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A Europa Alemã - de Maquiavel a "Merkievel": estratégias de poder na crise do euro

RESENHA

BECK, Ulrich. A Europa Alemã - de Maquiavel a "Merkievel": estratégias de poder na crise do euro. Título Original: Das deutsche Europa. New Machtlandschafen in Zeiten der Krise. Lisboa: Edições 70, 2013. 112p.

João Carlos Jarochinski Silva

A europa de beck

Esse pequeno livro escrito por Ulrich Beck tem muito a dizer sobre nossos tempos. O sociólogo alemão resolveu enfrentar um dos mais difíceis problemas da contemporaneidade, a crise do Euro, o que torna o livro muito relevante para a compreensão desse período nebuloso.

O livro, finalizado por Beck em agosto de 2012, faz uma reflexão sobre a situação em que se encontra a União Europeia e seus possíveis efeitos para os europeus e para o restante do mundo. Nesse ponto, ele inicia com uma afirmação impactante, ao dizer que a queda da Europa é prejudicial, não só para os países da UE, mas também para os valores sociais desenvolvidos em função dos avanços no processo de integração vivenciados pelos europeus, como a defesa dos Direitos Humanos, das formas democráticas de organização política e da transnacionalização efetiva das questões que ultrapassam as fronteiras nacionais. Alguns desses avanços também são praticados em outras localidades, sendo, portanto, o seu declínio em território europeu uma derrota para todos que advogam esses mesmos valores.

Além disso, chama-nos a atenção para o fato de que o texto pode estar datado até o seu lançamento, pois as soluções para as questões europeias podem ter sido encontradas, ou mesmo o Euro ter deixado de existir. Entretanto, até este momento, nem uma coisa nem outra ocorreram, e a sua leitura se torna obrigatória para aqueles que desejam compreender o cenário de crise no qual o modelo mais profundo de integração entre países se encontra.

Beck destaca que muito da crise se deve à cegueira econômica, pois se deixou de lado a sociedade e, por consequência, a política. Ele salienta que a UE deve trazer de volta a sociedade e colocá-la nos foros de debate. Ele também lembra que a Europa não é apenas o Euro, algo fundamental para quem deseja pensar em alguma solução para crise, pois, ao se deparar com as análises efetuadas, o caráter econômico-financeiro se sobrepõe às outras dimensões. Tem-se a impressão de que não existe vida fora da economia, tanto que a retórica econômica adquire características humanas em um processo de personificação dos mercados financeiros que visa a supervalorizá-los. Interessante destacar que ele demonstra tal posicionamento por meio de diversos exemplos retirados das notícias a que teve acesso pelos meios de comunicação.

Ele demonstra que o predomínio econômico da Alemanha conduziu esse Estado, por conta de seu maior peso produtivo e financeiro, à condição de dominador da União, fazendo com que sua política de austeridade se transformasse no único modelo a ser seguido, criando lógicas de contradição no seio da própria UE, pois o modelo estabeleceu o contraste entre o norte e o sul da Europa, entre a Europa do Euro e a que não adota essa moeda, e entre governos e populações, pois há a falta de legitimação das ações, já que o acordado pelos governos é reprovado pelas populações, tudo em função das ordens da nova "rainha" da Europa, Angela Merkel.

Nesse ponto reside uma das análises mais interessantes do livro, a lógica de ação de Merkel que, numa feliz anedota, Beck chama de "Merkievel", pois ela formulou uma nova técnica de dominação, definida pelo autor de hesitação. Ela estabelece o "NIM", nem SIM, nem NÃO, pois, dessa forma, controla o eleitorado de seu país, que deseja o NÃO aos países que não fizeram a lição de casa em termos de austeridade e oferece a possibilidade do SIM aos países em situação periclitante, ao discorrer sobre a possibilidade de apoio financeiro condicionado a certas ações por parte desses países que necessitam dos empréstimos.

Essa dominação, que cria a Europa Alemã, termo visto como exagerado por muitos analistas, mas que Beck faz questão de utilizar, revela o estado das coisas no continente, trazendo a sombra de um novo domínio alemão sobre os demais países, só que, desta vez, diferentemente dos períodos anteriores, não há a possibilidade de a dominação se transformar em sentimento de culpa. Hoje, segundo o governo Merkel, a dominação não decorre da ambição alemã, mas da ineficácia e da irresponsabilidade dos demais países que não realizaram as ações necessárias para a manutenção do equilíbrio dos seus sistemas econômicos e sociais, estando, por isso, na posição de dominados frente a um país que se orgulha da austeridade de suas ações. O discurso desse governo é o de que a Europa necessita da Alemanha, e não o contrário.

Porém a verdade não é bem essa, pois a Alemanha tem segurado seu "milagre" econômico com base na exploração da situação dos países em crise, pois o repasse de recursos também traz benefícios que têm sustentado seu modelo social que, apesar do que é divulgado, tem enormes dificuldades em se sustentar, pois ocorre por meio da criação de empregos de baixa renda e de uma precarização das relações de trabalho. Isso, por si só, já contraria um dos princípios da própria União, que é o impedimento da exploração de um país pelo outro. Além disso, afasta os demais princípios, com destaque para a equidade, o equilíbrio e a reconciliação, isto é, desconstroem-se os valores democráticos. A Alemanha se aproveita da crise em termos econômicos, políticos e morais, afastando-se das ideias que a nortearam nos anos 50, quando se reaproximou dos países da Europa, e nas quais conclamava não a construção de uma Europa Alemã, mas de uma Alemanha Europeia.

Ele afirma que a atual situação pode destruir o que de mais essencial se criou nos últimos 50 anos em termos europeus, que é o arrefecimento de rivalidades históricas, a criação da noção de uma sociedade europeia e da proteção dos valores anteriormente destacados. Esses valores, infelizmente, não são valorizados como deveriam pelas pessoas; pelo simples fato de se tornarem habituais, as pessoas tendem a se esquecer da importância que possuem.

Apesar de tudo, segundo Beck, há a possibilidade de a crise ser a oportunidade para que a sociedade europeia seja reinserida no debate, pensando a questão sobre a perspectiva dos indivíduos, pois o risco de destruição dos avanços obtidos no cenário europeu fez com que as análises mais sombrias, como o fim da União Europeia e, por consequência, de suas liberdades e avanços, se tornassem realistas, o que leva certos grupos sociais a se manifestarem e lutarem pela manutenção de seus interesses. Há a necessidade da ocorrência de uma Primavera Europeia, para que a política saia da estagnação do mero cumprimento das metas de austeridade econômica formuladas a partir da alta política de Berlim. Infelizmente, conforme constata o próprio autor, não é o que se tem visto até agora.

Mas, apesar disso, Beck mantém o otimistmo, pois o risco (BECK, 2010) - conceito fundamental em sua obra e que, nesse caso, é utilizado para verificar a situação social de ameaça que pode surgir com o declínio da integração europeia e salientar os desníveis entre os Estados-Membros da UE - pode gerar a retomada de um processo político em nível europeu que ultrapasse as fronteiras nacionais, que já não são suficientes para a resolução das questões, criando instituições democráticas capazes de suplantar os interesses e identidades nacionais, pois há uma causa maior em jogo e que deve ser defendida até o fim, que é a manutenção dessa Europa.

O ideal cosmopolita há de ser colocado em prática em âmbito europeu para a reconstrução de um projeto em conjunto, que não se limite às relações hierárquicas entre instituições e indivíduos, mas que preze pela apropriação dessa Europa por parte dos indivíduos e pela manutenção das conquistas de cunho social-democrata, com destaque para as políticas de seguridade social que transformaram os europeus em referência para o mundo todo.

João Carlos Jarochinski Silva- Doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP. Professor da Universidade Federal de Roraima - UFRR. Autor de diversos artigos relacionados ao tema das migrações, direito internacional, história e educação, com destaque para o capítulo que trata dos fluxos migratórios mistos, presente no livro patrocinado pelo ACNUR 60 anos de Acnur: Perspectivas de Futuro. jcsilva98@hotmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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