Acessibilidade / Reportar erro

AGENDA DA SOCIOLOGIA DA ESFERA CULTURAL CONTEMPORÂNEA?

INTRODUÇÃO

Uma agenda corresponde, em suma, à definição de um elenco de prioridades no que toca à assunção e realização de compromissos. Neste dossiê, ao nos referirmos à agenda da sociologia da esfera da cultura contemporânea, estamos movidos pela certeza de que existem temas incontornáveis a serem abordados hoje pelos exercícios sociológicos voltados para questões da produção, circulação e usos dos bens simbólicos. Sabe-se consistir esses últimos em artefatos capacitados a significar outras práticas, integrando-as ao mundo significativo, isso no instante em que lhes conferem visibilidade inteligível e os tornam passíveis de compor as trocas públicas de sentido.

A luz do referencial weberiano (Weber, 1974, p. 379), a esfera cultural compreende, aqui, uma topologia social, ou seja, uma forma social diferenciada por nela se repor continuadamente o problema em torno do sentido (isto é, significados, direções, valores, etc.). Ela se realiza, contudo, em campos cujas irredutibilidades entre si dizem respeito aos diferentes níveis de autonomia relativa e profissionalização. Sobretudo tais campos correspondem às distintas historicidades das sublimações de valores plasmadas nas respectivas racionalidades que subjazem os critérios de recrutamento e identificação dos elementos inscritos em suas órbitas e também nas crenças que os movem (Bourdieu, 2001BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001., p.120). Ao contrário da prerrogativa funcional-estruturalista, porém, ao falarmos de esfera da cultura contemporânea, não estamos nos referindo a um arranjo normativo preestabelecido, apto a prescrever os limites das condutas humanas e, no mesmo andamento, designar desvios ao seu modelo e, assim, reiterar a própria territorialidade sistêmica. Respaldados no que Bauman (2012, p. 43) denomina de uma “matriz de permutações possíveis”, entendemos essa esfera como dimensão sócio-humana sempre tendente à totalização, mas permanecendo um esboço sujeito à conclusão em um devir interminável. Desde já a questão da própria diferenciação se impõe como um drama ao desenrolar dessa, à maneira de outras esferas da vida social. Afinal, mantém-se continuamente precária a definição de seus conteúdos, na medida em que a qualidade mesma da sua natureza de forma e fator de formação das relações humanas se encontra em estado cambiante.

A nosso ver, em se tratando da esfera cultural a adjetivação contemporânea é justamente o condicionante espaçotemporal com incidência no traço incompleto dessa forma sociocultural. No que toca às quatro últimas décadas, com a ascensão da confluência entre simbólico e comodificação, cultura e identidade, as discussões sobre a questão cultural contracenam com uma miríade de aspectos, levando-a exceder temas consagrados na relação estabelecida entre arte, cultura e sociedade, repercutindo no Brasil ao mesmo tempo em que em outras sociedades nacionais. Embora possamos estar forçando o argumento, nos parece se definirem novas pautas na medida em que se acentuam, nos muitos campos culturais, certa reflexividade, levando ao lugar do pensado e da crítica narrativas e, nelas, classificações já bem estabelecidas acerca de denominações e fronteiras entre bens e sistemas simbólicos, no reverso da problematização dos referentes significados por esses bens.

Portanto, no caudal do conjunto de artigos reunidos neste dossiê, pretende-se discutir a montagem do que entendemos constituir-se uma agenda no movimento em que se colocam em cena os possíveis condicionantes da atualidade da esfera da cultura, para isso considerando as articulações entre estruturas sócio-históricas e modalizações discursivas intelectuais. Nosso ponto de partida está na suspeita de que os conteúdos dessa agenda decorrem da necessidade de se redefinir a empiricidade daquilo nomeado por esfera cultural nas ciências sociais, em razão da extensão global adquirida pelo padrão moderno de socialidade e de condutas, ou seja, pelo incremento vertiginoso na emergência e acomodação dos hábitos, costumes e instituições da modernidade pelo conjunto do planeta. E, no mesmo diapasão, explicitam ou ao menos indicam os dilemas socioantropológicos inerentes aos modos de aproximação e tratamento da pauta de atributos dessa condição histórica contemporânea, no instante em que tanto tendências generalizantes quanto reposições de singularidades étnico-históricas emergem mutuamente associadas. Dilemas intelectuais, sim, mas que gravitam em torno do nexo histórico-ontológico entre o “mesmo” e o “diverso”, num quadro em que a tensão decorrente das interações conflituosas entre geopolítica e o geocultural ressaltam a esfera da cultura como fórum cuja amplitude e transversalidade planetária afeta as escalas das abordagens das facetas múltiplas dos processos de simbolização.

Para tomar de empréstimo a ideia de Renato Ortiz (2015ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 37-61), condicionada pelo “sotaque” próprio à “regionalidade” ao mesmo tempo cultural e epistêmica das ciências sociais brasileiras, a motivação deste dossiê é, justamente, perfilar algumas dessas inflexões nas práticas e significados que repõem os contornos da esfera cultural, sem descuidar, porém, dos meios atuais com as quais a linguagem da sociologia expõe e analisa os limites instáveis desse mesmo espaço social.

Emblemáticas a respeito dessas flutuações são as retomadas da noção de cultura popular que, nas últimas duas décadas, ocorrem em distintos contextos sociais de significação, no Brasil, atravessados pela extensão adquirida pela ideia-valor de diversidade cultural. Com “Da beleza do morto à cultura viva: a retomada do interesse pela(s) cultura(s) popular(es) na virada do milênio”, Maria Celeste Mira mobiliza a análise dos usos culturais na direção do campo dos intermediários da cultura popular, na atual cidade de São Paulo. Seu argumento parte da observação feita por Michel de Certeau acerca do elemento mórbido inerente ao conceito de cultura popular presente nas intervenções dos folcloristas e historiadores. A morbidez resultaria da atração exercida sobre os intelectuais por práticas e símbolos desaparecidos ou em vias de sumir do cotidiano das classes populares. Deslocando a proposição para o cenário paulistano contemporâneo, a autora persegue o fio sociogenético pelo qual a definição das distintas posições nesse campo é a contrapartida da produção de novas semânticas para o popular, tendo em comum manterem-se fieis à disjunção romântica europeia entre cultura popular autêntica e cultura de massas. Se a primeira é atribuída à conotação de algo imaculado pelos desígnios mercantis, a segunda seria a expressão mesma da conspurcação monetário-financeira das “coisas do povo”. Uma vez mais, conclui Mira, sobressai a ênfase naquilo já distanciado das dinâmicas nas quais as muitas facções populares de classes são objeto de interesse desses intelectuais intermediários. Logo, com raras exceções, a “cultura viva” cultua o corpo morto, mas depurado, em detrimento da pluralidade inconstantemente viva que se esparrama pelas periferias brasileiras.

Por sua vez, calcada na diferenciação estabelecida por Pierre Bourdieu entre as dimensões restrita e ampliada da esfera cultural, Maria Lúcia Bueno se atém à crescente importância adquirida pelo campo da gastronomia, em que seu embasamento erudito tem sido engendrado por questões de ordem identitária, mas igualmente pela sintonia entre pautas geopolíticas e efeitos gerados pelo mútuo atravessamento entre simbólico e comodificação. Aplicando o modelo de análise sócio-histórica, em “Da gastronomia francesa à gastronomia global: desterritorialização, hibridismos e identidades inventadas”, a autora reconstrói a formação do campo gastronômico a partir do momento em que a codificação dos saberes e dos fazeres relativos à culinária francesa promoveu sua difusão em grande escala para fora das fronteiras do país. Por sua vez, o advento de novos espaços urbanos permitiu, no mesmo contexto francês, mas no século XIX, o surgimento da figura do chef. Com ele se codificou um modelo internacional de cozinha que, nos rastros da expansão de redes de hotéis e da adoção de restaurantes, deixou a Europa na direção de outras partes do planeta. Integrando nele a habilidade e a competência inventiva e conceitual relativas ao estilo de vida que abarca os gostos à mesa, a figura do chef ocupa posição estratégica no campo gastronômico. Por isso mesmo, observa Bueno, a emergência de uma jovem geração de chefs, em diferentes países, não apenas servirá de mediadora na dinâmica do padrão francês, sobretudo, mediante processos de reflexividade institucional, promovendo a cosmopolitização global das culinárias locais.

A mesma atenção à circulação cultural e dos saberes é encontrada em “Fazer do velho uma novidade. As reinvenções dos best-sellers juvenis”. O artigo é mais um dos prosseguimentos dados por Andréa Borges Leão às suas pesquisas acerca da montagem das interdependências sociofuncionais do espaço literário transnacional. Dessa vez, a autora se debruça ante o regime de historicidade próprio à formação dos best-sellers infantojuvenis, na medida mesma em que desconfia da certeza que marca a classificação e a compreensão sociológica consagrada sobre esse gênero literário. Para essa última, o único critério de legitimação desse bem simbólico é o êxito comercial, já que ele não atende a quaisquer dos critérios de avaliação de qualidade cujos guardiões se aninham entre os círculos de críticos literários, promovidos ao status de legisladores do gosto. Ela persegue os rumos espaciais e temporais que, desde o século XIX, articulam a Europa Ocidental, em especial França e Inglaterra, e as Américas pelos trânsitos de ideias, técnicas, editores, livreiros, etc., na conformação da teia que envolve autores, textos e leitores dessa literatura infantojuvenil. Percursos cruciais, inclusive, aos destinos da emergência e consolidação de diferentes literaturas nacionais nos dois continentes. Na sua face atual, a mesma trama transatlântica se manifesta no reposicionamento do Brasil: de importador, a produtor ou exportador desses best-sellers. Borges Leão focaliza uma das protagonistas de tal circuito internacionalizado da cultura, a jovem escritora carioca Thalita Rebouças. O exercício etnográfico realizado pela socióloga permite constatar que, afastando-se dos cânones da arte simbólica estabelecidos pela crítica romântica alemã, na definição do literário, ainda no século XIX, essa nova geração de autores e autoras deixa ver um sistema literário no qual o regime de autoria e aquele de visibilidade se confundem com a perspectiva de que obra literária e mercadoria não são porções disjuntivas, mesmo antagônicas entre si. Observa Borges Leão, porém: não se trata apenas da postura modernista de apreço pelo “novo”; a cumplicidade com o “antigo” se dá em razão da atualização de formulas editoriais consolidadas – contos de fada, por exemplo. Nesse instante, apropriando-se da modelagem eliasiana e das formulas de Cas Wouters sobre informalização do comportamento, característica da economia pulsional contemporânea, a autora destaca as regras e etiquetas internas ao esquema narrativo das obras, as quais ocupam espaço estratégico como dispositivos de refreios de afetos no movimento pelo qual promove a formação do autocontrole de emoções.

O viés introduzido em “A expansão do mercado de conteúdos audiovisuais brasileiros: a centralidade dos agentes estatais de mercado – o FSA, a ANCINE e o BNDE”, por Elder Maia Alves, abre um significativo leque de temas referidos à esfera cultural, pouco explorado ainda. No caso do artigo, a despeito das intermináveis e, na maioria das vezes, estéreis discussões em torno da oposição entre Estado e mercado, o texto investe, obtendo bons dividendos analíticos, na proposição de Bourdieu sobre a função do padrão estatal de dominação de “criar mercados”. O emprego do ponto de vista da abordagem figuracional favorece a iniciativa de sintonizar sociologia econômica e da cultura, para observar as sempre mais intensas lutas travadas no espaço social das transações mercantis de bens culturais (em particular, os audiovisuais), a partir do entrosamento, mediante a intervenção do que denomina de “lógica de cassino”, de interesses de grandes corporações empresariais privadas e governos nacionais nas disputas e nas negociações em instâncias como a OMC. O objeto dessas competições é a conquista e a consolidação de posições privilegiadas nos novos e emergentes mercados consumidores de filmes, vídeos, games e produtos afins, que assinalam o papel estratégico desempenhado pelas telas sociotécnicas de visibilização na unificação global dos circuitos de produção, circulação e usos de bens culturais no planeta. A atenção conferida ao entrelaço composto pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), junto à Agência Nacional de Cinema (ANCINE) e a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no sentido de fortalecer a posição do Brasil no tocante ao aumento do conteúdo brasileiro nas circulações domésticas e transnacionais de sons e imagens, serve de demonstrativo da complexidade dessa trama figuracional da economia da cultura, em especial, dos ajustes entre interesses artísticos, políticos e econômicos que as falas, em demasia ideologizadas, tornam incompatíveis.

A mesma complexa rede de interdependências sociofuncionais é considerada, uma vez mais no artigo “O discurso do marketing de lugar e os grandes eventos: investigação sobre artífices de um senso comum planetário”. Nesse texto, Michel Nicolau Netto leva em conta a cada vez mais relevante posição cultural, econômica e política do circuito de grandes eventos, para se ocupar da modalidade específica de mediação exercida no mundo contemporâneo pelos profissionais do setor de marketing que atuam em escala global. Isso pelo fato de eles estarem aplicados à produção discursiva em que se tecem os sentidos que ressignificam lugares como espaços nos quais se fazem visíveis algumas das figuras da globalização. Desse modo, o autor focaliza o trânsito acionado por esses artífices entre traços sedimentados como expressivos de identidades sociais e a logica publicitária no emprego de marcas com a finalidade de posicionar bens nos mercados. O artigo se aplica à análise dos efeitos práticos vinculados à discursividade na qual se estabelece a homologia entre as ideias de mundo e de mercado, a qual adquire a envergadura de um senso comum planetário. Nesse sentido, ao se ater às propriedades das narrativas que identificam e vocalizam hipotéticas vocações de lugares para sediar grandes eventos, a análise do discurso empreendida articula os nichos em que se posicionam as falas peritas dos profissionais do marketing às diversas entidades políticas (Estados nacionais, por exemplo), econômicas (corporações privadas transnacionais) e representativas de sistemas esportivos, artístico-musicais, de moda e outros. Assim, não apenas procura objetivar sociologicamente os contextos de produção e circulação desses sentidos; em especial, interessa sublinhar a emergência de novas instâncias de visibilização de bens culturais que consagram, conferindo-lhes legitimidade tanto na agenda dos grandes eventos como no próprio discurso publicitário. E, nessas instâncias, embora não estejam confundidos, simbólico, político e econômico transitam entre si, tornando cúmplices prestígio e lucro financeiro.

Miqueli Michetti explora, justamente, uma dessas instâncias de mediação contemporânea no artigo “A definição privada do bem público: a atuação de institutos empresariais na esfera da cultura”. O alvo analítico e interpretativo são as fundações culturais vinculadas a grandes corporações bancário-financeiras brasileiras – os institutos Itaú e Bradesco. A tão rica quanto rigorosa reconstrução sócio-histórica do itinerário formativo dessas, entre outras instituições afins, no contexto internacional e no Brasil – em que o advento da regulação flexível do capital contracena com a ascensão da plataforma ideológica do neoliberalismo em suas diversas facetas, na virada dos anos setenta para os oitenta –, oportuniza a reflexão da autora sobre as confluências entre Estado e agências do capitalismo atual, na medida em que a coordenação fundada sobre o princípio de mercado se estabiliza à maneira do parâmetro consensualizado tanto de gestão do âmbito público quanto do privado. A argumentação perscruta a natureza da mediação exercida pelas fundações privadas de cultura, no que toca à atuação pública do capital econômico privado, mas o que está em jogo, na análise do discurso realizada, é a natureza de legitimação que se específica nessas interpolações entre economia e política, mediadas pela questão cultural. Em particular, a tônica é posta numa governança “pós-política” que se levanta sobre a justificativa da eficiência técnico-gerencial, estando na contramão da exposição e negociação de conflitos de interesses. Assim, no reverso da medalha, subsidia o deslocamento das prioridades privadas como critério formal para a definição do bem público.

REFERÊNCIAS

  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida RJ: Jorge Zahar Editor, 2001.
  • BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas Rio de Janeiro: Bertrand, 2001.
  • ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade São Paulo: Boitempo, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2016
  • Aceito
    20 Set 2016
Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Centro de Recursos Humanos Estrada de São Lázaro, 197 - Federação, 40.210-730 Salvador, Bahia Brasil, Tel.: (55 71) 3283-5857, Fax: (55 71) 3283-5851 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revcrh@ufba.br