a confiança dos parlamentares. Por isso, deve sujeitar suas idéias à Câmara, que. por sua vez, deve analisá-las de forma desapaixonada. Na visão do parlamentar:

Pronuncia-se a câmara com toda a franqueza em relação à política do ministério, porque o ministério quer saber se, gozando da confiança dos representantes do país, goza também da confiança do mesmo país, porque é neste augusto recinto que a vontade do país deve manifestar com mais solenidade.1 1 Anais da Câmara dos Deputados, 04/07/1867, p. 29.

Da mesma forma, Joaquim Nabuco, anos depois, em 1882, insistia que cabia ao parlamento a decisão de como e quando abolir a escravidão. O abolicionista repudiava movimentos sociais de contestação da ordem, reconhecendo, nas instituições brasileiras, legitimidade e eficácia para resolver a questão:

A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É, assim, no parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade (Nabuco, 1988, p.40).

Esse é um ponto fundamental do debate. A questão da escravidão deveria ser resolvida no interior do arranjo institucional vigente. O que significava respeitar as competências constitucionais. Mais do que resistir a um projeto de libertação gradual dos escravos, em 1867 os deputados alinhavam-se na defesa do parlamento e de suas atribuições contra a ingerência do Executivo.

Para além da formulação das políticas nacionais, a influência decisiva da Câmara na condução do governo estava em que nela era debatido e aprovado o orçamento anual, de modo que os deputados detinham grande poder de interferência nos outros poderes. Não apenas ao aprovar os meios materiais com que eles poderiam contar, como também porque cabia à Câmara fiscalizar os demais poderes na execução do orçamento aprovado. Por essa razão, cabia à Câmara também analisar o balanço geral da receita e da despesa realizadas. Como lembra Pimenta Bueno,

... é de mister que os legisladores e o país saibam se os serviços públicos foram desempenhados e as despesas efetuadas ou não na conformidade do respectivo orçamento [...]. Sem esse contraste, sem essa prova real, sem contas devidamente processadas e tomadas, os orçamentos são meras e insuficientes formalidades. Os ministros preterirão ou farão as despesas que quiserem; empregarão, anteciparão rendas, criarão créditos, e em suma disporão dos recursos do Estado a seu contento (Bueno, 2002, p.152).

A elaboração do orçamento pela Câmara eletiva é da essência dos governos representativos. Como afirma António M. Hespanha, o orçamento tinha significativa centralidade política, e sua

aprovação devia ser, em todos os regimes liberais típicos, uma das atribuições centrais dos parlamentos. Originariamente, esta centralidade do orçamento resultava da própria história das revoluções constitucionalistas que, quer na América, quer em França, foram desencadeadas por ações anti-fiscais. A isto acrescia o fato de, sendo a tributação uma ofensa à propriedade e sendo esta última um valor constitucional cardinal do regime, só o parlamento estaria autorizado a limitá-la, mesmo por via fiscal (Hespanha, 2004, p.190).

A extração coercitiva da riqueza dos indivíduos pelo Estado só era aceitável se decidida pelos seus representantes. Ao seguir, nesse ponto, o modelo liberal, o regime brasileiro incorporava um grande poder de interferência da Câmara sobre os demais poderes. O Executivo, por exemplo, não poderia realizar seus programas de governo sem o assentimento dos deputados.

O debate parlamentar evidencia também a existência da preocupação da elite política com a qualidade da representação nacional, no sentido de torná-la eficaz e no sentido de definir seu conteúdo quanto ao grau de representatividade. Essa preocupação manifestou-se de forma mais expressa na discussão sobre a legislação eleitoral. Foram basicamente três os temas que mobilizaram os parlamentares quanto a esse item: a fraude eleitoral, a representação das minorias e o que chamavam de incompatibilidades. Os três temas respondiam a preocupações de fundo, referentes à efetividade do governo representativo: o tipo de representação que deveria prevalecer e a independência entre os poderes. Os três temas freqüentaram os debates parlamentares desde pelo menos 1828 e, entre outras leis, as opções adotadas materializaram-se em quatro mais importantes: a lei de 1846, que afirmava os princípios de cidadania consagrados na constituição de 1824, a lei de 1855, que adotava o voto distrital e definia a inelegibilidade de detentores de determinados cargos públicos (incompatibilidade), a lei de 1875, que introduziu o título de eleitor, e a lei de 1881, que modificou os princípios de cidadania. Embora cada uma delas tenha se centrado em pontos específicos, as questões mencionadas acima permearam todo o debate. Por exemplo, na discussão da lei promulgada em 1846, cujo foco essencial foi regrar a qualificação dos votantes, o voto distrital foi um tema importante, embora ele só fosse introduzido na lei promulgada em 1855. O que indica como as reformas eleitorais do império giraram em torno sempre dos mesmos pontos centrais, sendo que os deputados faziam opções diferentes, em diferentes momentos, variando conforme os percalços da prática eleitoral. No caso do voto distrital, a sua não adoção foi justificada pelo deputado Andrada Machado, ao apresentar o projeto de reforma eleitoral que se tornaria a lei de 1846, da seguinte forma:

Mas se com este expediente se evitava o mal das corvéias, outro mal maior pareceu a comissão dever daí derivar. Ela capacitou-se que semelhante divisão não faria senão enviar ao corpo representativo notabilidades de aldeia, em vez de verdadeiras notabilidades provinciais.2 2 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 16/8/1839, p. 636.

O mesmo argumento seria utilizado em 1855 por aqueles que eram contra a Lei dos Círculos, então em discussão. Só que, dessa feita, a maioria dos deputados optou pelo voto distrital.

No Brasil, ao contrário de outros países, a legislação eleitoral do império caminhou no sentido de ampliar as restrições e não o eleitorado. A lei de 1846 indexou em prata os valores exigidos para votar e ser eleito. A lei de 1875 tornou mais rigoroso o processo de qualificação dos eleitores, e a lei de 1881 eliminou a eleição em duas fases, excluindo os votantes, e introduziu a exigência de ser alfabetizado.

Na medida em que, no século XIX, a qualidade da representação era considerada resultado da qualidade do eleitor, os políticos brasileiros apostaram na gradativa diminuição do eleitorado como forma de combater a fraude. Um eleitor analfabeto e, portanto, mal informado e pobre era mais vulnerável às artimanhas daqueles que procuravam manipular as eleições. Quando, em 1846, o deputado Andrada Machado apresentou o projeto de reforma eleitoral elaborado pela comissão da Câmara e que previa a indexação do censo exigido em prata, afirmava, referindo-se à fraude:

... corrigir as faltas do governo democrático, bases das eleições populares, é de mais importância do que estender a esfera a que este governo se pode aplicar. Uma representação apresenta ao poder das multidões um contrapeso na influência das outras classes: ela substitui legisladores hábeis a outros inteiramente incapazes de qualquer função legislativa; e continua a confiança uma vez depositada por todo o tempo suficiente para salvar a legislatura das elusões e frenezi temporário do povo.3 3 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 16/8/1839, p. 636.

No que se refere às incompatibilidades, preservar a independência entre os poderes era a questão central. A Câmara, como instância eletiva que conferia representação ao regime através da eleição dos seus membros, deveria ser protegida da interferência de integrantes de outros poderes que porventura se elegessem deputados. Assim, a partir de 1855, uma série de leis foi promulgada declarando impedidos de se candidatar aqueles que tivessem cargos importantes no Judiciário e no Executivo.

Por fim, a representação das minorias foi fonte de intenso debate, acompanhando preocupações que norteavam também os legisladores europeus e norte-americanos. Como o sistema proporcional ainda não era usual na Europa, tendo sido introduzido só no final do século XIX, a preocupação em garantir a eleição das minorias tinha de ser resolvida dentro do sistema majoritário. Em 1855, no debate que resultou na promulgação da Lei dos Círculos, os parlamentares optaram, não sem muita discussão, pela adoção do voto distrital em substituição ao que chamavam de voto provincial, consagrado na Constituição de 1824. No entanto, o voto provincial também era distrital, já que cada província elegia um número fixo de deputados e cada eleitor votava em tantos nomes quantos deputados compunham a bancada de sua província, sempre pelo sistema majoritário. No esforço de garantir a representação minoritária sem voto proporcional, a proposta era que o voto fosse por distritos pequenos, ao invés do grande distrito provincial.

Aqueles que a defendiam consideravam essa uma forma mais eficiente para garantir a eleição de minorias no sistema majoritário, uma vez que bastaria ter poder local para ser eleito, enquanto uma circunscrição ampla, como a província, favoreceria o candidato melhor articulado politicamente e, assim, tornaria quase impossível a eleição de candidatos de grupos minoritários.

No Brasil, aqueles que defendiam a eleição dos melhores, mais sábios e mais ilustrados como única forma de o parlamento formular de modo competente a vontade nacional eram a favor do distrito grande, ou seja, do voto provincial. Aqueles que estavam preocupados com a representação da diversidade batiam-se pelo distrito pequeno.

Na concepção de representação do século XIX, cabia aos representantes, ao mesmo tempo, defender os interesses dos seus eleitores e aquilo que consideravam constituir os interesses de toda a nação. Muitas vezes, havia contradição entre os dois campos, sendo que, no Brasil, a defesa dos interesses dos eleitores se confundia com a defesa dos interesses provinciais que, assim, eram às vezes vistos como em oposição ao interesse nacional.

As bancadas tendiam a defender os interesses da província que representavam quando o tema lhes dizia respeito diretamente. Para que o novo arranjo institucional fosse fiador da unidade, era preciso que as elites provinciais reconhecessem, nas suas bancadas, um efetivo meio de defesa de seus interesses no interior do Estado (mesmo que nem sempre conseguissem aprovar medidas condizentes com suas demandas), o que se evidencia no fato de que o número de deputados de cada província se tornou a medida do seu grau de influência na política nacional. Uma representação enviada pela Assembléia Legislativa de São Paulo ao governo central, em 1841, reflete claramente essa concepção, quando, ao protestar contra os rigores do recrutamento forçado que sofria a população paulista, propõe que

... o número de recrutas exigidos para a formação do exército do Império seja repartido pelas províncias na proporção do número dos deputados que cada uma delas envia à Assembléia Geral. Sendo um princípio inegável de justiça que os ônus devem ser proporcionais às vantagens que se colhem do contrato social, e estas vantagens relativas à parte que cada uma das províncias toma na decisão dos negócios gerais, o que fica evidente pelo número de deputados que nomeia, parece que semelhante regra deve ser adotada como a mais justa.4 4 Anais da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo. 1840/1841.

A representação paulista reconhecia, desse modo, que o grau de influência das províncias nas decisões do governo central era determinada pelo número de deputados que elegia. A representação na Câmara tinha, assim, conteúdo territorial.

Essa concepção de representação esteve presente na discussão do voto distrital em 1855. Os defensores do voto distrital (distrito pequeno) argumentavam que o distrito grande favorecia a existência de bancadas provinciais coesas. O que significava que as províncias com maior número de deputados imporiam seus interesses aos demais, enquanto o voto por distrito pequeno resultaria em bancadas fragmentadas, favorecendo a negociação ao invés da imposição dos interesses de um setor apenas. Pimenta Bueno fazia a defesa do voto distrital alegando que as grandes províncias tinham força, através do parlamento, de fazer valer seus interesses frente o governo central, em detrimento das pequenas províncias, com bancadas menores:

O que vemos porém no Brasil? Vemos a par de pequenas províncias outras consideráveis, que relativamente são grandes Estados, Estados preponderantes, que têm interesses distintos e opostos, como que nacionalidades diversas, com forças desproporcionadas e capazes de entrar em luta com o governo central e por em dúvida a indivisibilidade do império. [...] Este é nosso estado, inconveniente e perigoso: e como sobre ele influi o atual sistema eleitoral? Tende a corrigir e neutralizar esses inconvenientes e perigos ou a reforçá-los? Enquanto as eleições continuarem a ser feitas por províncias, como atualmente são, a resposta não pode ser duvidosa.5 5 Anais do Senado, sessão de 18 de julho de 1855.

Ao apontar o papel das bancadas parlamentares na representação dos interesses provinciais frente o governo central, Pimenta Bueno associava a discussão do voto distrital ao tamanho da bancada a que cada província tinha direito. Dessa forma, sua argumentação continuava no sentido de salientar o que considerava uma injusta desproporcionalidade:

A província de Minas tem na câmara dos deputados 20 representantes e no senado 10, tem pois uma representação igual a de 10 províncias do Brasil, tanto em uma como noutra câmara, pois que na câmara dos deputados a província do Amazonas tem 1, Espírito Santo 1, Paraná 1, Santa Catarina 1, Goiás 2, Mato Grosso 2, Piauí 2, Sergipe 2, Pará 3, Alagoas 5, ao todo 10 províncias com 20 deputados. (...) Ora, haverá, porventura, proporção alguma razoável quando uma só província influi no parlamento brasileiro tanto como dez outras?Não direi mesmo tanto, e sim mais do que dez outras, por isso que os vinte representantes destas não se ligam entre si, têm interesses divergentes, não têm a força de seu número.6 6 Ibidem idem.

A representação dos eleitores convivia, no Brasil, com uma representação de caráter nacional. Os deputados eram representantes da nação, seguindo, aqui, a concepção burkeana: cabia a eles identificar o bem comum e legislar de acordo com ele. Claro está que o que cada qual considerava ser o bem comum variava de acordo com diversos quesitos: extração social, origem provincial, filiação partidária, etc., e, por essa razão, o debate parlamentar assumia papel crucial no enfrentamento entre posições e na formulação da política nacional. Em conseqüência, era preocupação central a garantia de eleição de representantes portadores de virtude que os habilitasse a atuar de acordo com o interesse nacional, definido por eles próprios.

Dessa tensão resultava que o mesmo deputado, em determinado momento, pautava sua atuação tendo em vista os interesses de sua província e, em outros, aquilo que considerava ser o interesse nacional. Obviamente, essa última posição era, em geral, tomada quando interesses específicos de sua província não estavam em jogo. A tensão ocorria na medida em que essa oscilação gerava expectativas opostas no interior do debate. Por exemplo, em 1850, ao exercer sua atribuição de controle da constitucionalidade, os deputados enfrentaram uma dura discussão sobre a constitucionalidade de uma lei promulgada pela Assembléia Legislativa de Pernambuco. Na discussão, o conservador João Manuel Pereira da Silva, deputado pelo Rio de Janeiro, afirmava que:

A suscetibilidade dos honrados membros deputados por Pernambuco foi tal que até se acusou o meu honrado amigo, deputado pela Bahia e autor do projeto, de se deixar eivar do espírito do provincialismo na questão de que se trata. Se pode haver acusação de espírito de provincialismo a este respeito não cabe certamente àqueles que votam contra o adiamento e em favor do projeto, pertencentes como são a diversas províncias, mas sim aos ilustres deputados por Pernambuco, que reconhecendo que são ilegais essas leis de sua província, entretanto querem que elas permaneçam.7 7 Anais da Câmara dos Deputados, sessão 23/5/1850.

A acusação de provincialismo, lançada de parte a parte, funcionava como desqualificação da posição do oponente, mas fazia sentido justamente porque as bancadas mobilizavam-se para defender os interesses de suas províncias, de modo que a Câmara dos Deputados se tornava a instância no interior da qual as elites regionais podiam intervir na política nacional. Ao mesmo tempo, contudo, estavam compenetrados de sua condição de representantes da nação, situação bem sintetizada por D. Manoel de Assis Mascarenhas, deputado pelo Rio de Janeiro:

É verdade, senhores, que nós somos representantes da nação, mas também é verdade que devemos mais particularmente advogar os interesses de nossas províncias porque estamos de ordinário mais habilitados para conhecermos dos interesses delas. Portanto, não se deve censurar que um deputado da Bahia, por exemplo, ou do Rio de Janeiro, proponha a revogação de um ato da assembléia provincial de Pernambuco que ele entende que vai de encontro não só à Constituição, mas também aos interesses da província que o honrou com os seus votos para ter assento nesta casa.8 8 Ibidem, idem.

A Câmara dos Deputados, como órgão de representação por excelência, era vista como o instrumento pelo qual o povo participava do governo do país. Seus representantes lá estavam para defender seus interesses. Mas uma das tensões básicas dos governos representativos está no fato de que o representante é também governo e, por isso, tem com o representado uma relação de imposição. O representante é, dessa forma, sempre um agente da localidade que o elegeu, como também um governante da nação, "his duty is to pursue both local and national interest, the one because He is a representative, the other because his job as representative is governing the nation" (Pitikin, 1967, p.218). Assim, a Câmara de Deputados era, ao mesmo tempo, o espaço de representação dos interesses dos representados e o espaço de formulação de políticas nacionais. Sua função precípua era formular as leis às quais todos, do rei ao mais humilde dos brasileiros, teriam de se submeter.

O Poder Moderador, a fraude eleitoral, a escravidão e o voto censitário não eram incompatíveis com o modelo de representação política do século XIX. Ao contrário, como se procurou demonstrar, com exceção do Poder Moderador, estavam presentes nas experiências européias de governo representativo (fraude e voto censitário) e norte-americanas (fraude e escravidão). E estavam presentes porque não afrontavam a forma pela qual se pensava, então, a cidadania e a representação. O Poder Moderador, apesar de restrito às experiências brasileira e portuguesa, também não falseava a monarquia constitucional representativa, tal qual o modelo prevalecente no período.

No Brasil, o desafio de construir um governo representativo centrou-se na forma de organizar as instituições, de modo a adaptar os modelos conhecidos à realidade específica do país. Os políticos brasileiros acalentaram projetos distintos, tendo em vista concepções diversas de representação e diferentes interesses projetados na ordem institucional. A opção por um governo representativo permitiu trazer para o interior do Estado as disputas de interesses entre os diversos setores da elite.

No processo de construção do Estado brasileiro, a Câmara dos Deputados viabilizou a relação de legitimidade entre população e governo, por ser eletiva, e tornou-se espaço de negociação de conflitos através da formulação institucional de políticas. Cumpriu, assim, o papel que suas congêneres cumpriram na Europa e Estados Unidos.

(Recebido para publicação em janeiro de 2008)

(Aceito em março de 2008)

Miriam Dolhnikoff

Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de História da USP. Atualmente é docente da Universidade de São Paulo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento- CEBRAP. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Império, atuando principalmente nos seguintes temas: representação política, organização institucional do Estado, parlamento. Principal publicação: O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. (São Paulo: Globo, 2004).

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  • SARTORI, Giovanni. A teoria da representação no Estado representativo moderno Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 1962.
  • 1
    Anais da Câmara dos Deputados, 04/07/1867, p. 29.
  • 2
    Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 16/8/1839, p. 636.
  • 3
    Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 16/8/1839, p. 636.
  • 4
    Anais da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo. 1840/1841.
  • 5
    Anais do Senado, sessão de 18 de julho de 1855.
  • 6
    Ibidem idem.
  • 7
    Anais da Câmara dos Deputados, sessão 23/5/1850.
  • 8
    Ibidem, idem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Recebido
      Jan 2008
    • Aceito
      Mar 2008
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