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O feitiço das Organizações: sistemas imaginários

RESENHA

Bruno Stramandinoli Moreno

SCHIRATO, M.A.R. O feitiço das Organizações. Sistemas imaginários. São Paulo: Atlas, 2004. 150p.

O feitiço das organizações é uma obra que contempla o entendimento de sistemas imaginários no âmbito das relações de trabalho dentro do contexto organizacional de uma grande corporação. A presente discussão é fruto de um estudo realizado no ano de 1995 junto a trabalhadores demitidos de uma grande fabricante de aviões, de capital nacional, mas de âmbito global.

Articulando análises teóricas e relatos dos próprios demitidos ou de terceiros, a pesquisadora vai tecendo o sustentáculo de suas concepções sobre a relação desses profissionais e a corporação - até então amparo de suas subjetividades -, tendo como pano de fundo as premissas do professor Eugène Enriquez acerca do feitiço que as organizações estabelecem por meio de suas relações com os funcionários.

A partir de uma análise mais acurada e tendo como referência o trabalho de Enquiez, a autora apresenta suas constatações sobre a presença significativa de sistemas imaginários que permeiam as relações no âmbito organizacional. Um mundo de intenções e promessas que ela considera como feitiço, um espaço configurado como imaginário, aludindo a um feitiço que envolve o indivíduo e que se distancia do controle racional, e onde, justamente, se dá a formação das impressões determinantes no comportamento e na escolha dos indivíduos.

O que é mais significativo é a empreita da autora de denunciar, ao longo da obra, as inúmeras discrepâncias do discurso na relação entre organização e profissional ofertado pela empresa, confirmado pelo profissional e consolidado pelas práticas e políticas de Recursos Humanos. Já nesse momento é possível entender que uma de suas hipóteses é a de que a personalidade do trabalhador é impelida a fundir-se na identidade organizacional, num processo de forja de extensão do trabalho. Os relatos apresentados consubstanciam essa ideia, pois se mostra recorrente nos discursos o ideário organizacional permeando objetivos, vida pessoal, familiar e social.

Num primeiro momento do livro, tem-se a elucidação da tarefa a que a autora se propõe: construir o arcabouço teórico e metodológico para buscar entender e analisar o fenômeno, dispondo-se a discutir as organizações, o imaginário e as relações engendradas nesse cenário. Inicialmente, ela recorre à perspectiva antropológica de Mounier para fundamentar suas discussões e se munir de instrumentos para avaliar o impacto das políticas praticadas pelas organizações.

Essa construção teórica perpassa o estabelecimento dos níveis de análise em que a pesquisa se foca. Foi na literatura de Enriques que a autora elencou as seguintes instâncias de análise: mítica, sócio-histórica, institucional, organizacional, grupal, individual e pulsional. Esse pas-so lhe possibilitou alçar um próximo degrau, o do estabelecimento do espaço dos sistemas imaginários de Enriquez e seu impacto nas relações. Partindo da fundamentação conceitual e de sua interpretação de análise sobre organizações, a autora se baseia na compreensão das situaçõesproblema. Entretanto, não se propõe a erigir uma fundamentação psicanalítica no estrito senso do termo, nem se presta a tal intento.

É especificamente na busca por uma análise socioatropológica que a autora estabelece sua empreitada quanto à condição de "cidadão organizacional" nos meandros da estrutura de trabalho que organizações modernas, como a estudada nessa pesquisa, constroem, desenvolvem, defendem como situação sine qua non, e que, por conseguinte, mostra-se dogmática e pouco questionada. Essa conceituação inicial lhe possibilita constatar a existência de sistemas imaginários (as políticas de Recursos Humanos, por exemplo) funcionando como teias de um feitiço nas organizações.

Num segundo momento da obra, sustentada por uma gama de pensadores, Schirato estabelece um percurso que contempla instantes da vida dos sujeitos pesquisados, ainda dentro da organização (abarcando desde o ingresso até o desligamento). A partir desse ponto do livro, é possível dimensionar o impacto que as políticas de Recursos Humanos - expressões materializadas do inefável envolvimento dos indivíduos pelas organizações - têm, por meio de processos de integração ao cotidiano da corporação, o que imbrica o imaginário do profissional, transcende as paredes da organização e alcança o cotidiano pessoal e íntimo desses trabalhadores.

A autora, com intuito de dimensionar para o leitor o drama do processo de desligamento junto aos sujeitos- alvo da pesquisa e o seu impacto no cotidiano desses indivíduos, insere vários relatos das experiências coletadas. Ao invés de estabelecer relação concreta entre o segmento teórico-reflexivo e o concreto-real, têm-se, ao longo dessa segunda parte, a proposição de o próprio leitor buscar as aproximações que julgar adequadas. O que torna a proposta interessante é o fato de os casos serem relatados exatamente como foram descritos.

No decorrer dessas descrições, tem-se a percepção de que as intenções e promessas concernentes à política de pessoal estabelecem uma relação de perversidade, pois tais intenções e promessas se efetivam nas vivências cotidianas. Essa perversão é demonstrada na apresentação das falas dos sujeitos, na medida em que eles relatam a desapropriação de suas vidas pessoais e demonstram como são explorados para muito além de sua força de trabalho, sendo atingidos, em termos afetivos, até em sua agenda pessoal. Os relatos apresentados mostram indivíduos infantilizados, inseguros, numa relação de dependência limitante no tocante à perspectiva de mundo que constroem.

Os efeitos apontados pela autora, oriundos da consubstanciação da relação entre organização e trabalhador, mostram-se nefastos para esse último. Schirato entende que ele perde a capacidade de direcionar a própria vida, de construir sua identidade para além sua condição de trabalhador da organização. À medida que essa relação se torna "pseudofamiliar" e as situações, os eventos e os indivíduos assumem um ar "doméstico", "de casa", a preocupação com a qualidade do trabalho e a reciclagem profissional assumem uma importância secundária. É nesse momento que a autora preconiza a discussão sobre os valores praticados, bem como o código de ética vigente, aludindo ao nível de análise organizacional em si.

Schirato encerra o livro alinhando os elementos apresentados até então num tom de denúncia e aponta a para um horizonte caracterizado pela necessidade de se perpetuar tal reflexão, de modo a transformá-la em ação efetiva de intervenção junto à equivocada relação entre organização e trabalhador, no que se entende como o modelo tradicional de gestão.

Em síntese, a presente obra consegue alcançar o objetivo a que se propôs: desvelar o "feitiço" que os sistemas imaginários erigidos pelas organizações, por meio das Políticas de Recursos Humanos, praticam nos seus corredores e destacar a necessidade de se resgatar a primazia do reconhecimento em prol do humano, nessa relação.

Bruno Stramandinoli Moreno - Mestre em Ciências da Motricidade pela Unesp. Especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela UEL. Psicólogo pela UEL. Professor Assistente II da Faculdade Integrado de Campo Mourão para cursos de graduação e pós-graduação. bstram@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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