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UMA REVISITAÇÃO CRÍTICA DA TEORIA MARXISTA NO INÍCIO DO SÉCULO XXI

AMORIM, H.. Trabalho (Imaterial), valor e classes sociais: diálogos com pesquisadores contemporâneos. 2017. EdUFSCar, São Carlos: 317

O livro tem por objetivo dialogar com pesquisadores contemporâneos acerca dos temas relativos ao trabalho, às classes sociais e ao valor. Constituído por 22 entrevistas 1 1 O livro foi composto por 22 entrevistas no total, realizadas com os seguintes pesquisadores: Alain Bihr, André Tosel, Antoine Artous, Celso Frederico, Daniel Bensaïd, Dominique Meda, Franscisco de Oliveira, Franscisco Teixeira, Gérard Duménil, Helena Hirata, Jacques Bidet, Jean Lojkine, João Quartim de Moraes, John Weeks, Jorge Grespan, Leda Paulani, Marcos Del Roio, Michael Löwy, Michel Husson, Ricardo Antunes, Robert Castel e Sadi Dal Rosso. realizadas entre os anos de 2009 a 2017, o livro foi organizado por Henrique Amorim, professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP – Campus Guarulhos). Além das entrevistas, a obra também é composta por um prefácio de Alfredo Saad Filho, uma apresentação do próprio organizador e um posfácio de Giovanni Alves.

Contando com a contribuição de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, o livro traz uma rica diversidade de diagnósticos e questionamentos sobre as relações das classes sociais na atualidade e sobre as perspectivas futuras no âmbito do trabalho. As entrevistas foram realizadas nas cidades de Paris, Strasbourg, Londres, Campinas, São Paulo, Londrina, João Pessoa e Caxambu. Planejado inicialmente como um livro de entrevistas sobre o trabalho imaterial e a revitalização da teoria marxista no século XXI, indicação também realizada no título da obra, ele expande a análise dos conceitos que dão nome ao seu título principal. Nesse sentido, o resultado obtido é o de um livro que apresenta desde indagações metodológicas valiosas para o pesquisador iniciante ou veterano, até análises interdisciplinares que questionam a conjuntura política e socioeconômica atual.

É possível vislumbrar, no decorrer dessa obra, questionamentos quanto ao método utilizado por cada entrevistado, com a exposição de sua forma de pesquisa e de seu trabalho cotidiano. Apresentando forte coerência teórica interna entre as exposições das respostas, cada entrevistado indica, a seu modo particular, grande afinidade com os procedimentos epistemológicos marxistas. Lembramos que um dos principais objetivos desse método é apreender a materialidade concreta e o movimento do real, com a interposição entre o pensamento abstrato e o concreto.

Como nos lembra a entrevista de Celso Frederico e o prefácio elaborado por Alfredo Saad Filho, o método de análise marxista não é um procedimento metodológico enrijecido. Seus meios de validação de hipóteses e resultados apresentados são diversificados, demonstrando um leque de particularidades relativas ao arcabouço teórico de cada entrevistado. Assim sendo, não se trata de uma surpresa a pluralidade metodológica resultante dessas arguições, na medida em que o próprio ato de pesquisa é um constructo em pleno diálogo interdisciplinar, relacional e contextual, tornando impossível a reprodução do método de Marx a priori .

Em resumo, a obra tem por objetivo realizar um diálogo crítico entre três conceitos valiosos da teoria marxista. Em primeiro lugar, o livro traz ao leitor indagações pertinentes acerca da validade ou não da teoria valor-trabalho, considerada uma das principais teses marxistas no início do século XXI. Em segundo, essa problematização encontra-se ancorada principalmente (mas não só) na expansão do trabalho imaterial e intelectual, e na sua relação com as novas tecnologias da informação e comunicação (NTICs). Em terceiro, analisando-se a nova divisão internacional do trabalho, evidencia-se a emergência de distintos conflitos sociais no início do século XXI, denotando, por sua vez, a necessidade de reinterpretação da teoria das classes sociais de Karl Marx. Essas temáticas, em conjunto, conseguem sintetizar alguns dos principais entraves teóricos e a necessidade de revitalização da sociologia crítica do trabalho na atualidade.

A teoria marxista foi reavaliada criticamente ao final do século XX, principalmente com a emergência das políticas neoliberais de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e de Margareth Thatcher, na Inglaterra, no decorrer da década de 1970. Somando-se a esses processos políticos, a reestruturação produtiva, também em curso nesse período, apresentou como consequência a expansão dos postos de trabalho administrativos e do terceiro setor, a reestruturação da produção em diferentes segmentos, além da automação e da redução dos postos de trabalho fabris de parte significativa dos países da Europa ocidental e dos EUA. Esse conjunto de transformações trouxe diversas consequências para a interpretação da teoria das classes sociais no último quartil do século XX. Entre essas resultantes, podemos citar a formação de um novo perfil da classe trabalhadora e a possibilidade de ressurgimento do protagonismo do movimento trabalhista como sujeito histórico.

Com o avanço dessas transformações sociais e econômicas ao final do século XX, a principal crítica direcionada ao legado de Marx e ao marxismo como corrente teórica, realizada por um leque de autores, consistiu na classificação de seus excertos como “economicistas”. Com o intuito de debater criticamente essa interpretação que enaltece apenas uma proposta de leitura das obras de Marx e que reduz o contributo marxista e marxiano a uma interpretação predominantemente econômica, a principal contrapartida dessa obra é a de oferecer diferentes análises de forma propositiva, unindo, portanto, diagnósticos de áreas distintas.

Outra temática relevante para o debate teórico encaminhado neste livro é a influência dos Grundrisse de Marx para os pesquisadores do trabalho imaterial. Nos Grundrisse, Marx apresenta extensas abstrações acerca do desenvolvimento tecnocientífico e do papel das forças produtivas e do general intellect , tema amplamente discutido pela sociologia do trabalho e que influenciou uma geração de pensadores, exemplificados por Gorz ([2003] 2005) e Hardt e Negri ([2000] 2005). Tais autores apresentaram como pressuposto, a partir de uma leitura específica dos Grundrisse, a ascensão das novas competências e potencialidades atribuídas à expansão do trabalho imaterial e intelectual e uma possível ruptura das forças produtivas, no sistema capitalista, pela incorporação de conhecimento e pelo avanço tecnológico. Essas teses tiveram forte impacto e influência no início do século XXI, informando que estaríamos inseridos em um novo momento crucial do sistema capitalista, de potencial transformação dos modos de produção e de ruptura das relações sociais pré-estabelecidas entre ciência e capital.

A partir das teorias que indicariam a expansão das forças produtivas ao limite estrutural do capital, uma questão central se apresenta como problemática e é resgatada no decorrer das entrevistas deste livro: a validade da teoria valor-trabalho. Em outras palavras, se não há consenso a respeito da forma de mensuração do valor, principalmente quando analisamos a produção do trabalho imaterial, indaga-se: a partir desse pressuposto, seria possível desqualificar a teoria valor-trabalho? 2 2 Entre os teóricos que respondem afirmativamente a essa questão e que são citados no decorrer das obras, destaca-se Lazzarato e Negri (2001) , Hardt e Negri ([2000] 2005) e Gorz ([2003] 2005). Se não, quais os contributos teóricos que poderiam auxiliar a compreensão da formação de valor no capitalismo contemporâneo?

No bojo desses questionamentos, as novas condições materiais vivenciadas nos âmbitos local e global pela classe trabalhadora fomentaram a discussão quanto à centralidade (ou não) do trabalho. A diminuição dos postos de trabalho fabril e a transformação da jornada de trabalho, com alteração das horas negociadas, e as novas formas de contratação, foram temas que ganharam, nas últimas décadas, grande amplitude pelo discurso de flexibilização do trabalho. Considerado como uma das principais formas de contratação do trabalho emergente, o home office atinge principalmente setores economicamente estratégicos, que lidam com o trabalho imaterial e tecnológico ( Bridi; Braunert, 2015 BRIDI , M. ; BRAUNERT , M. “ O trabalho na indústria de software: a flexibilidade como padrão das formas de contratação .” CADERNO CRH , Salvador , v. 28 , n. 73 , p. 199 - 213 , jan./abr . 2015 . ). Aliada à popularização do home office , destaca-se ainda, mais especificamente, no caso brasileiro, os processos de desregulamentação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com a propagação das contratações CLT Flex, pessoa jurídica, terceirizado e autônomo, dentre outras modalidades. 3 3 Com o avanço da reforma trabalhista, anunciada na gestão Temer e aprofundada na gestão Bolsonaro, muitas dessas formas de contratação foram legalizadas formalmente. Essa discussão ganha espaço no livro, mas a partir de outra perspectiva, tendo por discussão fundamental quais seriam as potencialidades ou de que forma essas políticas prejudicariam ou não a organização do movimento trabalhista. Embora esses tipos de contratação se apresentem como uma novidade na divisão internacional do trabalho, elas tendem a reproduzir práticas de submissão ao trabalho advindas, principalmente, do Taylorismo e do Toyotismo ( Amorim, 2010 AMORIM , H . Valor-trabalho e trabalho imaterial nas ciências sociais contemporâneas . CADERNO CRH , Salvador , v. 23 , n. 58 , p. 191 - 202 , jan./abr . 2010 . )

Além de retirar a seguridade básica de direitos da classe trabalhadora com o discurso de que o trabalhador deve apresentar autonomia no mercado, esses tipos de contratação qualificam o trabalhador como sócio, colaborador ou empreendedor do capital. Ainda complementar a esse tipo de lógica, com o crescimento das startups 4 4 Uma startup é uma empresa com base tecnológica e que apresenta como finalidade desenvolver ou aprimorar um negócio de alta rentabilidade a baixo custo. O surgimento do termo teve origem na década de 1990, com forte inspiração em empresas tecnológicas do Vale do Silício nos EUA, e que se popularizou posteriormente para além dos polos tecnológicos estadunidenses. e das pequenas empresas, um dos principais efeitos desses processos é a fragmentação ideológica e organizativa da classe trabalhadora, indicando novos desafios para uma mobilização classista e a redução da ação sindical ( Druck; Franco, 2008 DRUCK , G. ; FRANCO , T. A Terceirização no Brasil: velho e novo fenômeno . Labor Real , [ s.l ], v. 4 , n. 2 , p. 83 - 94 , 2008 . ). Esses temas são tratados detidamente ao longo das entrevistas, sob o questionamento de como estaria constituída a classe trabalhadora atualmente.

Complementando essa reflexão contemporânea no tocante à constituição da classe trabalhadora, uma discussão também apresentada em algumas das entrevistas refere-se às diferenças encontradas entre os níveis de exploração da força de trabalho e de inserção regional relacionados à divisão sexual do trabalho ou, em outras palavras, à relação entre gênero e raça e à exploração da força de trabalho quanto às condições de remuneração salarial, de precarização do trabalho, de qualificação e de contratação. Nessa perspectiva, para além de um arcabouço de elementos teóricos de análise da sociologia do trabalho, um desafio apresentado ainda é o de unir essas relações sociais e perspectivas de classe com as teorias de gênero e de raça (Davis, [1981] 2016).

Tendo em consideração o período de realização das entrevistas (2009-2017), há ainda menções específicas importantes e que apresentam relação com o contexto ou com a conjuntura nas quais os entrevistados estavam inseridos. Como exemplo, podemos citar as entrevistas de Dominique Méda e de Michel Husson, que referenciam o debate sobre renda mínima na França, a partir da Reforma do RMI (Revenu Minimum d’Insertion), e sobre a crise do capitalismo e da socialdemocracia na Europa. Outro exemplo é apresentado pensando as novas frações emergentes de classes sociais, como os “cadres”, referenciado nas entrevistas de Daniel Bensaïd, Gérard Duménil e Jacques Bidet. “Encadrement”, expressão não traduzida na obra, faz referência aos assalariados superiores, responsáveis pela administração de empresas e órgãos do Estado. O conceito também se refere aos trabalhadores que têm por função o controle e o gerenciamento do trabalho, reproduzindo, em certa medida, relações de produção tipicamente capitalistas.

Nas entrevistas com pesquisadores brasileiros, por sua vez, a conjuntura e as consequências socioeconômicas da “Era Lula” são resgatadas concomitantemente ao debate da distribuição de renda e do pacto entre as classes sociais, questionando-se teoricamente a formação de frações de classes ou das classes médias no contexto brasileiro. Esses temas são tratados principalmente nas entrevistas de Francisco de Oliveira e Ricardo Antunes, mas também, indiretamente, nas entrevistas dos demais pesquisadores, resgatando, portanto, uma análise crítica relativa às lutas sociais emergentes nos demais países da América Latina na primeira década do século XXI.

Desse modo, o livro Trabalho (Imaterial), valor e classes sociais: diálogos com pesquisadores contemporâneos , organizado por Henrique Amorim, se constitui numa coletânea de entrevistas que apresenta um leque variado de leituras teórico-conjunturais distintas, com um fio condutor entre elas, e que expressam uma totalidade conceitual sobre os temas do trabalho imaterial, valor e classes sociais na contemporaneidade. Em função disso, sua leitura é fortemente recomendada para aspirantes ou pesquisadores mais experientes da área que almejam compreender profundamente a teoria marxista presente, tanto pela diversidade metodológica, quanto pela riqueza conceitual apresentada pelos entrevistados.

REFERÊNCIAS

  • AMORIM , H . ( Org .) Trabalho (Imaterial), valor e classes sociais: diálogos com pesquisadores contemporâneos . São Carlos : EdUFSCar , 2017 .
  • AMORIM , H . Valor-trabalho e trabalho imaterial nas ciências sociais contemporâneas . CADERNO CRH , Salvador , v. 23 , n. 58 , p. 191 - 202 , jan./abr . 2010 .
  • BRIDI , M. ; BRAUNERT , M. “ O trabalho na indústria de software: a flexibilidade como padrão das formas de contratação .” CADERNO CRH , Salvador , v. 28 , n. 73 , p. 199 - 213 , jan./abr . 2015 .
  • DAVIS , A . [ 1981 ]. Mulheres, raça e classe . São Paulo : Ed. Boitempo , 2016 .
  • DRUCK , G. ; FRANCO , T. A Terceirização no Brasil: velho e novo fenômeno . Labor Real , [ s.l ], v. 4 , n. 2 , p. 83 - 94 , 2008 .
  • GORZ , A . [ 2003 ]. O imaterial: conhecimento, valor e capital . São Paulo : Ed. Annablume , 2005 .
  • HARDT , M. ; NEGRI , A. [ 2000 ]. Império . São Paulo : Record , 2005 .
  • LAZZARATO , M. ; NEGRI , A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade . Rio de Janeiro : DP&A , 2001 .
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    O livro foi composto por 22 entrevistas no total, realizadas com os seguintes pesquisadores: Alain Bihr, André Tosel, Antoine Artous, Celso Frederico, Daniel Bensaïd, Dominique Meda, Franscisco de Oliveira, Franscisco Teixeira, Gérard Duménil, Helena Hirata, Jacques Bidet, Jean Lojkine, João Quartim de Moraes, John Weeks, Jorge Grespan, Leda Paulani, Marcos Del Roio, Michael Löwy, Michel Husson, Ricardo Antunes, Robert Castel e Sadi Dal Rosso.
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    Entre os teóricos que respondem afirmativamente a essa questão e que são citados no decorrer das obras, destaca-se Lazzarato e Negri (2001) LAZZARATO , M. ; NEGRI , A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade . Rio de Janeiro : DP&A , 2001 . , Hardt e Negri ([2000] 2005) e Gorz ([2003] 2005).
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    Com o avanço da reforma trabalhista, anunciada na gestão Temer e aprofundada na gestão Bolsonaro, muitas dessas formas de contratação foram legalizadas formalmente. Essa discussão ganha espaço no livro, mas a partir de outra perspectiva, tendo por discussão fundamental quais seriam as potencialidades ou de que forma essas políticas prejudicariam ou não a organização do movimento trabalhista.
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    Uma startup é uma empresa com base tecnológica e que apresenta como finalidade desenvolver ou aprimorar um negócio de alta rentabilidade a baixo custo. O surgimento do termo teve origem na década de 1990, com forte inspiração em empresas tecnológicas do Vale do Silício nos EUA, e que se popularizou posteriormente para além dos polos tecnológicos estadunidenses.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2019
  • Aceito
    26 Ago 2019
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