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A história de uma cidade filosófica

RESENHA

A história de uma cidade filosófica

Rafael Salatini

VIDAL-NAQUET, Pierre. Atlântida - Pequena história de um mito platônico. Trad. L.A. Watanabe. São Paulo: Unesp, 2008. (214 p.)

O filósofo italiano Norberto Bobbio distinguia quatro modalidades de filosofia política, entre as quais a descrição - que só pode ser feita em termos ideais - da melhor organização política. Pode-se, sem dúvida, considerar Platão como o pai dessa modalidade filosófica, com sua República, cuja influência pode ser medida pelas inúmeras descrições de cidades ideais que se podem contar, desde A cidade de Deus (413-426) de Santo Agostinho até a Viagem a Icária (1842) de E. Cabet, passando pela Utopia (1516) de T. More, A cidade do sol (1602) de T. Campanella, a Nova Atlântida (1627, póstumo) de F. Bacon e a República de Oceana (1656) de Harrington, para citar apenas as mais famosas, todas inegavelmente espelhadas na cidade de Atlântida descrita por Platão. O belo livro Atlântida - Pequena história de um mito platônico (2005) do historiador francês Pierre Vidal-Naquet reconstrói, em amplo diálogo com a historiografia helenística moderna e contemporânea, o percurso não dessa influência, mais tradicional no âmbito dos estudos sobre o pensamento político (linha seguida pelos bobbianos), mas sim a história - como afirma o próprio subtítulo da obra - do mito platônico da cidade de Atlântica, nascido (e depois abandonado pelo filósofo grego) nos diálogos platônicos do Timeu e de Crítias, tema que acompanha o historiador francês desde longa data. A difícil relação entre história e filosofia, entretanto, é reconhecida desde o início por Vidal-Naquet, que afirma: "a ideia de que um filósofo possa se interessar pela história e um historiador pela filosofia tem por vezes dificuldades para vingar." (p. 38). Todavia, o domínio metodológico da disciplina histórica e documental dos textos que dão continuidade, muitas vezes de forma fantástica, ao mito platônico, aliado a uma grande erudição por parte do historiador francês, permite o sucesso dessa interessante pesquisa (se me é permitida essa expressão) histórico-filosófica.

O problema todo nasce quando a influência platônica se torna tão grande, que sua descrição fictícia e inacabada da cidade de Atlântica se transforma, século após século, num mito. O mito não é uma mera ficção, mas uma mistura de ficção e realidade; na verdade, uma ficção que se toma por realidade, mesmo se sabendo que não passa de ficção: algo que não existe, mas se cconsidera que deveria existir e se age como se, de fato, existisse. Objeto tradicional de estudo dos etnólogos (de Frazer a Lévi-Strauss), a mitologia ganhou contemporaneamente, na chamada nouvelle histoire, status de objeto digno de pesquisa pelos historiadores (e eminentes historiadores!). A força do mito de Atlântica é tão grande, que todo o oceano Atlântico recebeu esste nome pela crença de que a cidade platônica havia submergido em suas águas.

Vidal-Naquet emprega sua erudição e delicada paciência percorrendo os documentos que mencionam a cidade perdida desde a antiguidade até o século XX, passando por praticamente todas as referências modernas, do Renascimento ao Iluminismo, do Romantismo ao nacional-socialismo. Uma grande ausência se nota pela falta de pesquisa dos documentos medievais, sejam patrísticos (de grande influência neoplatônica!), sejam escolásticos (de influência aristotélica), embora o próprio autor deixe claro, na introdução, que "também há lacunas em meu próprio estudo" (p. 18).

Sobre os documentos antigos, escreve: "Contrariamente ao que se poderia supor, faltou muito para que Atlântica tivesse sido um continente muito visitado pelos sucessores de Platão. Muitos deviam simplesmente rir dela." (p. 49). Analisando textos que vão de Teopompo de Quios, contemporâneo de Platão, até Proclo, oito séculos depois, passando por Aristóteles - que, diz o historiador, "neste ponto, [...] se deixou enganar por Platão" (p. 52) -, entre uma grande quantidade de escritores menores, cujos textos não recebem uma pesquisa menos minuciosa, Vidal-Naquet dá conta de como o mito, de texto em texto, perpassa a cultura helênica e ecoa pela cultura romana e mesmo bizantina, espraiandose pela cultura antiga até o tardar do crepúsculo do império romano.

Pulando (como é costumeiro, infelizmente, na historiografia ocidental), como dito, todo o período medieval, ao qual não são dedicadas mais que 21 linhas no início do capítulo terceiro, é nos textos renascentistas que a investigação do mito prossegue: "Ressoam as três batidas - afirma Vidal-Naquet - e as cortinas se abrem uma primeira vez em Florença, em 1485, quando o humanista neoplatônico renascentista Marsílio Ficino traduziu o Crítias, além do restante da obra de Platão. Decretou que o relato era verdadeiro, mas verdadeiro no sentido platônico do termo, o que não abre a possibilidade de inscrever Atlântida numa mapa" (p. 80), coisa, contudo, que não deixou de ser feita, como as ricas imagens presentes na obra comprovam. Nesse ínterim, são analisados diversos textos (de procedências diversas: viajantes, padres, naturalistas, humanistas, etc.), em que se destacam duas questões: a descoberta da América, que reaviva a lembrança da cidade platônica, e a mobilização do mito de Atlântida para fins políticos e ideológicos, seja pelo nacionalismo da coroa espanhola, com interesses de possessão sobre as novas terras descobertas, seja pelo nacionalismo escandinavo, pelo efeito da curiosa obra do médico sueco O. Rudbeck.

Reavivada modernamente pelos escritores renascentistas, Atlântida seria iluminada pelos pensadores do Século das Luzes, seja em discussões filosóficas, destacadas pelo historiador em representantes do Iluminismo francês, italiano e britânico, do bispo P.D. Huet a J. Harrington, passando pelo conde G.R. Carli, seja em discussões históricas, destacadas em representantes holandeses, franceses e italianos, com relevo para o engenheiro francês N. Boulanger, descrito como, "com a imensa curiosidade que o possuía, um [historiador] amador" (p. 117), e o professor de literatura italiano G. Bartoli, descrito como um historiador que "estava à frente de seu século e do século seguinte." (p. 120).

Se o século XVIII foi um século racionalista, o século XIX será historicista, o que, sob o ponto de vista do mito atlântico, servirá de farto terreno para a inserção de Atlântida nas grandes descrições da história da humanidade, ainda que imaginárias (mas, pode-se perguntar, também não eram imaginárias as histórias universais de Vico ou Hegel, que - ao menos Vidal-Naquet não o diz - não mencionam Atlântida?), mencionadas com grande riqueza no livro. E se, no século anterior, a confabulação atlântica pas-sou da filosofia à história, no século do Romantismo, passará da história ao romance, sendo encontrada, entre outros, nas histórias de Júlio Verne, autor descrito como "representativo da Atlântida romanesca não apenas na França, mas também no mundo." (p. 142).

Por fim, se o mito de Atlântida havia sido objeto de manipulação nacionalista na Espanha renascentista ou na Suécia iluminista, no século XX também o será, perceberá o historiador francês, na Alemanha nacional-socialista, onde, nas diversas obras de ideólogos racistas, a cidade inventada por Platão se transforma no berço da raça ariana!

Uma questão simples pode ser colocada ao trabalho de Vidal-Naquet, sobre a utilidade (ainda que essa mesma questão possa ser inúmeras vezes subdividida): qual a utilidade de se pesquisar passagens menores de textos esquecidos de autores medíocres, colocadas lado a lado com passagens de grandes textos de grandes autores (questão metodológica)? Qual a utilidade de pesquisar a reprodução, por séculos a fio, de uma ideia que, por mais persistente que se mostre, não passa de uma ideia falsa (questão substantiva)? Penso que as respostas a esstas questões brotam facilmente das páginas de Atlântica. Primeiro, não somente os grandes autores, mas igualmente os pequenos, fazem parte dos grandes diálogos intelectuais que perpassam os séculos, algo que, se um estudioso de filosofia pode se permitir ignorar, nenhum historiador o pode, como vêm demonstrando com sucesso diversos historiadores contemporâneos. Também a importância dos mitos não está no fato de que eles são falsos (qualquer cientista consegue demonstrar com facilidade a falsidade de um mito, quando o identifica como tal), mas sim no fato de que, ainda assim, as pessoas insistem em acreditar neles (vide a persistência do racismo, mesmo décadas após a ciência ter demonstrado a inexistência de raças na espécie humana). O que pode sugerir que não apenas a razão, mas também a "desrazão", não somente a verdade, mas igualmente a falsidade, etc. possuem algum relevo na história da humanidade. Daí a grave importância de sua perscrutação. O que transparece com nitidez na obra aqui resenhada, quando se mostram as interessantes e vívidas maneiras como a mitologia serve, em diferentes séculos, para a formulação de discursos religiosos, geográficos, históricos, nacionalistas, etc.

Tem-se aqui um livro interessante sob qualquer ponto de vista, que mostra simultaneamente a sutileza da nouvelle histoire, a atualidade dos estudos helenistas e a importância dos estudos sobre os mitos. Em suma, poder-se-ia descrever essa obra de Vidal-Naquet como feita por mãos delicadas (as mãos de um historiador interessado em filosofia).

Rafael Salatini -Bacharel em Ciências Sociais pela FFLCH-USP (2003). Licenciado em Ciências Sociais pela FE-USP (2007). Doutor em Ciência Política pelo DCP-FFLCH-USP (2009). Professor da Unesp-Marília, São Paulo. Departamento de Ciências Políticas e Econômicas. Unesp - Campus de Marília. Faculdade de Filosofia e Ciências. Av. Hygino Muzzi Filho, 737. Cep: 17525-9000. Marília - São Paulo. Caixa postal 181. rafaelsalatini@marilia.unesp.br.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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