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BERRINGER,Tatiana. A burguesia brasileira e a política externa nos governos FHC e Lula. Ed. Appris, 2015.

BERRINGER, Tatiana. A burguesia brasileira e a política externa nos governos FHC e Lula. Ed. Appris, 2015

JOGO DE DOIS NÍVEIS À BRASILEIRA: interesses de classe e estratégias diplomáticas sob FHC e Lula

A literatura acadêmica brasileira sobre relações internacionais acaba de ganhar mais uma referência incontornável no debate sobre nossa política externa: A burguesia brasileira e a política externa nos governos FHC e Lula, de Tatiana Berringer, publicado pela Editora Appris (2015; 237 p.). Trata-se de contribuição fundamental para entender os caminhos da inserção internacional do Brasil a partir dos anos 1990, quando se intensificou o processo de liberalização econômica e comercial em escala global.

O novo liberalismo que contaminou o espírito daquela década, no entanto, penetrou as esferas nacionais, assentando-se sempre sobre arranjos socioeconômicos já existentes, enfrentando, em cada caso, resistências e obstáculos, mas contando também com atores sociais mobilizados em seu favor. É nesse terreno movediço de disputas entre atores domésticos representando interesses variados que se forja a política externa de determinado governo, a cada conjuntura histórica. O período em questão no livro (1995-2010) é, nesse sentido, bastante fértil para a análise do caso brasileiro, pois compreende uma inflexão na orientação da nossa política externa.

Na trilha das linhas teóricas desenvolvidas pelo marxismo de Nicos Poulantzas e da vertente analítica de Armando Boito Jr., a professora da UFABC apresenta ao leitor, de forma clara e objetiva, como a dinâmica doméstica da luta de classes e entre as frações de classe constitui elemento indissociável da formulação da política externa. A obra é dividida em três capítulos e uma conclusão, sendo o primeiro dedicado a uma discussão sobre o uso do conceito de bloco no poder na análise de política externa; o segundo à análise dos governos Fernando Henrique Cardoso; e o terceiro focado no período dos dois mandatos de Lula.

Ainda que não se proponha a uma reflexão teórica profunda, o conceito de bloco no poder ocupa um lócus privilegiado no instrumental analítico mobilizado no livro. Sob essa ótica de interpretação, a política externa é resultante não apenas da formulação diplomática, mas também de uma multiplicidade de outras forças sociais: a composição de interesses no interior da burguesia nacional; a orientação político-econômica do Executivo; a configuração partidária do Legislativo; e a atuação mais ou menos intensa de organizações da sociedade civil sobre os temas da política externa, dentre outros.

A análise, elaborada a partir de fontes primárias – artigos, documentos, declarações e notícias de revistas –, permite apreender o posicionamento público tomado pelos diferentes setores na defesa de seus respectivos interesses, mesmo na ausência de entrevistas com os atores em questão. O campo empresarial brasileiro é abordado a partir de uma análise das declarações públicas e tomadas de posição de suas entidades de classe durante as duas décadas em foco, notadamente a CNI (Confederação Nacional da Indústria), a CNA (Confederação Nacional da Agricultura), a FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e a CEB (Coalizão Empresarial Brasileira).

Já a atuação da sociedade civil organizada não fica de fora nessa obra. Alguns dos principais movimentos sociais, organizações e sindicatos envolvidos na Campanha Continental contra a ALCA, durante o governo FHC, são abordados tanto nas suas posições de resistência e crítica ao livre comércio quanto também como parte constituinte (sobre tudo no caso da CUT) do novo bloco no poder que se formou ao redor da candidatura de Lula.

Ao longo das duzentas e trinta e sete páginas do livro, é apresentado um embate permanente entre os setores industriais – avessos à excessiva abertura neoliberal da economia, simbolizada no projeto da Área de Livre Comércio das Américas, ALCA – e aqueles mais vinculados à dinâmica de exportação de commodities – favoráveis à abertura da economia brasileira em troca de acesso a outros mercados. Para desvendar a lógica contraditória desses interesses no interior da burguesia nacional, Berringer busca identificar as frações de classe dominantes em cada momento histórico, valendo-se das categorias poulantzianas de burguesia nacional, burguesia compradora e burguesia interna, tipicamente presentes em Estados dependentes, como o Brasil.

A hegemonia de uma dada fração da burguesia correspondeu a um tipo determinado de política externa promovida pelo Estado: subordinação passiva nos anos FHC; subordinação conflitiva nos anos Lula. Para a autora, não houve, em nenhum dos dois governos analisados, um posicionamento anti-imperialista na política externa brasileira. Ainda assim, o relacionamento do Brasil com os Estados Unidos se configurou de forma distinta nos dois períodos, e uma das principais resultantes da política externa do governo Lula foi justamente a diminuição da dependência econômica com relação a esse país e a ampliação da atuação diplomática brasileira nas chamadas relações Sul-Sul ou, em outros termos, um fortalecimento do eixo horizontal da política externa em detrimento do vertical, privilegiado nos governos FHC.

Essa estratégia de inserção internacional visou a fortalecer determinados setores da burguesia nacional, mais ligados ao setor industrial (atendendo à FIESP e CNI), tendo como resultado a internacionalização de grandes empresas brasileiras (as chamadas “campeãs nacionais”), especialmente em países da América do Sul e da África, onde o grau de competitividade brasileiro é maior. Por outro lado, o setor exportador de commodities agrícolas e minerais não foi totalmente preterido, pois se viu favorecido pela ascensão econômica da China e pela sua maior integração comercial com o Brasil.

A hipótese de Berringer é a de que a política externa dos anos 1990 correspondeu, no plano doméstico, à adesão do Brasil aos marcos políticos e econômicos do neoliberalismo propagado a partir de Washington e incorporado por determinado bloco no poder durante os governos FHC. No plano diplomático, o Brasil aderiu ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares como estratégia para recuperar a confiança das potências ocidentais. Já a inserção internacional do Brasil durante o governo Lula teria sido, por sua vez, reflexo da construção de um projeto político-econômico neodesenvolvimentista, que corresponderia, então, a outro bloco no poder a partir das eleições de 2002.

Se, por um lado, o neoliberalismo tem sido vastamente descrito e estudado na literatura econômica, sociológica e de relações internacionais, a tese do neodesenvolvimentismo ainda carece de um maior aprofundamento e sustentação. Isso porque, durante os oito anos de Governo Lula – período caracterizado pela autora como neodesenvolvimentista –, determinados traços fundamentais do neoliberalismo não se alteraram, principalmente no que se refere ao sistema financeiro, à gestão da dívida pública e às políticas macroeconômicas do governo, amplamente calcadas na gestão da taxa Selic.

Haveria margem, ainda, para se investigar o grau de internacionalização dos detentores dos meios de produção no Brasil. Isso porque entidades de classe, como a CNI, representam, a despeito de seu caráter supostamente nacional, setores transnacionais do grande capital que atuam no nosso espaço doméstico. É o caso, por exemplo, da indústria automotiva que, através da ANFAVEA, faz parte da CNI, ou de grande parte das empresas do ramo farmacêutico, as quais, através do Sindusfarma, são afiliadas à FIESP e à CNI. Outros casos desse tipo não são raros. Dessa forma, há interesses amalgamados no interior das entidades empresariais em questão, representando tanto as campeãs nacionais, quanto as “campeãs estrangeiras” que atuam no Brasil.

Ao lançar luz sobre a complexa rede de interesses que compõe as frações de classe da burguesia brasileira na sua relação com os partidos políticos e organizações da sociedade civil, A Burguesia brasileira e a política externa nos governos FHC e Lula traz ao leitor uma interpretação original de nossa política exterior. A análise desenvolvida possibilita ainda extrapolar o período abordado e aventar questões acerca das características adquiridas pela política externa a partir do primeiro mandato de Dilma Rousseff, e sua relação com os diversos setores empresariais e sociais.

Esse livro constitui, assim, obra fundamental para analistas da política externa brasileira do presente, para historiadores da diplomacia nacional, bem como para estudantes de Relações Internacionais e áreas afins que estejam buscando uma abordagem crítica e rigorosa sobre os caminhos da inserção do Brasil no mundo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2015
  • Aceito
    14 Nov 2015
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