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Manifestações de rua no Brasil 2013: encontros e desencontros na política

The 2013 demonstrations in Brazil: match and mismatch in politics

Manifestations dans les rues au Brésil en 2013: convergences et divergences dans la politique

Resumos

O presente texto visa a analisar em que medida as manifestações de rua de 2013 no nosso país se diferenciam organizacional e politicamente das grandes manifestações do século XX e como se deu a relação entre movimentos sociais organizados e manifestações nos dois momentos históricos. Tendo em vista a grande quantidade de pautas nas manifestações recentes, que vão do desejo de transformações nos sistemas social, cultural e político a demandas por institucionalização de novos direitos humanos e por políticas públicas mais ampliadas, foram analisados os compartilhamentos e as articulações que produziram alguma unidade ou identificação na política. Concluiu-se que os protestos em relação ao campo institucional da política e às carências no campo dos direitos humanos foram relevantes para uma subjetivação que explicasse a presença compartilhada nas ruas de atores sociais com orientações políticas diversas.

Manifestação pública; Movimento social; Ativismo; Redes sociais virtuais


The aim of this article is to analyze the extent to which the 2013 demonstrations in our country differ, both politically and in organizational terms, from the great demonstrations of the 20th century. How the relationship between organized social movements and demonstrations occurred in both historical moments. In view of the many agendas in recent demonstrations, from desires for changes in the social, cultural, and political systems, to demands for institutionalizing new human rights and expanding public policies, we analyzed the sharing and articulating that produced some unity or identification in politics. We conclude that the protests, both in relation to the institutional field of politics and to the insufficiencies in the field of human rights, were relevant for a subjectivation that might explain the common presence in the streets of social actors with different political orientations.

Public demonstrations; Social movement; Activism; Virtual social networks


Ce texte analyse dans quelle mesure les manifestations qui ont eu lieu dans les rues de notre pays en 2013 sont différentes quant à l'organisation et du point de vue politique des grandes manifestations du XXe siècle. Comment le lien a-t-il été établi entre les mouvements sociaux organisés et les manifestations à ces deux moments historiques. Etant donné la quantité de sujets abordés au cours des manifestations récentes , qui vont du désir de transformation des systèmes sociaux, culturels et politiques à la demande d'institutionnalisation de nouveaux droits de l'homme ainsi que de politiques publiques plus étendues, nous avons fait une analyse des points communs et des articulations qui ont permis une certaine unité ou une identification dans la politique. Nous en avons conclu que les protestations liées au domaine institutionnel de la politique et les besoins dans le champ des droits de l'homme occupaient une place importante pour une subjectivation capable d'expliquer la présence d'acteurs sociaux de tendances politiques différentes.

Manifestations publiques; Mouvement social; Activisme; Réseaux sociaux virtuels


ARTIGOS

Manifestações de rua no Brasil 2013: encontros e desencontros na política

The 2013 demonstrations in Brazil: match and mismatch in politics

Manifestations dans les rues au Brésil en 2013: convergences et divergences dans la politique

Ilse Scherer-Warren

Doutora em Sociologia. Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Universitário Trindade. Trindade. Cep: 88040-900. Florianopolis – Santa Catarina – Brasil. ilse@manezinho.com.br

RESUMO

O presente texto visa a analisar em que medida as manifestações de rua de 2013 no nosso país se diferenciam organizacional e politicamente das grandes manifestações do século XX e como se deu a relação entre movimentos sociais organizados e manifestações nos dois momentos históricos. Tendo em vista a grande quantidade de pautas nas manifestações recentes, que vão do desejo de transformações nos sistemas social, cultural e político a demandas por institucionalização de novos direitos humanos e por políticas públicas mais ampliadas, foram analisados os compartilhamentos e as articulações que produziram alguma unidade ou identificação na política. Concluiu-se que os protestos em relação ao campo institucional da política e às carências no campo dos direitos humanos foram relevantes para uma subjetivação que explicasse a presença compartilhada nas ruas de atores sociais com orientações políticas diversas.

Palavras-Chave: Manifestação pública. Movimento social. Ativismo. Redes sociais virtuais

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze the extent to which the 2013 demonstrations in our country differ, both politically and in organizational terms, from the great demonstrations of the 20th century. How the relationship between organized social movements and demonstrations occurred in both historical moments. In view of the many agendas in recent demonstrations, from desires for changes in the social, cultural, and political systems, to demands for institutionalizing new human rights and expanding public policies, we analyzed the sharing and articulating that produced some unity or identification in politics. We conclude that the protests, both in relation to the institutional field of politics and to the insufficiencies in the field of human rights, were relevant for a subjectivation that might explain the common presence in the streets of social actors with different political orientations.

Keywords: Public demonstrations. Social movement. Activism. Virtual social networks

RÉSUMÉ

Ce texte analyse dans quelle mesure les manifestations qui ont eu lieu dans les rues de notre pays en 2013 sont différentes quant à l'organisation et du point de vue politique des grandes manifestations du XXe siècle. Comment le lien a-t-il été établi entre les mouvements sociaux organisés et les manifestations à ces deux moments historiques. Etant donné la quantité de sujets abordés au cours des manifestations récentes , qui vont du désir de transformation des systèmes sociaux, culturels et politiques à la demande d'institutionnalisation de nouveaux droits de l'homme ainsi que de politiques publiques plus étendues, nous avons fait une analyse des points communs et des articulations qui ont permis une certaine unité ou une identification dans la politique. Nous en avons conclu que les protestations liées au domaine institutionnel de la politique et les besoins dans le champ des droits de l'homme occupaient une place importante pour une subjectivation capable d'expliquer la présence d'acteurs sociaux de tendances politiques différentes.

Mots-clés: Manifestations publiques. Mouvement social. Activisme. Réseaux sociaux virtuels

UM BREVE HISTÓRICO: das manifestações de rua no Brasil

Para entender a pluralidade de forças sociais nas manifestações de rua de 2013 no Brasil e suas peculiaridades, é esclarecedor contextualizá-las no processo histórico das manifestações em nosso país. Não é verdade que as grandes manifestações são um fato inédito no Brasil, como apareceu em algumas falas. Temos uma história de manifestações nas quais a juventude ou os estudantes foram protagonistas relevantes ou principais. Comparando com as grandes manifestações anteriores no Brasil, desde meados do século XX – como as mobilizações contra a ditadura, as Diretas Já, os Caras Pintadas e o Movimento pela Ética na política, além das manifestações mais regulares, como o Grito dos Excluídos, as Marchas das Margaridas, os movimentos pela Reforma Agrária, ou dos atingidos por barragens, movimentos negro, indígena, etc. –, há fatos comuns, mas também diferenciações que merecem serem lembradas. Hoje, uma das diferenças está na convocatória pelas redes sociais virtuais, o que trouxe o povo para rua quase em tempo real, ampliando o número de manifestantes e os locais de protestos. Isso causou uma enorme visibilidade na mídia e o respectivo impacto político, produzindo uma resposta rápida da parte do sistema político. Mas também produziu uma diversidade de demandas, muitas vezes conflitivas e antagônicas entre si, sobre as quais voltaremos a tratar.

A juventude é, e historicamente tem sido, bastante idealista e, muitas vezes, quer mudar o mundo, o sistema político e relações do cotidiano. Isso não é novo, apesar de nem sempre ter tido visibilidade. Teve visibilidade em 1968, em várias partes do mundo e no Brasil, com o movimento estudantil que foi às ruas e teve de enfrentar o regime militar, além de, paralelamente, propor mudanças no sistema político e nos valores culturais.

Em relação a 1968, para o Brasil, são mais lembrados a Passeata dos Cem Mil, que reuniu universitários, intelectuais, artistas e muitos cidadãos no centro do Rio, e o confronto da Rua Maria Antônia em São Paulo, entre estudantes da USP e do Mackenzie, em alguma medida defensores de lados ideológicos opostos. Houve ainda manifestações políticas e de adeptos de uma contracultura juvenil em outras cidades do país e que também deixaram seu legado. Porém a luta contra a ditadura também obscureceu, em certa medida, o próprio movimento de contracultura juvenil, sendo que essas duas formas de atuação são, muitas vezes, consideradas antagônicas, como para alguns que se referem ao "grupo dos politizados" versus o "grupo do desbunde". O fato é que a contracultura também penetrou fortemente no movimento estudantil, mesmo dentre aqueles que participavam nas manifestações de resistência contra a ditadura, e deixou o seu legado em modos de vida, em pensamentos e ideários que se manifestaram na criação dos novos movimentos sociais, como o feminismo e outros.

No campo das manifestações, para além das que foram geradas e promovidas a partir do sistema político institucional, como as Diretas Já, vieram outras que foram frutos das iniciativas da sociedade civil, especialmente a dos Caras Pintadas, alguns até filhos da geração de 1968, que também solicitaram ética na política e autonomia em relação aos partidos políticos, como agora. Enfim, a história é feita de continuidades e descontinuidades. O que havia em comum nessas manifestações do século 20 era a articulação em torno de uma demanda ou protesto comum, com a tendência de se construir uma identificação em torno de um ideário político-ideológico mais unificado. Essa condição de unidade na política não se reproduziu sem fragmentações e, às vezes, até com antagonismos, nas manifestações atuais, conforme veremos no decorrer deste texto.

A PLURALIDADE DE FORÇAS SOCIAIS NAS ATUAIS MANIFESTAÇÕES DE RUA

Face à pluralidade de demandas e significados dos protestos políticos nas manifestações de 2013, optamos por iniciar essa avaliação com foco em dois tipos principais de contestação – as lutas sistêmicas e as lutas por direitos humanos –, os quais permitem referenciar a maioria das pautas, expressas em cartazes, palavras de ordem e expressões estéticas.

A luta por mudanças sistêmicas

O Movimento do Passe Livre (MPL) se tornou o ícone das manifestações e dos protestos de junho de 2013, como a expressão de uma nova forma política de agir. Porém temos que lembrar que o MPL já tinha uma articulação nacional desde meados dos anos 2000, em várias cidades, com ideários políticos coletivamente definidos por seus participantes. Suas pautas não se reduziam ao preço da passagem dos ônibus, ainda que essa tem sido uma estratégia política relevante. Esse movimento tem se referido mais amplamente aos direitos do cidadão no que diz respeito à mobilidade urbana de uma forma geral, a qual deveria ser considerada como um direito fundamental, tal como o direito à educação, à saúde, etc. Assim, propunham, já historicamente, a desmercantilização do transporte coletivo, alicerçando-se num ideário de transformação sistêmica, como outros movimentos estudantis tiveram no passado ou têm no presente.

Por sua vez, Cardoso e Di Fatima (2013), diferentemente da atribuição da grande mídia do mês de junho de 2013 para o início das manifestações no Brasil, indicam esse início numa nova temporada de reivindicações do MPL a partir de fevereiro de 2013, quando, em Porto Alegre, o Bloco de Luta por um Transporte Público reuniu cerca de 200 pessoas, contra o novo aumento do preço da passagem, a qual, assim mesmo, aumentou uma semana após. Relatam que a luta teve continuidade depois do aumento da passagem, sendo que, em abril, a Justiça concedeu liminar que revertia o reajuste no preço e, assim sendo, as comemorações daquela vitória reuniram então 3,5 mil pessoas, segundo a Polícia Militar, e 10 mil na contagem do Bloco de Luta, segundo a mesma fonte. Portanto, foi uma ampla manifestação. Acrescentam ainda que, nos meses seguintes, foram registradas diversas mobilizações similares, nas ruas e no ciberespaço, contra a subida no preço das passagens em vários estados.

Já os protestos em São Paulo começaram a 3 de junho, convocados pelo Movimento Passe Livre, que se autodenomina como "horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não anti-partidário" (2013, p. 159).

Mas, a partir de junho de 2013, as manifestações se ampliam e se diversificam em resposta à repressão policial dirigida à manifestação paulista organizada pelo MPL local. Nesse momento, o repúdio à repressão legitimada pelo Estado, por um lado, e a solidariedade à liberdade de expressão da cidadania, por outro, formaram o mote para a ampliação das manifestações em todo o país. O direito ao exercício da cidadania, da voz e da opinião pública a partir do povo propriamente dito era o que estava em jogo. Esse foi um sentimento que se transformou numa articulação discursiva de defesa da participação cidadã, num sentido excessivamente genérico, estimulado através de um discurso mediático de longo alcance, mas de pouco aprofundamento. O resultado foi o aumento exponencial do número de participantes e a multiplicação, em vários territórios urbanos, de manifestações autônomas, expressando solidariedades, mas também, frequentemente, antagonismos verbais e, às vezes, físicos entre subgrupos, devido à expressão de alinhamentos políticos e (ou) partidários em disputa. A manifestação, como "movimento", se diluía na "multidão", num sentido mais amplo. Brown e Szeman (2006), reportando-se a Hardt e Negri, afirmam que, para esses autores, o conceito de multidão diz respeito ao "poder constituinte das massas desejantes contra a nova forma de soberania global [...]" (2006, p. 93), ou as respectivas formas que assumem no capitalismo contemporâneo. Podemos perguntar: em que medida esse sentido pode ser captado no conjunto mais amplo e indefinido de manifestantes?

Por outro lado, para Hardt e Negri (Brown; Szeman, 2006, p.108), a"multidão" expressa a "singularidade somada à cooperação, ao reconhecimento da diferença e do benefício de uma relação comum". Isso ocorreu nas manifestações recentes no Brasil, porém com várias contradições internas em relação aos ideários do conjunto de seus participantes. A cooperação, nas manifestações de 2013, focava-se na defesa do direito a dar voz pública a demandas plurais, mas, assim mesmo, o entendimento sobre a legitimidade dessas demandas foi conflitivo entre vários subgrupos de manifestantes. Portanto, as singularidades não eram revertidas, necessariamente, no reconhecimento da diferença, como será visto nos exemplos expostos a seguir.

Em relação ao sistema político-partidário, as manifestações também expressaram antagonismos na política, desde a opção por siglas partidárias ate à intolerância em relação a sua presença na praça pública. Assim sendo, as expressões estéticas e verbais foram de partidarismo, apartidarismo e antipartidarismo, cujas explicitações se reproduziram nas redes sociais, demonstrando, frequentemente, intolerâncias recíprocas.

Como somos herdeiros, no Brasil, tanto de tradições políticas conservadoras, elitistas, como de outras mais progressistas ou emancipatórias, isso se refletiu também na diversidade dos protestos nas manifestações de junho. Para exemplificar a existência de polos antagônicos, observou-se, nesse movimento: de um lado, os jovens do MPL defendendo políticas de sentido emancipatório e lutando por mudanças sistêmicas e político-culturais; de outro, alguns grupos de jovens médicos se opondo a uma política pública (Mais Médicos) a favor de populações carentes, para defender o statusquo e interesses corporativistas da classe, inclusive tentando interferir, de forma meramente corporativista, no sistema institucional, como ficou evidenciado por seus atos em relação a esse projeto.

Outro conflito foi referente às formas de atuação política nas manifestações, entre grupos que optaram pelo uso da violência física e outros que defendiam manifestações simbólicas, mas sem violência. Os primeiros são divididos, de forma mais visível, em dois grupos: os Anonymous, que reproduzem manifestações de anos recentes nos EUA, mas aqui com pouca clareza de pautas (relatos de outros participantes), e o Black Bloc, já com uma tradição como movimento antiglobalização, portanto antissistêmico em várias partes do mundo. Esse último, aqui no Brasil, não apresenta uma pauta explícita publicamente, nem uma adequação de sua pauta internacional genérica ao Brasil, conforme afirmou um de seus membros: "a nossa pauta são todas pautas que estão nas ruas". Esses grupos pretendem ser uma tática de ação, por meio de uma forma estética de protesto político, a fim de promover um espetáculo midiático. E a grande mídia, ao centrar-se preferencialmente na transmissão dessa forma de manifestações, promoveu o espetáculo. Em relação a essa tática, a questão que se colocava é: Qual é o limite para a violência nos protestos, nos parâmetros da democracia, ou seja, que possa ser caracterizado como resistência ativa ou desobediência civil, sem ultrapassar os limites da convivência democrática?

Enfim, em relação a questões sistêmicas, essas últimas manifestações foram muito mais reativas ao status quo social ou político na sociedade brasileira do que propriamente propositivas ou transmissoras de utopias bem definidas para a mudança social.

A luta por direitos humanos

Devido à diversidade de indivíduos mobilizados a partir da repressão à manifestação de 13 de junho, o comparecimento aos protestos de rua não só cresceu exponencialmente, como as pautas de luta se multiplicaram, especialmente no campo dos direitos humanos. Cada agrupamento, dentro de sua autonomia no evento, apresentava sua demanda ou protesto por meio de cartazes, representações estéticas ou palavras de ordem.

O primeiro direito a ser reivindicado foi o de liberdade de manifestação de rua, de expressão e de participação na política. Porém, no próprio ato de participação na rua, as contradições e conflitos se fizeram presentes. Dois conflitos foram expressivos: em relação ao sistema de informação e ao sistema político-partidário.

No sistema de informação, foram relevantes as redes sociais virtuais, as redes sociais presenciais e as mídias (a grande e as alternativas).

Os jovens vêm se manifestando cada vez mais pelas redes sociais, na internet, usando o suporte das novas tecnologias para se organizar. Mas isso tem sido, acima de tudo, um meio, e não explica o sentido político da ação, ou melhor, o sentido pode ser conflitivo ou antagônico numa mesma rede ou entre sub-redes, como resultante transversalidade desse tipo de comunicação. Além disso, as redes virtuais divulgam, convocam e expressam posicionamentos, mas quase nunca possibilitam o aprofundamento do debate político, ainda que, em algumas situações, é no interior de sub-redes que interagem com outras sub-redes que mensagens conflitivas aquecem o debate. As redes presenciais dos MS organizados continuam tendo um papel político e pedagógico relevante e são, frequentemente, espaços para aprofundar os debates (Scherer-Warren, 2012a).

A grande mídia teve um papel bastante ambíguo nas manifestações de 2013. Habituada a, historicamente, criminalizar os movimentos sociais, o que vinha ocorrendo desde a ditadura até recentemente, de acordo com algumas pesquisas das ciências sociais, ela dispensou um tratamento inicial adverso às recentes manifestações e aos manifestantes, após um deslumbre em relação às vozes da rua e, finalmente, uma atitude que revela não saber claramente como agir em relação à criminalização ou não dos manifestantes, como no caso do Black Bloc. Por parte de manifestantes, quase de uma forma generalizada, houve reações explicitas aos comprometimentos políticos tradicionais da grande mídia.

Numa outra direção, o Movimento pela Democratização da Informação já é histórico no Brasil. Mas, durante as manifestações, vários coletivos midiativistas criaram visibilidade crescente e legitimidade nas redes mais progressistas, como no caso da Mídia Ninja, que está construindo um movimento sociocultural nas linhas gerais de um "neoanarquismo" que inclui novos modos de vivência e de organização do trabalho, denominado de "Fora do Eixo" (FdE). A Mídia Ninja teve um papel relevante durante as manifestações, no sentido de divulgação dos fatos a partir de uma perspectiva mais próxima dos movimentos que ocuparam as ruas.

Por sua vez, os protestos de rua em relação ao sistema político foram mais direcionados contra a corrupção e ao modo de operacionalização dos parlamentos. Porém a proposta governamental posterior de realização de um plebiscito para decidir sobre mudanças institucionais nesse sistema teve resistência de parte de parlamentares, políticos arraigados aos modos tradicionais de fazer política.

As reivindicações no campo das políticas sociais (saúde, educação, mobilidade urbana, políticas de gênero, geracionais, políticas de promoção da igualdade racial, etc.) foram mais consensuais, mas bastante genéricas, não permitindo, assim, os possíveis confrontos de opinião ou de ideologias. A exceção ocorreu com o Programa Mais Médicos, que dividiu a própria classe médica. Porém, a partir de sua implementação, o Programa vem criando uma legitimidade crescente na sociedade civil.

MOVIMENTOS SOCIAIS ORGANIZADOS E MANIFESTAÇÕES DE RUA: aproximações e diferenças

Para se entender o caráter das novas manifestações de rua no mundo e, especialmente, no Brasil, é necessário considerar a mudança em organizações de base e a complexidade dos movimentos sociais na sociedade atual, conforme nos alerta Raúl Zibechi:

Los principales movimientos populares de Brasil fueron, desde la Colonia, movimientos rurales ya que en esas áreas se afincaba la resistencia al sistema. Ahora, las resistencias se están concentrando en las ciudades. Los principales movimientos urbanos (MPL, MTST, Comités de la Copa, CMI, y otros) encarnan algo similar a la lucha por la reforma agraria, que es la lucha por la reforma urbana. El latifundio y el agronegocio son el equivalente, en la ciudad, a la segregación espacial y la especulación inmobiliaria (Zibechi, 2013, p. 32).

Além dessa mudança em relação a uma nova centralidade espacial da segregação, transferindo o foco das lutas rurais para as urbanas, há outros fatores estruturantes da sociedade a serem mencionados, tais como: demográficos (dimensão da população atingida por novas formas segregacionistas, devido à concentração urbana) e econômicos (precariedades em relação ao mundo do trabalho, moradia, mobilidade urbana, qualidade de vida, etc.). Mas também há fatores vinculados à política (deficiências nos sistemas de representação e de participação efetiva da cidadania) e à cultura (demandas por reconhecimento, liberdade de opções e expressões simbólicas em termos de gênero, sexismo, raças e etnias, gerações, etc.). Essas demandas, na sociedade da informação, permitem diálogos transversais entre atores de redes sociais e (ou) de organizações civis distintas, possibilitando as articulações políticas e a transversalidade de identidades, conforme exemplo abaixo apresentado:

La identidad del movimiento se expresa, desde este punto de vista, en el posicionamiento contra un conjunto de opresiones de clase, de género, de raza y, aunque no lo explicitan, también generacionales. En suma, un rechazo a todas las opresiones, lo que supone que, en las actividades, procuran evitar la clásica división del trabajo en función de los géneros y del color de piel. El MPL comienza a reflejar, en su composición, el compromiso con los más pobres, los negros, las mujeres y los que no tienen acceso al transporte y a la ciudad. Negros y pardos (o mestizos), sujetos a un mismo sistema de discriminación, se acercaron al movimiento por ver en él una interlocución con sus luchas y porque los negros que integraban el MPL participaban en las acciones del movimiento anti-racista (Zibechi, 2013, p. 24).

Entretanto, para examinar essas novas formas de políticas transidentitárias, Walter Mignolo (2008) nos auxilia ao afirmar que é necessário distinguir uma política de identidade de uma identidade em política. A primeira "opera na suposição de que identidades essenciais entre as comunidades marginalizadas (por razões raciais, de gênero e sexuais, etc.) são as que merecem reconhecimento" (2008, p.312). Nessa direção, podemos incluir os novos movimentos sociais em suas origens no século passado, como o feminismo, os movimentos étnicos e outros. Por sua vez, a identidade em política se constrói com autonomia em relação aos "partidos políticos" e à dominação estatal e pode ser geradora de "atos de desobediência epistêmica que afetam o estado e a economia" (p.324). A identidade em política se dá também através das articulações discursivas diferenciadas, mas que se assemelham nas consequências de suas vivências na subalternidade, na pobreza, na discriminação sociocultural, na precariedade das condições rurais e urbanas, etc. Dentro dessa forma, podemos pensar no MPL, que vem se constituindo no Brasil em subgrupos com autonomia política e se empoderando através de suas lutas, como pode ser observado nas manifestações de junho. Mas também, conforme coloca Zibechi (2013), através de seu compromisso político-cultural com as causas dos pobres, dos negros e das mulheres, submetidos às mesmas formas de precariedade no sistema urbano contemporâneo.

Neste ponto, é necessário se distinguir movimento social organizado de manifestação de rua. Os movimentos sociais organizados têm uma relativa permanência temporal e tendem, no mundo contemporâneo, a se estruturar sob a forma de redes de militância que operam como uma estratégia para a construção de significados políticos ou culturais em comum, tendo em vista a conquista e a mobilização de ativistas, a produção de ações de advocacia e de interferência nas políticas públicas, ou a produção de mudanças na cultura, na política ou no sistema social de forma mais abrangente.

Portanto, o movimento social em rede tende a possuir, no mundo contemporâneo, quatro momentos constitutivos relevantes.

  • O frame organizacional, para garantir continuidade e interatividade, o que inclui organizações de base e entidades articuladoras e mediadoras, como fóruns ou assemelhados, onde se realiza a construção de significados comuns para as lutas na esfera pública.

  • Articulações discursivas, resultantes desses significados comuns, para a construção de demandas, ideários e projeto comuns para uma mudança social.

  • Demandas e ideários que serão traduzidas em ações jurídicas por direitos, para a incidência nas políticas públicas ou para mudanças sistêmicas.

  • Enfim, o movimento busca, na manifestação, o momento de protesto, reivindicação ou visibilidade, mas tem uma continuidade para além desse momento mobilizatório público. Os movimentos sociais promovem, participam ou estão nas manifestações, mas não se reduzem a elas.

No caso brasileiro, são históricas as manifestações vinculadas aos movimentos organizados, conforme já foi mencionado. Assim, temos tido manifestações específicas, organizadas por movimentos juvenis, de mulheres, de negros, de indígenas, do mundo do trabalho, dentre outros, os quais dialogam entre si e, em momentos estratégicos, se unem em manifestações conjuntas, como ocorreu no dia 11 de julho e no dia 7 de setembro de 2013. Tais manifestações expressaram uma variedade de pautas dos movimentos organizados e possuem algumas particularidades a serem lembradas.

A Marcha de 11 de julho 2013

Em 2013, os movimentos sociais organizados, de uma forma geral, para além do MPL, demoraram a se colocar no palco (ou nas ruas) de forma mais autônoma, com pouco destaque midiático para suas demandas. Quando o fizeram, em 11 de julho, reproduziram suas pautas históricas, algumas bastante corporativistas, principalmente as do sindicalismo, mas não se restringindo a elas, manifestaram-se favoráveis à inclusão de pautas de outros movimentos, conforme consta das Bandeira de Lutas das Centrais Sindicais:

  • Reduzir o preço e melhorar a qualidade dos transportes coletivos;

  • Mais investimentos na saúde e na educação pública;

  • Fim do fator previdenciário e aumento das aposentadorias;

  • Redução da jornada de trabalho;

  • Fim dos leilões das reservas de petróleo;

  • Contra o PL 4330, da terceirização;

  • Reforma agrária.

Além dessas bandeiras, definidas unitariamente, cada setor deveria agregar outras, relacionadas à sua situação concreta. Tudo devia ser feito para fortalecer as possibilidades de mobilização da base para participar desse dia de greves e manifestações.

Como resultado, outras pautas jurídicas, relativas às políticas sociais e (ou) a mudanças políticas e culturais, também foram protagonizadas no cenário público no dia das manifestações, tais como criar um marco regulatório dos meios de comunicação, o que se transformou numa ampla manifestação contra o monopólio da mídia. Além dessas, havia a pauta das manifestações anteriores, como aquelas em relação a transporte público, saúde, educação, moradia, violência policial, corrupção, e outras por mudanças político-culturais, como a luta contra a homofobia e a favor da união civil homoafetiva, e pautas feministas como as da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), dentre outras.

A Manifestação do Grito dos Excluídos em 7 de setembro 2013

Essa foi uma manifestação histórica das redes do chamado Movimento Popular no Brasil. Em 2013, esse movimento entrou no espírito das manifestações mais desterritorializadas e se organizou nas principais cidades brasileiras. Foi bem expressiva numericamente, com pautas visíveis, e fez uma festa alternativa à comemoração oficial da Independência do Brasil, mas com pouca visibilidade midiática.

A grande mídia tratou marginalmente o Grito dos Excluídos, como sempre fez. A Rede Globo, por exemplo, preferiu, estrategicamente, centrar-se no pequeno grupo Black Bloc em Brasília, inclusive cancelando sua programação normal para se centrar na transmissão das ações desse grupo. De fato, avaliadores independentes consideram ter sido um grande fracasso o chamado feito pelos grupos de anônimos para a manifestação de rua. Conforme o Observatório da Imprensa, essa foi a estratégia midiática do Black Bloc, que

[...] "salvou o protesto", do ponto de vista de garantir espaço de mídia (Globo) narrativa crítica ao governo federal. Dois outros grupos, que operam na internet, foram citados pelos jornais, além dos Blocs: o Anonymous Brasil (que se reivindica apenas uma "ideia" e diz lutar contra a corrupção) e a Anel – Assembleia Nacional de Estudantes Livres. Por seu lado, militantes de entidades que organizam, há 20 anos, o Grito dos Excluídos ocuparam praças e ruas, resgatando antigas bandeiras (reforma agrária, reforma urbana, políticas de inclusão social, pelo fim da violência etc.) e fizeram um caminho distinto, evitando confrontos. O Grito nasceu da luta do Setor Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1993. (referência)

Pode-se concluir que os movimentos sociais organizados utilizam a manifestação pública como um momento relevante para dar visibilidade a seus protestos, reivindicações e posicionamentos políticos. Por outro lado, o cidadão que se junta esporadicamente a uma manifestação, porque é simpatizante de sua causa, como ocorreu em grande medida nas denominadas manifestações de junho, não se transforma necessariamente em ator de um movimento organizado ou não cria novos movimentos. Porém, para parte desses participantes, trata-se de um exercício de cidadania, especialmente para aqueles que buscaram aprofundar seu conhecimento de políticas públicas e das principais pautas políticas e sociais. Contribuíram também para a construção de uma memória histórica das lutas sociais por direitos.

Entretanto, face à diversidade e à pluralidade política dos manifestantes de 2013, uma convivência que permitiria uma articulação propositiva democrática das múltiplas pautas políticas exigiria uma nova forma de relacionamento na política, através de consensos possíveis e provisórios, por meio de um "pluralismo agonístico", nos termos de Chantal Mouffe (2008, p.19), pois, segundo a autora:

Tal pluralismo está ancorado no reconhecimento da multiplicidade de cada um e das posições contraditórias a que esta multiplicidade subjaz. Sua aceitação do outro não consiste meramente em tolerar as diferenças, mas em celebrá-las positivamente porque admite que, sem alteridade e o outro, nenhuma identidade poderia se afirmar. Este é um pluralismo que valoriza a diversidade e o dissenso e não tenta estabelecer uma esfera pública a partir da sua eliminação, uma vez que reconhece neles a real condição da possibilidade de uma vida democrática a ser conquistada.

Porém, no Brasil, nossa democracia, ainda bastante emergente, dificulta a negociação democrática de grupos antagônicos, como os que estiveram presentes nas manifestações. Eles iam de uma esquerda mais radical, que busca mudanças mais sistêmicas, a uma direita conservadora, que busca proteção em direitos humanos, mas garantindo seu status quo, ou até propondo retrocessos em relação a políticas públicas de inclusão. Além de outros, que estavam lá pelo protesto em si mesmo, numa simulação de participação e, possivelmente, para alguns, com resultados políticos pouco expressivos para si mesmos ou para a sociedade. Ou, enfim, para outros, apenas para celebrar um momento significativo para sua futura memória histórica de participação política. Um exemplo significativo observado em Florianópolis (e, talvez, em outras cidades) pode ser ilustrado em três cenários ou momentos:

  • Cenário 1 – Jovens mobilizadas a comparecer às manifestações através de suas redes sociais na Internet. Produziram-se fisicamente muito bem para o evento público.

  • Cenário 2 – Na praça pública, buscavam a posição mais adequada fotograficamente e, com pose, solicitavam a uma amiga fazer a foto ou se autofotografavam (Selfie, conforme denominação corrente em inglês).

  • Cenário 3 – Ainda no evento ou no retorno para casa, imediatamente reproduziam e divulgavam, nas redes sociais, as fotos que registravam sua presença na manifestação, tentando marcar sua estreia na "praça pública". Só o tempo dirá qual o impacto para o futuro desse tipo de participação cidadã.

A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS NAS MANIFESTAÇÕES

Segundo Bittencourt (2011, p. 13), as estratégias de resistência, na contemporaneidade, devem ser e estão sendo vistas mais como lutas contra as diferentes formas de assujeitamento, do que lutas contra formas de dominação (uma classe sobre outra, por exemplo). Nessa direção, seguindo Deleuze e Guattari (2008), ele afirma que se "busca compreender é a produção de subjetividades que derivam de técnicas cada vez mais sofisticadas de assujeitamento, bem como as estratégias de resistências que fazem frente a esses processos de captura". Acrescenta ainda que, no "campo das Ciências Políticas, também têm surgido trabalhos preocupados com as políticas de subjetivação, com as micro-resistências elaboradas pelos movimentos sociais da contemporaneidade" (2008). Enfim, o autor busca, no pensamento de Deleuze e Guattari, o que denominou de "movimento das paisagens subjetivas" e, assim, propõe-se a construir uma cartografia das múltiplas subjetividades movimentalistas contemporâneas. Esses pressupostos poderão trazer algumas luzes para o entendimento da constituição dos sujeitos nas e a partir das manifestações recentes em nosso país, sobre seus encontros e seus desencontros nos processos de subjetivação.

Ainda nessa direção metodológica, Prato Filho e Teti (2013, p. 1) acrescentam que "uma cartografia social faz diagramas de relações, enfrentamentos e cruzamentos entre forças, agenciamentos, jogos de verdade, enunciações, jogos de objetivação e subjetivação, produções e estetizações de si mesmo, práticas de resistência e liberdade", que são pressupostos relevantes para se pensar a relação entre sujeitos sociais, movimentos e manifestações de rua, especialmente as mais recentes. Ainda que de forma bastante emergencial e provisória, tentaremos seguir essa orientação, discutindo e refletindo sobre as múltiplas formas de subjetividades na política e na cultura que se fizeram presentes nas manifestações de 2013 no Brasil, e seus encontros e desencontros na cena pública.

O evento inicial, que desencadeou uma manifestação mais ampla, foi o organizado pelo MPL, que foi às ruas junho de 2013 em São Paulo, com uma proposta concreta, conforme já foi visto acima. Entretanto, a ampliação da manifestação quase em tempo real foi a subjetivação construída em reação à repressão e à violência policial utilizada no evento. Nesse caso juntaram-se, ao MPL e simpatizantes, membros de outros movimentos, cidadãos não organizados em movimentos sociais, em especial os membros de redes sociais virtuais mobilizadoras, bem como subgrupos mais rebeldes, que fizeram uso da violência material, mas, para os quais, tratava-se apenas de uma violência simbólica. Após a repressão policial, a motivação para a mobilização se ampliou em termos de participantes e de abrangência territorial nas manifestações seguintes, especialmente nas ocorridas em São Paulo e em várias outras cidades brasileiras de 17 a 29 de junho de 2013.

Pergunta-se, como foi possível a participantes tão diversos o compartilhamento simultâneo da mesma "rua", em diversas cidades, ainda que, muitas vezes, os encontros grupais não fossem isentos de conflitos e até, de alguma forma, de violência simbólica e física. O compartilhamento da rua se dava porque tinha como referência uma subjetivação mais ampla: no primeiro momento, a do direito às vozes da cidadania nos espaços públicos, com o que todos concordavam. Todavia os conflitos entre grupos de manifestantes ocorriam, porque o sentido mais profundo de suas opções políticas produziam contradições, conforme foi interpretado por um dos grupos: "no movimento, havia os mais radicais e libertários, os partidários, os apartidários democráticos e os antipartidários, compreendendo o leque que vai dos fascistas aos anarquistas, com a diferença que não se assemelham em nada". Apesar dessa diversidade e das diferenças políticas, o que queremos mostrar aqui é a existência de alguns elos articuladores na "multidão" de manifestantes (cf. Negri, 2003).

Para avançar um pouco mais, recorremos a teoria do assujeitamento de Eni Orlandi (2007), a qual nos permite analisar como se dá o processo de constituição dos sujeitos e como isso pode repercutir na sua relação com o movimento e na sua relação com as manifestações. A autora usa como recurso analítico a língua e a história para pensar o processo de constituição do sujeito: "algo do mundo tem de ressoar 'no teatro da consciência' do sujeito para que faça sentido". A constituição do "sentido" e da "identificação do sujeito" se dá a partir das formações discursivas às quais o sujeito está assujeitado, mas não de forma determinista, e sim na relação entre sua história de vida e a história de suas relações institucionais. O exemplo da autora ilustra essa relação: "É em relação às formações discursivas que podemos dizer que a palavra 'terra', por exemplo, significa diferentemente para os índios, para os grandes proprietários rurais, para o MST, etc. Isto porque eles estão em posições de sujeitos inscritos em diferentes formações discursivas que, em última instância, refletem, no discurso, as posições ideológicas e determinam seus sentidos." (2007, p. 2).

Acrescenta, ainda, que a interpelação ideológica do sujeito capitalista é diferente da do sujeito medieval, pois:

[...] a interpelação do sujeito capitalista faz intervir o direito, a lógica, a identificação[...] o sujeito moderno – capitalista – é ao mesmo tempo livre e submisso, determinado pela exterioridade e determinador do que diz: essa é a condição de sua responsabilidade (sujeito jurídico, sujeito de direitos e deveres) e de sua coerência (não contradição) que lhe garantem, em conjunto, sua impressão de unidade [...]

Podemos buscar, nas razões para o comparecimento às manifestações de junho, alguns indicativos das interpelações para a participação, onde os sujeitos aparecem como cidadãos que reivindicam direitos e como contestadores de contradições da própria ordem política a que estão submetidos.

Alguns resultados de pesquisa do IBOPE ilustram a multiplicidade de identificação dos sujeitos participantes nas manifestações de junho de 2013, centradas especialmente em torno das demandas por direitos sociais e por modificações no sistema político:

1- RAZÕES DAS MANIFESTAÇÕES (apenas a 1ª razão é dada):

Transporte público: 37,6%

Contra a PEC 37:5%

Ambiente político: 29,9%

Saúde: 12,1%

Educação: 5,3%

Gastos com a copa do mundo: 4,5%

Reação à ação violenta da polícia: 1,3%

Justiça/segurança pública: 1,3%

Outros: 0,6%

2 - RAZÕES DAS MANIFESTAÇÕES (soma das três razões indicadas pelo manifestante):

Ambiente político: 65,0%

Transporte público: 53,7%

Saúde: 36,7%

Gastos com a copa do mundo: 30,9%

Educação: 29,8%

Contra a PEC 37: 11,9%

Justiça/Segurnaça pública: 10,2%

Outros: Com menos de 3%

A partir desse agrupamento das três razões indicadas pelos manifestantes para o comparecimento às ruas, podemos observar certo equilíbrio entre as demandas para modificações no sistema político (ambiente político, PEC 37 e justiça) e para conquistas nas políticas públicas (transporte, saúde, educação e contra gastos com a copa que se colocava versus gastos com políticas públicas). Portanto, havia dois núcleos articuladores principais dos protestos, um no campo do sistema político e da respectiva necessidade de reformas e outro no campo das políticas sociais e da necessidade de prioridade governamental em relação a elas.

Foi essa condição de identificação de ser sujeito jurídico, sujeito de direitos e deveres – em outras palavras, sujeito livre para as manifestações de rua e em reação a formas institucionais de contenção ou violação desses direitos – que permitiu uma primeira articulação discursiva entre sujeitos plurais, ideologicamente bastantes diferenciados e, às vezes, opostos, a qual justifica seu comparecimento simultâneo às ruas. As contradições e conflitos apenas apareceram após as convocatórias, nas manifestações linguísticas e estéticas que se fizeram presentes nas ruas (cartazes, bandeiras, palavras de ordem e expressões de violência física, simbólica e verbal). A unidade entre sujeitos para o comparecimento às ruas se construiu também na identificação quanto ao questionamento e à reprovação das políticas institucionais. Esclarecendo através de Orlandi:

No caso do capitalismo, tem a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável, que deve assim responder, como sujeito de direito, frente ao Estado e aos outros sujeitos[...]

[...] na individualização do sujeito pelo Estado, pode sim ocorrer a resistência. Há possíveis deslocamentos do sujeito aos modos pelos quais o Estado o individualiza, deslocamentos que afetam os modos como o sujeito, com sua forma histórica, relaciona-se com as instituições e isso pode resultar em rupturas, transformações no processo de sua individualização (2007, p. 3).

Além disso, essa ambiguidade também resulta em mais de uma forma de identificação na política dos sujeitos-atores que compareceram às ruas em 2013: por um lado, os identificados com movimentos sociais e (ou) partidos políticos; por outro, os participantes individuais, convocados, sobretudo, pelas mídias digitais. Essas duas formas de ser sujeito político geraram as contradições e os conflitos políticos presentes no processo mobilizatório, o que levou os vários analistas das manifestações às incertezas sobre as possibilidades ou não de novas manifestações em 2014 e (ou) sobre o futuro político dos processos mobilizatórios nas ruas.

CONCLUINDO

As grandes manifestações do século XX no Brasil passavam por um processo organizativo anterior à realização dos eventos de rua e em torno de uma pauta comum de protesto, conforme foi lembrado acima. Movimentos sociais organizados tenderam a construir a unidade dessa pauta, articulando-se discursivamente com outros movimentos congêneres ou com simpatizantes (Scherer-Warren, 2012a, 2012b). Aquelas manifestações buscavam visibilidade pública, reconhecimento e legitimidade para suas lutas historicamente construídas.

Em 2013, as manifestações se iniciaram de forma semelhante, em torno das pautas do MPL, relativas à necessidade de mudanças estruturais no sistema de mobilidade urbana e dos direitos dos cidadãos à cidade e a seus equipamentos públicos. Como no passado, a luta buscava mudanças no sistema social e no campo dos direitos humanos e da cidadania. Entretanto, as manifestações foram se transformando numa diversidade de lutas específicas. Inicialmente, havia alguma identidade, o protesto ao que foi caracterizado como o excesso de repressão policial à livre manifestação dos cidadãos. Em seguida, elas situaram-se em torno de uma pluralidade, às vezes antagônica, de protestos e demandas relativos ao desempenho das instituições sociais e políticas, à carência de políticas públicas e à necessidade de legitimidade e legalidade no campo das mudanças culturais. Do ponto de vista organizacional, mesclavam-se participantes de movimentos organizados, de partidos políticos, membros de grupos semiorganizados de expressão estética e cidadãos individualizados, simpatizantes com as causas em pauta. O que articulava a diversidade de atores ao evento era, num primeiro momento, o direito às vozes da cidadania nos espaços públicos e às respectivas manifestações; num segundo momento, foram os questionamentos e a reprovação às políticas institucionais de uma forma geral, os quais se construíram através de uma espécie de articulação discursiva informal e efêmera, pois realizada basicamente através de redes virtuais, com pouca organicidade, de uma forma geral. Esse segundo tipo de articulação, pela forma como se deu, sem a existência ou com uma frágil "identificação na política" (Mignolo, 2008), ou seja, sem o trabalho de construção de um compartilhamento ou uma articulação discursiva em torno de um projeto de mudança, ainda que provisório e inacabado, é o que caracteriza a efemeridade do grito das ruas de 2013 no Brasil, e a incerteza sobre sua continuidade para a maioria dos analistas.

Todavia, numa outra direção, pode-se observar que, apesar de antagonismos oriundos de posicionamentos políticos muito diferenciados, uma unidade, ainda que mais subjetiva do que programática, foi se construindo no desenrolar das manifestações de 2013, em torno do desejo de promover modificações no campo institucional da política e buscar caminhos para a ampliação no campo dos direitos humanos, ouvindo-se as vozes da cidadania.

Recebido para publicação em 16 de outubro de 2013

Aceito em 12 de dezembro de 2013

Ilse Scherer-Warren - Doutora em Sociologia. Pos-doutorado na Universidade de Londres. Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologias especiais, atuando, principalmente, nos seguintes temas: movimentos sociais, redes, cidadania, globalização, ações coletivas, democracia, participação, exclusão e inclusão social , direitos humanos e multiculturalismo. Publicações recentes: Redes e movimentos sociais projetando o futuro. Revista Brasileira de Sociologia, v. 01, p. 187-217, 2013; Redes de movimientos y territorios: las mediaciones entre lo global y lo local. Escenarios XXI, v. 14, p. 122, 2012; Movimentos sociais e participação institucional: introduzindo o debate. Politica & Sociedade, v. 10, p. 09-24, 2011.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2014
  • Data do Fascículo
    Ago 2014

Histórico

  • Aceito
    12 Dez 2013
  • Recebido
    16 Out 2013
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