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Distinção e desigualdades na cultura de consumo

RESENHA

TASCHNER, Gisela. Cultura, consumo e cidadania. Bauru,SP: EDUSC, 2009. 189p.

A forma do consumo na sociedade ocidental tornou-se uma das questões-chave para compreender os processos sociais, especialmente no interior do debate sobre pós-modernidade. Tais processos possuem uma conotação individual ou coletiva, complexos e multifacetados, culturais e econômicos, e são tanto impostos ou desagregadores quanto escolhidos ou inclusivos. A cultura de consumo pode ser abordada como um espaço de negociação, como um conjunto de rituais ou ainda como significados socialmente compartilhados, correspondendo à dimensão material e imaterial. Nesse contexto se assenta o livro Cultura, Consumo e Cidadania, que permite a Gisela Taschner um percurso nas temáticas enunciadas pelo título.

Alguns fenômenos da modernidade são basilares para a construção da reflexão sobre cultura de consumo na contemporaneidade ou esferas que ganham relativa autonomia: a proeminência atribuída ao indivíduo sobre a coletividade como organização social, em que cada indivíduo é tido como uma totalidade plena de sentido, gerando a ideologia do individualismo; o Estado de direito, em que supostamente cada indivíduo é sujeito de direitos e gerencia suas capacidades e posses de forma desvinculada da sociedade como um todo, configurando aspectos centrais do mundo social; a relativa autonomia da economia face às determinações políticas e éticas, bem como, recentemente, em relação aos territórios nacionais.

O livro de Taschner está dividido em três partes um tanto heterogêneas, em cujas dimensões se destacam temáticas pertinentes à gênese e às circunstâncias atuais de uma cultura do consumo: o cenário da emergência do consumo como tema das ciências sociais na modernidade e da pós-modernidade (capítulo 1); as raízes da cultura do consumo, especialmente numa perspectiva histórica de ratificação da distinção e ostentação, do entretenimento e das desigualdades (capítulos 2 a 5); o alargamento do consumo coaduna-se com a emergência da proteção do consumidor, sobretudo privilegiando a dimensão da sua institucionalização (capítulo 6 e 7). Negar o nexo entre consumo e meio ambiente, produção e cultura, entretenimento e endividamento como processos imbricados significa fragilizar-se para entender a complexidade, as contradições e as ambiguidades do presente.

Na introdução ao livro, Taschner confirma que as lentes do investigador, no campo de uma ciência social, exigem tanto a movimentação de técnicas de pesquisa quanto uma sistematização do conhecimento, desvendando relações veladas pela aparência dos fenômenos. A sociologia pode fornecer instrumentos para analisar a cultura de consumo de um segmento social como um comportamento que mantém mistérios somente perceptíveis para quem examina funções latentes. O olhar sociológico sobre a cultura do consumo observará outros elementos do espaço, além da circulação de mercadorias e da atribuição de sentidos aos bens, pois que existe uma complexidade de articulações entre consumidores e as respectivas mercadorias, entre a dimensão material e imaterial.

A sociedade segregada não se dilui com a ampliação do consumo, senão que se ratificam novos espaços de diferenciação ou a invenção de outras maneiras de distinção. Taschner traz elementos relevantes para o percurso de construção da sociedade de consumo, tanto aludindo ao consumo sob a ótica da produção, quanto a da explosão da cultura, mas que não podem ser tidas como óticas que se sucedem no tempo e no espaço. Ao longo do século XX se consolidam abordagens concomitantes no tempo: ora predomina a conexão do consumo com a economia e a massificação (teoria crítica), ora com a sociabilidade construtora de identidades ou a cultura de elite (Veblen, Elias)

A temática central, no primeiro capítulo, consiste em retomar um percurso das teorias sociais e alicerçar a interrogação se as reflexões levadas a efeito consolidam uma sociologia da pós-modernidade. As análises sob o viés da pós-modernidade, na medida em que operam uma discussão com o escopo das teorias sociológicas, permitem apresentar alguns argumentos sobre a centralidade da economia e da cultura: os principais argumentos das óticas da pós-modernidade explicitam a impossibilidade de realização de algumas angústias, paradoxos ou projetos da modernidade; as mutações das quais tratam os autores da pós-modernidade operam sobre o alargamento da dimensão cultural e sob modificações substantivas também no campo da economia; as alterações no paradigma científico e tecnológico têm por consequências uma significativa mudança nas relações de produção, uma suspeita sobre a ética política e um reconhecimento da pluralidade cultural na sociedade capitalista.

No capítulo 2, com o intuito de ir às raízes, Taschner deseja demonstrar que a gênese da cultura de consumo está vinculada tanto à difusão de determinados bens no seio de um segmento social, quanto à difusão da atribuição de distinção e vínculo de poder político em decorrência dos bens. O consumo conspícuo, na ótica de Veblen, ou discricionário, é uma expressão de prestígio ou comunicação de relações de poder; portanto, refere-se aos investimentos não destinados prioritariamente ao conforto ou ao valor de uso, mas que têm propósitos simbólicos, de distinção, de hierarquia política e de subordinação. Desde a sua gênese, a cultura de consumo está submetida à lógica da competição de status e à ostentação como meio de expressão do poder, cujas raízes Taschner localiza na centralização do poder real no momento da constituição do Estado moderno e como forma de enquadramento de toda nobreza, criando significados compartilhados.

Em razoáveis oportunidades, a obra de Veblen (1965) é citada sem referência ao subtítulo, porquanto ele oferece uma ótica do enfoque utilizado na abordagem. O autor consagra conceitos de ócio, lazer e consumo conspícuos, quando então a ostentação e o poder relacionados ao consumo passaram a fazer parte do horizonte das ciências sociais. Para uma categoria social que se abstém deliberadamente do trabalho produtivo como ocupação primordial, porém, o ócio não significa inatividade, porquanto a riqueza, o consumo e o lazer possuem um valor para além de si mesmos, isto é a ostentação e o poder. De fato, Veblen pretende elaborar uma teoria que explique fenômenos distintos, como as corporações industriais orientadas para a eficiência e para o bem-estar material, em oposição às instituições e categorias predatórias, cujas lógicas estão em tensão e são notoriamente incompatíveis.

A notória inserção na cultura de consumo conecta a distinção de classe, especialmente como premiação com dinheiro mediante o trabalho, com a apropriação desigual do espaço social ou o consumo de bens e serviços onerosos para o prazer e conforto. Nesse sentido, algumas abordagens largamente contempladas por Taschner, como as de Veblen, Weber ou Elias, entre outras, devem comparecer em considerações antes como a construção da história da temática do consumo do que como capacidade explicativa para o consumo, o utilitarismo e o desperdício atuais. Recorre igualmente às contribuições de Elias, por meio do processo civilizador, para demonstrar a relevância política e cultural da mudança do padrão de consumo entre os setores da elite que dispunham das artimanhas para manter-se no poder. O desenvolvimento da moda está estreitamente vinculado a estilos de vida e a valores de consumo.

Por sua vez, no capítulo 3, o intuito é o de demonstrar o intenso relacionamento entre lazer, cultura e consumo e que, na gênese do processo social do consumo, há uma associação com distinção social em conexão com economia, cultura e política. Para atestar a difusão do referido nexo, reporta-se aos costumes consagrados em torno do poder sob o Estado moderno e da moda na França e na Inglaterra, mas, acima de tudo, corrobora a dilatada combinação entre a emergente produção industrial, as articulações do poder e a reinvenção da cultura urbana.

A partilha dos binômios trabalho e riqueza, lazer e consumo, distinção social e consumo conspícuo ensejam condutas prioritariamente perfilhadas por afazeres que parecem contrapostos à tipologia do empreendedor abnegado referido por Weber, a quem o ascetismo coibia o uso sem retorno ou o esbanjamento da riqueza. De acordo com a perspectiva weberiana, sob os auspícios do ascetismo laico, forja-se um movimento relevante para os desdobramentos da economia, mas, ao mesmo, tempo uma tensão profunda com o evento da sociedade de consumo. As consequências de uma ética rígida vigoram no período em que uma cultura de consumo ainda estava em processo de constituir-se, ou referia-se a uma categoria social peculiar. Posteriormente, a circulação de mercadorias e as alterações no jogo do poder criam progressivamente certa autonomia, ou se patenteia um novo imaginário e cristaliza outro poder de influência sobre as dimensões da vida social.

A construção do elo entre consumo e lazer se fortalece por meio do fenômeno da cultura de massas, onde, de alguma forma, o espaço para o consumo se alarga dentro do tempo reservado ao lazer, cuja perspectiva pertence ou caracteriza o século XX. Todavia Taschner aponta, de forma mais efetiva, algumas perspectivas do nexo entre lazer e consumo na cultura pós-industrial, ao referir-se à customização dos cidadãos, ao reconhecimento das diferenças culturais, bem como à exclusão pela via das desigualdades tanto do lazer quanto do consumo.

Sob o título "Consumo, distinção social e desigualdade", o capítulo 4 retoma o mesmo debate dos capítulos anteriores sobre o consumo como mecanismo de distinção social e como ostentação de poder no Estado moderno. A difusão do padrão de consumo engendra um campo de forças ou habitus (no sentido de Bourdieu), com regras para a disputa dentro de um jogo social. Nesse sentido, a circulação de bens possui uma esfera de acumulação sincrônica entre capital econômico e capital cultural sob o consumo.

Ao abordar a questão da democratização do padrão de consumo, Taschner remete a alguns paradoxos: o entrelaçamento progressivo entre entretenimento e consumo, com mudanças de visual e rompimento de barreiras entre consumidor e os respectivos bens, desembocando num processo de mercantilização do lazer (p.109); a democratização faz reinventar novas formas de distinção, pois, pela própria dinâmica, a difusão dos bens lhe retira a capacidade distintiva e seu poder de sedução ao diferente (p.110); a ampliação do acesso aos bens socialmente produzidos convive com as desigualdades, pois a concentração do poder e da economia não se desmancharam por simpatia ao consumidor, ou, em outros termos, a suposta democratização não venceu a disponibilidade desigual de renda e o acesso ao crédito. O senso de realidade permite que Taschner afirme: "... em um contexto de tanta desigualdade de renda, nas camadas de rendimentos mais baixos, o consumo de um item necessariamente se faz em detrimento de outros, que podem ser essenciais." (p.115).

Na lógica da cultura de consumo, existe uma confluência entre o emaranhado das novas tecnologias, a cultura pautada pelo individualismo, a geração continuada de riqueza concentrada e a depreciação dos bens ambientais. A degradação ambiental, até certo ponto, constitui uma consequência inevitável ou uma externalidade cujo ônus tende a ser transferido para toda a sociedade. O combate a uma cultura do desperdício por segmentos ambientalistas e ao consumo desigual na sociedade brasileira permanece focado em questões periféricas, como o efeito perverso dos combustíveis fósseis ou agroindustriais, ou o depósito adequado dos resíduos no espaço urbano, mas não atenta para as causas sociais dos respectivos problemas.

O capítulo 5 poderia ser considerado um caso à parte, pois trata da evolução do turismo como uma forma peculiar de expansão do consumo contemporâneo. O texto apresenta alguns traços da evolução do setor, mas apresenta uma riqueza de datas, eventos e empreendimentos, ou ainda a infraestrutura para o deslocamento, a acomodação e a mercantilização. O turismo, apesar de ser tido como forma predominante o lazer, combina bem como um mecanismo de prolongamento do trabalho ou de rendimentos, na medida em que é outra forma de consumir atrelada à capacidade de dispêndio econômico e, frequentemente, relacionado com compras. De outro lado, sem mencionar o fato de forma explícita, fica evidenciado que a cultura do consumo refere-se a segmentos sociais cujas posses lhes permitem manter a distinção e satisfazer alguns de seus alargados sonhos de consumo por meio do turismo. A produção do turismo como mercadoria possui a junção entre setor público e privado, por meio de órgãos e agências. Por fim, o turismo sustentável, com conhecimento e proteção ambiental, está no mesmo patamar com que o setor produtivo incorpora medidas de proteção aos bens naturais, em que o debate e os bons propósitos sinalizam efeitos periféricos ao sistema.

Um estudo comparativo sobre a emergência e a constituição dos mecanismos societais da proteção do consumidor compõe o foco da terceira parte do livro. Nesse sentido, para ilustrar especificidades dos avanços da proteção do consumidor no primeiro mundo, é apresentada a evolução da temática em referência ao caso dos Estados Unidos (capítulo 6), apontando sistematicamente quatro etapas evolutivas. Para encerrar, destaca alguns aspectos da trajetória e das características da proteção do consumidor no Brasil (capítulo 7), com menção a um quadro comparativo de acesso a bens de consumo entre os brasileiros.

A emergência socialmente reconhecida do consumidor, associada ao direito de proteção social, se dá na circunstância histórica em que se pode atribuir a característica do consumo à sociedade ou do consumo em massa, onde o olhar imediato já não basta. A proteção ao consumidor busca, no espaço concorrencial, abolir, por força de lei, a concorrência desleal e, assim, informa que a satisfação do consumidor possui oposição e contestações. Em suma, a emergência do consumidor no espaço público implica um alargamento progressivo de áreas e mercadorias regulamentadas, o que, por sua vez, se dá em consonância com maior intervenção do Estado na economia.

Entre as contribuições principais de políticas nacionais da defesa do consumidor está o fato de elas servirem de mecanismo suplementar para expandir as corporações, deter formas de concorrência e somar lucros, controlando a qualidade das mercadorias em circulação. De fato, o código do consumidor não possui eficácia reconhecida para outros setores sociais, pois há, reconhecidamente, uma produção de bens com qualidades distintas para usos numa sociedade desigual, bem como as populações em busca de proteção às culturas tradicionais, sendo inoperante em face da dependência e pobreza.

Os movimentos sociais explicitam por meio de suas ações os conflitos culturais e políticos, inclusive a tensão entre valor de uso e valor de troca. Tais movimentos, em suas aporias, ilustram a capacidade de desenvolver uma autonomia em face ao poder constituído por conta da publicidade para o consumo e, ao mesmo tempo, a sua difusão como um ator no mercado que busca formas de proteção. A cultura de consumo engendra protagonistas que entram em campo para o surgimento da sociedade de mercado ou para alargar os quesitos da sociedade de direitos.

Ao leitor atento chama a atenção que a proteção ao consumidor está atravessada por um discurso ambíguo: o centro da questão pode ser o consumidor ou o enquadramento da concorrência. Isto é, está posto o dilema entre medidas para delimitar a circulação de mercadorias e os direitos de cidadania. A inabilidade de gerenciar riscos e incertezas fabricadas dentro das relações concorrenciais ou o descrédito ante as esperanças em soluções de mercado para os problemas dos consumidores fazem emergir a legislação de proteção ao consumidor. As garantias em face dos produtos mostram a tendência de se considerarem incertezas e perdas do consumidor, ou uma tensão permanente entre o campo da produção e dos usos culturais. O sistema de consumo requer, acima de tudo, um conjunto de informações por meio do qual se comunicam as qualidades dos produtos do mercado a serem consumidos. Decorre dessa circunstância a emergência da legislação sobre o campo do consumo, visando à regulação das relações de concorrência, bem como entre a produção e o consumo. Enfim, resulta na proteção do consumidor.

Para finalizar a resenha, apresentaremos quatro pontos como um questionamento à abordagem de Taschner: o fetichismo das mercadorias, a tensão entre consumo e cidadania, o nexo entre entretenimento e endividamento, e as questões ambientais.

É possível estabelecer nexos entre a cultura do consumo e a questão do fetichismo, pois ambos remetem à emergência de um espaço social com imagens e símbolos acoplados socialmente aos bens de consumo e à conversão do valor de uso em valor de troca, para robustecer os atrativos da aparência e para difundir a crença de que eles são efetivamente qualidade de vida. Todavia, o consumo somente como armadilha aparece como a etapa derradeira do círculo da produção e circulação, pois a geração do descarte é hoje socialmente reconhecida como o destino final dos bens, e não a guarda dos consumidores.

A ideia de fetichismo das mercadorias vem do fato de serem revestidas de um caráter mítico ou tratadas como bens de consumo destinados prioritariamente à qualidade de vida: as mercadorias ocultam o esforço do trabalho e, na mesma medida, carregam consigo as relações sociais que se estabelecem no campo da produção; a compra com valor de troca torna os próprios consumidores intercambiáveis com as mercadorias, ou similares e volúveis como elas. Nesse sentido, cultura de consumo também é uma forma de suavizar o processo da sociedade das mercadorias ou a instauração de um espaço mágico da troca de mercadorias, ou em que tudo se converte em mercadoria.

O alargamento do consumo para outros segmentos sociais pode ser de todo desejável para ampliar as condições de efetivação da cidadania. Todavia, a gestão responsável, do ponto de vista ambiental, questiona não somente a matriz do uso da energia, bem como entende que expandir o consumo em termos de qualidade de vida inexoravelmente atua sobre a qualidade da água e do espaço, mas também abre o consumo geral de energia.

A possibilidade distintiva dos bens diminui quanto mais cresce o número de consumidores, mas a dinâmica das desigualdades destaca novos bens para a sobrevida da distinção e a disparidade social é retida. Nesse argumento, não há possibilidade de nexo significativo entre consumo e cidadania, a não ser por razões estritamente externas ao campo do consumo. Além do mais, a produção de resíduos em fartura representa o oposto da racionalização econômica, bem como um possível risco para os direitos de cidadania. A abundância do descartável, socialmente consolidada, convive com frágeis mecanismos para a resolução de problemas com o destino final, como o reuso ou a reciclagem.

As estratégias de política pública ambiental centradas no consumo enchem de intrigas as interpretações das ciências sociais: compreendem uma forma de enfraquecimento dos atores sociais em sua ação política contemporênea; consistem na redução do cidadão à esfera de sua capacidade de consumo; e expressam a gênese de uma cultura política emergente com nexo entre democracia e meio ambiente. As tensões permanecem sobre a ponderação das questões ambientais nas práticas sociais do consumo, se fortalecem ou se depreciam o ímpeto para com a cidadania como ação política para efetivar direitos. A análise sociológica de Portilho (2005) aborda as contingencias para a possível emergência de atores sociais em torno do consumo, bem como uma eventual centralidade das abordagens a partir do discurso em oposição ao consagrado campo da produção e do trabalho.

A ambiguidade acompanha a questão da cultura de consumo, por vezes em confronto, outras em fomento à cidadania. Sob o olhar da crítica, a categoria de cidadão se diferencia da qualidade de consumidor, que, por sua vez, se restringe a todo indivíduo dotado de poder aquisitivo diante das mercadorias ofertadas. Movida pelo discurso mediático, vige no mercado uma concepção de que ser cidadão transmuta-se na condição de ser um consumidor e, como tal, a participação no consumo conduz à inserção social e política. Esse fenômeno levou Canclini (1996) a cunhar a expressão "cidadãos do século XIX e consumidores do século XXI".

Tanto o nexo entre consumo e cidadania quanto entre cultura e entretenimento são questionados pelo endividamento como um fenômeno social relevante. A cultura de consumo se forja igualmente na ampliação do acesso ao crédito, alargando comprometimentos com a sua lógica, de alguma forma na mesma medida em que tal prática implica uma forma de inclusão social. Numa sociedade insatisfeita, mas que busca suprir um imaginário de necessidades, os indivíduos sinalizam no consumo uma centralidade da vida, suposta fonte de realização de sonhos e de felicidade. Na cultura de consumo, os cidadãos compram como uma forma de lazer, em especial com a possibilidade de passear em meio às mercadorias, abrigado do sol, da chuva ou do frio.

A junção entre entretenimento e endividamento dilui fronteiras, ou o contínuo ímpeto ao consumo, no sentido compulsivo, pode até gerar uma desestabilização financeira. O consumo como lazer, distinção social e endividamento pode afetar todos os segmentos sociais ou faixas de renda, pois que se trata de um fenômeno característico de uma sociedade em tempo de possibilidades ou saciedade ilimitada. Os apelos à população para que se arrisque consumindo é, inclusive, justificado como solução para uma sociedade em que o sistema produtivo e a circulação estão em crise, desqualificando, dessa forma, as armadilhas da irracionalidade desse empreendimento em decorrência da degradação de recursos naturais.

A lógica social que sustenta a cultura de consumo relega a terça parte da América Latina, que vive abaixo da linha de pobreza e permite que outro tanto sobreviva no horizonte de satisfação de necessidades básicas. A lógica capitalista requer a sobreposição da ideia da abundância sem igual e, ao mesmo tempo, a destruição permanentemente de bens para criar escassez.

A cultura caracterizada pelo binômio consumo e qualidade de vida possui uma desconexão ou um desencaixe com as causas enfocadas pela crise ambiental. Os dilemas apresentados junto ao nexo entre consumo e cidadania referem-se, fundamentalmente, à ausência de movimentos sociais para realizar mudanças radicais econômicas, sociais, políticas e ecológicas para situar em outro patamar o mesmo nexo. O cenário convive com múltiplas formas de reformismo ecológico ou de capitalismo verde, que constituem práticas sociais ou proposições paliativas ante as causas profundas da crise ambiental.

Recebido para publicação em abril de 2010

Aceito em julho de 2010

Aloísio Ruscheinsky- Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Membro de corpo editorial das Revistas Educação Pública e Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental. Autor de seis livros. Tem experiência de pesquisa na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia Urbana e Meio Ambiente, movimento socioambiental, conflitos ambientais, consumo e sociedade de risco. Av unisinos 950. Cep: 93022-000 - Sao Leopoldo, RS - Brasil. aloisior@unisinos.br

  • Distinção e desigualdades na cultura de consumo

    Aloísio Ruscheinsky
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010
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