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Do marxismo ao pós-marxismo?

RESENHAS

Therborn, Gören. Do marxismo ao pós-marxismo? São Paulo: Boitempo Editorial, 2012, 156p (Tradução: Rodrigo Nobile)

Fabio Mascaro Querido

CRISE DA MODERNIDADE, MARXISMO E (PÓS) MODERNISMO

As transformações de época, que modificam, substancialmente, as formas de reprodução da vida social, impõem novos desafios ao pensamento crítico em geral, e ao marxismo em particular, dentre eles a necessidade de reavaliar o próprio passado à luz das condições de possibilidade do presente, tarefa que se estabelece como condição indispensável para qualquer tentativa de atualização histórica. Desta perspectiva, são sempre muito bem vindos trabalhos que estimulam esta reflexão, como Do marxismo ao pós-marxismo?, do sociólogo sueco Gören Therborn. O título, por si só, anuncia a problemática teórica de fundo, que atravessa os três ensaios do livro (respectivamente "Rumo ao século XXI: os novos parâmetros da política global", "O marxismo do século XXI e a dialética da modernidade" e "Depois da dialética: a teoria social radical no Norte no alvorecer do século XXI"). Concebido como um mapa, ou melhor, uma "bússola", trata-se de uma "tentativa de entender as mudanças sociais e intelectuais radicais entre o século XX e o século XXI". Uma tentativa, bem entendido, que "não tem a pretensão de ser uma história intelectual ou uma história das idéias", estabelecendo-se, antes, "mais como um diário de viajante, como notas despretensiosas colocadas no papel após uma longa e árdua viagem por montes, desfiladeiros, ladeiras e becos do marxismo" (p.9).

Em particular, o livro concentra-se nas transformações do que o autor denomina "culturas da crítica", no plano teórico-intelectual, político e geográfico dos anos 60 até o limiar do século XXI, em seus êxitos e, sobretudo, em seus fracassos. Impressiona, especialmente, a amplitude e a variedade dos autores e "correntes" intelectuais do pensamento crítico contemporâneo às quais se refere Göran Therborn, compreendendo-as à luz de suas "respostas" teóricas e políticas aos desafios que emergiram com as mudanças globais do sistema estabelecido. De Perry Anderson, Habermas, Alan Badiou, Slavoj Zizek, Terry Eagleton, Fredric Jameson, E. Balibar, até figuras como A. Negri, Roberto Mangabeira Unger e Boaventura de Souza Santos, dentre inúmeros outros, são diversos os personagens intelectuais que surgem na narrativa de Therborn, a partir da confrontação de suas reflexões teóricas com um cenário histórico caracterizado, entre outras coisas, pela "quebra" do "triângulo marxista clássico" (política, ciência social e filosofia) e pelo subsequente declínio de um horizonte alternativo capaz de servir como parâmetro para a crítica do presente.

O ponto de partida dos ensaios é, portanto, a necessidade de reflexão sobre a derrota. Nas palavras do autor, "a conjunção global das derrotas políticas da esquerda e o esfacelamento social das últimas duas décadas do século XX foram esmagadoras" (p.99). Segundo ele, a emergência fulminante do "tsunami neoliberal", que esgarçou a base social dos movimentos políticos, potencialmente alternativos ao sistema (sobretudo a classe operária industrial), consagrou o início de uma etapa marcada por profundos fracassos políticos da esquerda. Do ponto de vista das transformações intelectuais, o avanço neoliberal, no espectro da(s) derrota(s) política(s) da esquerda, a partir do final da década de 1970, estimulou, como sua contraface imanente, uma decadência significativa de todos os "modernismos de esquerda", notadamente o "modernismo marxista". Para Goran Therborn, o impacto foi de tamanha magnitude que, no limite, "se o modernismo socialista fosse uma espécie, ele estaria à beira da extinção" (p.36). Desde então, o "moderno" tornou-se, cada vez mais, propriedade da reação liberal: a invocação da "modernização" hoje, como sabemos, não é senão uma palavra-chave para o corte de direitos e para a flexibilização e precarização do trabalho.

Ora, é precisamente aqui, neste diagnóstico da "crise" dos "modernismos de esquerda", que os aspectos mais polêmicos do livro ganham especial nitidez. Isso porque, em grande medida, a crítica de Therborn, desferida ao discurso pós-moderno (no mais, plenamente justificada), permanece demasiadamente tributária de um horizonte teórico "neo-iluminista", por assim dizer, como se o marxismo - modernista por excelência - fosse incapaz de sobreviver à crise e desagregação do projeto político e intelectual moderno. Para Therborn, se a modernidade caracteriza-se por uma orientação temporal voltada para o futuro como um horizonte novo e atingível, "Marx e o marxismo eram muito modernos nesse sentido" (p.105), tão modernos quanto um defensor incondicional da modernidade como Habermas. Não aleatoriamente, em sua opinião, "da perspectiva da emancipação humana, o modernismo iluminista continua sendo uma tradição respeitável, que deveria ser desenvolvida e defendida" (p.57). Por certo, em alguma medida.

O problema é que, ao tomar o marxismo, acima de tudo, como uma espécie de radicalização à esquerda do projeto moderno, o sociólogo sueco acaba sendo demasiadamente indulgente com certa tradição marxista "modernista", cujo "fetichismo do progresso" (na forma ou não daquilo que Herbert Marcuse denominou "fetichismo das forças produtivas") foi um dos responsáveis pela apatia e pelos fracassos da esquerda política, sempre disposta a esperar, passivamente, pela "maturação" do desenvolvimento histórico-objetivo. Embora reconheça a necessidade de uma "autoavaliação crítica das limitações e lacunas inerentes do modernismo de esquerda" (p.42), na direção da revitalização da dialética marxista da modernidade, Therborn parece tributário, muitas vezes, de uma compreensão excessivamente benevolente e legitimadora do processo de desenvolvimento e consolidação da modernidade capitalista, em detrimento da constatação da dimensão bárbara, destrutiva e violenta (no contexto de uma luta assimétrica entre as classes sociais) deste "progresso". Não é por acaso que ele chega ao ponto de definir a tentativa de E. P. Thompson de reinterpretar a contrapelo a história dos oprimidos (sobretudo na Inglaterra) como manifestação de um "antimodernismo subalterno" (p.37). Com esta perspectiva, Therborn reproduz uma concepção "fechada" do passado, como se a razão dos vencedores fosse a razão da história, e como se o passado não fosse senão um conjunto de fatos historicamente ordenados como prelúdio necessário de um presente agora vigente.

O fato de que, nas últimas décadas, as correntes pós-modernas tenham hegemonizado a crítica ao mito do progresso, característico do discurso filosófico moderno (dirigindo-a muito mais contra o modernismo de esquerda do que contra a direita modernista neoliberal), não significa que todo questionamento desse mito implique um abandono das esperanças emancipatórias (das "grandes narrativas") originalmente vinculadas à perspectiva iluminista-moderna. Muito pelo contrário: hoje, a reconstrução de uma perspectiva contra-hegemônica, anticapitalista e emancipatória, por parte das classes oprimidas depende, justamente, da capacidade de radicalização da crítica dialética da modernidade capitalista e do rechaço radical de toda crença num "progresso", percorrendo uma temporalidade abstrata ("vazia e homogênea", como diria Walter Benjamin), exterior à ação imanente das classes sociais na história.

Se há sentido em dizer que o marxismo "defendeu a modernidade com o objetivo de criar outra modernidade, muito mais desenvolvida" (p.62), como diz Therborn, ou seja, que o marxismo aspirava - em sua crítica do capitalismo - à emergência de uma modernidade alternativa, não se pode menosprezar, por outro lado, a descontinuidade qualitativa radical existente entre este outro mundo almejado e a moderna sociedade burguesa, descontinuidade que se concretiza (ou não) nos distintos projetos hegemônicos das classes sociais em luta. Pois, à diferença dos "discursos filosóficos da modernidade" (e de muitos representantes dos "modernismos de esquerda"), que legitimam a modernidade capitalista como resultado desejável e necessário do desenvolvimento histórico, um marxismo crítico compreende este processo, não sob o signo de um esquema transcendente que chancela as barbáries modernas como subprodutos transitórios do progresso, mas sim, a partir da contradição imanente de um progresso que é, também, em muitos aspectos, regressão. Mais do que continuidade, uma transformação social radical significa, portanto, ruptura e descontinuidade em relação à modernidade capitalista.

Com isso, demonstrando-se capaz de refletir, no presente, sobre suas próprias derrotas no passado, um marxismo atualizado pode enfrentar os desafios da crise dos modernismos de esquerda sem recorrer, nostalgicamente, às garantias inscritas na sua própria versão de um "discurso filosófico da modernidade". Liberado das intermitências de uma crise que não necessariamente é a sua, torna-se possível ao marxismo contemporâneo reatar os laços, não com uma classe essencializada (e abstratamente definida), demiurgo de uma vitória que não veio, e sim, com a classe que se faz e se refaz no andamento de sua própria práxis histórico-concreta. Ao reativar esta aposta imanente nas possibilidades inscritas na práxis das classes subalternas realmente existentes, o marxismo poderá demonstrar que a crise das narrativas modernas não significa o esgotamento de suas possibilidades teóricas e políticas, uma vez que seu objeto por excelência, o capitalismo, continua a definir o ritmo e os rumos do mundo. É contra este mundo que o marxismo (ou os marxismos, no plural) se reinventa, resistindo à tendência afirmativa invocada na própria questão que intitula a obra ora apresentada (do marxismo ao pós-marxismo?).

Recebido para publicação em 11 de fevereiro de 2013

Aceito em 24 de fevereiro de 2013

Fabio Mascaro Querido - Doutorando em Sociologia, IFCH UNICAMP (SP). Bolsista FAPESP. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Cultura e Teoria Sociológica, atuando principalmente nos seguintes temas: pensamento social, Michael Löwy, Walter Benjamin, Daniel Bensaïd, marxismo contemporâneo e crítica da modernidade. Autor de artigos e resenhas nas revistas Margem Esquerda, Tempo Social (USP), Perspectiva (UNESP), Herramienta (Argentina), Lutas Sociais (PUC-SP), Crítica Marxista (UNICAMP), dentre outras. fabiomascaro@yahoo.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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