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A questão da representação política na primeira república

The question of political representation in the first Brazilian Republic

La représentation politique pendant la première République Brésilienne

Resumos

O artigo trata o tema da representação política na Primeira República brasileira (1889-1930) a partir de três importantes matrizes de reflexão sobre a questão: o liberalismo, o positivismo e o realismo. Busca-se rejeitar a narrativa usual das primeiras décadas republicanas, baseada unicamente no diagnóstico de corrupção política, e iluminar outras faces importantes do cenário político da época. A despeito das diferenças significativas entre os modelos interpretativos em evidência, que constituem o cerne do artigo, eles convergem na expectativa de protagonismo do Estado na tarefa de unificação e criação do povo.

Primeira República; representação política; liberalismo; positivismo; realismo


The paper treats the theme of political representation in the First Brazilian Republic (1889-1930) starting from three important reflection matrixes on the subject: the liberalism, the positivism and the realism. One aims to reject the usual narrative of the first republican decades, based only on the diagnosis of political corruption, and to illuminate other important faces of the political scenery at the time. A despeito das diferenças significativas entre os modelos interpretativos em evidência, que constituem o cerne do artigo, eles convergem na expectativa de protagonismo do Estado na tarefa de unificação e criação do povo. In spite of significant differences among the interpretative models in evidence, that constitute the core of this paper, they converge in the expectation of protagonism of the State in the creation of the people and unification task.

First Republic; political representation; liberalism; positivism; realism


Cet article aborde le thème de la représentation politique, au cours de la Première République brésilienne (1889- 1930), à partir de trois perspectives importantes de réflexion : le libéralisme, le positivisme et le réalisme. On essaie de ne pas prendre en considération la narrative habituelle des premières décennies républicaines, basée uniquement sur le diagnostic de la corruption politique, et de montrer d'autres aspects importants du scénario politique de l'époque. En dépit des différences significatives entre les modèles interprétatifs mis en évidence, qui constituent le noyau de cet article, il existe une convergence qui va dans le sens d'une attente, celle de voir l'État devenir le protagoniste de l'unification et de la formation du peuple.

Première République; représentation politique; libéralisme; positivisme; réalisme


DOSSIÊ

A questão da representação política na primeira república

The question of political representation in the first Brazilian Republic

La représentation politique pendant la première République Brésilienne

Cristina Buarque de Hollanda

Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ. Professora do Departamento de Ciência Política da UFRJ, colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. Largo de São Francisco, n. 1. Centro - Rio de Janeiro - Brasil. cbuarque@iuperj.br

RESUMO

O artigo trata o tema da representação política na Primeira República brasileira (1889-1930) a partir de três importantes matrizes de reflexão sobre a questão: o liberalismo, o positivismo e o realismo. Busca-se rejeitar a narrativa usual das primeiras décadas republicanas, baseada unicamente no diagnóstico de corrupção política, e iluminar outras faces importantes do cenário político da época. A despeito das diferenças significativas entre os modelos interpretativos em evidência, que constituem o cerne do artigo, eles convergem na expectativa de protagonismo do Estado na tarefa de unificação e criação do povo.

Palavras-chave: Primeira República, representação política, liberalismo, positivismo, realismo.

ABSTRACT

The paper treats the theme of political representation in the First Brazilian Republic (1889-1930) starting from three important reflection matrixes on the subject: the liberalism, the positivism and the realism. One aims to reject the usual narrative of the first republican decades, based only on the diagnosis of political corruption, and to illuminate other important faces of the political scenery at the time. A despeito das diferenças significativas entre os modelos interpretativos em evidência, que constituem o cerne do artigo, eles convergem na expectativa de protagonismo do Estado na tarefa de unificação e criação do povo. In spite of significant differences among the interpretative models in evidence, that constitute the core of this paper, they converge in the expectation of protagonism of the State in the creation of the people and unification task.

Keywords: First Republic, political representation, liberalism, positivism, realism.

RÉSUMÉ

Cet article aborde le thème de la représentation politique, au cours de la Première République brésilienne (1889- 1930), à partir de trois perspectives importantes de réflexion : le libéralisme, le positivisme et le réalisme. On essaie de ne pas prendre en considération la narrative habituelle des premières décennies républicaines, basée uniquement sur le diagnostic de la corruption politique, et de montrer d'autres aspects importants du scénario politique de l'époque. En dépit des différences significatives entre les modèles interprétatifs mis en évidence, qui constituent le noyau de cet article, il existe une convergence qui va dans le sens d'une attente, celle de voir l'État devenir le protagoniste de l'unification et de la formation du peuple.

Mots-clés: Première République, représentation politique, libéralisme, positivisme, réalisme.

APRESENTAÇÃO

A narrativa usual a respeito da Primeira República brasileira funda-se na idéia de ausência. Trata-se de um tempo que ocupa o lugar do equívoco na memória do país. Não obstante o desacordo sobre os futuros possíveis para a Nação, entre a primeira geração de homens públicos da República havia notável convergência no diagnóstico da cena política observada: experimentava-se no Brasil a antítese da República; o avesso da ordem anunciada pela propaganda republicana. Se a historiografia abriga raros consensos, a falência deste ensaio da República – ou a profunda inadequação a seus princípios de fundação – tende a ser um deles.

Incontáveis episódios de tormento social e instabilidade política marcaram, de fato, os primeiros anos da República. As tensões em torno da reconfiguração dos poderes implicaram duras e instáveis negociações entre as oligarquias locais e os governos estaduais e federal. Embora o federalismo da Carta de 1891 estivesse perfeitamente afinado com a demanda e o modo de vida federalistas da sociedade recém ingressa na República (Souza, 1969), a definição de novos padrões e personagens de sustentação política não constituiu tarefa trivial. À diferença da relativa unidade imperial em torno da figura do Rei, a República trazia as marcas da dispersão política e da desordem social. Desta indeterminação original resultou a grave instabilidade das origens republicanas no país.

Foi o arranjo institucional de Campos Sales que instituiu rotina política na República (Lessa, 1999) e retirou-a da órbita da absoluta imprevisibilidade. Para o político paulista, um "parlamento com substância liberal, formado a partir de escolhas individuais dos cidadãos e segmentado segundo as clássicas divisões político-partidárias" (p.6) seria incompatível com os propósitos de consolidação do regime republicano. Os parâmetros formais da Constituição eram, afinal, incapazes de organizar o cotidiano real da vida pública. A principal motivação política de Campos Sales foi, portanto, a de opor um princípio de vertebração social a este ambiente desordenado. As instituições do liberalismo político constituíam, nesta perspectiva, um obstáculo ao andamento desejável da vida pública.

O modelo de representação política que estruturou a cena republicana original baseou-se, portanto, num fundamento claramente anti-liberal, avesso ao sistema partidário e aos demais instrumentos da democracia representativa liberal. Nesta matriz política, o objeto da representação eram as unidades federativas, e não o indivíduo ou o povo. Segundo Renato Lessa, o sistema de Campos Sales teria reeditado a prescrição mandeviliana dos vícios privados e virtudes públicas para a formulação oligárquica do particularismo estadual e da unidade nacional (Lessa, 1999, p.6). O ajuste eleitoral baseado nos estados resultaria na constituição de um corpo nacional único e ordenado. Este seria o caminho da conversão do particular em universal.

O protagonismo dos estados não era, contudo, auto-suficiente. As oligarquias locais foram elementos centrais na configuração da simbiose política que perdurou, a despeito de importantes contratempos, por toda a Primeira República. A praxe política inventada por Campos Sales visava contornar a excessiva carga contenciosa dos governos da primeira década republicana. No seu modelo político, o presidente da República concedia apoio irrestrito aos estados em troca da garantia, por parte dos governadores, de bancadas legislativas afinadas com suas diretrizes. A ação política dos presidentes de estado fundava-se, por sua vez, num modelo de reciprocidade com as oligarquias. Os coronéis, importantes operadores deste modelo político, zelavam pela fidelidade das eleições ao resultado esperado pelos governos estadual e federal. Em troca disto, faziam-se verdadeiros soberanos locais.

Esta delicada arquitetura de personagens políticos fundava-se na adulteração de cada uma das etapas do processo de constituição de poderes – isto é, alistamento, votação, contagem dos votos e verificação final dos diplomas, entregue ao próprio Poder Legislativo na figura das comissões de verificação de poderes do Congresso. Cada pleito oferecia ao país um espetáculo de comédia eleitoral, conforme expressão da época. Os mandatos de deputados, senadores e governadores de estado eram sabidamente produto de arranjos políticos informais.

O sacrifício dos princípios elementares da representação liberal era, portanto, o custo da previsibilidade na política. A condição da relativa estabilidade instituída por Campos Sales era a garantia da fraude nos processos formais de produção da política. A despeito do novo equilíbrio de poderes, a República não provocara, portanto, em matéria eleitoral, rompimento substantivo com as rotinas do Império. Os rituais da representação política permaneciam inscritos num universo ficcional fundado no divórcio entre normas e práticas da política.

É fundamental notar, contudo, que, a despeito do inequívoco predomínio político do modelo Campos Sales durante a Primeira República, a reflexão sobre representação política não se restringiu a seus limites. Liberais, positivistas e realistas representam três importantes matrizes da crítica aos caminhos reais da política. A compreensão sobre o tema da representação na Primeira República não pode passar ao largo de um olhar mais detido sobre essas tradições do pensamento político brasileiro. O objetivo deste artigo é justamente o de investigar as reflexões liberal, positivista e realista sobre representação política caracterizadas, a despeito das distâncias importantes entre si, pela recusa do modelo de alternância de poderes. Dito de outro modo, trata-se de enxergar o tema da representação política na Primeira República pela marca das presenças, e não pela imagem habitual da ausência.

LIBERAIS, POSITIVISTAS, REALISTAS E A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

A insatisfação de liberais, positivistas e realistas com a relação simbiótica e extra-formal entre estados e oligarquias, embora devida a motivos diversos, convergia no reconhecimento do povo como inspiração necessária da representação política. Seja como operadores e/ ou meros receptores da política, os men in the street, conforme expressão de Azevedo Amaral, eram descritos como eixo fundamental da política. As importantes distâncias entre os modos de interpretar a realidade social não tinham nenhuma relação, portanto, com o aceite ou a recusa dos sujeitos ordinários como objeto da ação política, mas com as diferentes concepções sobre o que fazer de uma realidade social profundamente fragmentada e dispersa.

Antes, contudo, de avançar no tratamento das diferenças normativas, vale ainda reforçar os pontos de afinidade entre as três principais matrizes de reflexão sobre o problema da representação política na Primeira República. Havia um acordo largo em torno da existência de uma política frágil e incipiente como conseqüência necessária da deficiência sociológica crônica observada. Nesta perspectiva, o ambiente povoado por átomos desordenados não era tido como favorável à consolidação do interesse público, por definição, inteiro e indivisível. Os críticos de Campos Sales não lidavam, portanto, com o problema da representação política em abstrato, mas em alusão à realidade concreta na qual se inscrevia. Era o tema da amorfia popular que moldava, enfim, o olhar dos políticos para o desafio da representação.

Além desta importante afinidade no diagnóstico da realidade social, a especulação sobre as causas deste cenário também aproximava os insatisfeitos com a rotina política original da República. Em linhas gerais, acordava-se que a sociologia fragmentada tinha origem extrínseca aos indivíduos que padeciam da dispersão. Vítimas de uma ordem política profundamente excludente e autárquica, as massas não eram tidas como sujeito de seu próprio infortúnio. Mesmo entre os liberais, que concebem patamares mínimos de ação do governo, o rompimento com essa situação indesejável não era esperado dos cidadãos comuns, mas dos homens públicos e do Estado.

Em fragmento de discurso pronunciado por Irineu Machado no Senado, esta perspectiva é enunciada de modo claro: "Todos os povos são feitos da mesma massa, é necessário que mãos valorosas venham plasmar o organismo de uma Nação, tirando-a dos caos da sua origem." (Anais Senado, 1921, p.558) Longe de legar aos homens desordenados a responsabilidade por sua desordem, o senador identifica nos usos inoportunos da política o foco da grave dissipação social.

Diante do déficit educacional do povo, os sujeitos ilustrados pelo privilégio da cultura teriam uma missão social a desempenhar. A falha em atender a esta designação marcaria a trajetória equívoca de deputados e senadores apartados do ideal republicano. Nesta perspectiva, os principais operadores do Estado eram tidos como perpetuadores das condições de desventura das massas, inaptas a redefinir, por si sós, os seus caminhos. No mesmo discurso, o senador contrasta a impotência do povo deseducado com a potência dos homens ilustrados:

O povo brasileiro é um povo que ainda não está educado, conscientemente de seus deveres, e, neste caso, àqueles dos mais cultos e felizes a quem Deus concedeu a fortuna de poder desenvolver a sua inteligência e a sua cultura, a esses cabe o sagrado dever de coração de pôr a sua alma ao serviço dos mais desventurados nesse profuso amor, neste sentimento de bondade, de altruísmo que é uma forma da perfeição humana, do dever patriótico (Anais Senado, 1921, p.562).

Deste diagnóstico das capacidades diferenciadas Irineu Machado deriva grave acusação aos colegas de legislatura:

Vós outros não tendes a coragem, vós outros, que tendes diante de vós a força que a natureza vos deu, multiplicadas pelo vigor da inteligência, pela fortuna, pelas aspirações da glória, em vez de serdes os servidores da Nação, sois os seus traidores, deixando-a mergulhada nessa vida infecta de humilhações, de servilismo e de subserviência. Não foi essa a promessa exarada no tribunal da consciência publica, jurada no altar da religião republicana, que os apóstolos da democracia fizeram. Não! Não foi essa, eles mentiram (1921, p.562).

À definição clara de algozes e vítimas do infortúnio social corresponde igual nitidez a respeito do lugar e do modo de superar o equívoco da vida política. Se o povo não estava inteiramente isento de responsabilidades sobre seu destino, sem dúvida ocupava um papel coadjuvante diante da potência de metamorfose social identificada no Estado.

As distintas reações normativas ao diagnóstico de uma massa amorfa e impotente diante das causas de seu infortúnio convergem num duplo e necessário fundamento político do governo, o de criação e unidade do povo. Esta inscrição comum tem importante afinidade com a dotação política do soberano de Hobbes, dotado da faculdade de invenção do sujeito representado (Jaume, 1986). Na teoria hobbesiana, os homens padecem dos males da desordem quando dispersos numa multidão destituída de forma, que precede o próprio conceito de povo. Na fábula política daquele autor, o medo da morte violenta só é suprimido quando, através do uso da razão, os indivíduos constituem-se num pacto e submetem-se coletivamente a um poder de enormes proporções (Hobbes, 1989). A conversão da dissipação em unidade é o principal movimento da passagem fundamental do caos originário à civilização. Há de se notar, contudo, nesta formulação hobbesiana, um importante paradoxo: os homens dispersos que instituem o pacto não constituem o objeto da representação na nova ordem. Estes indivíduos são reinventados pelo soberano e esta é a condição da sua existência como um coletivo ordenado. A ação representativa é dotada, portanto, de uma vocação criativa, voltada sobretudo para a unificação das células isoladas na idéia comum de povo. A possibilidade da ordem política, preocupação fundamental de Hobbes, reside, portanto, na supressão das partes e na constituição de um todo indistinto.

Longe de confinada à tradição política autoritária, como poderia sugerir a analogia com a teoria hobbesiana, a suposição de uma natureza criativa do representante esteve claramente presente na teoria política de dois importantes símbolos do liberalismo brasileiro na Primeira República: Rui Barbosa e Assis Brasil. Para ambos, as rotinas formais da política não configuravam mero procedimento, mas a possibilidade de o Estado conduzir um valioso experimento de pedagogia política. As semelhanças entre as matrizes interpretativas destacadas detém-se, portanto, no plano dos diagnósticos e não avançam nas formulações positivas sobre como a sociedade e a política devem ser. As normas abrigam as diferenças, embora igualmente inscritas na suposição comum da política como lugar de criação.

Rui Barbosa e Assis Brasil: origens do liberalismo republicano

Legado à história como o principal ícone da tradição liberal no Brasil, Rui Barbosa também acumulou o estigma de um intelectual divorciado da realidade do país. Em sintonia com a reflexão liberal de gestação estrangeira, Rui Barbosa passaria ao largo das idiossincrasias nacionais.

Dos discursos pronunciados na Campanha Civilista, de 1909, e na campanha pelo governo da Bahia, de 1919, depreende-se, contudo, uma clara preocupação do político com as particularidades de nossa formação social. À diferença do clássico discurso liberal, que define a ação estatal em patamares mínimos, Rui Barbosa evoca o Estado e os homens públicos como importantes personagens da vida política. O despreparo cívico do povo é tido como resultado da negligência dos governos. Segundo ele,

Se os nossos homens públicos amassem o seu contacto, e lhe cultivassem a companhia [referência ao povo], (...) a nossa nacionalidade teria desenvolvido os costumes do governo representativo, o povo não se retrairia, como se retrai, ao trato dos homens de Estado, e as agitações políticas, tão ordinárias e essenciais nas democracias, não dariam ensejo, aqui, aos maus governos e seus sequazes, de as criminarem como obra de conspiradores, ou manejo de revolucionários (Barbosa, 1967, p.51).

A idéia do povo como objeto de uma classe política vilanizada perpassa seus discursos de campanha na Bahia, nos moldes do fragmento a seguir:

A política, entendida como a ciência de governar bem os homens, as devia acendrar e melhorar [referência às qualidades dos homens], guiando-lhes a educação e a cultura. Bem fora daí, porém, a política, em cujas mãos caiu o sertão baiano, é a que tem por objeto estimular, no homem, os instintos subalternos, asselvajá-lo e animalizá-lo (p.98).

Nesta perspectiva, a política é tida como instrumento passível de bons e maus usos. Na cena política observada, não restariam dúvidas quanto à impertinência das ações dos homens de Estado. Os sertanejos, personagens a que se dirige a campanha política de Rui Barbosa, estariam condenados a uma "vida estagnada e coagulada" (Barbosa, 1967, p.36), a uma existência marcada pelo imperativo da sobrevivência e aprisionada pelas exigências materiais imediatas, fato incompatível com as demandas da vida pública. A causa deste infortúnio era claramente política.

Para Rui Barbosa, a distinção fundamental entre sertanejos e litorâneos era apenas devida ao acaso, relativa ao abismo entre seus respectivos ambientes de socialização. Os processos de grave espoliação que se abateram sobre a população do sertão ter-lhe-iam extinto todo vigor cívico. O acento na idéia de uma "raça inteligente, de grande vitalidade", investida de um "brônzeo heroísmo", localizava a responsabilidade pelos desacertos políticos nos algozes do povo desfrutado. Eram as classes políticas locais, extremamente oportunistas, os sujeitos por excelência da degradação do sertanejo. O fato da profunda desagregação cívica tinha, portanto, uma genealogia social muito evidente.

Nesta perspectiva, o povo, a despeito de sua existência desordenada e amorfa, não constituía um obstáculo ao aprimoramento da vida pública. O Estado, os homens públicos e o próprio ritual eleitoral acumulavam a possibilidade de superação deste grave problema da dispersão. A correção dos meios de constituição dos poderes, por si só, não seria capaz de conduzir essa transformação. A expectativa de metamorfose cívica, embora não anulasse a ação política do povo, não se limitava à expectativa de um espontaneísmo qualificado dos homens comuns, isto é, de um espontaneísmo incrementado pela correção dos procedimentos eleitorais.

Se o voto era tido por Rui Barbosa como direito inalienável dos indivíduos, sua teoria política não prescindia de um movimento que se projetasse de cima para baixo, moldando a cena dissipada conforme a índole unitarista do interesse público. Nesta perspectiva, o povo era tido, simultaneamente, como sujeito e objeto da criação política. Isto é, a condição de sua identidade ativa seria justamente a intervenção modeladora do Estado ou dos personagens da vida pública, destinada à garantia da lisura dos processos eleitorais e também a uma certa pedagogia cívica. Não fosse a interferência de um ator externo, a massa desagregada seguiria entregue às condições de reprodução de seu infortúnio. Não haveria propósito em crer que, deixados a si mesmos, como estavam desde sempre, os homens comuns iriam organizar-se por si sós e, deste modo, configurar, à sua imagem e semelhança, uma Nação ilustrada pela boa política. Todo mimetismo da política com a sociedade estava fadado à reprodução do atraso. A perspectiva mais verossímil, se abolida uma ação incisiva e renovadora por parte do Estado, era, portanto, a de perpetuação do desalento. Considerada a grave apatia política do povo, a cena política não poderia configurar-se como espelho da realidade social, típica metáfora liberal. Se não havia um povo claramente constituído, não havia a possibilidade de a representação política simplesmente reproduzir uma cena social já existente.

A possibilidade de rompimento com esta inércia degenerativa estaria localizada, portanto e sobretudo, no campo estatal. Ao imprimir movimento a um universo estagnado, o Estado poderia ativar um círculo virtuoso, em substituição ao círculo vicioso perpetuador das condições do atraso. No discurso liberal em evidência, os recursos formais da política são investidos de notável força transformadora ou, ao menos, originadora da transformação.

Esta leitura da política não está confinada ao liberalismo ruiano. O argumento de Rui Barbosa tem clara afinidade com a teoria política de Assis Brasil, outra personagem do liberalismo na Primeira República com importante projeção na cena política do Rio Grande do Sul. Assis Brasil manifesta forte crença na capacidade de os meios políticos modificarem e moldarem a índole do povo conforme o imperativo da vida cívica. O lugar da política é definido em franca sintonia com a premissa progressiva e cumulativa da pedagogia. Tal como o aprendizado do andar, quando "a criança hesita, cai e por vezes quebra até o narizinho" (Assis Brasil, 1934), o exercício político implica tentativas e erros sucessivos até o alcance de uma situação mais estável e dificilmente suscetível à queda. Embora Assis Brasil não identifique, como Rui Barbosa, uma natureza heróica no brasileiro, tampouco deriva qualquer sorte de fatalismo político da observação da realidade social.

Para Assis Brasil, portanto, a experimentação é a condição do aperfeiçoamento; o acerto político é o corolário dos desacertos. Ainda que o mau governo seja o destino inexorável dos homens que empreendem o voto desqualificado, é a exposição a este infortúnio que abriga a possibilidade de conversão moral dos eleitores e seus governos. Essa perspectiva de uma pedagogia eleitoral destinada ao melhoramento da vida pública está clara no seguinte fragmento de discurso:

A nação também se corrige, tem também as suas neuroses, os seus momentos, suas hesitações, seus emportements, mas é preciso deixar que ela viva, segundo deva viver. O caso da nação é o mesmo de cada um de nós: (...) na água é que se aprende a nadar. É no exercício da função que o indivíduo adquire idoneidade para essa mesma função. É, pois, preciso que a nação tenha liberdade, não como querem os nefelibatas e sonhadores, para fazer os seus governos de anjos. Quero que a nação tenha liberdade para fazer os seus maus governos, porque é pelo preço de fazer os maus negócios e de dar os maus passos que os homens e os povos aprendem a dar bons e a ser dignos de sua liberdade. A representação ver­dadeira é uma necessidade; não para fazer bom governo, mas para tornar o povo apto a fazer um bom governo (Assis Brasil, 1933).

Para o político gaúcho, a qualidade do governo evoluirá, portanto, na medida da prática eleitoral, desde que garantidas as condições corretas para sua execução. Assim como em Rui Barbosa, e de um modo ainda mais contundente, os procedimentos e o conteúdo da política são percebidos por Assis Brasil como um contínuo. Nesta perspectiva, não há rompimento entre a forma e a substância da política. Isto é, a garantia da forma incide de modo determinante na produção da substância política e vice-versa. Embora não destituído de tensões, o laço estreito entre forma e conteúdo ilustra a crença do liberalismo brasileiro na potência criativa da política, e não meramente na sua capacidade de reproduzir, como uma imagem especular, uma realidade já constituída. Isto é, o universo formal é tido, nesta tradição de pensamento, como instrumento para a metamorfose dos usos e hábitos políticos.

À semelhança da formulação política de Hobbes, portanto, a percepção do liberalismo republicano original era a de que o povo não pré-existia ao momento da representação. À diferença, contudo, do extremo hobbesiano de supressão dos direitos políticos, o sufrágio universal era tido como uma realidade da qual não era possível retroceder. Sendo um dos imperativos da vida moderna, restava aos políticos a educação deste meio. Nesta versão mitigada do princípio hobbesiano de representação, a qualificação política dos cidadãos teria um duplo fundamento: a ação do representante instituído e o próprio processo de constituição de poderes.

Nesta perspectiva, a transição da massa ao povo – isto é, do aglomerado desordenado ao conjunto ordenado de almas populares – resultaria da intervenção criativa do Estado e também das incursões diretas dos eleitores ainda não qualificados à vida pública. Os homens comuns seriam, a um só tempo, produtores e produto da representação política. Este modelo híbrido, a despeito das concessões aos fundamentos do liberalismo clássico, guarda importante semelhança com a matriz hobbesiana de unidade e criação do povo. A concepção de representação política na Primeira República brasileira, a despeito das nuances que particularizam seus diferentes matizes, está claramente pautada, portanto, numa dupla expectativa de iniciativa política dos cidadãos e ação modeladora do Estado.

O positivismo e a representação política como substância

Se a premissa do Estado como móvel essencial da vida pública constitui marco importante do pensamento liberal nas origens da República, foi no castilhismo que este fundamento alcançou expressão máxima. Nesta filosofia política, baseada no positivismo de Augusto Comte, o princípio de impotência do povo é levado ao limite. A constituição estadual do Rio Grande do Sul, de 14 de julho de 1891, subordina toda ação legislativa ao corpo executivo, num claro rompimento com o fundamento liberal da Carta Constitucional do país. Para Assis Brasil, um dos críticos mais contundentes do castilhismo, no estado gaúcho "a Lei Fundamental confere exclusivamente ao déspota a faculdade de fazer as leis, de as regulamentar e aplicar, pondo-lhe apenas na mandíbula pantagruélica uns freios irrisórios de manteiga, que ele traga e digere" (Assis Brasil, 1925). Nesta ordem política, o soberano goza, portanto, de larga concessão de poderes.

A precedência da ciência sobre outros critérios de organização da vida social é a principal marca desta matriz de entendimento da representação política. Longe da fortuna incerta das opiniões, que configuram a política no paradigma liberal clássico, a cena pública apurada pelo saber científico não estaria fadada aos caprichos da forma, mas animada pela atribuição de substância oportuna, que institui estabilidade e permanência na política.

Nesta perspectiva, o entendimento da representação política está menos referido à minúcia dos mecanismos eleitorais do que ao princípio do bem público, que não está disponível às consciências ordinárias e depende de um exercício criativo, e não mimético, da representação por uma minoria esclarecida. Técnica, ciência, competência e saber constituem, enfim, o campo semântico da idéia de representação no marco positivista.

Embora prescinda do conceito de democracia – ou faça a ele concessões meramente formais – , a representação positivista identifica no povo a motivação primordial da ação política. Sem referência aos homens comuns, a moral e a ciência constituem meios desprovidos de finalidade, corpos carentes de alma. A técnica e o imperativo de pureza dos espíritos, temas positivistas por excelência, não se justificam por si mesmos, mas pela convicção de que conduzem a sociedade ao bem comum e, portanto, de que a representam. Se o argumento do saber conduz à definição de uma minoria privilegiada pelo conhecimento, não define uma maioria indigna de representação. A vontade do povo, inacessível a si próprio, é interpretada pelo governante, dotado da faculdade e da oportunidade do conhecimento. À semelhança do Grande Legislador rousseauniano, o chefe político é uma figura excepcional capaz de conhecer a consciência oculta que é de todos e de cada um, sem ser da maioria ou da minoria dos homens. Os sujeitos ordinários e desconhecedores de sua própria vontade são descritos, nesta perspectiva, como objeto – e não sujeito – da representação.

Para Borges de Medeiros, principal operador do castilhismo, todos os homens produzem desejo na medida em que experimentam a necessidade, mas poucos são capazes de refletir adequadamente sobre esta condição comum e ascender à produção de saber. Sendo o desejo uma pulsão elementar, própria de uma "organização cerebral ainda rudimentar" (Medeiros, 1933, p.47), a experiência da opinião, que implica pensamento e conhecimento analítico, ocupa lugar superior e acessível a poucos.

O reconhecimento da opinião como faculdade restritiva sugere a existência de um sujeito cognoscente privilegiado, descolado do reino da escassez imediata e ilustrado pelo exercício da razão, em rígido contraponto aos homens escravizados pelas restrições do mundo material e vulneráveis à imprevisibilidade dos desejos. No texto da plataforma do positivismo ilustrado, lê-se: "quanto aos meios de atingir o fim, compete exclusivamente aos sábios em política escolhê-los. Seria absurdo que a massa quisesse raciocinar." (Paim, 1981b, p.49) O uso do termo massa no lugar de povo não é casual. Tal como em Hobbes, refere-se a um coletivo amorfo, desprovido de identidade e incapaz, portanto, de exprimir uma opinião acabada.

Na política desprovida de ciência e consagrada pelo uso ordinário reside, enfim, a dissipação, o estorvo das facções, a dominância das partes em detrimento do todo. As rotinas eleitorais da Primeira República, marcadas pela fraude, eram tidas como sinal da decadência e imperativo da mudança. O espetáculo periódico dos pleitos eleitorais revelaria o avesso do mundo desejado, a profusão dos interesses particularistas em lugar de ações inspiradas pelo bem comum.

A crítica contundente à rotina política da República assentava-se, portanto, numa visão sobre a representação política radicalmente alheia aos parâmetros da carta de 1891. O rigoroso centralismo castilhista buscava contornar o equívoco da habilitação política direta do povo, deslocando o homem ordinário de sujeito para objeto da política. À diferença da perspectiva liberal, que concebia o povo como autor e ator da política, o positivismo brasileiro não previa uma duplicidade de papéis para o indivíduos comuns. A ação do Estado, devotada ao bem público, deveria ser incontrastável, única hipótese compatível com a expectativa de verdade da representação.

O realismo e a representação política como farsa

Embora constitutivo da visão sobre representação política de liberais e positivistas, o desencanto com a República foi expresso de modo mais contundente por autores realistas como Oliveira Viana e Alberto Torres, dedicados à crítica do desajuste entre norma e prática política. Para eles, o realismo sociológico é condição elementar da arquitetura política; o mundo fenomênico é a única inspiração possível para a política. Nos termos de Alberto Torres, "o senso nacional não pode ser idêntico para todos os povos. O nosso país precisa, de uma vez por todas, formar um espírito e uma diretriz prática, que o conduza" (Torres, 1938, p.46). O encanto com "paradigmas forasteiros" seria um grave mal de nossa constituição política.

Nesta perspectiva, o reconhecimento da própria alma libertaria o povo das angústias que não eram as suas, mas que colonizavam sua identidade política. Não cabia a nós a agonia dos povos desordenados pela ruína de instituições seculares e pelos descaminhos do liberalismo. Era outra a natureza de nossos problemas, ainda obscuros e carentes de investigação. Neste ambiente, grave prejuízo causava a "influência mental da França", que nos fazia repetir, "por símbolos da nossa psicose" (p.76-77), um repertório alheio de preocupações.

Imbuído nesta mesma leitura, Oliveira Viana lamenta: "nenhum dos nossos constitucionalistas havia procurado cunhar as leis em metal brasileiro, dentro dos moldes das nossas conveniências nacionais" (Viana, 1930, p.22). Do abismo entre realidade e legalidade resultava a impossibilidade de uma organização política "viva e orgânica, feita de músculos, nervos e sangue." (p.17) Nossa existência social, sem ossatura e sustentação, alicerçada em rudimentar "patriotismo tribal", não guardava semelhança com as virtudes cívicas de além-mar. Era preciso moldar a política de acordo com as características particulares de nosso ambiente social.

Nesta perspectiva, a sociologia era tida como poderoso determinante da política. A abstração das normas, na visão realista, não era um instrumento favorável à alteração da realidade. Para Oliveira Viana, haveria grave equívoco em conceber a "força lógica do raciocínio e da dialética como agentes determinantes da conduta de multidões" (p.129). Todo intuito normativo era estéril quando alheio ao contexto específico que pretende modificar.

O profundo sentimento de inadequação era expresso, entre outros modos, por forte nostalgia do Império. Feita contraponto prático e moral ao decadentismo republicano, a política imperial era descrita como ação retificadora. A alusão saudosa ao Poder Moderador valorizava sua potência de harmonização de uma cena social dispersa e excessivamente fragmentada. Nada na República assemelhava-se a este notável engenho de organização da vida pública: "nossos costumes de facciosismo e politicagem" (Viana, 1930, p.43) seguiam curso livre, sem impedimentos de qualquer ordem. Faltava um Estado forte que ordenasse os vícios particularistas e operasse como "poderoso modificador sociológico" (p.48).

Além da crítica ao federalismo da Carta de 1891, Oliveira Viana critica, na República, os tempos curtos dos mandatos políticos e as eleições dos poderes Executivo e Legislativo. Aí estariam as origens da instabilidade e dos maus usos da política (Viana, 1930, p.27). O desejo de organização da vida pública, bem como a gestação de um "grande ideal coletivo" (p.314), de que ainda não dispúnhamos, são formulados em outras bases:

Esse alto sentimento e essa clara e perfeita consciência só serão realizados pela ação lenta e continua do Estado um Estado soberano, incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo o país pelo prestigio fascinante de uma grande missão nacional (p.315).

Alberto Torres foi o precursor, entre os realistas, desta alusão ao Estado como fio condutor da política. Para ele, a principal carência nacional era de "um governo consciente e forte, seguro dos seus fins, dono da sua vontade, enérgico e sem contraste". Em oposição à excentricidade liberal, Torres concebia o chamado Poder Coordenador como protagonista da harmonia social. A peculiaridade deste poder era seu caráter vitalício. Sua permanência constituiria valioso contraponto à nociva instabilidade da ordem republicana, flutuante ao sabor do desvio faccioso da política. Tratava-se de opor o permanente ao transitório, com vistas à estabilidade e unidade da vida pública.

O problema central do revisionismo realista era, portanto, o de instituir "um quarto poder, tal como o antigo poder moderador, que, sendo judiciário, também tenha o direito de iniciativa." (Viana, 1930, p.48) A determinação de um centro de forças que submetesse todas as células do governo constituía o contraponto necessário de uma "sociedade sem fixidez, sem ossatura de classes" (p.92).

Diante do fato incontornável de nosso atraso sociológico, o exercício forte da política configurava-se como imperativo social. Para Oliveira Vianna: "os povos de fraco sentimento coletivo, isto é, aqueles em que a consciência do grupo nacional é rudimentar ou nula, não podem elevar-se, por si mesmos, ao culto do Estado e da sua autoridade." (Viana, 1930, p.100) Desta incapacidade de superação espontânea o autor deriva forte associação entre princípio de Estado e realismo:

O Brasil precisa realizar desde já uma alta política de caráter profundamente orgânico e nacional. Esta política, porém, só pode ser feita por iniciativa do Estado. Ora, o Estado, pela maneira por que está organizado na Constituição vigente, não pode eficazmente realizá-la. Logo, tudo depende de uma reforma constitucional que organize o Estado num sentido que o capacite para este fim superior e necessário (p.13).

Diante de uma sociologia extremamente frágil e, ao mesmo tempo, poderosa para definir os rumos da política, o Estado concebido por Oliveira Viana é descrito por sua capacidade de sobrepor-se ao fato da profunda desagregação social. Contra a potência de desordem implicada nas massas, deve-se opor uma força incontrastável. À diferença do liberalismo de Rui Barbosa e Assis Brasil, a condução da vida pública, na perspectiva realista, é claramente incompatível com concessões à expressão política das massas. A habilitação política de indivíduos inábeis configura o próprio avesso do princípio de representação, que supõe a figura metonímica da parte pelo todo. As massas desqualificadas não estão em condições de, efetivamente, projetar-se na vida pública e indicar os bons caminhos. O ceticismo realista com relação às possibilidades de a política configurar o mundo social não é formulado indistintamente, mas em relação aos usos observáveis da política.

No realismo, portanto, não há propriamente uma concepção de representação política, mas de ação política. Isto é, se a representação supõe a projeção virtual das massas ignorantes na configuração da política, deve ser abolida como categoria razoável de intervenção na vida social. Mais acertado é conceber uma ação política estrito senso, que se projeta na cena social para moldar o desastre sociológico. Toda concepção contrária, que supõe a relação inversa de produção da política pelo povo, é tida como falsa e estéril para pensar, realmente, qualquer tipo de metamorfose social possível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a formulação realista seja expressão limite da premissa de inabilidade política do povo, o suposto basilar do Estado como agente de modelação da sociologia teve notável permanência nos diversos entendimentos sobre representação política na Primeira República. Mesmo o pensamento liberal das primeiras décadas republicanas afasta-se do princípio da representação como processo destituído de conteúdo finalístico e afeito unicamente à expressão de vontades pré-constituídas. A versão liberal brasileira imprimiu unidade e substância ao problema representativo. A habilitação cívica do povo não dispensou a ação política marcadamente estatal.

A figura de um soberano resoluto, capaz de imprimir direção à vida pública, não esteve confinada, portanto, aos marcos do positivismo. Sendo criador e criatura da política, o povo era dotado de uma identidade híbrida, moldada em simbiose com a política sediada no Estado. A ação política dos homens comuns não era absolutizada e tampouco suprimível da cena pública.

O Código Eleitoral de 1932, marco jurídico de encerramento da Primeira República no que diz respeito ao tema da representação, expressou claramente a preocupação liberal com a garantia de bases consistentes para a ação do governo. Seu principal autor foi Assis Brasil. Neste texto político, a formulação de um modelo eleitoral híbrido, baseado nos princípios proporcional e majoritário, buscou combinar a representação das minorias com garantias à configuração de uma sólida maioria parlamentar, compatível com as necessidades de governo. Isto é, os segmentos menores do eleitorado eram admitidos na arena congressual na medida em que não produzissem impedimentos para o livre curso da política. Os fragmentos eram habilitados, portanto, sob a condição de não comprometerem a unidade da política.

Além desta arquitetura eleitoral, outras novidades também merecem ser notadas no primeiro código eleitoral brasileiro. A garantia do voto secreto – um avanço com relação ao voto simplesmente coberto – , a extensão do direito de voto às mulheres e, sobretudo, a invenção da justiça eleitoral – que retirou do Legislativo o julgamento da matéria legislativa – foram marcas inequívocas de alargamento do princípio representativo na direção do liberalismo democrático. A preocupação em garantir condições reais para a ação substantiva de governo – sem o obstáculo excessivo das minorias e da crítica – associou-se, portanto, com conteúdos clássicos do liberalismo, afinados com a perspectiva da representação como espelho de uma cena política já constituída. O encerramento formal da questão representativa na Primeira República não escapou, portanto, ao hibridismo liberal da época, que enxergava o povo, simultaneamente, como sujeito e objeto da política.

A conversão em lei desta curiosa formulação política baseou-se num paradoxo original: o fato do avanço liberal ter-se inscrito no preâmbulo de um regime político autoritário. Embora não escapassem ao campo liberal, os temas da unidade e da criação na política foram apenas possíveis, portanto, pelo fato de estarem inscritos numa ordem que já se anunciava autoritária.

(Recebido para publicação em janeiro de 2008)

(Aceito em março de 2008)

Cristina Buarque de Hollanda

Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. Dedica-se, sobretudo, a duas áreas de pesquisa: República brasileira e segurança pública. Em 2005, publicou seu livro: Polícia e Direitos Humanos: política de segurança pública no primeiro governo Brizola no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2008

Histórico

  • Aceito
    Mar 2008
  • Recebido
    Jan 2008
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