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SILVA, Josué Pereira da. Por que Renda Básica? São Paulo: Annablume, 2014, 200p

SILVA, Josué Pereira da. Por que Renda Básica?. 2014. Annablume, São Paulo: 200p

“Por que Renda Básica?” reúne oito textos escritos entre 1998 e 2011, com revisão e acréscimos, além de quatro entrevistas do autor entre 2010 e 2012, todos versando sobre essa temática. O arco temporal de mais de dez anos dessas produções denota a maturação e familiaridade do autor com a indagação que intitula o livro, refletida não apenas nesses trabalhos, mas também na orientação de dissertações de mestrado e teses de doutorado com temas afins no departamento de Sociologia da Unicamp, onde Josué Pereira da Silva é professor.

A Introdução do livro tem o propósito de alinhavar os textos e as entrevistas, escritos em diferentes momentos e com distintos propósitos, ao tema principal do livro, que se converte nas primeiras páginas em tese. Sim – e a afirmação aqui é importante –, o autor, logo no primeiro parágrafo, explicita que seu propósito é “responder positivamente à questão que dá título ao livro.

Ao construir seu argumento em defesa da Renda Básica, que trataremos a seguir, Josué vai além e apresenta uma bela síntese do debate contemporâneo em relação à centralidade do trabalho como força socializadora, presentes nos capítulos 1 a 4. Tal debate se reveste de um sentimento de quase desamparo diante da perda de um referente (a ideologia do trabalho) e da busca pela restauração de sentidos de pertencimento a partir de uma nova linguagem. Nas palavras do economista Yves Barel, “[...] estamos numa situação marcada, ao mesmo tempo, pelo desfalecimento do trabalho enquanto grande integrador e pela inexistência de um grande integrador que o substitua” (Barel, apud Silva, 2014, p. 29). O esfacelamento do código do trabalho como elemento integrador impulsiona a proposta de Renda Básica, pelo menos em sua formulação a partir dos argumentos à esquerda, sobretudo pela possibilidade que ela teria em “desmercadorizar” a força de trabalho e propiciar novas formas de cidadania para além da relação salarial.

Não é pouca coisa apresentar esse debate de maneira simples e didática como faz o autor. Verificam-se sua preocupação e seu rigor em historiar os conceitos com os quais trabalha, como são os casos de “cidadania”, “reconhecimento”, “redistribuição”, “autonomia”, entre outros, referenciados de maneiras pertinentes às tradições discursivas que os formularam e os transformaram, além de suas relações com a proposta de Renda Básica.

O argumento em defesa de uma renda “paga por uma comunidade política a todos os seus membros individualmente, independente de sua situação financeira ou exigência de trabalho” (Van Parijs apud Silva, 2014, p. 10) se apoia na trajetória de conversão de dois personagens centrais do livro: André Gorz e Eduardo Suplicy, o cientista e o político. Ambos, não necessariamente pelas mesmas razões, se afastaram da defesa de propostas de distribuição de renda com algum vínculo com a ética do trabalho para a defesa da proposta de Renda Básica, universal e sem condicionalidades. Acompanhar a transformação das posições desses dois personagens ao longo dos capítulos do livro é um bom caminho para a introdução das terminologias que fundamentam a proposta de Renda Básica. O caso de Suplicy reveste-se de dramaticidade política pouco lembrada nos trabalhos sobre de transferência de renda no Brasil. Como pontua o autor, “acho necessário lembrar que o Presidente Lula sancionou a lei que cria o Programa Bolsa Família um dia depois de sancionar a lei de Renda Básica. Acredito que por trás da adoção desse programa alternativo estava a intenção de reduzir a influência de Suplicy” (Silva, 2014, p. 110-111). Imediatamente superado pela importância conferida pelo governo federal ao Programa Bolsa Família, sobre o qual falaremos a seguir, o “sonho” da Renda Básica no Brasil durou somente um dia!

Nesse enquadramento, quero enfatizar a dimensão utópica – de potência –, presente na proposta de Renda Básica, e suas dificuldades em converter-se em ato. Dentre uma série de vantagens apresentadas pelo autor na Introdução do livro, Josué destaca que “a renda básica talvez seja, atualmente, a única bandeira de luta que pode ser adotada por todos os movimentos sociais (pelo menos os não reacionários), sem ferir os interesses de nenhum deles em particular; isto é, sem os dividir. Por isso, ela pode ser uma bandeira comum, capaz de unificar muitos movimentos sociais num projeto, democrático e ecologicamente defensável, de transformação social” (Silva, 2014, p. 13). Donde se poderia indagar: por que essa bandeira não se converteu em ato? Quem seriam os sujeitos coletivos a empunhar tal bandeira? Por que, nas manifestações de Junho de 2013, por exemplo, não se via nenhum clamor pela defesa da Renda Básica, a despeito de todas as suas inegáveis capacidades transformadoras? Por que, na luta por reconhecimento, para usar expressão de Nancy Fraser, os movimentos sociais não evocam a Renda Básica? É possível ainda pensar em alguma bandeira comum nos dias de hoje?

Não se encontram, no livro, respostas diretas às questões acima enunciadas, embora sua leitura suscite reflexões na direção de uma melhor compreensão das dificuldades presentes na conversão da Renda Básica como instrumento de luta política. Embora esfacelado, o código presente na ética do trabalho ainda possui grande força como referencial simbólico integrador e de acesso a direitos, que podem ser, por exemplo, facilmente notados nas diferenças de sensibilidade coletiva em relação aos dois programas de transferência de renda do governo federal, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), dirigido a pessoas não aptas a ingressarem no mercado de trabalho e sem condicionalidades, e o já mencionado Programa Bolsa Família, voltado para pessoas em idade economicamente ativa e com condicionalidades. Em relação ao primeiro, não se questionam sua legitimidade social, tampouco, suas “portas de saída”, mesmo em se tratando de um benefício não previdenciário.

Gostaria de finalizar esta resenha destacando dois ou três pontos presentes nos últimos capítulos, que versam especificamente sobre a relação entre a Renda Básica e o Programa Bolsa Família. No capítulo VII, “Reconhecimento, redistribuição e as ambivalências do discurso sobre o Bolsa Família”, entendo que as posições de origem dos autores selecionados deveriam ser levadas em questão na construção do argumento. Os casos de Patrus Ananias e Frei Betto, por exemplo, são significativos. Suas diferentes perspectivas em relação ao caráter emancipatório do Bolsa Família certamente podem estar relacionadas ao fato de que o primeiro foi Ministro do Desenvolvimento Social (2004-2010), período de fortalecimento e ampliação do Bolsa Família, e o segundo, entusiasta e formulador de um programa, o Fome Zero, o qual, por razões que não serão aqui tratadas, foi substituído pelo Bolsa Família em 2013. Em sentido complementar, as diferentes posições políticas de autores como Marco Antonio Villa, Gilberto Dimenstein, Zilda Arns e Contardo Calligaris poderiam elucidar a interpretação de suas falas. O título deste capítulo sugere, ademais, a existência de um – singular – discurso ambíguo, quando me parece que ao longo dos mais de dez anos de existência do PBF foram produzidos discursos – no plural – que se transformaram ao longo do tempo. As discussões sobre as “portas de saída”, por exemplo, aparentemente arrefeceram e, em suas versões oficiais, presentes na formulação do programa Brasil sem Miséria, foram convertidas como “portas de entrada” para uma série de políticas sociais. A defesa da constitucionalização do Programa Bolsa Família por parte do então candidato oposicionista Aécio Neves, no Jornal O Estado de São Paulo (O Estado de São Paulo, 31 de Outubro de 2013, p. A8) também é indicativa de discursos sobre o programa que se transformaram ao longo dos anos. Por último, o capítulo VIII, “Da Bolsa Família à Renda Básica: limites e possibilidades de uma transição”, deixa uma dúvida, sugerida pelo próprio autor na entrevista “Cidadania, Autonomia e Renda Básica” (entrevista 4): será que o caminho institucional brasileiro na transição dos programas existentes para a Renda Básica passaria pelo Bolsa Família, ou seria mais pertinente pensá-lo a partir do Funrural ou do Benefício de Prestação Continuada?

Na entrevista 2, “Brasil tem condições de instituir um Programa de Renda Básica”, o autor sugere que os principais limites para a implantação da Renda Básica no Brasil situam-se nos planos políticos e ideológicos, e que a superação das resistências, nesses dois campos, começa pelo convencimento (Silva, 2014, p. 179). Assim, a publicação desse livro certamente representa uma grande contribuição para a ampliação desse debate, numa linguagem precisa e clara.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015
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