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Tradição e identidade: a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA

MEMÓRIA

Tradição e identidade - a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA1 1 Discurso de posse na Direção da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia UFBA, proferido em 21 de agosto de 2009.

João Carlos Salles

Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor da Universidade Federal da Bahia. Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Estrada de São Lázaro, 197. Cep: 40210-730. Federação Salvador - Bahia - Brasil. jcsalles@ufba.br

Instituições com identidade bem estabelecida nos parecem um tanto estranhas. Bem organizadas, com tarefas apenas rotineiras, funcionam como sem falta. Para instituições assim, sugere Hegel, "é a maior felicidade não ter história, assim como as nações consideram como os mais felizes os períodos que não são históricos".2 2 Discurso de encerramento do ano letivo de 1810 no ginásio de Nuremberg, in HEGEL, G. W. F., Discursos sobre Educação, Lisboa, Colibri, 1994, p. 41. Nesses casos, cada ano vindouro conservaria o mesmo interesse do tempo da fundação, a guardar e ratificar o sabor de uma origem. Em outro momento, três anos depois, Hegel reafirma: "A maior sorte de um estabelecimento é não ter história, apenas duração".3 3 Discurso de encerramento do ano letivo de 1813 no ginásio de Nuremberg. In: HEGEL, G. W. F., Discursos sobre Educação, p. 71.

Não temos essa sorte, nem a queremos. É, afinal, um traço nosso ter bastante história, e mesmo já alguma duração. É verdade que o lema da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas aponta para a tarefa de preparar por meio da tradição.4 4 Brasilidum sobolem traditione paro. Isso, porém, até em situações pacíficas, não seria suficiente para nos definir uma identidade ou um estilo, para além da diversidade dos projetos, da provisoriedade antiga e quase simbólica de algumas de nossas construções, da pressa de alguns gestos, da dispersão de forças, que, não obstante, sugerem uma unidade, esboçam uma harmonia, como se indecisas entre o valioso pluralismo e a indesejável fragmentação.

Em momentos como este, em uma cerimônia de posse, em que a comunidade se volta a si mesma, a origem costuma ser o alvo. E não nos furtamos em retomá-la, mas não como causa ou danação, e sim como fonte de sentido. Desse modo, tradição não precisa ser simples passado. Tradição pode ser escolha e reinvenção das origens. Afinal, lembra-nos Walter Benjamin, "articular historicamente o passado não significa apenas conhecê-lo tal como ele foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência tal como ela relampeja no momento de um perigo."5 5 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas, São Paulo: Brasiliense, v. 1, 1985, p. 224. Nesse sentido, recuperar o passado é também esquecer muitas coisas e saber escolher os fatos, dando voz até a projetos que ainda não se cumpriram.

Preparar por meio da tradição. Qual, porém, nossa tradição? Ora, quando Isaías Alves declamava o lema, pensando no cultivo da juventude brasileira por meio da tradição ou no preparo de intelectuais para as "atividades da alta cultura", permitia-se sempre enfatizar um advérbio: patrioticamente. Mas nossa instituição nunca foi monolítica. Nossa tradição sempre se fez do que afirmamos e do que recusamos. É tanto o que produzimos quanto algumas recusas, como o repúdio a grandes ou pequenas tiranias.

Mais que isso, é da nossa tradição não ter nossa identidade como um dado. Há 20 anos, em 1989, Ruy Simões, que fora diretor da Faculdade de 1980 a 1984, produziu um pequeno livro, intitulado "A Faculdade de Filosofia e sua Identidade Perdida" - texto fortemente marcado por seu virtuosismo com a língua, seus muitos jogos verbais, sua voz personalíssima, suas idiossincrasias.6 6 SIMÕES, Ruy. A Faculdade de Filosofia e sua Identidade Perdida. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1990. Confesso até ter gostado mais do texto agora do que naquela época. Mas, concordemos ou não com ele, temos aí um documento claro e farto em dados de quão transitórios têm sido os gestos definidores da Faculdade e quão esgarçado, por vezes, pôde estar seu tecido.

Pois bem, a reflexão de Ruy foi provocada pelo então diretor, o Prof. Ubirajara Dórea Rebouças, que, em meio a uma greve, conclamara a escola à reflexão, para além do imediato do movimento sindical. Na apresentação do livro, Bira7 7 N. Ed.: Forma sintetizada de Ubirajara. Maneira como ele era chamado pelos colegas. sintetiza, na expressão "identidade da FFCH", não uma resposta, mas sim uma interrogação sobre a finalidade, as funções, o desempenho, e o papel de nossa Faculdade, adiantando-nos um diagnóstico deveras cruel. A crise seria crônica, pois resultante de um processo, à época interno, de ausência de unidade, de sorte que nossa substância inane não nos permitia realizar a unidade na diversidade, e o diretor, afirma, não expressando um corpo acadêmico, ver-se-ia reduzido a "simples administrador da massa falida". Mais ainda, ver-nos-íamos tragados por mera rotina burocrática, acentuada pela fragmentação de departamentos, colegiados e demais instâncias, estando ausentes de nossa vida, nada universitária, as discussões propriamente acadêmicas, a saber, as que dizem respeito à articulação essencial entre meios e fins da instituição, entre ensino, pesquisa e, podemos acrescentar, extensão. Um efeito desse processo seria a falta de compromisso de docentes e funcionários, esquecidos, dizia, "de sua responsabilidade social de servidor público". Dessa forma, em tom moralizante, Bira fazia eco ao sentimento quase religioso de Ruy, que houve por bem, em estilo antigo, em boa tradição, dedicar seu livro "àqueles que, a montante ou a jusante, serviram ou servem à faculdade", e certamente não aos que apenas se servem dela.

Ao mencionar uma crise crônica e mesmo a ausência de uma substância, Bira trai claramente sua posição, qual seja, a de não haver uma identidade prévia e, logo, menos ainda, uma identidade perdida. Em ardil que bem sabia a um lance literário, Bira fomentou esse movimento em busca da identidade perdida de todo consciente da inexistência de qualquer identidade, mas também convicto de que, por nossa mobilização, pelo exercício (ele diria, implacável) da crítica, estávamos, todavia, destinados a inventá-la, a construí-la, a escolher uma natureza entre possibilidades até conflitantes. É no cerne de tal escolha que somos levados a refletir sobre São Lázaro, como costumamos designar o espaço da Faculdade e quase tudo que lhe concerne.8 8 A Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, fundada em 1941, transferiu-se para a Estrada de São Lázaro em 1974.

A Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas apresenta, decerto, vários problemas - alguns oriundos de sua própria grandeza e mesmo bastante antigos. A área da Faculdade a torna, sozinha, um campus significativo, com entorno certamente rico, mas igualmente tenso. São conhecidos os problemas de segurança, de limpeza, de iluminação, de paisagismo.

Dificuldades de ordem acadêmica são também conhecidas, estando apenas em parte conectadas com as condições de nosso espaço. Por exemplo, tendo em vista a dimensão da pesquisa e a produtividade dos pesquisadores, é estranho nosso desconhecimento mútuo, a falta de debates acadêmicos ou políticos, o isolamento das pesquisas, a falta de diálogo entre os pesquisadores, a não permanência de professores e estudantes em nosso espaço acadêmico. Apesar de significativos ganhos recentes, ainda nos faltam gabinetes e espaços de convívio; nosso espaço físico e nossas condições de trabalho ainda deixam a desejar e ainda temos razões para nos sentir ameaçados pela chuva ou por alguma inoperância burocrática.

Os que então têm assumido tarefas administrativas, ou têm lutado para consolidar grupos de pesquisa, ou realizar atividades de extensão, esses sabem ainda mais e melhor como nosso cotidiano é uma constante luta, faltando-nos apoio e recursos, quando nos sobram talento e dedicação. São dificuldades significativas, que nos afetam o trabalho, o prestígio institucional, a realização pessoal e profissional, a qualidade de nossas pesquisas, a constância e a repercussão de nosso ensino, nosso papel na UFBA, nossa interação com as comunidades em nosso entorno e com a sociedade.

Entretanto, por outro lado, nossos traços singulares, nossas conquistas institucionais, nosso esforço constante e coletivo por realizar, na Bahia, uma formação e uma pesquisa de qualidade, nossa vocação clara para a reflexão e o intercâmbio acadêmico, além do compromisso histórico de nossa Faculdade com o projeto de uma universidade pública, gratuita e de qualidade, tudo isso guarda aspectos muito positivos e nos aponta fortes possibilidades de realização institucional e acadêmica.

Tivemos o privilégio de acompanhar, dia a dia, a gestão do Prof. Antônio Jorge Fonseca Sanches de Almeida, Diretor pro tempore, nesse período de transição, que de fato se encerra agora. Jorge foi todo zelo nesse período de cinquenta e hum dias, enfrentando logo várias questões de ordem a mais prática e debatendo antecipadamente conosco, com a Diretoria eleita e nomeada, todas as decisões mais gerais, ao tempo que, diligentemente, nos poupou de um trato mais direto com a administração, quando ainda nos seria impossível, por dezenas de razões, assumir direta e imediatamente a direção da Faculdade. Temos todos com ele um preito de gratidão e, em especial, Victória e eu.

Ter acompanhado essa breve e arrojada gestão nos permitiu dimensionar ainda melhor um significativo conjunto de problemas, mas pudemos ver também muitas soluções possíveis. Mais ainda, pudemos ver mais de perto a justeza do caminho que tanto destacamos em nosso programa de gestão, inclusive para decidir entre soluções conflitantes, a saber, o caminho de valorizar e enriquecer o espaço da congregação da faculdade em nossas deliberações. Esse caminho continuará sendo uma pedra de toque em nossa gestão, e deve ser sempre trilhado e cuidado, pois, como diz o poeta, "Até os caminhos morrem"9 9 N. Ed.: Antonio Oliveira (Antonio Mariana Alberto de Oliveira). Poeta, professor e farmacêutico, nascido em Palmital-RJ, 1857. .

Amparados pelo bom diálogo que temos mantido com todos os segmentos da Faculdade, Victória e eu sentimo-nos autorizados a anteciparnos a esta cerimônia de posse em algumas iniciativas importantes, para as quais sempre buscamos a ciência e o apoio da Congregação. Por exemplo, a articulação promovida entre os programas de pósgraduação da FFCH, permitindo-nos a apresentação de uma proposta conjunta e de monta no Edital Pró-Equipamentos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, por conta da qual esperamos ter em breve, na Faculdade, um sofisticado Laboratório de Informática e ainda compensar antigas deficiências em equipamentos.

Também submetemos à Congregação, e nela aprovamos por unanimidade, a realização do I Encontro dos Programas de Pós-Graduação da FFCH para o período de 30 de novembro a 4 de dezembro, com o qual, no mesmo sentido de construção da unidade de São Lázaro, poderemos ter uma maior interação entre pesquisas e pesquisadores, dando sinais da nossa condição de polo regional na filosofia e nas ciências humanas, com rico intercâmbio nacional e internacional. Estamos, assim, com iniciativas como essas, combatendo desde já a fragmentação, a mera competição, que, como todos sabem, sozinha, sem um autêntico contexto universitário, pode até trazer mais resultados, mas não o melhor das pessoas.

Na segunda metade do século XVIII, Georg Lichtenberg (1984) escreve:

Na república dos sábios cada um quer mandar. Lá não há nobres. Isto cheira mal. Todo general, por assim dizer, precisa esboçar seu próprio plano, montar sentinela, varrer a guarita, buscar água. Ninguém quer cooperar no trabalho com o outro."10 10 LICHTENBERG, G. Chr. Aphorismen. Stuttgart: Reclam, 1984, p. 84.

Decididamente, nosso modelo não pode ser esse. Somos parte, e uma parte essencial, de uma Universidade, a mais bem consumada negação da república de sábios ou falsos eruditos descrita por Lichtenberg. É certo que a Universidade também se alimenta da energia dispersiva e competitiva de eventuais pesquisadores ou grupos em favor de sua unidade e sentido. Ela, todavia, não se mede por resultados, mas, sobretudo, por um modo de chegar a certos resultados - para nós, um modo singular de articular os conceitos 'pesquisa', 'ensino' e 'extensão', que nos dá um sentido próprio, uma cor local, e nos projeta uma unidade.

Vale repetir o que enunciamos, Victória e eu, em nosso Programa de Gestão. Uma Universidade autêntica nunca se resume a uma instituição de ensino, nem é sua marca própria a mera prestação de serviços. Uma Universidade pode formar pessoas e ter um ensino de qualidade exatamente pelas pesquisas que desenvolve e pela relação singular e orgânica que estabelece com a comunidade. Assim, como instituição pública, democrática e gratuita de ensino superior, a Universidade se caracteriza por produzir conhecimento, mantendo uma necessária relação com a sociedade em que se insere, de sorte que tal laço indissolúvel entre ensino, pesquisa e extensão deve ser bem mais que uma simples bandeira. Tal laço nos define. Desse modo, dada sua natureza, seu compromisso com a produção de conhecimentos e sua interação com a sociedade, a Universidade torna-se lugar natural de concorrência entre saberes e também de crítica e de reflexão, sendo forte e necessária sua resistência ao que porventura possa ameaçar seu espírito crítico e cívico - espírito mediante o qual ela pode distinguir, por exemplo, os interesses de longo prazo da sociedade dos interesses imediatistas do mercado.11 11 Como já repetimos tantas vezes, citando um trabalho coordenado por Pierre Bourdieu: "A universidade é um lugar, talvez o único lugar de confrontação crítica entre as gerações, um lugar de experiências múltiplas, afetivas, políticas, artísticas, por completo insubstituíveis [...]; lugar de concorrência entre saberes, de seu colocar-se em questão; e, portanto, forma insubstituível de espírito crítico e cívico, de espírito cívico crítico, lugar que viria a desaparecer atrofiando toda reflexão geral, aquela capaz de ultrapassar os limites das especializações disciplinares e das competências economicamente funcionais [...]." ARESER, Quelques diagnostics et remèdes urgents pour une université em péril, Paris, Raisons d'Agir, 1997, p. 120-121.

Ora, em uma instituição com essa natureza singular, lugar de formação e de crítica, lugar de agregação universal de saberes que não podem fragmentar-se e tampouco devem ser isolados da comunidade, é evidente a importância e mesmo a centralidade de uma Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Em sendo assim, por sua história e por seu trabalho, nossa Faculdade tem e deve continuar a ter o dever de exercitar, no conjunto do ensino, da pesquisa e da extensão universitárias da UFBA, a prerrogativa distintiva de uma reflexão capaz de se voltar criticamente para as atividades de toda Universidade e de, em grande parte, questionar-lhe o sentido. Afinal, não pode haver Universidade autêntica sem o aporte crítico das ciências humanas, aporte que não pode ser circunscrito a atividades separadas do conjunto da dinâmica acadêmica, como se prestássemos serviços de ensino, como se nossa pesquisa e nossa ação não fossem de extrema relevância e não devêssemos antes influir nos projetos mais amplos e de mais longo prazo de nossa Instituição.

Para tal tarefa positiva e crítica, que nos concerne especialmente como centro da reflexão das ciências humanas na UFBA, talvez nunca tenhamos estado tão bem preparados acadêmica e cientificamente. Nosso corpo docente muito se qualificou ao longo dos últimos anos, nossa produção cresceu em volume e, em seu conjunto, elevou-se em qualidade, de sorte que, por exemplo, somos hoje uma unidade da UFBA com significativo número de bolsistas de produtividade a ela vinculados (a saber, cinte e cinco), e temos hoje um maior envolvimento de professores e estudantes em programas como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC e o Programa de Educação Tutorial - PET. Nossos grupos de pesquisa registrados no CNPq, cerca de trinta, se fortalecem cada vez mais. Além disso, cresceram em importância tanto nossos trabalhos de extensão quanto, sobretudo, nossas atividades de ensino, com as quais, além de nossos cinco cursos de graduação, atendemos a demandas de todas áreas de formação da Universidade. Enfim, vale destacar o significativo crescimento de nossa pós-graduação, lugar de extrema conjugação entre ensino e pesquisa, pois que hoje contamos com seis programas, todos eles, finalmente, com Mestrado e Doutorado - o que certamente traz bons efeitos para a graduação e para nossas ações extensionistas. Ademais, de modo singular, nosso crescimento institucional está intimamente ligado ao funcionamento de outros órgãos essenciais à pesquisa e à extensão em nossa Faculdade, como o CEAO, o NEIM, o MAE, o CRH. Tais órgãos constituem um dos modos como a pesquisa, que nos é essencial, encontrou expressão em nossa Faculdade, contribuindo para o fortalecimento dos programas e a formação de novos intelectuais.

Entretanto, muitos têm constatado, na UFBA, a dispersão de recursos e temem o enfraquecimento das unidades, associando tais malefícios à natureza pura e simples de tais órgãos, frente aos quais, na ausência de normas adequadas, a UFBA estaria indefesa, sendo, pois, ameaçadora a apresentação de novas propostas de órgãos suplementares, vinculados embora a unidades universitárias. Em sendo assim, o Conselho Universitário - CONSUNI, guardião dos mais elevados interesses universitários (ao lado, é claro, do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão - CONSEPE e do Conselho de Curadores), decidiu corrigir o que lhe parecia uma ameaça institucional: a criação de novos órgãos com base no controle de grandes verbas financeiras, o que, eventualmente, poderia trazer distorções às estruturas de funcionamento das unidades de ensino, desprovidas de recursos financeiros e de funcionários. Também as prerrogativas das direções pareciam diminuídas pela presença de órgãos suplementares nas unidades, com dotação orçamentária, funcionários e mesmo cargos de direção próprios.

No abstrato, não duvidamos, a preocupação é legítima, e a resolução decorrente parece refletir o zelo institucional do CONSUNI e, em especial, de sua Comissão Permanente de Normas e Recursos. No concreto, porém, um testemunho específico deveria ser solicitado à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, pois ela, mais que qualquer outra, encontrou, nos órgãos suplementares, uma forma privilegiada de fortalecimento da pesquisa e dos programas existentes.

Podemos testemunhar, em nome da Congregação, que a Faculdade não discutiu, da forma aprofundada que o tema o requer, as consequências dessa Resolução do CONSUNI. Podemos testemunhar também, neste ato público, que nossa Faculdade nunca se sentiu diminuída ou ameaçada pela existência dos órgãos suplementares. Se tais órgãos conformam eventualmente algum território, se tendem de alguma forma ao insulamento, o mesmo fenômeno indesejável, como vimos, tem ocorrido com grupos de pesquisa, com pesquisadores e com programas. Dessa maneira, torná-los em alvo por tais razões, a nosso juízo, é antes confundir o efeito dispersivo com a causa da dispersão, infligindo-nos um remédio com danos superiores aos males que, supostamente, pretende-se curar. Sinal claro de uma consequência deveras preocupante é o movimento natural e justo desses órgãos que, em reação à mudança, ora pleiteiam a criação de institutos próprios, quando razões acadêmicas talvez sugiram ser natural e bem mais profícua a continuidade de sua presença no seio de nossa Faculdade. Com isso, é flagrante o dano: a Resolução que pretendera proteger as unidades pode inclusive nos ameaçar a inteireza.

Temos, porém, certeza de que o Conselho Universitário, sabendo que nunca discutimos em nossa congregação o sentido ou a letra da Resolução, não nos vai impor um favor indesejável. Cometemos um erro, sem dúvida alguma, pois era nossa obrigação, uma vez alertados de um prazo, ter tomado todas as providências para aprofundar o debate em nossa comunidade. Os próprios órgãos apenas de modo tardio se deram conta da gravidade da situação. Nossa equivocada apatia, contudo, não pode ser tomada como razão adicional, devendo-se ela talvez a um momentâneo esvaziamento da política acadêmica e institucional entre nós- esvaziamento que não pretendemos mais tolerar, como, aliás, o mostra esta nossa posse coletiva.

Conhecedores do compromisso de cada conselheiro com nossa instituição e com a democracia, admitimos que suas razões podem ser bem mais profundas e acertadas do que o exprimimos neste discurso. E mesmo temos sinais de que a Comissão de Normas e Recursos não pretende perseverar em seus argumentos sem ouvir os nossos. Não irá decidir de uma vez para sempre sobre o que tanto nos afeta, sem procurar conosco soluções que sejam inovadoras e, quem sabe, ainda mais universitárias. E, aliás, no sentido de uma interlocução profícua, nossa congregação aprovou por unanimidade convidar os membros da Comissão de Normas e Recursos do CONSUNI e demais concernidos pela Resolução para um cuidadoso debate em nossa Faculdade, de modo que boas razões sejam apresentadas, e possamos crescer juntos.

A nosso modo, assumimos doravante a tarefa de dar continuidade às ações positivas de gestões anteriores. Não podendo mencioná-los extensamente, queremos inclusive que os ex-diretores (presentes ou ausentes) se sintam todos homenageados e concernidos na menção que fizemos aos nomes de Ruy Simões e Ubirajara Rebouças. Quanto à gestão anterior, cabe, porém, um especial registro. Inegáveis conquistas na área da Faculdade, como a construção do Pavilhão de Aula de São Lázaro - PASL, têm a marca da dedicação institucional da Profa. Lina Brandão de Aras, e isso nunca deve ser esquecido. Com o PASL e a perspectiva de reforma do Pavilhão de Aulas Raul Seixas, teremos uma nova realidade de equipamentos voltados para o ensino, cabendo aqui também dar um testemunho de como tem sido harmoniosa a relação entre a Direção de FFCH e a Coordenação de Instalações Especiais da UFBA, sob a responsabilidade de Fátima Bentes.

Temos agora outras condições, estamos contentes com elas, mas certamente não estamos de todo satisfeitos. Com efeito, não almejamos em São Lázaro12 12 N.Ed.: São Lázaro - Denomina o espaço físico onde está instalada a FFCH e seus orgãos. Refere-se também à comunidade da FFCH. apenas o trânsito de pessoas. Queremos condições para o bom convívio acadêmico, com ambiente propício ao deslizamento paciente dos conceitos, à circulação das ideias. E também nenhum de nós há de esquecer o fato de que esses equipamentos novos ou renovados, servindo à UFBA inteira, não deixam de estar no espaço singular de São Lázaro, não podendo eles suprimir nossos espaços de diálogo ou se destinar apenas a atividades de ensino, sob pena de, paradoxalmente, nos tornarmos "horistas" em nossa própria casa.

Não há Universidade sem a sociabilidade propícia e necessária à nossa produção acadêmica. Desse modo, apoiaremos todas as iniciativas de uso desses espaços em São Lázaro, supondo que se deem no interesse de uma universidade pública e democrática e com a certeza de participarmos (quando menos, pela cortesia da consulta) no delineamento de ações que, queiramos ou não, nos concernem. Esmaecer a pregnância de nossa cor local em nossa própria casa seria uma violência intolerável. Nossa Congregação tem estado ciente disso, e doravante sempre estará presente, procurando dar-se o tempo de deliberar com paciência e clareza.

A extensão, por exemplo, que sempre nos caracterizou, pode encontrar nesses novos equipamentos especial guarida. E, como somos feitos em grande parte da argila dessas comunidades que também estudamos, a interação está em nosso horizonte e em nossa ação extensionista. Assim, a extensão entre nós não se reduz a um "utilitarismo", uma relação unilateral, a tornar a comunidade uma fonte de dados de pesquisa, sem o cuidado de sequer fornecer-lhe, posteriormente, o diagnóstico ou os resultados do trabalho. Ao contrário, lembrando Manoel José de Carvalho,13 13 N. Ed.: Foi Diretor da Faculdade de Arquitetura e Pró-Reitor de Extensão da UFBA (1951/2005). procuramos "trocas condicionadas", uma forma mesmo de parceria, na qual a comunidade se afirma como uma detentora de saberes que, voluntária e controladamente, apresenta aos acadêmicos. Decerto, tal relação aproxima-nos bem mais de um trabalho típico da extensão universitária, porquanto nele sujeitos dialogam no que têm de melhor - e de forma completa e não subordinada. Nesses casos, o historiador pode beneficiar-se do saber do filósofo, bem como do antropólogo; e abre-se uma porta para uma prestação de serviços dirigida pelo interesse amplo e difuso da comunidade, e não pelo interesse particular de um treinamento, sendo possível chegar-se, no limite, lembrando aqui a visão de um Felippe Serpa,14 14 N. Ed.: Luiz Felippe Serpa - Reitor da UFBA (1993/1998). à pura forma de um "respeito", na qual não se pede nem se oferece nada em troca, salvo o reconhecimento mútuo, a própria reciprocidade, criando como que um "entre-lugar", um espaço que, por isso mesmo, em sendo de convívio, alterna os polos de ações que, antes, amiúde fariam preponderar os universitários.

Em sendo assim, a extensão não é, sobretudo, o que se faz fora, mas o lugar no qual se mostra o que está dentro e se cifra, em suma, o que é ser Universidade. A extensão desafia a setorialidade, solicita inteireza, quebra especializações, sendo, pois, uma função definidora, que ensina a Universidade a realizar sua essência e mesmo a desconhecer fronteiras. Por isso mesmo, sabendo que extensão não é caridade nem assistencialismo, sabendo que extensão e pesquisa não são incomensuráveis (como aprendi com Manoel José, com Felippe e, principalmente, com Paulo Costa Lima), estaremos criando um Núcleo de Extensão, através do qual aprofundaremos nossas interações com as comunidades, em especial as que estão no entorno de São Lázaro, como Calabar, Binóculo e Alto das Pombas.

Nesse sentido, podemos adiantar, saudando aqui o Sr. Secretário de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza do Estado da Bahia, Walmir Assunção, que estaremos assinando com a SEDES um termo de cooperação e, após os trâmites na UFBA, firmando um convênio, a partir do qual, já nos próximos dias, 60 jovens dessas comunidades serão selecionados para terem aulas em São Lázaro no turno vespertino, em duas turmas, pelo período de um ano, com a participação de docentes da Faculdade na formação dos educadores sociais responsáveis pelo programa "Juventude na Ativa". Podemos anunciar ainda que, por essa iniciativa, contando com a aprovação de nossa Congregação, as inscrições já estão ocorrendo na sede da Associação de Moradores do Calabar, sendo o objetivo do projeto "preparar os jovens para atuações críticas em suas comunidades, estimulando seus desenvolvimentos pessoais e sociais, investindo na formação socioprodutiva, fortalecendo os vínculos familiares, garantindo espaço de autonomia, valorização da questão étnico-racial, gênero, orientação vocacional e acesso a bens e serviços." Tudo isso, pois, no autêntico espírito de São Lázaro.

Assim como um sacerdote precisa, por vezes, conversar com as plantas, sussurrar às folhas seu nome, avivar-lhes a memória, lembrarlhes seu poder, para que elas se nos entreguem e sejam veículos de suas propriedades mágicas, uma instituição precisa por vezes ser lembrada de seu nome, de modo que possa reconhecer-se em sua duração e para além dela.15 15 Cf. BRAGA, Júlio. Oritamejí: o antropólogo na encruzilhada. Feira de Santana, UEFS, 2000, p. 200-201. Esse sussurro, para nós, foi a consulta eleitoral à comunidade de São Lázaro, na qual brotaram interrogações que, com algum atrevimento, podemos enunciar. Se São Lázaro é dos mais belos ou mesmo o mais belo lugar da UFBA, por que ficaríamos impotentes ante uma aparente degradação? Se ele é, com efeito, lugar da produção acadêmica, da pesquisa, do ensino e da extensão, por que aceitar a fragmentação, a dispersão das pesquisas e dos esforços? Se ele é um lugar de maravilhas, formador e inesquecível para quantos nele puderam crescer, por que não estamos mais presentes? Por que nos privaríamos das trocas simbólicas características, que nos fazem mais fortes e, mais que isso, nos esboçam algo de uma identidade?

A comunidade mostrou-se, com tais perguntas, ciosa de seus afazeres e encantos, como se os filhos e amigos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas cobrassem motivos de boa festa para essa jovem senhora que, em 2011, durante nossa gestão, completará 70 anos. É, aliás, uma honra, uma obrigação nossa, preparar-lhe uma grande festa. E a acolhemos com alegria, pois nosso fardo, como em toda obrigação, é possibilidade mesmo de leveza.

Na consulta eleitoral, com votação global expressiva, nossa candidatura obteve 96% dos votos dos professores, 97% dos votos dos estudantes e 100% dos votos dos funcionários. A responsabilidade nos pareceu logo imensa. Sentimos que os filhos e amigos de São Lázaro, inclusive os mais afastados da Faculdade, depositavam em nossa gestão grandes esperanças. E olhem que há filhos de São Lázaro nos jornais, nos partidos, no estado, na academia, nas comunidades, nos movimentos sociais.

Ante tal responsabilidade, devo confessar, em uma voz mais pessoal, que, por quatro razões, me senti suficientemente tranquilo, uma vez que todas essas razões quebram a ameaçadora solidão da diretoria de uma unidade universitária. Em primeiro lugar, por ter a certeza de que firmamos e reafirmamos, hoje, um compromisso coletivo de participação, mas também de responsabilidade com o requinte acadêmico de São Lázaro e até mesmo, por exemplo, com a segurança em nosso espaço. Em segundo lugar, por saber que as instâncias todas da UFBA, deliberativas ou executivas, dão provas constantes de elevado compromisso institucional. Em terceiro lugar, por saber que, de modo especial, continuamos a ter, no Instituto de Psicologia (que aqui saudamos com respeito e afeto), um parceiro privilegiado, com o qual mantemos e mesmo devemos aprofundar íntimas relações acadêmicas e institucionais. Enfim, em quarto lugar, pelo grande privilégio de ter a meu lado, na Direção da Faculdade, a Profa. Maria Victória Espiñeira González. Foi para mim uma honra que ela tenha aceito dividir comigo essa grande responsabilidade, e registro aqui, com confiança e com gratidão, o quanto admiro sua serenidade, firmeza, competência intelectual e caráter. Por essas razões, confio que nossa gestão pode favorecer o projeto coletivo de devolver à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas sua centralidade na UFBA.

Falamos muito em centralidade, e aqui cabe relembrar. Em nossa tradição, está a escolha de ser uma Universidade. E a Universidade é uma das poucas instituições que podem suportar, sem grande ridículo, uma imagem outrora utilizada para sugerir-nos a divindade. Ela é uma esfera cujo centro está em todas as suas partes e a circunferência em nenhuma. Todas as unidades e as múltiplas dimensões da vida acadêmica devem, portanto, beneficiar-se do conjunto de relações, e, em nenhuma parte, a imagem deve gerar o mais mínimo desconforto.

Talvez pretendamos, pois, algo simples. Sermos centrais é sermos exemplares. Queremos, com isso, que a comunidade da UFBA (e também as comunidades que se pensam na Universidade ou com ela), que essa comunidade plural, sem dentro e sem fora, encontre, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, nesse lugar o mais belo, um centro possível e, quem sabe, sua álgebra.

Somos, assim, um exemplo de vida universitária. Como tal, faz parte de nossa tradição a crise, mas também seu enfrentamento; a fragmentação e, mais ainda, sua recusa. Como se fôssemos uma espécie rara de nômades sedentários (sempre de mudança e, contudo, condenados à permanência), unimo-nos para resistir à precariedade, ao desgarramento, à ameaça interna ou externa de fragmentação ou dispersão de nossas forças.

Afirmamos a identidade que ora inventamos, exatamente ao defendermos o modo singular por que, entre nós, com grande riqueza, a pesquisa conquistou excelência, a extensão relevância social e o ensino evidente qualidade. Resistindo à dificuldade de sermos um campus com aparência de abandono, optamos pela beleza, pela construção do espaço, pela capacidade crítica, que ainda mais fundamente nos caracterizam. Em um momento assim, inventamos nossa origem na causa seminal de uma universidade pública, de sorte que a tradição, invocada em nosso lema, liberta de qualquer conotação reacionária, não precise mais remeter ao advérbio preferido de Isaías Alves (patrioticamente), devendo, antes, ser reconhecida em outra medida, a um só tempo, instável e segura. "Segundo a tradição", em São Lázaro, deve significar, só pode significar: democraticamente. E isso, é claro, está em nossas mãos.

João Carlos Salles - Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor da Universidade Federal da Bahia. Entre outros livros, publicou A Gramática das Cores em Wittgenstein (CLE/Unicamp, 2002) e O retrato do vermelho e Outros ensaios (Ed. Quarteto, 2006). Coordena o Grupo de Pesquisa do CNPq "Filosofia Moderna e Contemporânea", ao qual se vincula o Grupo de Estudos e Pesquisa Empirismo, Fenomenologia e Gramática.

  • 1
    Discurso de posse na Direção da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia UFBA, proferido em 21 de agosto de 2009.
  • 2
    Discurso de encerramento do ano letivo de 1810 no ginásio de Nuremberg, in HEGEL, G. W. F.,
    Discursos sobre Educação, Lisboa, Colibri, 1994, p. 41.
  • 3
    Discurso de encerramento do ano letivo de 1813 no ginásio de Nuremberg. In: HEGEL, G. W. F.,
    Discursos sobre Educação, p. 71.
  • 4
    Brasilidum sobolem traditione paro.
  • 5
    BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, W.
    Obras Escolhidas, São Paulo: Brasiliense, v. 1, 1985, p. 224.
  • 6
    SIMÕES, Ruy. A Faculdade de Filosofia e sua Identidade Perdida. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1990.
  • 7
    N. Ed.: Forma sintetizada de Ubirajara. Maneira como ele era chamado pelos colegas.
  • 8
    A Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, fundada em 1941, transferiu-se para a Estrada de São Lázaro em 1974.
  • 9
    N. Ed.: Antonio Oliveira (Antonio Mariana Alberto de Oliveira). Poeta, professor e farmacêutico, nascido em Palmital-RJ, 1857.
  • 10
    LICHTENBERG, G. Chr.
    Aphorismen. Stuttgart: Reclam, 1984, p. 84.
  • 11
    Como já repetimos tantas vezes, citando um trabalho coordenado por Pierre Bourdieu: "A universidade é um lugar, talvez o único lugar de confrontação crítica entre as gerações, um lugar de experiências múltiplas, afetivas, políticas, artísticas, por completo insubstituíveis [...]; lugar de concorrência entre saberes, de seu colocar-se em questão; e, portanto, forma insubstituível de espírito crítico e cívico, de espírito cívico crítico, lugar que viria a desaparecer atrofiando toda reflexão geral, aquela capaz de ultrapassar os limites das especializações disciplinares e das competências economicamente funcionais [...]." ARESER,
    Quelques diagnostics et remèdes urgents pour une université em péril, Paris, Raisons d'Agir, 1997, p. 120-121.
  • 12
    N.Ed.: São Lázaro - Denomina o espaço físico onde está instalada a FFCH e seus orgãos. Refere-se também à comunidade da FFCH.
  • 13
    N. Ed.: Foi Diretor da Faculdade de Arquitetura e Pró-Reitor de Extensão da UFBA (1951/2005).
  • 14
    N. Ed.: Luiz Felippe Serpa - Reitor da UFBA (1993/1998).
  • 15
    Cf. BRAGA, Júlio.
    Oritamejí: o antropólogo na encruzilhada. Feira de Santana, UEFS, 2000, p. 200-201.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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