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Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos Latino-Americanos

RESENHA

Romilda de Souza Lima; Sheila Maria Doula

Menasche, Renata; Alvarez, Marcelo; Collaço, Janine (Orgs.). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos Latino-Americanos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012. 264p

O livro, publicado em 2012, apresenta estudos antropológicos sobre alimentação, enfatizando seu aspecto cultural e social, mais do que biológico. Elaborado por vários autores, os artigos mostram resultados de pesquisa, primeiramente discutidos no Grupo de Trabalho: "Antropologia da Alimentação - diálogos latino-americanos", frutos de cooperação entre pesquisadores brasileiros e argentinos, membros da International Comission in the Antropology of Food, afiliada à IUAFES (International Union of Antropological and Ethnological Sciences), que reúne pesquisadores de alguns países da Europa, América e Ásia. As pesquisas são importantes para a discussão da Antropologia da alimentação na América Latina e, principalmente, no Brasil, onde a discussão caminha lentamente. Os organizadores do livro destacam a necessidade de ampliar as reflexões no campo sociocultural da alimentação. Para isso, resgatar sua dimensão histórica é fundamental, pois possibilita conhecer a função exercida pelos hábitos alimentares em diferentes culturas, por exemplo, bem como compreender as mudanças nesse campo no mundo contemporâneo.

Na introdução, os organizadores destacam que o alimentar-se envolve uma série de significados que incluem "a busca, a preservação, a preparação e apresentação, realização, consumo e descarte de alimentos" (p. 07). A contribuição teórica da antropologia se dá, principalmente, por destacar como os sistemas de produção e consumo de alimentos permitem, ao mesmo tempo, assumir uma construção material e simbólica. O livro está dividido em quatro blocos temáticos distintos. São eles: "Escolhas alimentares, saúde e políticas públicas"; "Produtos Identitários"; "Transformações contemporâneas e consumo alimentar"; "Historias etnográficas do comer". A pesquisa no México, realizada por Miriam Bertran Vilà, apresenta uma revisão da abordagem antropológica da categoria alimentar em várias escolas antropológicas. Destaca ainda que, inicialmente, os estudos da antropologia da alimentação tiveram um caráter basicamente aplicado e que é possível verificar, nesse país, importantes alterações nos hábitos alimentares das populações indígenas, frente às diversas problemáticas enfrentadas ao longo do tempo por esses grupos, inclusive desnutrição e obesidade. Os novos hábitos estão atrelados também à influência, cada vez maior, dos modelos de vida norte-americano dos fast-food, inserindo um processo de aculturação indesejado para a manutenção da saúde da população.

Em estudo que trata principalmente dos hábitos alimentares dos espanhóis, a partir de levantamento de dados sanitários, os autores Mabel Gracia-Arnaiz e Jesús Contreras discutem a maneira como comemos no mundo contemporâneo e o seu reflexo no processo de saúde e doença ou, como a pesquisa denomina, as 'doenças do bem-estar' (cardiovasculares, diabetes, hipertensão e alguns tipos de câncer). Já, Luis Santarsiero investigou, em outra pesquisa, como beneficiários argentinos de programas de assistência alimentar e nutricional interpretam essa ação, ou seja, se a consideram, ou não, uma complementação importante para a dieta cotidiana. Ao final, o autor questiona a validade dos programas quanto ao cumprimento efetivo de satisfazer as necessidades básicas e critica sua feição assistencialista.

As modificações alimentares provocadas pela adoção de outro estilo de vida são objeto de um estudo sobre a alfarroba, importante leguminosa, no cotidiano de famílias rurais nas províncias do Chaco e Formosa, na Argentina. A pesquisa, desenvolvida por Sebastián Carenzo, comprova que, além de seu alto poder nutritivo, a alfarroba possui valores simbólicos de forte significado para os grupos tradicionais. Um dos significados é que, por ser uma árvore de fácil adaptação e resistência às alterações climáticas, foi responsável por garantir a sobrevivência dos primeiros ocupantes do Chaco argentino, sobretudo do lado Oeste, que possui clima seco. Porém, com a modernização agrícola, que ocupa novas e maiores áreas, as plantas crioulas e tradicionais vão perdendo espaço e também se restringe o seu consumo. Isso demonstra o quanto o modelo alimentar de um grupo é dinâmico e, apesar do apelo simbólico e cultural, pode sofrer alterações importantes em poucas gerações. Para o estudo, foi traçado um histórico da alfarroba nessas regiões, desde o período colonial, a partir do encontro dos grupos indígenas com os colonizadores europeus, e do conhecimento dos europeus sobre os diversos alimentos consumidos na América Latina.

O milho e sua importância nas festividades juninas de Recife nortearam a pesquisa de Hugo Menezes Neto, que tem como percurso teórico o conceito de "centralidade simbólica" - que diz respeito ao destaque dado a um determinado item, em festas populares, e ainda o que leva a essa superioridade em detrimento de outros componentes dos festejos. Discute-se também a concepção de cultura popular na Idade Média e no Renascimento, bem como a teoria das representações no campo imagético, teórico, discursivo, artístico e (ou) econômico. A partir da interface entre a antropologia da alimentação e teorias sobre a cultura popular, o milho é tratado, sobretudo, em seus significados festivos e identitários.

O queijo serrano dos Campos de Cima da Serra (RS) é tema de pesquisa realizada por Renata Menasche e Evander Krone sobre o saber-fazer tradicional. Resgata-se a história e aspectos da cultura e da identidade como ingredientes de um produto regional. Embora sua comercialização represente mais da metade da renda total dos produtores, esse tipo de queijo vem enfrentando o mesmo problema de adequação à legislação sanitária que aqueles produzidos em outros locais do país, como o Canastra e o Serro. Por seu forte vínculo com a identidade cultural dos produtores da região, o queijo artesanal pode adquirir uma valorização econômica diferenciada, como já ocorre na Europa em relação a alguns alimentos, proporcionando uma nova dinâmica de desenvolvimento territorial, o que é positivo para produtores e consumidores.

A pesquisa sobre a produção e o consumo do café na Costa Rica destaca a cultura, o sabor e o mercado de café nesse país. Nesse trabalho, a pesquisadora Denia Solano elabora um relato histórico da expansão do café em âmbito mundial, como um sabor que também é cultural. O café, mais do que outra bebida, foi sendo gustativamente domesticado ao longo do tempo, de maneira que seu sabor e estimulo vão além da condição natural ou biológica, para se transformar em uma iguaria refinada. Os significados sociais do processo de produção, de mercado e de consumo dos cafés especiais da Costa Rica são analisados sob um viés antropológico, destacando-se a necessidade de ampliar os estudos etnográficos sobre suas particularidades, seja no sistema produtivo, seja no processo de beneficiamento, e, ainda, pelos saberes dos novos especialistas e pelos sabores diretamente atrelados ao interesse dos consumidores.

As ressignificações que ocorrem em Minas Gerais sobre as comidas típicas e a tradição constituem tema da pesquisa que destaca a centralidade que a cozinha possui no espaço doméstico e na própria imagem do povo mineiro. Para a pesquisadora Mônica Chaves Abdala, a cozinha, ao lado da língua materna, "são universalmente reconhecidos como elementos centrais da pauta da identidade" (p. 167). O trabalho compara os significados das tradições alimentares abrangendo duas regiões: o Triângulo Mineiro e o Alto Paranaíba. O estudo aponta a permanência da comida denominada como "típica", presente em crônicas, memórias, festejos e em ocasiões especiais das famílias, mas destaca o diálogo com o moderno, representado pelos self service que invadem o meio urbano. O comer fora de casa é visto, então, como uma necessidade de praticidade que surge quase como imperativo da vida moderna urbana.

Na sequência, estão os estudos desenvolvidos por Marcelo Alvarez e Glória Sammartino, em Quebrada de Humahuaca, na Argentina, região habitada por pequenos agricultores que vivem basicamente de pastoreio, da produção de hortaliças e flores, com a substituição gradativa de uma agricultura de subsistência de milho, trigo e batata, mesclando tecnologias tradicionais e modernas. As espécies nativas que ainda persistem interessam principalmente a turistas, além de se destinarem ao autoconsumo dos agricultores. A pesquisa discute as políticas públicas que objetivam promover o patrimônio cultural, incluindo a comida, no incremento de estratégias para desenvolvimento local na região, de forma que se possa aproveitar o interesse turístico pelos alimentos tradicionais, manter a geração de renda para a comunidade e garantir o cultivo de produtos que possuem um importante valor histórico e simbólico para os nativos.

A experiência sensorial da degustação do vinho é assunto da pesquisa realizada por Patrícia de Gomensoro, que buscou analisar o treinamento dos sentidos, o discurso e a construção do gosto. O estudo apresenta uma descrição detalhada do ritual da degustação do vinho em Porto Alegre (RS), cujos dados empíricos foram coletados durante um período de cinco meses em que a autora participou de reuniões de um grupo de degustadores da bebida. A etnografia do ritual enfatiza as regras de etiqueta, de gestos, de posturas, da utilização de objetos e analisa as relações sociais internas ao grupo.

A comida nas histórias da Colônia é objeto de estudo etnográfico sobre as mudanças alimentares entre famílias rurais de Maquiné (RS). A pesquisadora, Mariana Oliveira Ramos discute a estreita relação existente entre hábitos alimentares e modos de vida. Aponta que a oferta de produtos industrializados inseriu algumas alterações na composição alimentar dos agricultores, como a substituição da banha de porco pelo óleo de soja, da manteiga pela margarina e do açúcar mascavo pelo açúcar refinado. As principais mudanças observadas referem-se ao aumento do consumo de carne e de leite industrializado, bem como a redução do consumo e do conhecimento sobre hortaliças e frutas.

Comer em restaurantes é, atualmente, uma das opções importantes das pessoas inseridas no mercado de trabalho dos médios e grandes centros urbanos. Uma das pesquisas apresentadas no livro discute os significados do comer em restaurantes ao longo da história. A autora, Janine Collaço, destaca que, no Brasil, a forma mais comum de restaurante é a do tipo self-service, seguido pelo fast food, presentes, sobretudo, nas maiores cidades e que conquistaram o público juvenil. Ambos são símbolos do estilo de vida contemporâneo e refletem novas formas de se conviver em sociedade, modos de comer e as opções alimentares da população em âmbito mundial.

A variedade de temas e contextos geográficos e culturais abordados no livro faz com que sua leitura seja importante para compreender os novos contornos que os aspectos relacionados à alimentação e à comensalidade vêm ganhando à luz das alterações do estilo de vida e dos processos econômicos e sociais contemporâneos. Percebe-se que o abandono do jeito tradicional de produzir e de consumir alguns alimentos coloca algumas espécies nativas em risco, tornando sem sentido o saber-fazer acumulado pelas comunidades camponesas latino-americanas. No entanto, o livro também apresenta alguns estudos que abrem perspectivas no sentido de compreender que o interesse turístico pode vir a ressignificar alguns valores simbólicos, permitindo uma valoração econômica como consequência.

Assim, se pudéssemos resumir, em poucas palavras, a contribuição dos autores, diríamos que a comida, para além de seus atributos nutricionais, é um símbolo em trânsito permanente. Trata-se de um tema que identifica grupos humanos, regiões e histórias, mas está sempre sendo reatualizado e permanece "bom para pensar", como disse Lévi-Strauss, a nossa própria trajetória como criadores de cultura.

Recebido para publicação em 28 de novembro de 2013

Aceito em 12 de março de 2014

Romilda de Souza Lima - Doutoranda em Extensão Rural. Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Viçosa, na linha de pesquisa: Identidade e Representações Coletivas. Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, atuando em Ensino, Pesquisa e Extensão. Atua na área de Desenvolvimento Rural, Extensão Rural e Segurança Alimentar. romislima2@gmail.com

Sheila Maria Doula - Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora Associada II da Universidade Federal de Viçosa. Coordenadora do Observatório da Juventude Rural (UFV). sheiladoula@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2014
  • Data do Fascículo
    Abr 2014
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