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Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo

RESENHA

Jair Batista da Silva

AMORIM, Henrique. Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo. São Paulo: Annablume. FAPESP, 2009. 161p.

Um conjunto de teses sobre a produção capitalista hoje sublinha que, ao incrementar mais intensamente a ciência e os conhecimentos oriundos da vida cotidiana, tal traço conduziria à superação da lei do valor, precisamente porque esses saberes e informações não podem ser medidos e são o fundamento mesmo da produção que emprega o trabalho imaterial. Haveria, portanto, no interior do processo de valorização posto em movimento pela acumulação, uma contradição que o capital não poderia mais controlar, dado seu caráter qualitativo. Para alcançar esse diagnóstico, ou seja, da situação da produção da riqueza no capitalismo contemporâneo, os teóricos do trabalho e da produção imaterial levam a cabo uma recuperação inusitada das formulações de Marx presentes nos Grundrisse. É nessa direção que as teses de Negri, Lazzarato e Gorz se encaminham, ao mostrar as insuficiências da teoria do valor de Marx, mesmo que a noção de General Intellect do filósofo alemão, presente naquela obra, seja retomada no interior desse debate.

O livro de Henrique Amorim, professor de Sociologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), busca realizar uma exposição crítica dessa problemática, apontando as limitações, as apropriações, os esquecimentos, os pressupostos e aporias que os teóricos do trabalho imaterial apresentam. De acordo com Amorim, esses teóricos teriam vislumbrado, no trabalho imaterial, uma potência libertadora que a lei de valorização aprisiona, pois tal trabalho conduziria à criação da riqueza para além da dimensão quantitativa e, na medida em que se orienta por propriedades e atributos essencialmente qualitativos, presentes nos saberes e informações, traria de modo imanente a superação das relações sociais capitalistas; a conclusão é lapidar: visto que é impossível medir o tempo de trabalho objetivado nas mercadorias imateriais, abandona-se de pronto a teoria do valor de Marx que, segundo eles, estaria fundada sobre aquela medida.

Daí as teses do comunismo do saber (Gorz) e do operário social ou do empresário social (Negri). A pergunta de Amorim vai ao cerne dos argumentos dos autores: onde se encontra, na obra de Marx, a ideia de que o valor do trabalho pode ser calculado aritmeticamente? A resposta a essa indagação o autor fornecerá ao se confrontar com os teóricos do imaterial, nos capítulos que compõem sua obra.

O livro está estruturado em três capítulos; neles, o autor busca enfrentar o seguinte problema: qual o lugar ocupado pelo trabalho imaterial, notadamente as indicações de Marx nos Grundrisse, na teoria do valor-trabalho? Em outros termos, como as formulações teóricas antecipadas por Marx naquela obra são retomadas pelos teóricos do trabalho imaterial para fundamentar uma crítica à teoria do valor marxista? Sua hipótese é a seguinte: a interpretação que os teóricos do trabalho realizam do conceito de General Intellect está baseada no primado das forças produtivas. Ao se orientar por esse caminho, o que será desprezado ou esquecido por esses teóricos?

No primeiro capítulo, Amorim reconstitui a formulação de Marx acerca do trabalho imaterial presente nos Grundrisse e mostra como a teoria do valor-trabalho é interpretada de modo reducionista. A discussão aqui se baseia sobre o trabalho vivo e o tempo de trabalho, precisamente porque serão eles que tenderão à indeterminação com o incremento da ciência e da tecnologia no processo produtivo, pois existe um saber que será gradativamente incorporado à produção que não pode ser mensurado, e mais: a produção de mercadorias imateriais não é regida pela lei do valor - cujo pressuposto básico, segundo eles, é o tempo de trabalho. Tal interpretação leva os teóricos do trabalho imaterial a preconizar que essa absorção de saberes tem um caráter libertador. O argumento de Amorim vai apontar justamente os limites dessa interpretação, ao sublinhar que a incorporação do saber na produção não possui por si mesmo um caráter libertador, pois a produção social ainda se faz tendo como objetivo "volumosos e sempre maiores excedentes", em outros termos, "ainda sob o governo dessa lógica, o tempo disponível seria, do ponto de vista do indivíduo social, tempo negativamente liberado" (Amorim, 2009, p. 38/39); para o capital, por sua vez, significa simultaneamente redução do tempo de trabalho necessário à produção e incremento da produtividade.

Marx aponta, nos Grundrisse, segundo Amorim, que haveria duas tendências à potência extensiva do capital para se libertar da "base miserável", o tempo de trabalho: a primeira, as necessidades se desenvolveriam de tal sorte, que a lógica de produção de excedente tenderia a ser absorvida pela esfera individual; a segunda, cujo traço mais marcante é a relação entre produção de riqueza e desenvolvimento das forças produtivas, que levaria à redução do tempo de trabalho necessário para toda a sociedade, socializando a produção. Portanto, como ressalta Amorim, ao contrário do que formula Gorz, Negri e Lazzarato, a incorporação de novos saberes na produção não conduz necessariamente à libertação do trabalho, e pode ser, isso sim, o desdobramento da lógica da produção capitalista.

No segundo capítulo, Amorim afirma que o passo anterior até a teoria do trabalho imaterial foi dado pelo debate em torno da centralidade do trabalho. Esse debate estaria marcado, de acordo com a interpretação do autor, por dois pressupostos que se confundem: o primeiro, o modelo de trabalhador isolado; o segundo, a crença no desenvolvimento das forças produtivas como instrumento de transformação da realidade social. O resultado teórico mais substantivo disso foi a marginalização do conceito de classe social.

Em Gorz, especialmente, em seus trabalhos da década de 1960 e 1970, a idealização da figura do trabalhador, aliada a uma concepção própria da relação entre as forças produtivas e as relações de produção, conduzem à interpretação da reestruturação dos processos de trabalho. Na medida em que a reestruturação produtiva solapa a formação profissional - a capacidade técnica do trabalhador idealizado na figura do trabalhador de ofícios - é o controle mesmo do processo de trabalho que escapa das mãos da classe trabalhadora. Negri, por sua vez, defende que a reestruturação produtiva foi impulsionada pelos trabalhadores contra os patrões. A recusa dos trabalhadores ao taylorismo-fordismo e a desilusão com o compromisso Keynesiano impuseram aos capitalistas a necessidade de investimentos massivos em tecnologia; o efeito disso foi a formação e a posterior substituição do operário massa, próprio do taylorismo-fordismo, pelo operário social, típico da variante japonesa. Pois, nessa forma de gestão, acredita Negri, o trabalhador individual tem um espaço de intervenção direta no processo de trabalho. Nesse sentido, ele recuperaria a autonomia perdida pelo trabalhador de ofício. Por essa razão, Negri identifica o trabalhador das chamadas formas flexíveis de gestão, que ele denomina pós-fordistas, como cooperante e autônomo. O diagnóstico de Amorim é sucinto: tanto em Gorz, quanto em Negri e Lazzarato, o caráter da produção e a perda de centralidade do trabalho na formação da riqueza devido ao desenvolvimento tecnológico, sobretudo através da automação, apontariam para a irrelevância do trabalho material e do tempo de trabalho para a formação do valor.

No terceiro capítulo, Amorim argumenta no sentido de que o trabalho imaterial sob a sociedade capitalista nada mais é que a expansão da dominação do capital como relação social. Por essa razão, a tendência à intelectualização das atividades laborativas é o desdobramento do incremento da ciência no processo produtivo, com a finalidade de criação de valor. Ao contrário de potenciais intrínsecos de emancipação, o trabalho imaterial é a manifestação daquela dominação. Ao desconsiderarem essa dimensão, Gorz, Negri e Lazzarato acabam por apostar nos potenciais contestatórios presentes nas formas de consumo, daí o relevo nos produtores-consumidores como agentes políticos centrais "no contexto de uma sociedade produtora de mercadorias imateriais" (Amorim, 2009, p. 125).

Na realidade, a interpretação das transformações na produção e a emergência do trabalho imaterial esvaziaram o caráter revolucionário que a ideia de classe social possuía, pois, na medida em que a produção social se alterou com a prevalência daquele trabalho, é a emergência de um novo sujeito político que implica realçar, pois o antigo proletariado não portaria mais os requisitos emancipadores. Por esse motivo, esses teóricos abandonam o conceito de classe social e de luta de classe. Contudo, será a partir desses dois conceitos que Amorim fará a crítica a essas teorizações, precisamente ao evidenciar a formação de um sujeito político criado do desenvolvimento mesmo das forças produtivas. Nessa direção, afirma o autor, as teses do trabalho imaterial reproduzem argumentos economicistas, pois o novo agente surge espontaneamente da nova divisão técnica do trabalho no terreno da produção. Contra tal interpretação economicista, Amorim explicita que o conceito de classe e luta de classe é uma fecunda porta de entrada para se entender o conceito de General Intelectt legado por Marx, bem como as formas de produção que empregam as capacidades cognitivas dos trabalhadores. No entanto, mesmo fazendo tal ressalva, no livro, o conceito de classe social carece de análise teórica capaz de sair da condição de pressuposto de crítica às teorias do trabalho imaterial à condição de conceito posto por uma teorização que explicite os limites daquelas teorias - que não reduz em nada a pertinência e a riqueza da crítica de Amorim àqueles autores.

O livro de Henrique Amorim é uma pioneira e importante contribuição teórica ao debate sobre o trabalho imaterial, não só pelos diálogos críticos que realiza com a literatura brasileira e internacional, sendo, por essa razão, um caminho de pesquisa ao leitor interessado, mas, sobretudo, pelas questões e problemas que sugere. Pela diversidade de temáticas que discute, pela ousadia crítica que expõe, é um livro que merece ser lido e debatido.

Jair da Silva Batista - Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Pesquisador na área de Sociologia, especialmente em Sociologia do trabalho e teoria social, atuando e publicando trabalhos nos seguintes temas: racismo, sindicalismo, classes sociais, teoria social, teoria crítica, reestruturação produtiva e trabalho bancário. Autor de "A perversão da experiência no trabalho". Salvador: EDUFBA, 2009. jabs222@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011
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