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Conhecimento e ação: entre laços teóricos e redes institucionais

Conhecimento e ação: entre laços teóricos e redes institucionais

João Carlos Salles

Doutor em filosofia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Estrada de São Lázaro, 197. Cep: 40240-730. Federação - Salvador, Bahia - Brasil. jcsalles@ufba.br

INTRODUÇÃO

Este número especial do Caderno CRH (Conhecimento e Ação) resulta da confluência dos laços teóricos de uma rede de pesquisadores. Favorecido especialmente pelo apoio da FAPESB e do CNPq, desenvolve-se de maneira singular, a partir da iniciativa do Grupo de Pesquisa Filosofia Moderna e Contemporânea (UFBA/CNPq).1 1 Este número associa-se, em especial, a dois projetos. O Pronex Filosofia e Ciências (FAPESB/CNPq) e o Projeto Conhecimento e Ação (CNPq). Por meio desses dois projetos, tem sido possível manter intenso contato entre pesquisadores em nosso Estado, com a participação de colegas do Brasil e do exterior. Assim, neste Número temos a presença de pesquisadores de nove Universidades (UFBA, UEFS, UNICAMP, UFMG, PUC-Rio, Universidade Nova de Lisboa, Pontifícia Universidad Católica del Peru, Ludwig-Maximilians-Universität e Rutgers University). Como bem o testemunha a diversidade dos temas abordados nos textos aqui reunidos, o trabalho não tem nem pretende ter um foco determinado, mas sim uma clara semelhança de família. Tampouco se desenvolve segundo um único centro ou uma única questão, o que subordinaria toda e qualquer pesquisa, senão quase por contaminação, como se o centro da reflexão se deslocasse a cada gesto teórico, sem que o enriquecimento da pesquisa, a multiplicação de temas e uma maior precisão conceitual prometessem qualquer fechamento de horizontes.

Nosso tema de fundo é a construção da experiência, em relação à qual se determinam as ligações mais intrínsecas entre conhecimento e ação, inclusive como uma das chaves para a constituição dos limites do sentido. Por caminhos diversos e segundo escopos diversos em cada abordagem, que ora se voltam ao desenvolvimento de um tema, ora se atêm à exegese de uma obra, voltamo-nos para as relações entre condições de produção do conhecimento, cuja solidez carece de critérios muita vez políticos ou pragmáticos, e a presença determinante de interesses, cuja natureza carece sempre de explicitação pública e esclarecimento conceitual. Tais relações são analisadas e confrontadas inclusive segundo perspectivas disciplinares distintas, cuja própria complementaridade cabe avaliar.

Como ademais podemos ver nos textos, a tensão entre componentes de filosofia teórica e de filosofia prática (tensão que, de um ponto de vista filosófico, subordina a produção de verdades ao questionamento de seu sentido) tem sido escrutinada segundo perspectivas teórico-epistemológicas gerais, mas pode solicitar também desafios específicos, relativos inclusive a questões de ética aplicada, de decisão política ou mesmo de intervenção cultural. Desse modo, dá forma a este Número Especial uma questão multifacetada, que antes se expressa em um conjunto de interrogações. Conhecimento e ação, afinal, em muitos e distintos sentidos, se solicitam. Sabemos, com efeito, que mesmo a simples aplicação de uma regra (único sinal, por vezes, da compreensão do conceito nela envolvido) faz parte da determinação de seu significado, como se a presença do mundo fosse essencial ao conhecimento que o antecipa, assim como, de forma talvez mais trivial, diríamos que a aplicação da regra traduz uma intenção e mobiliza uma vontade. Desse modo, no simples destaque de uma mínima unidade entre conhecimento e ação, vemos entrelaçarem-se também temas diversos da filosofia, atuais ou clássicos.

Além de exigências epistemológicas dessa ordem, a relação entre conhecimento e ação é ainda, com outra formulação, uma das questões essenciais, por exemplo, para a filosofia moral. As dimensões, portanto, se entrelaçam, envolvendo produção do conhecimento e condicionantes relativos à ação e, de modo amplo, à cultura. Em que medida, então, a tensão entre conhecimento e ação, para além da multiplicidade semântica a ser enfrentada, pode mesmo conduzir epistemólogos, cientistas sociais, teóricos da cultura e filósofos políticos a um mesmo debate ou a vários debates concertados? Como, enfim, contribuir para a produção de conhecimento filosófico, tendo em conta as dimensões da filosofia, da ciência e da cultura, no tratamento das relações entre a produção do conhecimento e a identificação de correlatos componentes pragmáticos?

Procuramos responder a essas duas interrogações reforçando os componentes interdisciplinares internos à elaboração filosófica e, também, a cooperação interdisciplinar entre pesquisadores. Almejamos assim, a longo prazo, construir uma base semântica comum entre pesquisadores de matrizes disciplinares distintas ou de tradições teórico-metodológicas relativamente afastadas, combatendo o estigma outrora denunciado por Rudolf Carnap, segundo o qual o trabalho interdisciplinar, quando pioneiro ou fecundo, não seria visto na instituição universitária como construtor de pontes, mas, antes, como perturbador e invasivo. A tarefa teórica, segundo julgamos, é complementar à ação institucional, visando ambas a superar a fragmentação de pesquisas ora em desenvolvimento, estimulando seus pontos de contato e de efetiva confrontação e fazendo conjugar a tarefa de cooperação acadêmica ao desafio de consolidação institucional.

Complementar à rica trama de relações interinstitucionais e interdisciplinares, nossa articulação acadêmica (que tem, neste Número, um de seus resultados) volta-se ao conjunto de relações entre filosofia, ciência e cultura, cifradas pela tensão entre conhecimento e ação. Desdobra-se, assim, em três ordens de questões, intrinsecamente entrelaçadas e desenvolvidas em diversas dimensões. Em primeiro lugar, volta-se para a relação entre a determinação filosófica dos limites da experiência e, pois, do que é passível de conhecimento (questão tradicionalmente cifrada como de natureza crítico-transcendental, mas que a obra de Wittgenstein, por exemplo, transformou em questão pertinente à constituição lógica da linguagem) e a necessária ligação entre linguagem e ação, que parece solicitar a presença de um mundo, uma cultura misteriosamente anterior à possibilidade de sua constituição epistemológica.

Em segundo lugar, podemos destacar outra ordem de comprometimento entre conhecimento e ação: o modo como a trama da cultura pode desenhar a distinção entre razão e vontade, entre fato e valor. Nessa determinação, tem especial papel o diálogo da filosofia com a psicologia e, em particular, com a psicanálise, mas também com as disciplinas relativas à retórica e à lógica jurídica, estando também esses recortes disciplinares bem representados neste Número. E essa ordem de questões logo se associa à anterior, sendo relativa à relação entre produção do conhecimento (cifrada como questão epistemológica e logo relativa ao entendimento, para nos valermos de uma demarcação kantiana) e o julgamento sobre seu sentido, elemento de filosofia prática e mesmo de filosofia política.

Enfim, em terceiro lugar, tendo em conta especialmente uma forma de conhecimento que nossa cultura destacou como privilegiada, a saber, a ciência e sua face técnica, cumpre discutir modos distintos de confrontar a produção do conhecimento com a intervenção no mundo, analisando também a experiência de comprometimento dos resultados técnicos pela seleção prévia de dados e de projetos. Nesse caso, trata-se de ver como a dimensão moderna da racionalidade não está em conflito com os interesses de emancipação próprios da ação humana. A ciência e a tecnologia seriam, afinal, essencialmente ambivalentes. Podem ser instrumentos para ampliação da dominação e destruição da natureza, ou elementos para a emancipação. Assim, as conquistas emancipatórias, em vez de instaladas na razão e de emanar dela, instalam-se no campo mesmo da ação e devem depender, por exemplo, da força da democracia e do controle político das intervenções sociais.

Como podemos ver, não só as ordens das questões estão intimamente entrelaçadas, como elas justificam o particular desenho interdisciplinar de nossa proposta. Concluindo brevemente, sem concluir de fato, temos um vasto campo de investigação, em que os caminhos percorridos ou inusitados não se excluem ou se deixam antecipar. E, sobretudo, um campo que já apresenta resultados, sem que estejam obrigados a uma uniformidade teórica. Por isso mesmo, os textos aqui reunidos não se restringem a referências únicas, e podem voltar-se a clássicos ou a contemporâneos, a obras duradouras ou a papers eventuais, deslocando-se de Marx, Hegel ou Fichte a Wittgenstein, Habermas, Perelmann ou Dewey, para ficar em alguns exemplos. Todos eles, porém, quer tratando da constituição abstrata de uma regra ou da constituição formal da intersubjetividade, quer decidindo sobre as condições de interpretação de uma obra, quer ainda investigando os limites de aplicação de regras concretas, todos se obrigam a enfrentar, do modo mais abstrato ao mais atento às contribuições específicas das ciências, temas que organizam o que erigimos como pedra de toque para a produção do conhecimento e que, sem dissolver qualquer ambiguidade, chamamos de experiência.

Recebido para publicação em 25 de outubro de 2012

Aceito em 04 de novembro de 2012

João Carlos Salles - Doutor em filosofia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Sua experiência na área de filosofia volta-se, sobretudo, na perspectiva da epistemologia e da filosofia da linguagem, para a história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase no empirismo clássico e na obra de Ludwig Wittgenstein. Com bolsa do CNPq, desenvolve a pesquisa "A gramática da experiência: o anímico na filosofia da psicologia de Wittgenstein"; e, com recursos do PRONEX (FAPESB/CNPq), coordena o projeto Filosofia e Ciências. Além disso, coordena o Grupo de Pesquisa do CNPq Filosofia Moderna e Contemporânea, ao qual se vincula o Grupo de Estudos e Pesquisa Empirismo, Fenomenologia e Gramática. Publicações recentes: Percepção e cor. Dois Pontos (UFPR), v. 9, p. 123-133, 2012; Comportamento e Significação: uma nota sobre Wittgenstein e o Behaviorismo. Analytica (UFRJ), v. 15, p. 49-60, 2011; O cético e o enxadrista: significação e experiência em Wittgenstein. 1. ed. Salvador: Quarteto, 2012. v. 1. 208p.

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    Este número associa-se, em especial, a dois projetos. O Pronex Filosofia e Ciências (FAPESB/CNPq) e o Projeto Conhecimento e Ação (CNPq). Por meio desses dois projetos, tem sido possível manter intenso contato entre pesquisadores em nosso Estado, com a participação de colegas do Brasil e do exterior. Assim, neste Número temos a presença de pesquisadores de nove Universidades (UFBA, UEFS, UNICAMP, UFMG, PUC-Rio, Universidade Nova de Lisboa, Pontifícia Universidad Católica del Peru, Ludwig-Maximilians-Universität e Rutgers University).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      2012
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