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O Trabalho no Cinema (e uma socióloga na plateia)

RESENHAS

Holzmann, Lorena. O Trabalho no Cinema (e uma socióloga na plateia). Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012, 195p

José Ricardo Ramalho

TRABALHO E CINEMA

Estudos sobre trabalho no contexto de globalização econômica têm desafiado os sociólogos a aprofundar investigações no sentido de compreender seus novos usos e suas implicações para a vida social. As situações criadas pelas estratégias de acumulação capitalista das últimas décadas chamam atenção, não apenas pela capacidade de o sistema fazer valer os seus interesses em escala mundial, como, também, pelos efeitos, em geral negativos, que causam aos trabalhadores. Como explicar as novas configurações e sensibilizar diferentes plateias para as questões do trabalho, que estão presentes no cotidiano da maioria das pessoas, mas cujas demonstrações, em geral, ficam restritas aos textos codificados no discurso científico? Pois é esta lacuna de comunicação que o livro de Lorena Holzmann vem cobrir. A autora trata, justamente, de discutir o tema trabalho através da linguagem cinematográfica, sugerindo novas abordagens e buscando maior eficácia explicativa e pedagógica para o ensino da sociologia do trabalho.

A paixão pelo cinema é uma condição importante para quem se lança por esses caminhos ainda pouco explorados de combinar outras linguagens na análise da realidade social. Tal exercício de hibridização tem seus riscos inclusive de ser tido como pouco científico , mas o desafio vem sendo enfrentado em outros espaços acadêmicos do país, com resultados positivos, principalmente ao justapor manifestações artísticas de grande impacto emocional com o exercício racional do debate sociológico.

O trabalho no cinema (e uma socióloga na plateia) é um livro dedicado a esta experiência inovadora. Partindo de discussão promovida através de um seminário para alunos de ciências sociais, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a autora divide seu texto em quatro partes: uma breve apresentação sobre as particularidades da arte cinematográfica; uma introdução às questões principais da história e da teoria sobre trabalho, visando um leitor pouco familiarizado; e, no corpo principal da obra, uma sequência organizada de comentários sobre 23 filmes cuidadosamente selecionados para motivar a reflexão sobre o tema. Termina com um esforço de síntese bastante útil para futuras experiências didáticas.

Lorena Holzmann se preocupa, desde as primeiras linhas, em ressaltar a capacidade que têm os filmes de permitir àqueles que os assistem "tomar conhecimento de realidades e episódios que desconheciam, refletir sobre suas vivências e mobilizar suas emoções" (p.9). Para ela, "o trabalho e os conflitos que o envolvem, como recorrência na experiência universal de homens e mulheres", tem sido registrado pelo cinema desde as suas origens. Propõe que, ao "abordar a presença do trabalho na vida dos personagens dos filmes", a preocupação seja menos com a qualidade técnica e estética, do que com a exposição cuidadosa da "relação dos personagens com o trabalho (ou com a falta dele), o modo como vivenciam, examinando suas dificuldades, lutas, vitórias, resistências, adesão, enfim, todos os fatores que fazem parte da realidade do trabalho e que têm sido objeto de investigação e de reflexões da sociologia do trabalho" (idem). Destaca, também, "a vivência do trabalho, como elemento indissociável da vida humana" e "vital na manutenção e reprodução da sociedade" (p.10).

As histórias contadas através dos filmes desmentem teorias recentes de que o trabalho teria perdido a sua centralidade no mundo contemporâneo. Mostram como, na verdade, ele se manifesta sob outras formas: tendo reduzido a proteção ao emprego e minimizado seu significado como formador de identidade, realçadas a precariedade e a instabilidade das ocupações. Exemplos de diferentes lugares do mundo apontam para a insegurança e o desespero como sentimentos dos que vivem do trabalho, e mesmo dos tradicionais representantes dos trabalhadores: os sindicatos enfrentam dificuldades para agir, em razão das mudanças no emprego formal e da reconfiguração da força de trabalho. No entanto, afirma Holzmann, "o trabalho constitui fator-chave de integração e criação de laços sociais, de sentimento de pertinência ao coletivo, de dignificação diante do outro, de autorreconhecimento e de autoestima, mesmo que as condições em que ele é realizado sejam problemáticas, penosas, e incorporem a exploração" (p.32).

Os comentários elaborados sobre os 23 filmes demonstram que, embora tratando de períodos históricos diferentes e situações sociais variadas da sociedade capitalista, as películas acabam permitindo, sempre, correlacionar as explicações teóricas da sociologia do trabalho com as situações vividas pelas pessoas no dia-a-dia das empresas, do trabalho em domicílio, da família, das lutas sociais.

Filmes como "Os Companheiros" ou "Germinal", por exemplo, oferecem uma excelente oportunidade para entender e visualizar movimentos de trabalhadores industriais que começaram a se articular na luta por direitos básicos e por melhores condições de trabalho e de vida. Da mesma forma que "Tempos Modernos", ao satirizar a concepção do homem como apêndice da máquina, revela as mazelas da "linha de montagem" ao despossuir o operário de um conhecimento que lhe permitia controlar seu trabalho.

A questão do desemprego associado às mudanças recentes no processo produtivo, também aparecem fortemente em algumas das escolhas da autora. Destaco, aqui, o impacto inevitável aos espectadores de filmes como "O Corte", "Segunda-feira ao Sol" e "Tudo ou Nada", pelas situações apresentadas de forma cômica ou dramática, que, além de sensibilizar para a questão do desemprego, também constroem uma simpatia e uma solidariedade com os personagens e suas trajetórias.

Lorena Holzmann não se esquece de incluir filmes que abordam o emprego no setor de serviços e críticas ao funcionamento do capitalismo. A carência de estudos nessa área recebe uma contribuição do cinema de ficção, através de "Uma secretária de futuro" ou "Amor sem escalas", assim como "Wall Street: poder e cobiça" ou o documentário "Capitalismo: uma história de amor", filmes que revelam os mecanismos de reprodução do sistema, através do setor financeiro e das estratégias das grandes corporações.

Flexibilização, precariedade e instabilidade no trabalho aparecem em "Pão e Rosas" e "Maria cheia de graça", associadas aos problemas da migração e da participação das mulheres no mercado de trabalho. "Pão e Rosas" é, também, um bom exemplo dos que abordam a dramaticidade das situações criadas pelas condições precárias de trabalho dos estrangeiros nos Estados Unidos, assim como revela as dificuldades por que passam os sindicatos a partir do processo de reestruturação produtiva nas décadas recentes.

Ao abordar as questões da flexibilização e precarização dos empregos, o filme (como outros da lista) acaba tocando em temas que são significativos para os trabalhadores de todos os tipos, tais como a formação da solidariedade e da identidade através do trabalho, que re-introduzem a importância da ação sindical. A principal personagem de "Pão e Rosas" é uma jovem mulher, vinda da America Central ilegalmente, em busca de emprego nos EUA, que consegue, graças à irmã, ser contratada como faxineira em um dos principais prédios de negócios de Los Angeles. O serviço de limpeza é gerenciado de forma despótica por um capataz centro-americano que controla o desempenho de homens e mulheres de idades variadas, que circulam "invisíveis" pelos corredores do edifício. É nesse contexto que o filme introduz outro personagem, membro do sindicato local, que parece disposto a enfrentar todas as dificuldades, inclusive ameaças de agressão, para mobilizar os trabalhadores. O filme não esconde as contradições dos personagens, os momentos de medo e os motivos que levam a divisões entre os trabalhadores na campanha pela sindicalização, e mostra, nesse mesmo contexto, a realização de atos políticos que conferem visibilidade ao grupo: uma passeata e uma greve por direitos de organização e melhores condições salariais.

"Pão e Rosas" chama a atenção para a trajetória do diretor inglês Ken Loach, sempre preocupado em mostrar, com precisão e sensibilidade, as mudanças no mundo do trabalho, em retratar as situações de desespero e dificuldade a que são submetidos os despossuídos do sistema, os discriminados, os destituídos de emprego ou empurrados para a marginalidade.

Não se espera da abordagem cinematográfica a reprodução dos códigos ou a fundamentação requerida pelo relato das ciências sociais: o alcance da manifestação dramática, não só atinge um público mais amplo, como permite visibilizar reações e solidariedades como dificilmente fariam os textos sociológicos. Segundo Paul Laverty, escritor e roteirista de "Pão e Rosas", para contar a história de vida de uma outra pessoa é preciso ouvir e captar o seu ponto de vista e entender suas escolhas.

Ao final da leitura de Trabalho e Cinema fica a certeza de, através dos dramas e comédias retratadas nas histórias dos personagens, poder-se alcançar uma outra forma de compreensão de questões caras à sociologia do trabalho, valendo-se de mais esse recurso analítico capaz de abarcar diferentes épocas e contextos.

Recebido para publicação em 22 de janeiro de 2013

Aceito em 24 de fevereiro de 2013

José Ricardo Ramalho - Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) na Universidade de São Paulo, e pós-doutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPQ. Sua atuação acadêmica está mais voltada para a área da Sociologia do Trabalho e seus principais temas de pesquisa são: relações de trabalho na indústria; sindicato e sindicalismo; reestruturação produtiva e distritos industriais; trabalho, emprego e desenvolvimento econômico regional e local; identidade operária. josericardoramalho@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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