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AS CONFISSÕES DA CARNE: o trabalho póstumo de Foucault

FOUCAULT, M.. Les aveux de la chair. 2018. Gallimard, Paris

Em 1976, Foucault lança a primeira versão de seu projeto de escrever a História da sexualidade , inicialmente prevista para seis volumes. Ele questionava o porquê de a sociedade atual se concentrar em tantas relações em torno da sexualidade, razão para conceber esse projeto, que daria continuidade ao da história da loucura e do sistema carcerário (Cf. Foucault, 1977FOUCAULT, M. Michel Foucault dans l’émission «Les après-midi de France Culture» le 11/01/1977 . Entrevista concedida a Paula Jacques. 1977. Disponível em: https://www.franceculture.fr/philosophie/michel-foucault-propos-de-son-livre-histoire-de-la-sexualite-tome-1 . Acesso em: 29 mar. 2018.
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). Três livros foram publicados: A vontade de saber (1976), Uso dos prazeres (1984) e O Cuidado de Si (1984). Em 2018, 35 anos após sua morte, um quarto livro da História da sexualidade foi publicado: Les aveux de la chair . O autor havia pedido para não lançarem nenhum livro póstumo, mas, quando a obra é maior que o homem, a sociedade se vê no direito da posse intelectual, explica Henri-Paul Fruchaud 1 1 Henri-Paul Fruchaud é sobrinho de Foucault e está envolvido na publicação de sua obra póstuma. Em uma entrevista não publicada, ele fala em nome da família, que detém os direitos autorais das obras do autor: “Imaginem se a viúva de Mahler tivesse seguido seu pedido e queimado sua obra-prima, a 10ª sinfonia? (2018).

Sem entrar no mérito da discussão que não nos cabe sobre os direitos do autor, discutiremos brevemente, nesta resenha, as linhas gerais desse livro, publicado recentemente e que já propicia debate nos corredores acadêmicos.

O projeto História da sexualidade trataria dos séculos XVI e XVII, assim como História da Loucura (1961), As palavras e as coisas (1966) e O nascimento da clínica (1963). O senso comum é o de que o século XV seria considerado o ponto de partida da doutrina cristã. Mas Foucault refusa essa ideia e faz um retorno a marcos mais distantes da história (séculos II, III e IV) como primórdios das bases da interdição da sexualidade. É esse retorno no tempo, à doutrina grega e cristã, de que trata Les aveux de la chair , uma temporalidade que não é a usual do autor, mas que vai ao encontro de outras reflexões próprias de sua teoria. É o caso dos seminários em Nova York (1980), 2 2 Seminários na New York University, que continuam sem publicação. que já apresentam as linhas gerais inéditas do livro, mas ainda não tão extensas ou profundas quanto na publicação (entrevista com Frédéric Gros, 2018 3 3 Frédéric Gros é um filósofo francês especialista em Foucault. Também esteve presente na entrevista (não publicada) de lançamento do livro em Paris. ). Também, já existem esboços dessa teoria do quarto volume da História da sexualidade , no livro Os anormais (1974-1975).

Além de suas bases e influências, o manuscrito do livro já existia. Assim, o texto estava completo, e sabe-se que Foucault estava trabalhando na revisão com vistas à publicação. Infelizmente, a terceira parte do livro ele não corrigiu. Foucault não mudaria a arquitetura geral do texto, afirma Frédéric Gros (entrevista, 2018); ele completaria, sem dúvida, algumas passagens. O livro é um retorno à governamentalidade pastoral, o que permitiu a Foucault fazer um estudo sobre o governo. Porém Les aveux de la chair não constitui uma continuidade da teoria do governo: é um texto centrado no sujeito.

A doutrina do cristianismo e suas relações com a sexualidade é o grande tema, dividido em três partes: a formação de uma experiência nova (criação, procriação, batismo, penitência e a arte de dirigir a consciência); ser virgem (virgindade, continência, a arte da virgindade e sua relação com a consciência de si mesmo); ser casado (o dever dos casais, o bem e o mal do casamento e a libidinização do sexo). A grande novidade é que o filósofo se recusa a afirmar que a censura sexual teve início no cristianismo. As interdições sexuais datam de uma moral antiga, e os cristãos vão repeti-la e transformá-la. Seria, assim, a filosofia pagã de base que iniciaria a censura; o que muda é o formato. Partindo da análise de textos de Clément d’Alexandrie, ele explica a “arte de viver cristãmente” conforme citado por Foucault (2018), cujos ensinamentos são oriundos de Deus e aplicados no quotidiano do sujeito. A união legítima entre duas pessoas deve ser seguida pelo desejo de procriação e, dessa forma, o casamento é uma racionalidade (em oposição ao prazer) cuja finalidade única é a de reprodução. Essa noção ou definição da conduta social das uniões não é exclusiva nem originária do cristianismo, mas Clément acentua essa distinção clara entre prazer e procriação no que tange à finalidade do casamento. A criação do homem é uma manifestação divina, uma forma de sinergia com o criador, e o excesso (adultério e toda relação fora do casamento) seriam formas de transviar essa relação divina. A moderação é uma questão-chave: o homem cristão deve ser mestre de seus desejos e não deve se entregar às impulsões do corpo, assegurando o respeito e o pudor.

É um constante exercício sobre si mesmo e uma purificação de si que encaminham à salvação, uma forma de experiência que resulta no problema da carne. Parodiando o autor, a “carne” é uma forma de experiência, uma forma de conhecimento de si mesmo, da transformação de si em prol da anulação do mal, buscando a manifestação da verdade suprema. Assim, se o cristianismo não inventou a restrição sexual, ele orquestrou, por meio da disciplina dos monastérios, a constituição do código sexual em torno do casamento e da procriação.

Uma das formas de purificação é o batizado, embora ele não seja suficiente para a salvação. Ele está diretamente ligado, através da relação entre a remissão dos pecados e a verdade, à penitência que, por sua vez, é uma manifestação de si. Foucault parte de textos de Tertullien para explicar que a grande ressalva é o medo que a humanidade deve ter em relação a si mesma, ou seja, de sua própria fraqueza de espírito. Como combatê-la? Através da disciplina da penitência. A forma de autentificar essa disciplina é a confissão. Falar a verdade face a Deus (então, face a seus intermediários: os servidores da igreja) é a forma essencial para a purificação, para uma economia de salvação da alma. O lamento e o arrependimento devem ser compartilhados, pois é dessa forma que o perdão pode se operar. São as confissões sinceras que mudam, nos séculos III e IV, as sentenças dos condenados, e Cristo ocupa o papel de advogado em prol dos arrependidos. Essa filosofia se transformará em arte, em uma técnica de dirigir consciências. No texto ecoam os cursos dos anos 80 no Collège de France (O governo dos vivos, 1979-1980).

A estrutura monástica, no ocidente, se organiza em torno da verbalização da verdade: qualquer fantasia que atravessa a mente deve ser analisada para se descobrir sua origem. É uma duplicação da cena interior conduzida ao exterior que contribui para o exercício da obediência. Atravessar a sexualidade para se encontrar é a chave da construção da subjetividade moderna. Esse exercício foi feito pelo cristianismo com o intuito de governar o sujeito. A própria prece do Credo se torna metáfora para afirmação dos dogmas aos quais o sujeito adere: renúncia da vontade, da consciência e da verdade de si mesmo.

A segunda parte do livro é consagrada ao conceito de virgindade. A renúncia voluntária da sexualidade é vista como continência a ser buscada. A abstenção não tange somente aos atos, mas também – e essa é a grande engenhosidade do cristianismo – ao pensamento. A valorização da virgindade é paralela à santificação do sujeito. Cipriano explica que a virgindade está ligada à purificação do batizado pois a extinção dos desejos da carne conserva intacta a purificação recebida no contato com a água benta. Ela deve ser praticada como um elo positivo com Deus, e não somente como simples abstenção da carne e do mal. Resumindo: a virgindade deve ser incorruptível, pois, assim, a felicidade seria eterna e a verdade se tornaria suprema. Sob a iluminação divina, a virgindade se liga, desse modo, à imortalidade, pois ela salva a alma, preparando-a para o aniquilamento do julgamento final. É um trabalho espiritual, uma escola de “livre arbítrio” pela qual o século IV redigirá tratados e métodos louvando a coragem, a independência e o sacrifício (em oposição à felicidade estável do casamento). A virgindade, como escolha, ultrapassa a simples ideia de abstinência e de diferenças sexuais: seria uma unidade que se aproxima do divino, desprovida de gênero sexual. Ser virgem transforma, assim, o indivíduo em um ser angelical, o que, em uma economia temporal, atinge outros patamares da existência na terra e no céu. A virgem é a esposa de Deus, prometida a Cristo, como descreve Gregório de Nysse segundo a obra de Foucault (2018). A sexualidade é, dessa forma, colocada no centro do sujeito, particularmente quando o indivíduo se indaga sobre a virgindade.

Nota-se, nessas linhas do livro, a presença do artigo Le combat de la chasteté (1982), no qual figuram os temas da virgindade, da masturbação e da fornicação. A virgindade é um combate que pressupõe uma relação do indivíduo consigo mesmo interrogando permanentemente, suas ideias pessoais: a busca da alma pura passa pela constante vigilância. A fornicação e a gula são elementos-chave a serem suprimidos (assim como o orgulho e os outros pecados capitais), porém a luxúria adquire um valor de causalidade mais direta na fórmula, pois imagens, memórias e desejos do espírito são proscritos, assim como os atos do corpo.

A terceira e última parte do livro resulta da análise dos escritos de Agostinho. É o grande momento de virtuosidade da história da sexualidade, pois é Santo Agostinho quem vai formatar as relações culturais atuais sobre desejo, libido e interdições. Ele vai responder à questão central da vida dos jovens casados: o ato e a consciência do sexo com seu parceiro e sua finalidade.

As exigências morais tornaram-se universais, e a célula familiar é criada no final do século IV. Adão e Eva são frutos da mesma substância, que é recordada a cada procriação: a virgindade é a vida angélica (mais cobiçada), porém o casamento é elevado à união entre a igreja e seu salvador. O autor enumera uma série de princípios a serem obedecidos no casamento. A singularidade dessa nova época é que a procriação não é a única virtude e objetivo do casamento: o controle do desejo e da luxúria dos casais repousa na base da vida a dois. Foucault é claro no anúncio normativo: o casamento tem o objetivo de impedir a fornicação, o sexo sem controle e preservar a moral e a continência. Ele é, essencialmente, um limite, uma economia social da concupiscência. O casamento converte-se em lei obrigatória. Além da normatização, ele é judicial: os casais têm uma dívida sexual entre si a pagar. O acesso ao corpo do outro é um dos direitos e deveres do casamento, exatamente para que se controle o sexo libertino, característico da humanidade depois da queda. Assegura-se, com o casamento, o limite e da virtuosidade do outro. É uma simetria entre a vida monástica e a vida marital.

Foucault se confronta com o poder teórico do discurso de Agostinho, que tenta provar a presença da sexualidade no paraíso. Segundo Foucault, esse é o ponto que explica a formatação da sexualidade ocidental. A libido é o excesso que se adiciona depois da queda: o ato sexual é preenchido pela vontade. Mas essa vontade escapa ao controle no momento do orgasmo. Dessa forma, a humanidade é fruto de um ato libidinal. A sexualidade é uma desobediência em si, porque o ser humano desobedeceu a Deus no paraíso. Um ponto crucial, nessa análise, é que o sexo se metamorfoseia em luxúria após a queda, ou seja, ele está ligado à condição de mortalidade do homem. Destarte, o sexo se configura no desejo, na queda, na morte e na procriação, quer seja analogicamente, por consequência, ou por meio de um desses elementos. O ser humano é, por natureza, social (natureza divina pois Deus criou os dois gêneros), e o casamento é altamente desejado: ele é a ligação com o outro, ele produz membros para a sociedade e prolonga essa ligação, ele determina as relações sociais. O sacramento, a fidelidade e as crianças são os bens do casamento, os quais, por sua vez, transmutam a parte libidinal e excessiva do sexo e do desejo em moderação (leia-se moderação da libido).

Entender a castidade do casal que vive sua sexualidade no casamento, delatar a obrigação da verdade presente no governo pastoral e elaborar a teoria da economia da concupiscência é o grande legado de Foucault, quer ele tenha terminado o texto por mãos próprias ou não. Nesse sentido, para pesquisadores fiéis que admiram Foucault ou mesmo para o leitor ávido de análises sobre a sexualidade e sua evolução na sociedade ocidental, o livro não deixa a desejar. Como sempre, o filósofo é didático, um pesquisador minucioso e que nos demonstra, com uma bibliografia extensa, uma disciplina metodológica rigorosa. Os temas prioritários de sua pesquisa ainda se encontram aqui presentes: o saber, o poder (a governamentalidade) e o sujeito.

REFERÊNCIAS

  • FOUCAULT, M. Histoire de la folie à l’âge classique . Paris: Gallimard, 1961 .
  • FOUCAULT, M. Naissance de la clinique . Paris: Gallimard, 1963 .
  • FOUCAULT, M. Les mots et les choses . Paris: Gallimard, 1966 .
  • FOUCAULT, M. Michel Foucault dans l’émission «Les après-midi de France Culture» le 11/01/1977 . Entrevista concedida a Paula Jacques. 1977. Disponível em: https://www.franceculture.fr/philosophie/michel-foucault-propos-de-son-livre-histoire-de-la-sexualite-tome-1 . Acesso em: 29 mar. 2018.
    » https://www.franceculture.fr/philosophie/michel-foucault-propos-de-son-livre-histoire-de-la-sexualite-tome-1
  • FOUCAULT , M . Le combat de la chasteté . Communications: sexualités occidentales. Contribution à l’histoire et à la sociologie de la sexualité, v. 35 , p. 15 - 25 , 1982 .
  • FOUCAULT, M. Les anormaux: cours au Collège de France (1974-1975) . Paris: Gallimard, 1999 .
  • FOUCAULT, M. Du gouvernement des vivants : cours au college de france (1979-1980) . Paris: Gallimard: Seuil, 2012 .
  • 1
    Henri-Paul Fruchaud é sobrinho de Foucault e está envolvido na publicação de sua obra póstuma. Em uma entrevista não publicada, ele fala em nome da família, que detém os direitos autorais das obras do autor: “Imaginem se a viúva de Mahler tivesse seguido seu pedido e queimado sua obra-prima, a 10ª sinfonia?
  • 2
    Seminários na New York University, que continuam sem publicação.
  • 3
    Frédéric Gros é um filósofo francês especialista em Foucault. Também esteve presente na entrevista (não publicada) de lançamento do livro em Paris.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2018
  • Aceito
    26 Ago 2019
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