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De gente de cor a quilombolas: desigualdades, religião e identidade

From people of color to Quilombo members: inequalities, religion and identity

Des gens de couleur aux communautés d'origine marron: inégalités, religion et identité

Resumos

Esse artigo analisa as relações entre desigualdades étnico-raciais e dinâmicas políticas de constituição de comunidades de quilombos, mais especificamente, a situação de exclusão religiosa e as respectivas estratégias de enfrentamento vivenciadas pelos negros na comunidade Manoel do Rego (Canguçu, RS). O material utilizado como fonte de informação foi coletado e sistematizado para a elaboração de um Laudo Antropológico sobre a referida comunidade. A metodologia consistiu no levantamento de registros e documentos sobre a história da comunidade, na realização de entrevistas com as diferentes "gerações" que pertencem à mesma e na observação participante dos principais eventos que mobilizam a comunidade e seus "vizinhos". A investigação demonstrou que as alterações ocorridas nas situações de desigualdade social resultaram de dinâmicas políticas de "atribuição categórica" que envolveram processos de mediação religiosa, familiar e associativa, confirmando a importância da dimensão política na análise dos processos de afirmação identitária de tais comunidades.

Antropologia da Política; Comunidades Quilombolas; Identidade; Mediação


This article is an analysis of the relationships between ethnic-racial inequalities and the political dynamics of establishing quilombo communities. The source material is based on an anthropological study done in the community called Manoel do Rego (Canguçu, in the State of Rio Grande do Sul). The methodology consisted of finding records and documents about the community's history, of holding interviews with the different "generations" who belong to it, and of a participatory observation of the main events which mobilize the community and its "neighbors." The study demonstrated that the changes which occurred in situations of social inequality resulted from the political dynamics of "category power" which involved mediation processes in religion, family and associations, confirming the importance of the political dimension in the analysis of the processes of identity affirmation in such communities.

Political Anthropology; Quilombola Communities; Identity; Mediation


Cet article analyse les relations existantes entre les inégalités ethnico-raciales et les dynamiques politiques de formation des communautés d'origine Marron. Le matériel utilisé comme source d'information se base sur l'élaboration d'un rapport anthropologique concernant la communauté de Manoel do Rego (Canguçu, RS). La méthodologie adoptée a été de faire le relevé de registres et de documents sur l'histoire de la communauté, de réaliser des interviews avec les différentes "générations" appartenant à cette communauté et de procéder à une observation participante des principaux événements qui la mobilisent, elle et ses "voisins". L'investigation a permis de révéler que les changements opérés au niveau des inégalités sociales sont le fruit de dynamiques politiques "d'attribution catégorique" dont font partie des processus de médiation religieuse, familiale et associative qui confirment l'importance de la dimension politique dans l'analyse des processus d'affirmation identitaire de ces communautés.

Anthropologie de la Politique; Communautés d'origine Marron; Identité; Médiation


ARTIGOS

De gente de cor a quilombolas: desigualdades, religião e identidade

From people of color to Quilombo members: inequalities, religion and identity

Des gens de couleur aux communautés d'origine marron: inégalités, religion et identité

Wilson José Ferreira de Oliveira

Doutor em Antropologia Social. Professor da Universidade Federal de Sergipe UFS. Cidade Universitária Prof. José Aloísio de Campos Av. Marechal Rondon, s/n. Jardim Roza Elze. Cep: 49100000 São Cristovão, Sergipe Brasil. wjfo2001@ig.com.br

RESUMO

Esse artigo analisa as relações entre desigualdades étnico-raciais e dinâmicas políticas de constituição de comunidades de quilombos, mais especificamente, a situação de exclusão religiosa e as respectivas estratégias de enfrentamento vivenciadas pelos negros na comunidade Manoel do Rego (Canguçu, RS). O material utilizado como fonte de informação foi coletado e sistematizado para a elaboração de um Laudo Antropológico sobre a referida comunidade. A metodologia consistiu no levantamento de registros e documentos sobre a história da comunidade, na realização de entrevistas com as diferentes "gerações" que pertencem à mesma e na observação participante dos principais eventos que mobilizam a comunidade e seus "vizinhos". A investigação demonstrou que as alterações ocorridas nas situações de desigualdade social resultaram de dinâmicas políticas de "atribuição categórica" que envolveram processos de mediação religiosa, familiar e associativa, confirmando a importância da dimensão política na análise dos processos de afirmação identitária de tais comunidades.

Palavras-chave: Antropologia da Política. Comunidades Quilombolas. Identidade. Mediação.

ABSTRACT

This article is an analysis of the relationships between ethnic-racial inequalities and the political dynamics of establishing quilombo communities. The source material is based on an anthropological study done in the community called Manoel do Rego (Canguçu, in the State of Rio Grande do Sul). The methodology consisted of finding records and documents about the community's history, of holding interviews with the different "generations" who belong to it, and of a participatory observation of the main events which mobilize the community and its "neighbors." The study demonstrated that the changes which occurred in situations of social inequality resulted from the political dynamics of "category power" which involved mediation processes in religion, family and associations, confirming the importance of the political dimension in the analysis of the processes of identity affirmation in such communities.

Key-Words: Political Anthropology. Quilombola Communities. Identity. Mediation.

RÉSUMÉ

Cet article analyse les relations existantes entre les inégalités ethnico-raciales et les dynamiques politiques de formation des communautés d'origine Marron. Le matériel utilisé comme source d'information se base sur l'élaboration d'un rapport anthropologique concernant la communauté de Manoel do Rego (Canguçu, RS). La méthodologie adoptée a été de faire le relevé de registres et de documents sur l'histoire de la communauté, de réaliser des interviews avec les différentes "générations" appartenant à cette communauté et de procéder à une observation participante des principaux événements qui la mobilisent, elle et ses "voisins". L'investigation a permis de révéler que les changements opérés au niveau des inégalités sociales sont le fruit de dynamiques politiques "d'attribution catégorique" dont font partie des processus de médiation religieuse, familiale et associative qui confirment l'importance de la dimension politique dans l'analyse des processus d'affirmation identitaire de ces communautés.

Mots-clés: Anthropologie de la Politique. Communautés d'origine Marron. Identité. Médiation.

INTRODUÇÃO

A Comunidade de Manoel do Rego fica na região de Solidez, a 20 km de Canguçu, cidade localizada a 274 Km de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul. O surgimento de tal comunidade tem como marco principal o início do século XX, mais precisamente os anos entre 1919-1923, e envolveu conflitos em torno do acesso à esfera religiosa. Isso porque, até esse momento, os homens de cor, como eram comumente designados os negros que trabalhavam e moravam nas vizinhanças da localidade, não tinham o direito de participar dos cultos da Igreja Evangélica Luterana, os quais eram exclusivos dos brancos (sejam eles colonos alemães ou brasileiros) que residiam no local. Frente à situação de exclusão da comunidade religiosa e aos sucessivos enfrentamentos entre homens de cor e brancos em comemorações e situações festivas, foi construída uma capela própria para essas famílias cuja distância da outra capela é de 5 km.

Tal construção resultou da iniciativa e da negociação do pastor da localidade e das próprias famílias da gente de cor que fizeram doação em dinheiro, bem como trabalharam diretamente na edificação da capela, criando um estatuto próprio para a comunidade religiosa, uma escola para a alfabetização de seus filhos e, mais tarde, um coral. Com isso, surgiu o que se denominou inicialmente a comunidade dos morenos, em oposição à comunidade dos brancos. Dessa forma, foi através da criação de uma comunidade religiosa própria que os homens de cor começaram a se afirmar como um grupo específico, com crenças, valores e práticas dignas de serem respeitadas pelos seus vizinhos, modificando, em parte, a situação de desigualdade inicialmente observada.

No ano de 2003, em função da visibilidade adquirida pela comunidade, principalmente através do coral, e com base nos vínculos estabelecidos com a sociedade local, no incentivo e apoio conjunto das principais lideranças da comunidade luterana, do atual pastor e de dirigentes de organizações e movimentos sociais vinculados à luta dos remanescentes quilombolas, foi criada a Associação Comunitária Remanescente de Quilombo Manoel do Rego.

Esse artigo tem como objetivo reconstruir a dinâmica de emergência de tal comunidade e as principais transformações pelas quais ela passou nos últimos anos. Trata-se de demonstrar que as dinâmicas sucessivas de definição e de recomposição das categorias de identificação vinculadas à comunidade (morenos e quilombolas) resultaram de condições de desigualdade e de processos políticos que possibilitaram a articulação de dinâmicas exógenas à comunidade com situações internas vivenciadas pelos seus membros. Dito de outro modo, as reivindicações e ações desenvolvidas para o ingresso e o direito de participar da comunidade luterana constituíram formas próprias de luta política, que resultaram na emergência de uma comunidade negra na região e na demarcação de suas fronteiras internas e externas na região de Solidez.

Desse modo, pretende-se enfatizar a importância da dimensão política nas investigações dos processos de emergência e de manutenção de comunidades e grupos sociais (Abélès, Jeudi, 1997; Elias, 2000). Essa ênfase no trabalho político realizado para a elaboração e o reconhecimento de suas categorias identitárias não tem ocupado um lugar tão destacado como mereceria nos estudos de comunidades quilombolas (Boyer, 2009, 2010). Como se sabe, na medida em que não faz sentido tomar a noção de etnicidade como decorrente de uma substância primordial ou essência definida por características naturais e biológicas (Poutgnat; Streiff-Fenart, 1998), a análise dos processos políticos de construção das categorias identitárias, que definem o significado e o lugar dos atributos possuídos pelos indivíduos nas estruturas e hierarquias sociais e de poder, torna-se um ponto de partida fundamental à compreensão da formação da comunidade.

Nesse sentido, nossa tarefa consistiu, justamente, em examinar, empiricamente, as condições sociais, políticas e culturais que respaldaram a construção ou redefinição das atribuições categoriais que definem o lugar do respectivo grupo nas estruturas de dominação e de poder características daquela sociedade. Isso implicou relacionar a emergência das categorias identitárias às "lutas de classificação", colocando no centro da análise o trabalho político desenvolvido pelos indivíduos e grupos sociais para subverter as divisões e classificações socialmente reconhecidas das quais eles são vítimas (Arnaud. et. al., 2009; Surdez. et. al., 2010). Pretende-se, portanto, destacar certos mecanismos associados à luta pelo poder entre os respectivos grupos sociais que viviam na região de Solidez, considerando as estruturas de dominação como dimensões interligadas aos conflitos e disputas que ocorrem no âmbito de instituições específicas: sejam elas definidas socialmente como políticas, bem como aquelas que comumente são vistas como não políticas, como é o caso, especificamente, das organizações religiosas e comunitárias (Memmi, 1985; Scott, 2002).

Desse modo, observa-se que os vínculos estabelecidos com a comunidade evangélica luterana e os princípios morais que os sustentavam constituem, ainda hoje, os fundamentos principais da criação e manutenção dos laços de parentesco entre as principais famílias da região. Eles estão, também, na base das formas de inserção e dos vínculos de suas principais lideranças com outras esferas, organizações e movimentos sociais. Tais vínculos contribuíram para a redefinição das percepções a respeito das condições de manutenção e de continuidade da comunidade e para a adesão ao termo quilombola como uma nova possibilidade de definição da vida comunitária.

O material utilizado como fonte de informação decorre de uma investigação que resultou na elaboração de um laudo antropológico sobre a Comunidade de Manoel do Rego (Oliveira. et. al., 2008), e consistiu, primeiramente, no levantamento de registros, de documentos e de artigos de jornais sobre o seu surgimento e a sua constituição, assim como de informações secundárias sobre a história dos negros no município em questão e as respectivas organizações e lideranças que, em diferentes momentos, participaram da construção e manutenção da comunidade. Em segundo lugar, foram realizadas entrevistas com os membros da comunidade e com aqueles atores que fazem a mediação da comunidade com as ONGs, as organizações religiosas, as agências estatais, os partidos políticos, entre outras. Em terceiro lugar, foi aplicado um cadastro para a obtenção de informações sobre as condições de vida do conjunto de famílias que fazem parte da Comunidade de Manoel do Rego (escolaridade, atividade ocupacional, renda familiar, nº de filhos e filhas e respectivos locais de residência, formas de aquisição e situação da propriedade em que residem, maquinaria, equipamentos e ferramentas disponíveis etc.). Por fim, foram realizadas, ainda, observações participantes de reuniões, festas religiosas e confraternizações que mobilizam a grande maioria dos membros da comunidade, bem como parte significativa de seus vizinhos.

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E ESTIGMATIZAÇÃO

Um dos aspectos que nos chamou bastante a atenção durante todo o processo de inserção no terreno de investigação foi a dificuldade de ter acesso a relatos e lembranças dos atuais residentes sobre o passado dos ex-escravos ou descendentes de escravos que permaneceram na região. Isso se mostra de maneira mais clara nas entrevistas com alguns dos membros mais antigos da comunidade. Pode-se tomar como uma situação exemplar dessa dificuldade de falar sobre o passado dos escravos e dos negros que ali viviam, bem como de ascendentes que foram escravos, a entrevista com dois moradores (um casal) que nasceram e foram criados em Manoel do Rego. No momento de realização da pesquisa, eles estavam com 85 anos e eram os membros mais antigos da comunidade, com os quais ainda era possível falar sobre a história da região e da comunidade.1 1 Um dos membros da comunidade que é mais antigo que eles está com 97 anos e por problemas da idade já não consegue mais ouvir e nem conversar. As tentativas de diálogo com ele não tiveram nenhum sucesso, pois além dele não entender nossas questões também não conseguimos compreender o que ele estava dizendo. "Seu G." é uma das principais lideranças da comunidade e tido pelos demais como uma das "pessoas que sabe de coisas", que conhece muito mais do que os outros moradores sobre a história das famílias e das pessoas que ali viveram, pois nasceu e se criou ali. No entanto, durante a entrevista, é o silêncio sobre o passado que se faz mais presente nos relatos de tal morador.

Mesmo quando se refere seja à localidade denominada Congo, cuja designação está fortemente ligada à África e aos "negros" e na qual o seu avô nasceu e se criou, seja ao seu pai que também lá nasceu, provavelmente no ano de 1880, a lembrança de fatos relacionados à situação dos escravos é algo que lhe "escapa à memória". Ao se reportar à situação de seu avô, o qual, certamente, ainda viveu um bom tempo no período da escravidão, não é com muita facilidade que ele admite que este, provavelmente, tenha vivido no período da escravidão, mas não afirma que tenha sido escravo.

Em conversas com outros moradores, fica claro que, mais do que ausência de lembranças do passado de exclusão e das situações a que estavam expostos os negros da região, é justamente a recordação de tal passado que cria certo desconforto e a vontade de mudar de assunto. Um exemplo disso é a entrevista com uma moradora de 59 anos, quando ela rememora o local onde nasceu e como era a vida dos negros em tal localidade. Tais lembranças são acompanhadas de tentativas de não falar mais do assunto, inclusive perguntando: "Posso servir um docezinho? Porque a nossa entrevista já terminou, né?!".

Desde muito tempo, sabemos que as dificuldades decorrentes do processo de inserção do pesquisador no terreno de análise, do levantamento das informações sobre o que pretende investigar e das formas de disponibilidade e de acesso aos documentos, registros e práticas existentes, "[...] são portadoras de uma informação positiva sobre as situações que as produzem [...]", podendo "[...] se converter em fontes de informação capaz de enriquecer nossa análise das formas da respectiva construção social [...]" e ser consideradas como uma "[...] realidade social a ser analisada como tal [...]" (Merllié, 1996, p. 156-157). Dessa forma, com base no princípio da reflexividade, um dos pilares de constituição da prática etnográfica, o qual exige do pesquisador a constante vigilância em relação às condições através das quais os dados etnográficos são produzidos (Beaud; Weber, 1998), tal situação tornou-se uma via de acesso à investigação das condições sociais, políticas e culturais que tornaram possíveis a emergência e a redefinição de tal comunidade na região.

Assim sendo, através dessas orientações, começamos a perceber que a dificuldade de falar do passado, essa "falta de memória" sobre a escravidão, dos ex-escravos e seus descendentes, está relacionada, na verdade, às situações de desigualdade étnico-raciais vivenciadas pelos negros ascendentes dos moradores da região, bem como por esses seus descendentes, e ao trabalho de mobilização política que foi necessário realizar para a redefinição identitária e a alteração da conotação pejorativa que ser negro tinha em tal localidade. Essa relação começou a ficar mais clara quando visitamos alguns descendentes de imigrantes alemães que também residem na região há bastante tempo. Numa dessas conversas, um dos moradores nos conta que, até pouco tempo, "seu G." ficava furioso quando o chamavam de negro, generalizando que esse sentimento era muito comum também aos demais membros da comunidade de Manoel do Rego, e afirmou: "Eles não gostavam de ser chamados de negros por causa dessa coisa de escravidão. Agora, depois dos quilombolas é que eles começaram a aceitar que chamem de negros" (Diário de Campo, 05 de julho de 2008).

De forma semelhante, quando indagamos novamente "Seu G" sobre o porquê do seu pai e o seu avô venderem a terra lá, em Potreiro Grande, e virem residir em Manoel do Rego, ele, prontamente, respondeu: "ninguém aqui era derrotado", "eles vieram porque quiseram", pois "lá não quiseram comprar e aqui era mais barato". Esta frase confirma a informação obtida pela investigação histórica sobre a região de que as "terras baratas" eram um atrativo oferecido pela localidade aos que para lá se dirigiam. No entanto, chamou-nos particularmente a atenção a utilização do termo derrotado como forma de oposição ao que caracterizou o empreendimento de seu pai e avô: ou seja, no caso desses, não se tratava de pessoas que se deslocaram para a região por se sentirem vencidos diante das dificuldades ou sofrimentos enfrentados na região onde residiam.

Como mostra Pollak (1989) a respeito dos grupos excluídos e marginalizados e das minorias que foram expostos a situações sociais de sofrimento e humilhação coletiva, as lembranças e a memória individual do passado estão vinculadas às estruturas e aos mecanismos de dominação vigentes nos diferentes momentos de existência daqueles que vivenciaram tais situações e de seus descendentes. Isso porque os pontos de referência que estruturam a memória individual constituem os indicadores empíricos da memória coletiva de um determinado grupo: de suas hierarquias e classificações, dos sentimentos de pertencimento e das fronteiras sócioculturais que os diferencia dos outros. Desse modo, o silêncio e o esquecimento do passado estão ligados a razões sociais e políticas: de um lado, eles respondem à necessidade de encontrar um modus vivendi com aqueles que presenciaram as situações de sofrimento e de humilhação vivenciadas por tais indivíduos; de outro lado, eles constituem uma forma de "poupar os filhos de crescerem na lembrança das feridas dos pais".

Em face dessa lembrança traumatizante, o silêncio parece se impor a todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas. E algumas vítimas, que compartilham essa mesma lembrança "comprometedora", preferem, elas também, guardar silêncio. Em lugar de se arriscar a um mal-entendido sobre uma questão tão grave, ou até mesmo de reforçar a consciência tranqüila e a propensão ao esquecimento dos antigos carrascos, não seria melhor se abster de falar? (Pollak, 1989, p. 4).

Sendo assim, parece-nos oportuno considerar que essa "falta de memória" em relação ao passado da escravidão, por parte dos próprios descendentes de escravos e libertos que viveram na região, constitui indicadores pertinentes da situação de estigmatização e descriminação racial a que estiveram sujeitos os negros da região durante os anos subsequentes à abolição da escravidão. Ao invés de considerá-la um simples resultado do envelhecimento biológico e individual, parece mais oportuno considerá-la como um sinal objetivo de como se constituiu e se consolidou a memória coletiva do grupo de negros que criaram a Comunidade de Manoel do Rego e de sua relação com o passado escravocrata e com a situação do negro no período pós-abolição.

BADERNAS, BRIGAS E EXCLUSÃO SOCIAL DOS HOMENS DE COR

As novas condições colocadas pelas mudanças decorrentes do processo de abolição da escravatura, da forma como ocorreu no Brasil e no Rio Grande do Sul em particular, constitui um dos ingredientes principais da configuração do espaço social no qual os ex-escravos e seus descendentes buscavam oportunidades de vida e de trabalho em tal localidade (Oliveira. et. al., 2008). Primeiramente, porque tais condições dificultaram a constituição de comunidades de ex-escravos, na medida em que colocaram na condição de libertos todos os negros mantidos até então como escravos, mas não lhes garantiu as formas de aquisição de terras e condições de trabalho que propiciassem a preservação, cidadania e subsistência dos mesmos. Isso fez com que a grande maioria continuasse vivendo sob a tutela de seus senhores, como prestadores de serviços, normalmente como meeiros, situação em que a divisão da produção não era feita de forma equitativa. Em segundo lugar, porque a substituição dos escravos pelo braço europeu e a impossibilidade legal de se tornarem proprietários de terras acirrou, em muitos casos, as formas de resistência que, desde muito tempo, já vinham sendo utilizadas pelos escravos como a estratégia de contestação da situação de desigualdade social a que estavam expostos e que, no período, foram definidas como "banditismo": fugas, formação de quilombos, rebeliões de escravos etc.

O terceiro aspecto, que pode ser tomado como um dos ingredientes principais da configuração de tal comunidade, está relacionado à existência de guerras e de sucessivas revoluções ocorridas na então província do Rio Grande do Sul, que se prolongaram até meados do século XX, uma vez que afetaram, profundamente, a região de Canguçu, sede de muitos desses embates. Isso porque os laços de fidelidade e de clientelismo com pessoas brancas de certa influência social e com alguns dos chefes políticos que lideraram grupos combatentes, bem como a efetiva participação dos escravos em tais revoluções constituíram formas concretas de aquisição de terras por parte de escravos que eram convocados para tais conflitos armados e que sobreviviam aos embates e às inúmeras barbáries cometidas em tais revoluções, como, também, a doação por serem filhos ou filhas de brancos. Associado a isso, destaca-se a grande desvalorização das terras da região, que contribuiu para que as principais famílias de importância da região tenham deixado o município desde meados do século XVIII e vendido suas terras pela terça metade do preço, contribuindo para o deslocamento de muitos moradores da proximidade para comprar terras nessa região, pois, com a mesma quantia de dinheiro, era possível adquirir uma quantidade bem maior de terras.

Esse padrão bastante diversificado de acesso à propriedade de terras por parte dos ex-escravos e seus descendentes constitui um dos elementos indispensáveis à compreensão da situação a que se viram inicialmente expostos, na medida em que está na base de suas formas de organização social e comunitária. Isso porque tais condições dificultaram o estabelecimento de um grau de coesão familiar e geracional, de laços estreitos e uniformes entre si e de níveis de organização fundados em vínculos informais, que possibilitassem a união e o compartilhamento de um sentimento de identidade grupal entre os ex-escravos e seus descendentes que viviam em tal região.

Eles não possuíam um estatuto social condizente com a condição formal de homens livres, sendo, normalmente, considerados como inferiores e excluídos do direito de participar das principais instâncias da sociedade. Tais fatores reforçavam, ainda mais, sua situação de dependência em relação aos brancos da região. Um dos aspectos que ilustra muito bem isso e sua influência para a formação dos principais núcleos de negros da região é o fato de que, independente da forma como adquiriram suas terras, os ex-escravos ou seus descendentes, até meados do século XX, não tinham o direito de participar da comunidade religiosa como os demais brancos que habitavam a região.

Quanto a isso, cabe destacar que a ocupação da região ocorreu, inicialmente, através de um fluxo muito intenso entre os diferentes núcleos de negros que residiam nas localidades mais próximas, constituindo um dos principais fatores que tornava difícil a formação de um sentimento de pertencimento comunitário dos negros que habitavam a região. Pois se tratava de um círculo bastante mutável e extenso de indivíduos, de modo que era difícil a formação de um sentimento de pertencimento e a constituição de um tipo de organização comunitária fundadas num certo grau de coesão das principais famílias ou grupos de negros que habitavam a região, bem como na delimitação das linhas de demarcação das fronteiras que definem as diferenças entre "nós/eles", no caso em pauta, entre negros e brancos.

Como já tem sido muito bem destacado pelos estudos sobre as situações de desigualdades entre grupos sociais que fazem parte de uma mesma comunidade, o grau diferenciado de coesão entre os respectivos grupos constitui uma das fontes principais da criação e manutenção das desigualdades dos recursos de poder disponíveis em tais comunidades (Elias, 2000). De maneira semelhante, observa-se, na situação em pauta, que, enquanto os brancos (descendentes de imigrantes alemães e brasileiros), ainda que de forma distinta, estabeleceram um estilo de vida comum e um conjunto de normas e instituições voltadas para a perpetuação da coletividade, os negros existiam, apenas, como um emaranhado de indivíduos desprovidos das condições e dos recursos de poder assegurados pela comunidade.

Nesse ponto, a situação dos ex-escravos da região parece muito diferente do que ocorrera nos grupos de descendentes de imigrantes alemães que também habitavam a região. Como salienta Gonçalves (2008), os "alemães", desde cedo, tiveram de se organizar em grupos para fazer frente às dificuldades colocadas pela imigração. Além disso, suas formas de aquisição da propriedade ocorreram com base em princípios comunitários, centrados na unidade familiar e na formação de colônias de descendentes. Isso facilitou o desenvolvimento de sentimentos de pertença a uma mesma comunidade étnica, através do estreitamento dos laços de parentesco e da constituição de formas de organização e de instituições (escolas, igrejas) que promovessem uma maior integração e união entre os membros da comunidade (Gonçalves, 2008, p. 108-9).

Dessa forma, as barreiras formais e institucionais colocadas aos ex-escravos, em relação à aquisição de terras e à constituição de comunidades, contribuíram para a criação e manutenção dos diferenciais de poder existentes entre brancos e negros que habitavam a região e serviu de base para a imposição dos valores dos brancos sobre os ex-escravos e seus descendentes: de um lado, pela apropriação e ocupação dos principais cargos nas organizações comunitárias; por outro, pela exclusão e estigmatização dos negros como um grupo diferente e inferior aos brancos. Uma vez que existia apenas como uma comunidade desconexa, caracterizada por um grau intenso de mobilidade local, pela inexistência de laços estreitos e uniformes entre si e do sentimento de pertencimento grupal (Elias, 2000), aos negros sempre era atribuída a culpa ou responsabilidade pelas "badernas", "brigas" e "conflitos" que existiam naquele local, o que justificava sua exclusão dos canais legítimos de participação da vida comunitária.

Isso se manifestou de maneira particular através da proibição da entrada da gente de cor na Igreja Evangélica Luterana de Manoel do Rego. Quanto a isso, cabe salientar que o uso pejorativo das designações "gente de cor", "pessoas de cor", "homens de cor" etc., para se referir aos ex-escravos e/ou seus descendentes em oposição aos brancos não é exclusivo da situação em pauta. Podemos encontrar designações e oposições semelhantes em outras situações investigadas (Anjos; Ruckert, 2004), o que nos coloca, seguindo uma linha de raciocínio próxima à de Elias (2000), diante de um problema igualmente observado numa grande variedade de unidades sociais (Estados Nacionais, comunidades locais etc.). Ou seja, na situação em pauta, o uso de tal adjetivo era sintomático de um "ato ideológico de evitação" que resultava dos diferenciais de poder que caracterizavam as relações entre brancos e negros naquela localidade.

A conversão religiosa como uma luta moral

A luta estabelecida em torno da redefinição do termo homens de cor, em Manoel do Rego, nos mostra como, nesse período, tal designação estava alicerçada em condições e dinâmicas próprias de exclusão dos negros da vida comunitária e, consequentemente, do acesso às condições de existência e de continuidade dos mesmos em tal localidade. As ações desenvolvidas pelos negros para ingressar na comunidade configuravam situações exemplares tanto da forma como tal termo constituía um "ato ideológico de evitação" quanto das alternativas encontradas por eles para modificar sua condição, através da atribuição de novas categorias identitárias para definir o grupo de negros que habitavam tal região.

A luta empreendida pelos negros para ingressar na comunidade se manifestou, inicialmente, através de constantes brigas e confrontos com os brancos durante comemorações e festividades locais, demonstrando a existência anterior de certas tensões na própria comunidade. O que passou a ser definido pelos brancos como as "badernas dos negros" constitui, na verdade, uma das formas próprias de resistência que as categorias sociais desprivilegiadas, ou em situações de exclusão, encontram para manifestarem seu descontentamento frente às suas desiguais condições de acesso à sociedade (Scott, 2002). Posteriormente, isso se manifestou através de sucessivas tentativas de ingresso da gente de cor na comunidade evangélica luterana de Solidez que, até então, era exclusividade dos teuto-brasileiros. Para compreender isso, cabe destacar que a preservação da germanidade e da identidade dos descendentes de imigrantes alemães residentes na região foi fortemente associada à religião luterana.

A religião luterana foi até um determinado momento fundamental para a manutenção da germanidade e para manter um grupo que, na sua origem era totalmente diversificado, mais coeso em valores e em tradições que foram reformuladas no Brasil. A igreja possibilitou as trocas e as redes de solidariedade, pois os indivíduos tinham histórias e dificuldades semelhantes para compartilhar. E isso lhes deu a idéia [sic] de homogeneidade, construindo assim uma identidade étnica (Gonçalves, 2008, p. 70).

Se a religião constituiu uma forma de afirmação de superioridade dos descendentes de imigrantes de alemães na localidade, pode-se dizer, também, que ela foi uma das formas de imposição da posição dominante dos brancos em relação aos negros e que se manifestou, de forma clara, na exclusão e na negação do acesso destes aos cultos e às reuniões na Igreja, assim como ao ingresso e participação na vida comunitária, através da ocupação de postos e posições na comunidade luterana.

Além disso, nas versões dos membros mais antigos da comunidade de Manoel do Rego e do pastor de Solidez no período, Augusto Drews, observa-se que a existência de animosidades entre os membros da congregação e a gente de cor que viviam na localidade impossibilitava o ingresso e a participação dos negros na comunidade religiosa. Mesmo assim, era cada vez mais comum a presença da gente de cor observando, do lado de fora, os cultos realizados na capelinha da congregação de Solidez. Um relato do Pastor Augusto Drews nos dá uma ideia de como isso ocorria em 1919.

Uma pequena congregação de 8 membros votantes, uma pequena capela, erigida de tijolos não queimados, com apenas uma porta, uma janela e algumas classes. Ali, durante certo tempo, se realizavam os cultos dominicais e, durante a semana, as aulas da escola. Realmente tudo representava "humildade". Os cultos se realizavam em língua alemã. [...] Por certo tempo, não tivemos visitantes nos cultos, a não ser um velhinho da gente de côr, de nome Manoel Leal, e este mesmo não entrava no recinto, mas ficava na porta, observando dali o que ocorria dentro da capela. [...] Com o correr do tempo apareceram mais pessoas da gente de côr nos cultos, que ainda eram realizados em língua alemã (Drews, 1948, p. 71).

Por iniciativa do próprio pastor, e contrariando a opinião geral dos membros brancos da comunidade, ele começou a dar assistência a tais pessoas em cultos separados. Isso era fonte de forte tensão por parte dos teuto-brasileiros que eram contrários à dedicação do pastor às pessoas negras e ficavam contrariados com a necessária convivência com elas (Rieth, 1999). Tal situação perdurou de 1919 a 1922, pois, até esse período, os negros não tinham o direito de entrar na igreja para participar dos cultos e festividades. Esse clima de tensão crescente dos teuto-brasileiros, com a participação dos negros na igreja, alcançou seu limite no natal de 1922, quando o Pastor decidiu fazer uma comemoração conjunta. Nessa comemoração, houve uma grande briga, na frente da Igreja, entre os membros da comunidade.

O culto no vernáculo, com um programa adequado, foi designado para o dia 25 ao anoitecer. A missão, nesta altura, já contava com algumas famílias da gente de côr, moradores nas vizinhanças da localidade. No dia determinado, já durante a tarde inteira, havia se reunido numeroso povo, aguardando a hora do início do culto, e entretendo-se perto de uma venda. Em vista disto resolvi ir, muito antes da hora marcada, com minha família à capela. Ao chegarmos a uma encruzilhada, avistei o povo que talvez excedia o número de 100 pessoas, e pensei comigo: - Tomara que tudo corra bem! Mas qual! Ao deixar a estrada e nos aproximarmos da capela, houve algum desentendimento entre o povo que lentamente, qual uma procissão, ia se aproximando da capela e, em dado momento, estava engalfinhado numa tremenda luta em que os argumentos eram fortes porretadas e golpes. Esta luta durou uns 20 minutos ou mais. Felizmente não houve mortos. À vista dêste espetáculo pavoroso desisti de realizar a festa de Natal, pois certos elementos de fora, provavelmente já alcoolizados quiseram trazer a limpo questões de outros tempos. E assim a nossa primeira festa de Natal na missão teve este trágico fim (Drews, 1948, p. 71-72).

Tal briga foi o estopim para a redefinição das fronteiras entre brancos e negros. Isso porque os negros foram considerados os culpados pelo que tinha ocorrido, sendo que, dali para frente, seu acesso à capela não era mais permitido. Segundo relatos dos próprios membros da comunidade de Manoel do Rego, isso teria sido "a gota d'água", para que os negros resolvessem criar a sua própria comunidade luterana (Gonçalves, 2008, p. 97).

De acordo com os documentos, o grupo de negros, mesmo não sendo responsável pelo conflito, acabou sofrendo as conseqüências e teve vedado o acesso à capela, que lhes servia de local de cultos, instrução religiosa e prédio escolar. Durante cinco anos a comunidade de luteranos negros reuniu-se nas próprias casas. Em novembro de 1927 foi inaugurada, na localidade de Manoel dos Regos, a 1,5 Km de Solidez, uma capela, onde também funcionaria a escola. O terreno foi doado por um teuto-brasileiro, Emil Wille, que posteriormente veio a substituir Drews como professor da escola. O material de construção foi doado, sendo a feitura dos tijolos e a construção, assumidos por membros da própria comunidade luterana negra (Rieth, 1999, p. 192).

Desse modo, tal briga expressa, por um lado, o aumento das tensões e dos conflitos entre os dois grupos e, por outro, um dos momentos importantes na fundação da comunidade de negros, na medida em que eles reagiram à tal proibição reunindo-se em suas próprias casas e formando uma comunidade distinta. Por isso, a briga ocorrida no natal de 1922 ainda está presente na lembrança da maioria dos atuais membros da comunidade, tanto daqueles que ainda eram crianças nesse período quanto de seus filhos. Nesse sentido, sempre que falam do surgimento da Comunidade Luterana Evangélica dos Negros, eles relembram que ela surgiu em função do "problema que deu lá em baixo com os negros", do tempo em que os "colonos" e os "negros" começaram a "pelear" etc.

Então quer dizer, os colonos não ficaram contentes com aquilo e aí o meu tio Valério, o meu pai, o pai desta [apontando para sua esposa]. Os outros que brigaram. Aqueles que vinham de fora, não esses da comunidade não. [...] A turma, os bagual que vinham de fora... Bicho velho que deitava prá trás, o facão comia, bom aí... O tio Valério que era casado com a irmã do meu pai disse olha, eu vou dar a minha casa pra dar continuidade no cultivo... Reverendo Augusto Drews... Foi ele que iniciou aqui. Então aí que se reunia aquele grupinho ali. Botavam um, ou dois, ou três prá ouvi a palavra de Deus... E aí eles iam chamando os outros ali. Bom, aí a casa era pequena do meu tio Valério não é. Aí eles se reuniam... Vamos fazer uma Igrejinha prá nós, tudo feito a maderado, por que naquele tempo tudo era com sacrifício prá trabalhar, fazia um estaleiro, cortavam madeira... Prá baixo prá cima, serrote. Cortavam as linhas... Tonados... Tinha linha pra fazer a Igreja, madeira tinha bastante, aí chamaram um pedreiro, o Fernando... Lá do Santo Colleto. [...] Trabalhando e eles ali trabalhando, tudo unido aquela turminha, fizeram a Igreja pra nós, ta certo, prá nós depois serviu prá mim. Que aquela Igreja que tá agora, essa aí eu ajudei a fazer. Eu já era casado, eu tinha filho não é, então ficou a Igreja só dos morenos ali (Entrevista).

De certa forma, a forte lembrança de tais acontecimentos ocorre porque tal evento constitui um dos marcos principal da fundação de uma comunidade distinta no distrito de Solidez. Diferente das situações em que o conflito de terra teve um papel de catalisador (Véran, 2000), no caso em pauta, tal papel foi desempenhado pelo conflito religioso, pois é a partir de tal evento e da reação dos negros frente à exclusão que até então vinham sofrendo, que se procede à delimitação das fronteiras que passaram a definir os negros como um grupo distinto. Isso implicou, por um lado, todo um trabalho político de definição interna dos limites quanto aos próprios grupos de negros que circulavam na região e às possíveis trocas existentes entre eles. Ou seja, a fundação de sua própria igreja possibilitava a delimitação de fronteiras internas ao próprio grupo, entre os negros baderneiros e os luteranos negros, e constituía uma forma de controle da imagem depreciativa que era lançada sobre os negros que viviam na localidade quando tais conflitos vinham à tona. Imagem essa que fundamentava sua exclusão do ingresso nas organizações comunitárias, como é o caso específico do acesso à comunidade luterana: "Só o que é daqui ficou, mas os de fora sempre viam... [...] Agora festinhas - aí festa depois que começou a igreja - ali vinha essa turma, daí caminhões de gente aqui na igreja isso passava tudo decente, não tinha mais briga" (Entrevista).

Por outro lado, essa delimitação interna das fronteiras ente os grupos de negros que frequentavam a região implicou, também, uma demarcação das fronteiras externas com o mundo dos brancos, na medida em que resultou na própria redefinição da designação gente de cor, que era o termo comumente atribuído aos negros da comunidade pelos brancos. Com a constituição da comunidade luterana negra, o próprio uso da designação gente de cor para se referir aos negros da região foi modificado, passando a ser utilizado o termo comunidade dos morenos. Doravante, seria com base na conversão religiosa daqueles que não eram do local, que seria possível a admissão dos novos membros na comunidade, bem como as trocas matrimoniais entre tais grupos de negros. Isso permitia aos negros luteranos diferenciarem-se dos outros negros bagunceiros e, assim, controlar as imagens depreciativas que os teuto-brasileiros lançavam constantemente contra eles enquanto uma categoria indistinta. Dessa forma, eles também passaram a existir perante os brancos da região, não mais como uma comunidade desconexa, mas como um grupo diferenciado, que exigia reconhecimento e respeito.

Nesse sentido, pode-se dizer que a formação da comunidade luterana negra alterou a configuração das relações de forças entre os distintos grupos que habitavam a região de Solidez. Segundo Rieth (1999), a constituição de duas comunidades religiosas distintas, dos teuto-brasileiros em Solidez e dos negros em Manoel do Rego, resultou na diminuição dos confrontos diretos entre eles. Isso não quer dizer que os conflitos existentes entre os dois grupos tenham desaparecido, nem tampouco que foram suprimidas as diferenças e desigualdades sociais que marcaram a relação entre brancos e negros na região. Quanto a isso, são inúmeros os relatos de eventos, festas e comemorações nos quais as fronteiras entre eles eram bem demarcadas com base em divisões étnicas e raciais.

Eu fui criado no racismo. Aqui, patrão, olha aqui eu vou dizer pro senhor, o branco comia aqui e eu comia lá na cozinha. Não tinha dizer eu acho ruim, se o senhor acha ruim o senhor saia, ia embora. [...] Não foi só eu. Aqui nessa venda, aqui tinha um colégio, eu não sei escrever e não seio ler, eu só sei fazer conta, que conta eu sou bom. Sei que é dom que Deus me deu. O racismo, era igreja só de alemão, era colégio só de alemão, e nós morávamos no meio dos alemães, o senhor não entrava na porta do colégio. Até tinha um professor, ele é vivo ainda, o Schmidt é o pai da Sônia essa aqui, nós não entrávamos na área do pátio do colégio pra brincar com os outros guris, porque nós éramos negros. (Entrevista)

Documentos sobre períodos bem recentes também ilustram como a separação entre negros e brancos constitui um dos princípios de organização que caracterizou os mais variados eventos e situações sociais na região de Solidez. Como salienta Gonçalves (2008), até os anos de 1980 ainda se podia escutar nas rádios da cidade convites para bailes que

sugeriam a entrada somente de brancos. No convite o locutor dizia: bailes das rosas brancas. Estava implícito que no baile só poderiam entrar pessoas brancas. Mas quando o locutor dizia baile das rosas vermelhas, sabia-se que os "negros" poderiam entrar. No entanto, a lei brasileira já previa o crime de "racismo", por isso os donos dos "salões de baile" utilizavam desse artifício para divulgar suas festas. [...] As primas Ilse e Clarisse também confirmam que os brasileiros podiam dançar nos bailes, mas os negros nem entravam (Gonçalves, 2008, p. 115; 116).

Todavia, em meio à persistência de tais divisões étnico-raciais, um dos aspectos contrastantes com a situação vivenciada no período anterior é que a formação da congregação luterana dos negros possibilitou o reconhecimento moral dos negros na região. Como eles próprios dizem, o pertencimento à Igreja constitui o que lhes permitiu ascender na comunidade ao fazer deles "homens de bem", mantendo-os no "caminho do bem e da honra" (Gonçalves, 2008, p. 130). Isso, como será exposto a seguir, trouxe profundas implicações quanto à vinculação do grupo com a memória da escravidão. No entanto, é evidente que, a partir disso, eles conseguiram impor uma identidade própria, que demarca uma fronteira étnico-racial em relação aos brancos. Nesse sentido, é interessante observar que a filiação religiosa ao luteranismo não significou o ingresso dos negros no mundo dos brancos e a supressão das divisões étnico-raciais. Pelo contrário, ela constituiu uma das formas que eles encontraram de afirmação de sua identidade grupal, de terem o direito de existir como um grupo distinto. Tanto é que foi como luteranos negros ou comunidade dos morenos que eles passaram a ser reconhecidos como um grupo digno de consideração e respeito.

Se, como coloca Elias (2000), as instituições religiosas constituem pontos focais nas redes de relações comunitárias, na localidade de Solidez, no início do século XX, isso se mostra de forma muito acentuada. As diferenças entre os principais grupos étnicos que habitavam tal localidade encontram formas particulares de expressão em filiações religiosas. Nesse sentido, observou-se que as diferenças entre brasileiros, teuto-brasileiros e negros foram tão marcadas que resultou na constituição de três comunidades protestantes distintas. Mas foi no confronto entre brancos e negros que as diferenças mais marcantes se manifestaram, pois os brasileiros tinham o ingresso permitido na comunidade dos alemães, enquanto que aos negros estava excluído o acesso a tais comunidades. Por isso, pode-se considerar o confronto entre negros e brancos (incluindo os teuto-brasileiros e os brasileiros na categoria dos brancos), como um dos aspectos principais na estruturação das relações entre as principais etnias que habitavam a região.

Nesse sentido, a criação de uma comunidade distinta de luteranos negros na região de Solidez demonstra a existência de desigualdades étnico-raciais quanto à utilização dos espaços de convivência comunitária. Os conflitos e as frequentes hostilidades ocorridas entre negros e brancos em tal localidade, bem como as imagens depreciativas que eram vinculadas aos primeiros, evidenciam, também, que, por parte dos brancos, não havia condições de acesso deles a tais espaços. E, quando isso estava prestes a ocorrer, devido ao trabalho insistente do Pastor, o qual foi objeto de resistências e incessantes críticas por parte dos teuto-brasileiros, os negros viram tal acesso negado, sendo-lhes atribuída a culpa pela baderna ocorrida no Natal de 1922. Diante disso, pode-se concluir que foi somente pela constituição de uma comunidade distinta, com regras e normas de condutas próprias, e não pela abertura de canais de participação por parte dos brancos que dominavam a vida comunitária até então, que os negros obtiveram o reconhecimento como um grupo étnico importante na região.

Essa conversão de ex-escravos ou seus descendentes ao protestantismo não constitui uma particularidade da situação investigada. Há muito tempo Roger Bastide já tinha constatado que, desde o início do século XX, tal conversão constitui uma das possibilidades de ascensão social para a população negra (Monteiro, 1999). Em consonância com isso, tem sido comum considerar as dinâmicas de conversão e de pertencimento dos negros à religião protestante como uma forma de possibilitar sua ascensão social, no sentido de que permite um maior progresso e mobilidade social e econômica para os mesmos (Monteiro, 1999). É também nesse sentido que se tem abordado a conversão dos negros à religião luterana na região de Solidez (Gonçalves, 2008; Rieth, 1999).

Sem descartar a pertinência de tal abordagem, acreditamos que, no caso de Solidez, muito mais do que uma busca orientada, apenas, pela necessidade de reduzir as desigualdades econômicas e de melhorar suas condições de trabalho, o pertencimento religioso dos ex-escravos e seus descendentes constituiu, claramente, uma das formas de luta por reconhecimento, podendo ser definida, também, como uma luta moral. Isso porque ela resultou no estabelecimento de um conjunto de regras de condutas próprias, que diferenciou os negros dos outros grupos existentes em tal localidade e, assim, possibilitou sua ascensão e reconhecimento perante os demais e sua afirmação moral como um grupo social distinto.

Tal interpretação tem como base algumas discussões vinculadas aos trabalhos de Axel Honneth e Nancy Fraser (Mattos, 2004; Mendonça, 2007; Mathieu, 2009). Um dos aspectos importantes que tem sido salientado a respeito dos trabalhos de Honneth diz respeito à relação entre formas de desrespeito e autorrealização dos indivíduos. Segundo ele, existem três formas principais de desrespeito que impedem a realização do indivíduo em sua integridade. São elas:

1) aquelas que afetam a integridade corporal dos sujeitos e, assim, sua autoconfiança básica; 2) a denegação de direitos, que mina a possibilidade de auto-respeito, à medida que inflige ao sujeito o sentimento de não possuir o status de igualdade; e 3) a referência negativa ao valor de certos indivíduos e grupos, que afeta a auto-estima dos sujeitos (Mendonça, 2007, p. 172).

Nesse sentido, o rebaixamento e a humilhação vivenciados pelos indivíduos, cotidianamente, que ameaçam as identidades dos grupos sociais e dos indivíduos associados a tal coletividade, constituem os fundamentos da emergência de conflitos e de lutas por reconhecimento. Uma vez que em tais lutas estão em jogo disputas referentes aos impedimentos e às possibilidades de "realização daquilo que se entende por bem viver", elas são um dos ingredientes "fundamentais do desenvolvimento moral da sociedade e dos indivíduos" (Mendonça, 2007, p. 172-173).

Os trabalhos de Fraser, por sua vez, criticam o que chama de "paradigma identitário do reconhecimento" que, segundo ela, corre o risco de redução das lutas por reconhecimento à busca de uma "autenticidade identitária" e a "pressão moral" para que os indivíduos se conformem à "cultura grupal" (Mendonça, 2007, p. 174). Em contraponto a isso, ela argumenta que é preciso considerar que tais lutas estão associadas a demandas por alterações dos status individuais dos membros de tais grupos e não apenas pela afirmação de uma identidade específica do grupo.

Ainda que esse debate esteja permeado por definições normativas a respeito do papel e das estratégias que deveriam ser adotadas pelos grupos sociais para alteração de suas condições de desigualdades étnica e raciais, ele traz importantes contribuições para pensar a conversão ao luteranismo dos negros que viviam em Solidez, na medida em que possibilita considerá-la como uma forma concreta de luta por direitos e pelo reconhecimento da dignidade de sua condição social e de sua conduta moral. De maneira geral, tal debate traz à tona os limites das abordagens que consideram as desvantagens econômicas e o desrespeito cultural como dimensões opostas e excludentes das lutas por reconhecimento e nos colocam no desafio de observar como elas estão empiricamente entrelaçadas nas situações concretas de formulação de justificativas, reivindicações e demandas por respeito e recognição (Mattos, 2004; Mathieu, 2009).

É um desafio semelhante que encontramos no caso de Solidez, quando observamos que a conversão religiosa está estreitamente interligada às demandas e lutas pelo acesso a padrões de moralidade que possibilitem o ingresso na vida comunitária. Todavia, como já foi salientado anteriormente, deve-se acrescentar, ainda, que a redistribuição dos diferenciais de poder (Elias, 2000) entre negros e brancos, quanto às possibilidades de acesso à vida comunitária em tal localidade, era um dos aspectos fundamentais que também estavam em jogo em tais lutas. É justamente na conexão das demandas por ascensão moral, por modificação dos atributos identitários e por redistribuição dos diferencias de poder que se pode considerar a conversão religiosa dos descendentes de escravos como uma forma de afirmação identitária. É, também, nesse sentido que podemos falar da fundação da Congregação Evangélica Luterana de Manoel do Rego como uma possibilidade de ascensão social dos negros enquanto um grupo social distinto e, portanto, como uma forma de integração dos mesmos na sociedade.

Desse modo, pode-se dizer que o sentimento de comunidade dos descendentes de escravos residentes na região foi profundamente marcado pela afirmação de princípios morais fundados no pertencimento religioso. Sua conversão à igreja luterana se deu de forma bastante conflituosa, decorrente do grau de distanciamento entre brancos e negros quanto ao acesso às formas legítimas de participação na vida comunitária, e cujo desdobramento foi a criação de uma comunidade distinta, uma vez que a então existente, desde muito tempo, se caracterizava pela exclusão e proibição de ingresso dos negros nos espaços comunitários. Por isso, a criação de uma congregação luterana de negros constituiu uma forma de lutar tanto contra as desigualdades de condições sociais a que estavam submetidos os negros que habitavam tal localidade quanto contra as formas de desrespeito moral e exclusão política que sofriam por parte dos brancos. Assim, é através de um trabalho de mobilização política, que conduz a afirmação moral do pertencimento a uma mesma comunidade de crentes, que os negros de Solidez estabelecem formas legítimas de apropriação e posse do território.

Isso parece um ponto importante para a compreensão da relação que os negros da região estabeleceram, posteriormente, com o passado da escravidão e que se mostrou para nós, inicialmente, através do "silêncio" e do "esquecimento" de fatos e eventos vinculados à escravidão em sua família de origem. De certa forma, tal aspecto parece estar interligado a certas exigências para o ingresso em comunidades luteranas, principalmente quando se trata de pessoas negras. Como salienta Rieth (1999, p. 185), trata-se de um caminho "extremamente árduo" e que "[...] exige completa renúncia da origem étnica e cultural da parte de pessoas negras e de ascendência negra".

Nesse sentido, um dos aspectos ainda pouco aprofundados sobre a conversão religiosa dos negros ao luteranismo tem sido a investigação das implicações e consequências que tal conversão trouxe em termos de reformulação identitária. No caso em pauta, ela resultou de certas condições objetivas de desigualdade e exclusão social e política na região. Ao mesmo tempo, a constituição de uma congregação de negros luteranos exigiu uma profunda redefinição dos esquemas de reclassificação da identidade dos negros que passaram por tais situações e suas vinculações com a afirmação de condutas e práticas morais condizentes com a nova situação.

Eu nunca me liguei nesse negócio de racismo. Eu esqueço que sou negra e me comunico com as pessoas. Quero que elas vejam o meu interior. Quando saio com as minhas colegas, procuro ter uma aparência que agrade a todos. Me arrumo para me sentir bem e saber que as pessoas também vão se sentir. Porque vejo as pessoas tratarem os brancos diferente dos pobres. E muito! Tenho uma colega que fala para mim: "D., o único preto que gosto é você" (Rieth, 1999, p. 185).

Como se pode ver por esse relato, a negação de sua origem étnica constitui um mecanismo importante de aceitação social. Em decorrência disso, a situação de descriminação identificada é associada a outros adjetivos como "pobres", "gente humilde" etc. Na situação estudada, foi somente com a emergência da categoria quilombolas que surgiu a possibilidade de que certas memórias subterrâneas (Pollak, 1989) sobre a situação dos negros na região fossem acionadas, na medida em que tal categoria constitui uma nova forma de vinculação da definição identitária do grupo com o passado da escravidão. Todavia, isso não ocorre sem conflitos internos, uma vez que princípios de organização, fundados no pertencimento religioso, entram em conflito com os que derivam das divisões étnico-raciais, assim como com os que remetem à filiação política e associativa.

De Morenos a Quilombolas

No ano de 2003, é constituída, formalmente, a Associação Comunitária Remanescente de Quilombo Manoel do Rego. A criação de tal associação contou com o incentivo e apoio conjunto das principais lideranças da comunidade luterana, do atual pastor e de dirigentes de organizações e movimentos sociais vinculados à luta dos remanescentes quilombolas. Segundo relato do conjunto dos membros da comunidade, a iniciativa de criação da associação partiu do contato entre lideranças da comunidade e o então presidente da Cooperativa dos Pequenos Agricultores Produtores de Leite da Região Sul - COOPAL. Tal contato resultou do fato de que os membros mais antigos da comunidade, durante muito tempo, fizeram parte dessa cooperativa em função da produção de leite que, antes da propagação atual da plantação de fumo, era uma atividade produtiva bastante desenvolvida na região.

Todavia, eles consideram o marco principal da criação da associação uma apresentação do coral da congregação durante a inauguração da COOPAL no distrito de Iguatemi, por convite do próprio presidente da cooperativa. Esse também era filiado ao Partido dos Trabalhadores e, posteriormente, foi candidato, pelo partido, a prefeito do município de Canguçu, no pleito eleitoral de 2004. Durante a inauguração, também estava presente o então vice-governador do estado do Rio Grande do Sul na gestão do PT, que ficou admirado com o Coral dos luteranos negros. Tal evento foi sucedido por algumas iniciativas tanto por parte dos membros da comunidade quanto do próprio presidente da COOPAL. Dentre estas se destaca o encaminhamento de técnicos da Fundação Cultural Palmares para dar início ao processo de reconhecimento da associação, o que resultou em várias visitas à comunidade. O trabalho realizado pela Fundação foi sucedido pelos investimentos de setores do movimento negro que aplicaram questionário para caracterização sócio-econômica da comunidade e fizeram oficinas de capacitação e mobilização visando à conscientização dos seus membros. Tais iniciativas, de lideranças e organizações externas à comunidade, contaram, também, com o interesse e o investimento dos seus próprios membros. Dentre esses, destaca-se a figura de "seu A.", que foi um dos principais defensores da criação da associação e que esteve à frente dela durante muito tempo. Ele se tornou o primeiro presidente da associação e, em função disso, participou de inúmeros eventos regionais e nacionais com representantes de outras associações quilombolas. Como ilustra a maioria dos relatos dos que participam, desde o início, da associação, a sua criação constituía, também, uma das esperanças de os negros permanecerem no local e não deixarem os alemães comprarem suas terras. Nesse sentido, pode-se falar que a criação da associação se insere numa dinâmica interna de apropriação e preservação de um território que estava em progressiva redução e sob uma forte ameaça de desintegração.

Aqui patrão, disse ele assim [referindo-se a "seu A"], já não existiam negros mais aqui, porque os colonos, os alemães, eles vinham tomando conta. Aí esse A., o senhor tem que conversar com ele, ele dizia: "vamos empacar, os que não têm, vamos ver se cada um fica no seu pedacinho, se planta ali e não sai, pra não deixar eles tomarem conta, porque senão o negro vai andar na estrada novamente como no cativeiro". Porque vende hoje, o senhor sabe, vende hoje, o dinheiro é aquele ditado: "tem uma carreta de dinheiro e babaus", então o dinheiro termina e o cara vai ficar sem as terras. E ele dizia: "conservem as terras aqui", cansou de vir aqui e dizer: "vamos conservar, vocês conservem, não saiam de cima do pedacinho de vocês", nós temos uma touceira de negro entouceirado! (Entrevista).

Quanto a isso, vale salientar que a criação da associação ocorreu num momento em que, objetivamente, a comunidade atravessava sérias dificuldades de permanência e continuidade. Isso porque, nas novas gerações, têm sido muito recorrentes os casos dos que abandonam a comunidade para tentar a sorte nos municípios e cidades vizinhas. Nesse sentido, vale salientar que, das dezessete famílias residindo no local, a grande maioria dos casais, (60%), tem filhos que não moram mais em Manoel do Rego.2 2 Informações e estatísticas obtidas com base no cadastro aplicado às famílias que residiam na comunidade. Dentre os principais motivos atestados pelos pais, para a transferência dos seus filhos e filhas para outras localidades, está a falta de trabalho na localidade (35,3%), demonstrando que a busca por melhores condições de trabalho fora da comunidade de Manoel do Rego constitui um dos ingredientes importantes da vida comunitária. Associadas a isso, as condições de acesso à escolarização e à formação escolar são muito precárias, de modo que 87,3% da população total que reside na localidade não está estudando no momento, mesmo que grande parte ainda esteja em período de formação escolar. Tal situação se agrava quando observamos que, em termos territoriais, a comunidade praticamente se estabilizou no decorrer do tempo, no sentido de que não houve acréscimos de novas propriedades com a formação de novas unidades familiares. Antes disso, o que se constata, em comparação com o momento inicial de criação da congregação de luteranos negros, é a forte redução do seu território geográfico. Nesse sentido, apenas 12,5% das atuais unidades familiares, ou praticamente em dois casos, houve pequena alteração na área utilizada, enquanto para 76,5% a mesma não sofreu nenhuma alteração nos últimos anos.

Tais fatores estão na base do sentimento comumente compartilhado pelos membros da comunidade de que "está difícil continuar a vida em Solidez". Se, como bem salientou o pastor da comunidade "a congregação foi muito importante para segurar eles" (Entrevista), o que se observa, atualmente, é que ela já não parece suficiente para sua manutenção e continuidade. Nesse sentido, a redefinição em torno da categoria quilombola se apresenta, para os próprios membros da comunidade, como uma das formas de acesso a serviços e direitos que, até então, não lhes era concedido (tratamento de água e esgoto, energia elétrica, financiamentos etc.), o que poderia trazer benefícios tanto para a manutenção das novas gerações na comunidade, quanto para sua expansão territorial. Nesse sentido, ela possibilita o reforço do sentimento comunitário num momento em que a adesão à congregação religiosa já não se mostrava mais tão eficiente.

No entanto, ao mesmo tempo que resulta da conjunção entre condições exógenas e dinâmicas endógenas à própria comunidade, a utilização do termo quilombola como princípio de definição do grupo tem sido fonte de alguns conflitos internos. Em primeiro lugar, porque ele trouxe à tona a necessidade de reconhecimento da vinculação do grupo com o passado escravocrata através da utilização do termo negro. No entanto, como vimos anteriormente, o uso de tal designação tinha uma conotação pejorativa na localidade de Manoel do Rego, pois constituía um adjetivo sintomático de um "ato ideológico de evitação" por parte dos brancos e que contribuía para a manutenção dos diferenciais de poder que caracterizava a posição social dos ex-escravos e seus descendentes em tal região. Como bem salienta o primeiro presidente da associação, uma das principais dificuldades encontradas para a formação da mesma foi as pessoas se reconhecerem como negras, uma vez que a ideia de ser negro era muito pejorativa (Entrevista). Por isso, mesmo que os termos quilombo e negro estejam juridicamente vinculados à valorização da cultura e das tradições afro-brasileiras (Boyer, 2009, 2010), para tal grupo ser respeitado significava, durante muito tempo, ser chamado de moreno e não de negro.

Em segundo lugar, existem dificuldades vinculadas à existência de princípios de organização comunitários relativamente diferenciados. De um lado, o princípio religioso que engloba um conjunto de famílias que participam, desde muito tempo, da congregação luterana. De outro, o princípio do parentesco, que reúne um conjunto significativo de indivíduos, mas nem todos com o mesmo grau de identificação e participação na congregação. Por fim, o princípio político e associativo que reúne outro conjunto distinto de participantes.

Em meio a isso, a congregação religiosa constitui a principal organização que forneceu os recursos humanos, materiais e simbólicos necessários à constituição da associação. Sendo assim, aqueles que fazem parte da congregação, mas que não veem no princípio político e associativo uma forma de resolução dos problemas comunitários, olham com certa desconfiança as propostas levadas a cabo pelos dirigentes da associação. Em função disso, muitos preferem o investimento em atividades relacionadas à congregação, não dispondo de tempo para o trabalho associativo. Por outro lado, os que não fazem parte da congregação deixam de acompanhar muitas das reuniões porque elas ocorrem em festas ou eventos relacionados à congregação.

Com o intuito de demarcar certas diferenças entre congregação religiosa e associação quilombola, foi elaborado um projeto de criação da sede da associação num outro espaço, separado daquele onde funciona a congregação. De certa forma, a superação de tais dificuldades parece remeter ao trabalho de mobilização política necessário à redefinição das fronteiras internas de tal comunidade, bem como ao estabelecimento dos princípios de organização apropriados à reconfiguração do sentimento de comunidade e à integração desses diferentes princípios de organização em torno de uma identidade comum.

CONCLUSÕES

Nos últimos anos, ocorreu uma verdadeira explosão da produção acadêmica brasileira sobre os remanescentes quilombolas, através de investigações, publicações em revistas especializadas e da presença de tal temática em congressos e encontros de antropologia (Boyer, 2009; 2010). Todavia, a produção teórica e conceitual referente a essa temática ainda é muito pequena, dificultando a construção de uma agenda própria de pesquisas sobre o assunto (Arruti, 1997; 2006; Boyer, 2009; 2010). Isso porque tal produção tem sido amplamente marcada pela premência de responder às demandas sociais, políticas e institucionais, o que se expressa pela busca incessante da prova do "pertencimento do grupo à categoria quilombola" e da certeza da diferença e da singularidade quilombola, negligenciando na maioria dos casos os "[...] termos mobilizados pelos próprios atores e os registros a que pertencem" (Boyer, 2010, p. 720).

Em contraponto a isso, e em consonância com os estudos que se centram seja na investigação das condições de existência e modos de formação dos grupos sociais (Véran, 2000; Boyer, 2009; 2010), seja na análise das dinâmicas de constituição das identidades (Arruti, 2006), este artigo procurou demonstrar que os processos de gênese e de transformação das categorias identitárias da Comunidade de Manoel do Rego nos colocam diante da importância das lutas de classificação e das lógicas de poder e dominação que lhe são inevitavelmente associadas, assim como aos conflitos que supõem a estabilização da definição de certas identidades coletivas (Surdez, et. al. 2010, p. 18-9). Nesse sentido, vimos que os conflitos envolvendo o ingresso na comunidade religiosa tiveram um papel de catalisador na medida em que, tal como demonstra Véran (1999, p. 317) a respeito dos conflitos de terra, levaram as "[...] famílias a explicitar, pelo exercício da memória, uma ligação entre o passado e a legitimidade da sua presença nessas terras". Desse modo, a memória e a identidade coletiva apresentam-se, primeiramente, como inseparáveis "das relações sociais que constituem o grupo", de modo que sua compreensão requer a consideração dos sucessivos contextos práticos que constituem a história social do respectivo grupo (Véran, 1999, p. 300).

Tais contextos e os respectivos conflitos a eles associados constituem marcos particularmente importantes, na medida em que possibilitam, concretamente, a articulação dos processos de identificação externa aos indivíduos e grupos sociais com as lógicas de identificação interna (Surdez, et. al. 2010). Por isso, ao invés de considerar as categorias de identificação, presentes na Comunidade de Manoel do Rego, como atributos mecânicos e transparentes de uma ancestralidade negra, procuramos dar conta de suas ligações com as dinâmicas de formação do grupo e com as relações sociais que o constituíram no decorrer de sua história e na atualidade. Desse modo, pode-se observar que a categoria quilombola, longe de fundar uma mera imposição externa ou um significado totalmente importado pelo grupo, está integrada a valores, interesses, condições e dinâmicas locais.

Recebido para publicação em 14 de outubro de 2011

Aceito em 01 de fevereiro de 2013

Wilson José Ferreira de Oliveira - Doutor em Antropologia Social. Professor do Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (NPPCS) e no Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Antropologia (NPPA) da Universidade Federal de Sergipe UFS. Tem formação e experiência profissional nas áreas de Antropologia, Sociologia e Ciência Política, atuando na área de Etnografia Política, investigando os seguintes temas: Repertórios Organizacionais, Engajamento e Construção de Causas Públicas; Gramáticas Políticas, Processos de Mediação e Ações Públicas. Publicações recentes: Desigualdades étnico-Raciais, formulações identitárias e lutas por reconhecimento. Espacio Abierto (Caracas. 1992), v. 21, p. 653-676, 2012; Posição de classe, redes sociais e carreiras militantes no estudo dos movimentos sociais. Revista Brasileira de Ciência Política (Impresso), v. 3, p. 49-77, 2010; Elites burocráticas, conhecimento técnico e políticas públicas de gestão ambiental. In: Joanildo A. Burity; Cibele Maria L. Rodrigues; Marcondes de A. Secundino. (Org.). Desigualdades e Justiça Social, v 1: A dinâmica Estado-Sociedade. 1ed. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010, v. 1, p. 59-76.

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  • 1
    Um dos membros da comunidade que é mais antigo que eles está com 97 anos e por problemas da idade já não consegue mais ouvir e nem conversar. As tentativas de diálogo com ele não tiveram nenhum sucesso, pois além dele não entender nossas questões também não conseguimos compreender o que ele estava dizendo.
  • 2
    Informações e estatísticas obtidas com base no cadastro aplicado às famílias que residiam na comunidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      14 Out 2011
    • Aceito
      01 Fev 2013
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