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Finanças, política e território

DOSSIÊ

INTRODUÇÃO

Finanças, política e território1 1 Agradeço às professoras Anete B. L. Ivo e Elsa S. Kraychete, editoras do Caderno CRH, pelo convite para organizar este dossiê temático e a maneira serena como lidaram com nossa demora para finalizá-lo. Agradeço igualmente aos colegas cujos resultados de pesquisas integram este dossiê.

Leila Christina Dias

Doutora em Geografia pela Universidade de Paris IV. Professora do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Geociências, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Campus Universitário, Trindade. Cep: 88040-970 - Florianópolis - Santa Catarina. leila@cfh.ufsc.br

Em julho de 1944 - quando a Segunda Grande Guerra chegava ao fim - reuniram-se em Bretton Woods, nos Estados Unidos, delegados de 44 países aliados e neutros. O resultado foi o estabelecimento das bases de um novo sistema monetário internacional, desde então centrado nos Estados Unidos e caracterizado principalmente pela mudança no padrão cambial, da libra esterlina para o dólar, pela criação de instituições monetárias supranacionais - Fundo Monetário Internacional e Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (mais conhecido como Banco Mundial)2 2 Ao Fundo Monetário Internacional (FMI) caberia o papel de regulação do sistema financeiro internacional e ao Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), a missão de participar do financiamento do processo de reconstrução econômica dos países diretamente afetados pela Guerra, especialmente os países europeus. - e pela substituição da regulamentação privada pela regulamentação pública nas altas finanças (Arrighi; Silver, 2001). O sistema de taxas fixas de câmbio instituído em Bretton Woods exigia forte controle sobre os movimentos internacionais de capitais. Havia consenso sobre a necessidade de tal controle, "interpretado como um modo de melhorar a eficácia da política econômica" (Allégret, 2000, p.78). A partir dos anos sessenta, porém, os controles são cada vez mais interpretados como fonte de ineficiência econômica.

Como compreender a construção do novo consenso a favor da liberalização financeira? Segundo Machado (1996), tal construção remonta ao final dos anos cinquenta, com o surgimento do eurodólar e dos mercados extraterritoriais (offshore), que possibilitaram empréstimo de dólares em bancos localizados fora dos Estados Unidos. Arrighi e Silver inscrevem esse movimento no contexto de "incorporação da Europa Ocidental nas redes de poder dos Estados Unidos" (2001, p.155). Segundo eles, a ação governamental norte-americana "preparou o terreno para a transplantação lucrativa das empresas estadunidenses" que se instalaram em grande número na Europa, contribuindo para consolidar a hegemonia norte-americana. Contudo "essa transplantação desenvolveu uma dinâmica própria, que contrariou as expectativas do poderio mundial dos Estados Unidos". Como interpretam os autores, a renda dos residentes dos Estados Unidos e de seu governo não registrou aumento proporcional à apropriação das rendas externas geradas pelas filiais das empresas norte-americanas. Ao contrário: parcela crescente da renda e da liquidez dessas empresas migrou para mercados monetários estrangeiros, justamente quando se agravava a crise fiscal do "Estado de guerra e de bem-estar norte-americano", sob o impacto da Guerra do Vietnam, solapando o sistema monetário mundial concebido em Bretton Woods, porquanto grande parte das finanças em eurodólares escapou da autoridade reguladora de países e de organismos supranacionais.

A partir do fim dos anos setenta, a desregula-mentação ou liberalização financeira iniciada e liderada pelos Estados Unidos atinge outros países centrais que reorganizam suas políticas econômicas, desmantelando o controle sobre os movimentos de capitais. Países periféricos e semiperiféricos da América Latina iniciam reformas econômicas e financeiras a partir de 1985.3 3 I. Wallerstein (1979) formula os conceitos de países centrais, periféricos e semiperiféricos como três possibilidades distintas de inserção na economia-mundo. Segundo o autor, os países semiperiféricos (entre os quais inclui o Brasil) atuam como zona periférica para os países centrais e como países centrais para algumas áreas periféricas. Desde então, cresce a circulação internacional de fluxos financeiros sem controle das autoridades monetárias dos Estados Nacionais. Em 1995, a circulação financeira internacional ultrapassa um trilhão de dólares por dia,

para uma base de trocas efetivas de bens e serviços da ordem de 20 a 25 bilhões, o que significa uma circulação especulativa 50 vezes maior do que a que seria necessária para cobrir atividades econômicas reais (Dowbor, 1998, p.16-17).

Num contexto no qual os grandes bancos internacionais privados assumem cada vez mais tanto a direção e o controle da circulação quanto a reprodução financeira, assiste-se, ao longo das três últimas décadas, à expansão do sistema creditício e sua progressiva dissociação do sistema monetário. Ainda nos anos oitenta, Lichtensztejn sugeria que, se o sistema monetário

... depende fundamentalmente dos processos de circulação e realização de bens e serviços, pode-se inferir que a expansão financeira tende a justificar-se por uma extensão de práticas especulativas (entendendo-se por tais o conjunto de transações que tendem à revalorização patrimonial e de ativos financeiros) (1983, p.32).

Em razão da crescente integração dos mercados, uma crise que comece localizada num ponto impacta de maneira diferenciada em lugares distantes daquele do choque inicial (Martin, 1999). A aceleração da mobilidade espacial dos capitais e das crises se traduziu em instabilidade financeira em todas as escalas geográficas. Ao longo da crise financeira iniciada em 2008, os derivativos - instrumentos financeiros de gestão de riscos de toda ordem concebidos para proteger os agentes econômicos de variações de câmbio, de preços de produtos, de taxas de juros, de liquidez, de crédito e de riscos operacionais - constituíram eles mesmos um novo fator de instabilidade. Como já apontaram Martin (1999) e Plihon (2000) há uma década, derivativos representam um dos instrumentos prediletos dos especuladores.

Globalização financeira e financeirização global são expressões criadas para designar o conjunto de mudanças que, nas últimas décadas, configuram um mundo no qual a lógica das finanças tem marcado praticamente todos os campos da vida social, ou seja, uma financeirização que não decorre somente da ação dos tradicionais capitais bancários. François Chesnais (1998) utiliza o conceito de mundialização financeira para designar a emergência de um espaço financeiro mundial, resultante da liberalização e da desregulamentação iniciada pelos Estados Unidos nos anos setenta do século XX.

Na origem deste dossiê, encontra-se a tese de que a mundialização ou globalização financeira não constitui um processo exógeno, que impacta os países de cima para baixo, mas, antes, constitui um processo geográfico, "... produto das estratégias organizacionais, tecnológicas, regulatórias e corporativas de firmas individuais, instituições e autoridades em localizações específicas (Martin, 1999, p.15). As abordagens geográfica, sociológica e econômica aqui comparecem como possibilidades para compreender as complexas conexões entre finanças, política e território. Ao reunir pesquisadores de horizontes disciplinares diversos, buscamos avançar na compreensão do processo de financeirização contemporâneo, através do estudo de seus nexos, de seus atores e de suas implicações na dinâmica política e territorial, em múltiplas escalas geográficas.

Iniciando o dossiê, o trabalho de Ary Minella mostra como a expansão das ideias neoliberais resultou mormente das práticas de atores sociais que participam em redes transnacionais e como essa forma particular de organização em rede permitiu aos atores deslocarem-se entre diferentes espaços, nos quais e através do quais eles constroem associações com outros atores localizados em outros lugares. Minella seguiu particularmente dois atores principais: o Fundo Nacional para a Democracia (National Endowment for Democracy - NED), organização não governamental criada em 1983 no governo de Ronald Reagan e sustentada com recursos governamentais; e o Centro Internacional para a Empresa Privada (Center for International Private Enterprise - CIPE). Vemos como a ação desses atores se realiza através de uma rede que inclui órgãos do governo dos Estados Unidos, associações empresariais, think tanks, intelectuais, universidades, centros de pesquisa e veículos da mídia, grupos econômicos e financeiros, ONGs e outras organizações da sociedade civil nos Estados Unidos e na América Latina; e como instituições financeiras internacionais e nacionais respondem pelo financiamento de algumas das organizações ligadas ao CIPE, no Brasil e no exterior, revelando uma estrutura complexa e abrangente de relações.

As novas conexões entre mercado imobiliário e capital financeiro na produção do espaço urbano são exploradas por Mariana Fix, em artigo sobre as práticas dos principais agentes envolvidos na expansão de uma fração espacial da metrópole paulista. A autora analisa, em toda a sua complexidade, as conexões entre as estratégias do mercado imobiliário, os circuitos financeiros que impulsionaram o boom imobiliário, a ação dos órgãos públicos - facilitadores desses processos - e os novos modos de acesso ao fundo público, bem como a expulsão violenta e ilegal de moradores de favelas e a luta de resistência da população local. Mariana Fix inscreve essa análise num debate mais amplo, que sugere serem as cidades os principais atores da economia mundial, em especial as global cities. De maneira crítica, conclui que o mito das cidades globais já nasce enfraquecido; as novas centralidades produzidas em cidades como São Paulo reproduzem, em escala modesta, o skyline que mimetiza os centros de comando e projeta, em um país semiperiférico, a imagem de uma global city.

Comprender o papel que o sistema financeiro e as novas formas organizacionais de empresas comerciais exercem na consolidação de um moderno circuito superior e suas conexões com o circuito inferior da economia da metrópole de São Paulo é o objetivo do artigo de Maria Laura Silveira. Ao explorar a complexa organização financeira contemporânea do circuito superior da economia urbana - composto por instituições financeiras bancárias e não-bancárias, redes, franquias e outlet de eletrodomésticos, roupas e materiais de construção - em suas dimensões social e territorial, seu trabalho atualiza a teoria dos dois circuitos da economia urbana formulada pelo geógrafo Milton Santos na década de 1970. Novas formas de crédito pessoal têm favorecido o aumento do consumo, do endividamento, da inadimplência e da insolvência, e as áreas mais densamente ocupadas da metrópole tornam-se localizações necessárias para essas grandes empresas. Ambos os circuitos são simultaneamente opostos e complementares e, como conclui a autora, para o circuito inferior, a complementaridade ganha a forma de dominação.

Na escala regional, Elsa Kraychete analisa a geografia financeira do Estado da Bahia, à luz do reordenamento do sistema financeiro nacional após a década de 1980 e da trajetória recente da economia baiana - que contou com forte aporte de créditos e incentivos fiscais e financeiros. A distribuição espacial da atividade bancária em 2005 - agências, depósitos e créditos - evidencia uma concentração geográfica, que acompanha, grosso modo, a configuração econômica, na qual são destacadas a atividade de exploração e refino do petróleo, a concentração da atividade industrial da Região Metropolitana de Salvador (RMS), a modernização da agricultura e seu encadeamento com a indústria, em especial nas Regiões Sul e Oeste do Estado. Contudo seu trabalho também evidencia que parte das transações financeiras das maiores empresas sediadas na RMS é realizada fora do território baiano, contribuindo, assim, ao debate mais amplo sobre a relação entre crédito bancário e disparidade regional de desenvolvimento no país.

O artigo de Leila Christina Dias e Maria Helena Lenzi parte da hipótese de que as mudanças econômica, tecnológica, normativa, política e espacial estão articuladas num só conjunto interdependente, resultante do encontro entre a internacionalização das finanças e os determinantes internos a cada Estado-Nação (históricos, geográficos, econômicos, organizacionais e políticos). As autoras analisam a reorganização espacial de três grandes redes bancárias privadas no Brasil e concluem que tal reorganização resultou da combinação de processos adaptativos e inovativos. A partir da segunda metade dos anos 1980, condicionantes externos e internos mudaram a trajetória do sistema bancário, o que demandou nova geografia, caracterizada pela retração de agências bancárias no interior de todas as macrorregiões e, simultaneamente, expansão nas maiores regiões metropolitanas do país; em outras palavras, uma adaptação espacial às novas condições macro e microeconômicas. Contudo essa nova geografia não pôde ser tolerada por muito tempo, levando bancos a inventarem ou reinventarem o correspondente bancário, objeto híbrido que combina serviço, tecnologia de comunicação e produto, e que viabiliza uma expansão territorial e social sem precedentes das redes bancárias no território brasileiro.

O artigo de Fábio Betioli Contel aborda a evolução recente do sistema bancário brasileiro através da relação entre os novos conteúdos técnicos, organizacionais e normativos instalados a partir de 1994. Largamente inspirado nos aportes teóricos de Milton Santos, o trabalho mostra como os tempos locais e regionais são cada vez mais substituídos pelos tempos nacionais ou globais, quando famílias e indivíduos passam a contrair dívidas e a comprar produtos financeiros que alteram o ritmo da reprodução cotidiana de suas vidas. As ações individuais e coletivas perdem cada vez mais seu caráter orgânico com os lugares nos quais efetivamente se dão. A creditização do território ou a hipercapilaridade do acesso ao crédito resulta numa racionalidade vertical, eminentemente financeira, que estaria impondo mais uma solidariedade organizacional que uma solidariedade orgânica ao sistema de ações do espaço brasileiro. O autor conclui que a finança se entroniza como um dos principais conteúdos do território e passa a comandar as regiões segundo suas vicissitudes.

(Recebido para publicação em fevereiro de 2009)

(Aceito em abril de 2009)

Leila Christina Duarte Dias - Doutora em Geografia pela Universidade de Paris IV, Professora do Departamento de Geociências, Universidade Federal de Santa Catarina, coordena o Núcleo de Pesquisa Redes e Organização Territorial, desenvolvendo pesquisas na área da Geografia das Redes Financeiras. É autora do livro Réseaux d'information et réseau urbain au Brésil (Paris, L'Harmattan, 1995), co-organizadora das coletâneas Villes et régions au Brésil (Paris, L'Harmattan, 2000) e Redes, Sociedades e Territórios (Santa Cruz do Sul, UNISC, 2007) e autora de vários artigos publicados no Brasil e no exterior.

  • ALLEGRET, J. P. Quel rôle pour le contrôle des mouvements internacionaux de capitaux. Économie Internacionale, Paris, n.81, p.77-108, 2000.
  • ARRIGHI, G.; SILVER, B. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 2001. 333 p.
  • CHESNAIS, F. de. A mundialização financeira São Paulo: Xamã, 1998. 334 p.
  • DOWBOR, L. A reprodução social. Disponível em: http://66.102.1.104/scholar?hl=pt-BR&lr=&client=firefoxa&q= cache:tGDjdeJD3MAJ:dowbor.org/artigos/repro98.doc 2001. Acesso em: 08 jan. 2009.
  • LICHTENSZTEJN, S. A crise financeira internacional, condições e implicações. Revista de Economia Política, São Paulo, v.3, n.2, p.27-49, abr./jun. 1983.
  • MACHADO, L.O. O comércio ilícito de drogas e a geografia da integração financeira: uma simbiose? In: CASTRO, I.E.; GOMES, P.C.C.; CORRÊA, R.L. (Org.). Brasil - questões atuais da reorganização do território Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p.15-64.
  • PLIHON, D. Les enjeux de la globalisation financière. In: CORDELLIER, S. (Org.). La mondialisation au-delà des mythes Paris: La Découverte, 1997. p.69-79.
  • WALLERSTEIN, I. The capitalist world-economy Cambridge: Cambridge University Press; Paris: Maison des Sciences de l'homme, 1979. 305 p.
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    Agradeço às professoras Anete B. L. Ivo e Elsa S. Kraychete, editoras do
    Caderno CRH, pelo convite para organizar este dossiê temático e a maneira serena como lidaram com nossa demora para finalizá-lo. Agradeço igualmente aos colegas cujos resultados de pesquisas integram este dossiê.
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    Ao Fundo Monetário Internacional (FMI) caberia o papel de regulação do sistema financeiro internacional e ao Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), a missão de participar do financiamento do processo de reconstrução econômica dos países diretamente afetados pela Guerra, especialmente os países europeus.
  • 3
    I. Wallerstein (1979) formula os conceitos de países centrais, periféricos e semiperiféricos como três possibilidades distintas de inserção na economia-mundo. Segundo o autor, os países semiperiféricos (entre os quais inclui o Brasil) atuam como zona periférica para os países centrais e como países centrais para algumas áreas periféricas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009
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