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NAS TRAMAS DO CRACK: ETNOGRAFIA DA ABJEÇÃO de Taniele Rui

RUI, Taniele. Nas tramas do crack. : etnografia da abjeção. 2014. Terceiro Nome, São Paulo: 400

ISTO NÃO É [SÓ] UM CORPO

SAÚDE, ABJEÇÃO E ETNOGRAFIA DO USO ABUSIVO DO CRACK

“A abjeção não é mais do que uma qualidade – aquela que se opõe ao “eu” (Julia Kristeva, Poderes do Horror: um ensaio sobre abjeção)1 1 Originalmente na epígrafe do Capítulo V - Alteridade: “L’abject n’a qu’une qualité – celle de s’opposer à je. Julia Kristeva, Pouvoir de L’Horreur” (Rui, 2014, p. 277).

De uma forma radical, expressa numa maneira crua de definição da citação acima, a característica da abjeção é tomada como o máximo da alteridade, aquela que não reconhece humanidade no outro. Diante da construção de uma corporalidade abjeta, Taniele Rui nos mostra a importância de estudar a figura do noia, para que possamos entender as tramas do crack na contemporaneidade. A questão principal de seu livro, portanto, diz respeito a compreender melhor as tramas do crack e as populações associadas ao seu uso abusivo, consideradas excluídas. Ao contrário do que normalmente é argumentado – especialmente no senso comum e em matérias da grande mídia – o local de consumo de crack se caracteriza pela presença excessiva do Estado.

Esta é uma grande contribuição de Taniele Rui: se, por muito tempo, pessoas nessas situações foram consideradas excluídas, este livro se junta a outras produções recentes na temática urbana, que colocam em xeque uma concepção do social por vezes simplificada. Entre estes grupos que estão nas margens do Estado, há dinâmicas internas para-além das análises pela negação. Há muito mais o que se falar, além da falta de outras coisas. Há a gestão de corpos produzidas individual ou coletivamente, mas de maneira interna ao grupo. Há as preocupações com Saúde Pública e todo o debate que isto suscita, como o embate sobre redução de danos e abstenção em Comunidades Terapêuticas. Há, também, o contexto de combate às drogas e o debate maior sobre legalização ou não de algumas substâncias. Há o problema que, a cada dia mais, se torna preocupação da Segurança Pública e objeto de políticas públicas de ação mais global, como com o “Programa Crack – é preciso vencer”.

O livro, então, está organizado em três partes: I) Antropologia, saúde e política; II) Fronteiras, espaços e usos do crack e III) Pessoas, substâncias, corpos e coisas. Na primeira parte, a autora faz uma discussão sobre saúde e abordagens da antropologia, que envolvem o conhecimento da redução de danos ou programas de abstinência e escolhas políticas, tomadas pela ONG que ela acompanha em seu trabalho de campo. Na segunda, há uma descrição mais precisa dos espaços de uso de crack que a antropóloga acompanhou, seja a cracolândia paulistana, a linha do trem ou um prédio abandonado em Campinas, que suscitam várias reflexões acerca de moralidades, segurança, impacto das políticas públicas e repercussão na mídia. Por último, na terceira parte, temos a reflexão sobre pessoas, substâncias, corpos e coisas, parte em que fica evidente a importância e a humanização do cachimbo e a desumanização do noia, além de apresentar reflexões sobre as trocas das coisas, que nem sempre obedecem à lógica comum capitalista.

Sendo assim, a definição de pessoas e coisas, tão trivial no nosso cotidiano, se torna borrada no cenário de uso abusivo do crack e em todas as relações que estas práticas ensejam, sejam elas com traficantes ou com os redutores de danos. A corporalidade do noia o coloca numa condição de desumanização e o transforma em “coisa”. O prestígio dos cachimbos pessoais é tão elevado que os transformam em pessoas com nomes próprios.

Por delimitar os contornos do certo – e também da humanidade – o noia aciona mais de um tipo de gestão sobre si. Há ao menos três instâncias de gestão dos noias: 1) a autovigilância, que é determinante para não se perder o respeito dos pares; 2) a vigilância constante, para os que já perderam a autovigilância, o que implica delimitar os espaços de circulação e de uso do crack; 3) em casos extremos, a interdição, que pode resultar, em situações-limite, na expulsão dos bairros. Se as duas últimas medidas denotam toda uma lógica de gestão dos corpos e das pessoas por meio de grupos como o PCC, a primeira denota uma preocupação com a construção dos corpos e a dualidade entre o asseio e o estar na situação de noia.

Se é verdade que há interesse da Saúde Pública na assepsia do corpo abjeto, também é verdade que os indivíduos possuem práticas de autocuidado. Há o consumo em demasia e, depois, o processo de hibernação, para que o corpo se recupere. Há a preocupação com as rachaduras nas bocas, causadas pelo fumo do crack, e a aceitação de insumos dos redutores de dano (como manteiga de cacau e piteira de silicone) para reduzir os impactos do consumo nos lábios e, portanto, ajudar na prevenção de contaminação de doenças, como hepatite. Há uma hierarquia fina, construída internamente entre os usuários, que somente a etnografia conseguiria captar: a distinção entre os usuários que usam a lata e os usuários que usam cachimbos. Nesta distinção, há ainda mais prestígio na posse de um cachimbo pessoal, personalizado e com nome próprio.

Somente com a conversa sobre cachimbos é que sabemos da necessidade apontada pelos usuários de o cachimbo ser desmontável, para poder ser desmontado rapidamente no caso de batidas policiais. Os cachimbos nos levam às contradições das políticas públicas: são também distribuídos pela Secretaria de Saúde para logo em seguida serem quebrados pela Secretaria de Segurança Pública. E, dessa forma, a partir do cachimbo, entendemos um pouco mais das tramas do crack e da gestão do urbano contemporâneo, que envolvem tanto as relações internas nos grupos de usuários, como as práticas de saúde e disputa entre redutores de danos e partidários de internações que exigem abstenção, e, portanto, também as relações entre saúde, assistência social e segurança pública.

Diante disso, a autora afirma, em seu livro: “os conflitos decorrentes de intervenções ostensivas nos espaços de consumo da droga se complexificam e se intensificam, configurando um momento histórico que não torna exagerado dizer que o crack, seus usuários e seus espaços de consumo estão no centro da questão social brasileira contemporânea” (Rui, 2014, p. 27). Dessa forma, buscando a sua contribuição para tema tão relevante intelectual e politicamente, as experiências de pesquisa (e pessoais) permitem à Taniele Rui que ela, na prática, se torne um pouco redutora de danos e, academicamente, realize uma pesquisa de fôlego intelectual ímpar.

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    Originalmente na epígrafe do Capítulo V - Alteridade: “L’abject n’a qu’une qualité – celle de s’opposer à je. Julia Kristeva, Pouvoir de L’Horreur” (Rui, 2014, p. 277).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2015
  • Aceito
    11 Nov 2015
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