Acessibilidade / Reportar erro

O EMERGIR DA MÚSICA POPULAR E SUAS INTERFACES COM A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA

THE EMERGENCE OF POPULAR MUSIC AND ITS INTERFACES WITH THE PHONOGRAPHIC INDUSTRY

L’EMERGENCE DE LA MUSIQUE POPULAIRE ET SES INTERFACES AVEC L’INDUSTRIE PHONOGRAPHIQUE

Resumos

O presente artigo tem como objetivo central compreender os processos de interferência da indústria fonográfica sobre a música popular. Diante da expansão da lógica formal capitalista no campo da arte, a relação entre objetividade e subjetividade será a mola propulsora que utilizaremos para analisar paradoxos no processo de reprodução da música popular moderna, tais como indústria cultural e a reprodutibilidade técnica. Assim, partindo da análise do reggae jamaicano, buscamos ampliar o postulado adorniano sobre massificação da música para uma análise na qual seja possível investigar a experiência de produção artística periférica, como a da música popular jamaicana. Essa problemática abriu espaço para a discussão acerca da possibilidade de a indústria fonográfica ter múltiplas formas de atuação, a partir das contingências geradas pela singularidade do funcionamento desigual das condições econômicas, políticas e culturais de cada região, não perdendo de vista que as configurações locais são partes integrantes do modo de produção capitalista.

Música popular; Reggae jamaicano; Indústria fonográfica; Estética


This article is about popular music, focusing in the relations built by music in face of capitalism’s expansion in the arts’ field. For this instance, the relations between objectivity and subjectivity will be the plot from where we will analyze the paradoxes in the process of modern popular music reproduction, such as: culture industry and the work of art in the age of its technological reproduction. So, starting from the Jamaican reggae, we seek to wise Adorno’s perspective about music investigation to an analysis where is possible to investigate the outlying artistic production, as the popular music that rises in Jamaica. This argument opened space to a discussion about the possibility of the phonographic industry have multiple actuation forms developed from its contingencies that are created by the singularities of its unequal way of work in face of different economic, political and cultural circumstances, keeping in sight that local realities are integrated to the capitalism mode of production.

Popular music; Jamaican reggae; Culture industry; Phonographic industry; Aesthetics


Le sujet de cet article c’est la musique populaire. On prend la question des rapports entre la musique et la logique de l’expansion capitaliste au domaine de l’art. Pour cela, la relation entre l’objectivité et la subjectivité c’est la force motrice de notre analyse sur les paradoxes du procès de reproduction de la musique populaire moderne, tels que : l’industrie culturelle et la reproductibilité technique. On part de la musique jamaïcaine pour faire la critique au postulat adornien de la négativité appliqué à la musique erudite, en visant comprendre avec lui, aussi, la musique populaire, particulièrement la musique pop des régions périphériques du monde. Cette voie des discussions nous ouvre des multiples possibilités des investigations sur l’industrie phonographique, issues des contingences générées par la singularité du fonctionnement inégal des conditions économiques, politiques et culturelles de chaque région, sans oublier que les configurations locales font partie intégrante de mode de production capitaliste.

Musique populaire; Reggae jamaïcain; Industrie culturelle; Esthétique


INTRODUÇÃO

O exercício de reflexão sobre as mais diversas facetas que compõem a música popular em parte das periferias do mundo moderno nos traz, como condição sine qua non, a necessidade de mergulhar nas relações constitutivas tanto dos aspectos estéticos de formação da canção quanto de sua interrelação com a expansão da sociedade capitalista e sua consequente emergência na indústria do entretenimento.

O presente artigo tem por objetivo compreender como a música popular e a indústria fonográfica se relacionam na constituição de gêneros musicais periféricos. Nesse sentido, partiremos da análise da produção do reggae jamaicano como estilo que emerge numa periferia, buscando mapear os desdobramentos dos processos criativos musicais desse gênero, diante dos interesses econômicos e ideológicos da indústria do entretenimento nesse cenário outsider. Ademais, compreender essa relação implica investigar o paradoxo intrínseco à mercantilização da música popular, ora adaptando-se a indústria e instrumentalizando sua estética, ora mantendo seu modo de resistência, tanto em sua forma, quanto em seu conteúdo estético. Buscando alcançar esse objetivo, utilizaremos a análise biográfica das trajetórias de expoentes do reggae jamaicano, a exemplo de Bob Marley, Rita Marley, Jimmy Cliff e Peter Tosh.

Dentre os fatores que influenciaram a concepção de música que se expressa na contemporaneidade, o fenômeno da indústria cultural e suas consequências são fundamentais para se compreender como as imposições da reprodução capitalista agiram sobre o modo de fazer arte, no caso específico, compor música popular. Na base desse fenômeno está o processo da modernidade fomentada pelos arroubos estruturais da sociedade de classe capitalista, mas também as condições diversas e desiguais, que, em parte, decorrem desses arroubos que permeiam os processos criativos.

Para alcançar o objetivo proposto, num primeiro momento, retomaremos as formulações críticas da indústria cultural realizadas por Theodor Adorno (1989ADORNO, T. “Der Widerstand gegen die Neue Musik”. In: STOCKHAUSEN, K. Texte zur Musik 1977-1984. Köln: Verlag M. DuMont Schauberg, 1989. p. 458-483. v. 6. Entrevista entre Theodor W. Adorno e Karlheinz Stockhausen na rádio Hessischer Rundfunk, em 22 de abril de 1960., 1996ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., 2002ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p.), buscando compreender os limites e as contribuições da indústria do entretenimento para o processo de constituição da música popular. Dando prosseguimento, nos reportaremos às análises estéticas de Walter Benjamin (1975)BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: LOPARIC, Z.; FIORI, O. (Org.). Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975. p. 09-35., Paul Gilroy (2001)GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2001. 432 p., Marco Napolitano (2002)NAPOLITANO, M. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 120 p. e Renato Ortiz (2008)ORTIZ, R. Prefácio. In: DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 11-14. para estabelecer uma relativização dos processos de interferência da indústria fonográfica sobre a música popular. Por último, traçaremos algumas características de composição do reggae como música popular que emergiu de uma periferia econômica – a Jamaica –, apontando nuances e contribuições para compreender suas formações estéticas num contexto díspar das formulações clássicas acerca da indústria fonográfica.

CONTRIBUIÇÕES E LIMITES DA PROPOSTA ADORNIANA PARA A ANÁLISE DA INDÚSTRIA CULTURAL

A modernidade, formada pela explosão de fenômenos guiados pela nova lógica produtiva da indústria capitalista, vê-se impulsionada pelo salto do crescimento demográfico, que empurra cada vez mais habitantes para os centros de funcionamento da nova ordem social: as cidades modernas. Os habitantes afluem a esses espaços sedentos por transformações e melhorias sociais, destacando-se, dentre elas, as do entretenimento, que passam a apresentar novas formas. Com as cidades modernas também se erguem condições extremamente díspares de acesso às suas riquezas. Além do mais, o capitalismo moderno também está sustentando em uma relação desigual, cujo desenvolvimento está atrelado à relação entre centros e periferias.

Para Adorno (1989)ADORNO, T. “Der Widerstand gegen die Neue Musik”. In: STOCKHAUSEN, K. Texte zur Musik 1977-1984. Köln: Verlag M. DuMont Schauberg, 1989. p. 458-483. v. 6. Entrevista entre Theodor W. Adorno e Karlheinz Stockhausen na rádio Hessischer Rundfunk, em 22 de abril de 1960., no que tange à estética, o avanço do capitalismo teria impacto significativo sobre a arte, pois, através dele, ocorreria a fetichização da obra de arte, gerada pela apropriação das expressões artísticas pela indústria cultural, transformando o seu valor de uso em mero valor de troca e criando uma etapa de consciência artística nas massas caracterizada pela negação e rejeição do prazer de forma plena.

Entendemos que a relação entre o valor de uso e o valor de troca aparece de modo paradoxal nos postulados do autor, pois como Karl Marx (1984)MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 297 p. (Coleções os economistas, v. 1). bem definiu em O Capital, os dois são formas do próprio valor; logo, no caso da mercadoria, são indissociáveis. No entanto, consideramos correta a percepção de Adorno (2002)ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p. quanto à contínua apropriação da arte pelo capital, transferindo-a, assim, para o circuito da mercadoria. Desse modo, sua medida não poderia mais ser simplesmente o deleite do público aficionado pela arte como em momentos históricos anteriores. Esse fenômeno é exemplificado por Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores). em sua análise a partir da decadência do gosto musical na sociedade moderna. Nessa acepção, a música, nesse contexto, é submetida, de forma geral, à condição de mercadoria. Assim, segundo Adorno (1989)ADORNO, T. “Der Widerstand gegen die Neue Musik”. In: STOCKHAUSEN, K. Texte zur Musik 1977-1984. Köln: Verlag M. DuMont Schauberg, 1989. p. 458-483. v. 6. Entrevista entre Theodor W. Adorno e Karlheinz Stockhausen na rádio Hessischer Rundfunk, em 22 de abril de 1960., a música reduz seu caráter geral, recaindo sobre possibilidades receptivas de um grupo restrito de especialistas:

[...] o ideal musical é [...] escrever para todos e para ninguém, ou seja, dever-se-ia escrever música como se ela fosse escrita para si mesmo e por si só, mas ao mesmo tempo não se contentar com o fato de que ela seja então, de novo, ouvida apenas por um círculo de especialistas (Adorno, 1989ADORNO, T. “Der Widerstand gegen die Neue Musik”. In: STOCKHAUSEN, K. Texte zur Musik 1977-1984. Köln: Verlag M. DuMont Schauberg, 1989. p. 458-483. v. 6. Entrevista entre Theodor W. Adorno e Karlheinz Stockhausen na rádio Hessischer Rundfunk, em 22 de abril de 1960., p. 462).

Nesse sentido, na sociedade moderna, a problemática da criação artística estaria relacionada à produção em massa realizada pela indústria cultural, que imporia a instrumentalização e a padronização da obra, tirando a autonomia da arte. São empregados milhões de dólares nessas indústrias para que se possam inventar métodos de reprodução capazes de criar e difundir gostos padronizados, de forma massiva. Decerto que a indústria cultural, ao visar à produção em série e à homogeneização, emprega técnicas de reprodução que sacrificam a distinção entre o caráter da própria obra musical e do sistema social do qual ela emerge. Todavia, se a técnica passa a exercer intenso poder sobre a sociedade, tal como ocorre para Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., isso advém do fato de que as circunstâncias que favorecem tal relação são arquitetadas pelo poder dos que são economicamente mais fortes na sociedade.

Segundo Adorno (2002)ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p., a indústria cultural, ao almejar a integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo trazendo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno para ditar o conteúdo e a forma das obras de arte (ver Adorno, 2002ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p.). Em seu ensaio sobre o fetichismo da música, o autor vai ainda mais longe, ao observar uma espécie de controle sobre a capacidade de escolha (gosto estético) do indivíduo realizada pela indústria cultural:

O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida (Adorno, 1996ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., p. 66).

Nessa mesma perspectiva, o autor questiona a capacidade de entretenimento desse tipo de música

Ao invés de entreter, parece que tal música contribuiu ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço, pela docilidade de escravos sem exigência (Adorno, 1996ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., p. 67).

Remontando à origem da música e à luta pela autonomia que isso implicou durante o desenvolvimento da grande música erudita, no equilíbrio musical entre prazer parcial e totalidade, entre expressão e síntese, entre o superficial e o profundo, Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores). acusa o capital de substituir esse equilíbrio pela relação entre a oferta e procura. A audição musical é substituída por variedades musicais que impõem ao ouvinte a obrigação de ouvir, tornando-o passivo. Ao lado disso, o autor aponta para o fascínio que a canção enfeitada pela indústria fonográfica desperta sobre as pessoas e para a banalização do que é melodioso (Adorno, 1996ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores).). Importante é acentuar que, para ele, isso atinge toda a música, tanto a ligeira1 1 Segundo as formulações de Theodor W. Adorno (1996), a música ligeira corresponderia às composições produzidas com o objetivo de entreter os ouvintes. Tal estilo teria entrado em decadência com o avanço dos interesses econômicos sobre as obras, o que implicou a massificação delas. Para o autor, os vários gêneros da música popular são considerados músicas ligeiras. quanto a séria.2 2 Para Theodor W. Adorno (1996), a música séria, ou clássica, corresponde aos estilos em que suas composições estão relacionadas à elevação de sua forma e de seu conteúdo criativos. A consubstancialização desse fazer estético elevado confere um sentido concreto a partir da totalidade de seu desenvolvimento. Algumas características da execução da música, com vistas à adequação à indústria cultural, são assinaladas: a valorização excessiva da voz (aqui o autor se refere ao período em que as vozes mais potentes eram consideradas como superiores às vozes modestas) e a fetichização dos próprios instrumentos, ambos subordinados às leis do sucesso e admirados por um valor que lhes é externo. Em suma, para Adorno (2002)ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p., a música, a partir desse momento, passa a ser dominada pela lógica de funcionamento do mercado capitalista, eliminando os seus últimos resíduos pré-capitalistas.

Corroborando as formulações de Adorno (1996ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., 2002ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p.), Flo Menezes (2011)MENEZES, F. Apresentação à edição brasileira Adorno e os paradoxos da música radical. In: ADORNO, T. W. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011. p. 13-44. argumenta que a produção musical, na sociedade moderna, tem por característica o fato de que a forma das elaborações se encontra deslocada das necessidades reais dos sujeitos, fazendo com que tais produtos se constituam, de modo meramente protocolar, condizentes com as necessidades triviais do consumo de massa. Nesse sentido, a nova produção cultural atuaria na superestrutura social, mediada pelos interesses de expansão e acúmulo capitalista, tendo como função o entretenimento dos sujeitos sociais e limitando sua capacidade de refletir criticamente. Dessa maneira, a indústria cultural empobreceria o conteúdo estético da música, interferindo na forma e no conteúdo das composições para que elas ficassem submetidas à lógica do mercado, do consumo e do gosto. Sendo assim, o autor acentua um argumento já desenvolvido por Adorno (2011ADORNO, T. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011. 419 p., p. 9) de que:

[...] o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação, é o caráter repressivo da sociedade que se autoaliena.

Ademais, o próprio gosto é posto em dúvida por Adorno (2011)ADORNO, T. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011. 419 p., pois não existiria espaço para escolha: a individualidade e a liberdade do gosto seriam substituídas por padrões musicais oferecidos a todos indistintamente, amoldando modas musicais:

Se perguntarmos a alguém se ‘gosta’ de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiríamos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real. Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente reconhecê-lo (Adorno, 2011ADORNO, T. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011. 419 p., p. 66).

Assim, Adorno (2002)ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p. atenta para a eficácia mercadológica da música e das imposições que são construídas a partir da indústria cultural. De certo modo, o autor constata a corrente de massas que impõe determinados padrões de consumo musical, mas, ao contestá-lo, ele busca uma autenticidade da arte no passado “procurada e cultivada em virtude do seu próprio valor intrínseco, [que] já não tem valor para a apreciação musical de hoje” (Adorno, 2011ADORNO, T. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011. 419 p., p. 66). Como pesquisadores, parece-nos inadequado tomar a busca da arte por autenticidade e autonomia como um valor absoluto, o autor alemão em sua crítica à música comercial, pois, em todas as épocas, os valores externos às músicas, impostos por motivos religiosos ou políticos por parte de grupos e classes dominantes, influenciaram a criação artística e configuraram correntes diletantes vinculadas a certos interesses (Adorno, 1996ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores).). Logo, se é fato que tal tendência de atuar sobre a criação musical adquire uma padronização, também devemos considerar que a pré-fabricação de sucessos, a partir de determinações de ordem administrativa, não elimina as possibilidades de criação na contracorrente da indústria cultural. O que o autor só admite, de modo limitado, para a música nova, substancializada na negatividade das composições dodecafônicas. Para Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., mais grave ainda seria a contribuição da música popular, que se originou da música de entretenimento, na ampliação da incomunicabilidade entre os indivíduos,

[...] ao invés de entreter, parece que a música [popular] contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, através da morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço, pela docilidade de escravos sem exigências. [...] Se ninguém mais é capaz de falar realmente, ninguém mais é capaz de ouvir (Adorno, 1996ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., p. 67).

Seguindo esta perspectiva de a música contemporânea contribuir para a alienação, o autor sentencia a música ligeira à superficialidade, ao conquistar o indivíduo por elementos atrativos e mágicos, desobrigando-o da reflexão sobre o todo da própria música (Adorno, 1996ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores).). Seríamos, assim, prisioneiros dos momentos parciais, coisificados, conformados à produção do sucesso. A junção da música ligeira e da música séria, que alcançou sua expressão na Flauta Mágica de Mozart, já não seria mais possível em nossa época. O autor conjura o prazer imediato da arte nos nossos tempos, na medida em que ele estaria restrito à dimensão sensível e corporal, não mais remetendo ao espírito. Por isso, ele aponta para a necessidade de uma nova consciência musical.

Novamente temos um diagnóstico que aponta para a superficialidade do deleite cultivado pela música na indústria cultural. Contudo esse diagnóstico representa uma oposição anacrônica, que exige um comportamento ascético, crítico e contrário ao prazer sensível e corporal como caminho para a recuperação da totalidade expressiva da arte. O intelecto é posto no lugar dos sentidos, o que poderia ocorrer se, de fato, seguíssemos essa indicação – a de tornar o ato da escuta um puro exercício da racionalidade científica. Por outro lado, se nos colocarmos em uma perspectiva sociológica mais flexível, talvez nos pareça mais adequado compreender o insulamento, ou não, da sensibilidade para a apreensão do todo, a partir do modo como os sujeitos vivem as condições nas quais estão inseridos.

Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., por sua vez, ao tratar da música popular, a considera somente a partir do desenvolvimento técnico e industrial da sociedade capitalista, circunscrevendo a esse estilo musical a análise do isolamento dos ouvintes e apreciadores da música “séria”. Tal estilo seria produto da própria expansão do campo produtor, divulgador e apreciador, além de indicar que ela seria parte do processo de “decadência do gosto” musical dos ouvintes que, a priori, têm maior identificação com um tipo de música sobre a qual não necessitam realizar um processo reflexivo para o seu entretenimento. Para Adorno (2002)ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p., a criatividade se torna uma dimensão dissolvida diante dos mecanismos de estandardização empregados na produção musical pela indústria fonográfica. A criatividade só se torna possível na medida em que o artista produza uma estética negativa que promova uma ruptura com o padrão estético adotado pela indústria do entretenimento. Dessa forma, Adorno (1982)ADORNO, T. Philosophie de la nouvelle musique. Paris: Gallimard, 1982. 244 p. sugere uma subversão dos princípios dialéticos hegelianos e indica como único caminho a ruptura.

A música popular, especificamente, para o autor, estaria aprisionada nesse contexto de manipulação, uma vez que, seguindo o fluxo da massificação industrial, constitui uma estética que expõe a seus ouvintes estruturas subjetivas estereotipadas, pré-existentes, de forma a facilitar sua aceitação. Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., em seu olhar sobre a música popular, tem como seu principal recorte empírico de análise a ascensão do jazz, que, para ele, seguia as mesmas condições de estandardização dos demais estilos da música ligeira moderna. Um dos aspectos estéticos analisados pela formulação do autor sobre o jazz foi sua forma e seu conteúdo experimentais, alimentados pelo ímpeto de improvisação sonora. Para Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., os processos de improvisação estavam também alinhados à lógica formal de uma estética padronizada.

[...] as chamadas improvisações nada mais são que paráfrases de fórmulas básicas, sob as quais o esquema, embora encoberto, aparece a todo instante. Até mesmo as improvisações são em certo grau normatizadas, e sempre voltam a se repetir. [...] Diante das enormes possibilidades de invenção e tratamento do material musical – até mesmo, quando absolutamente necessário, na esfera do entretenimento –, o jazz apresenta-se em um estado de completa indigência. O que ele utiliza das técnicas musicais disponíveis é inteiramente arbitrário (Adorno, 2001ADORNO, T. “Moda intemporal: sobre o jazz”. In: ADORNO, T. Primas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ed. Ática, 2001. p. 117-130., p. 119).

A perspectiva de avançar no exame dos elementos da sonoridade do autor a partir da música popular que emerge das periferias, mais especificamente do reggae jamaicano, em sua expressividade moderna, surge como possibilidade de lançarmos um novo olhar sobre essas obras. Trata-se de buscar esclarecer o potencial estético dessas produções e sua enorme capacidade criativa e de rompimento com a perspectiva de razão instrumental que domina a estética artística, sendo capazes de propiciar novas alternativas que podem levar à ruptura com a ideologia e surgindo como uma nova possibilidade para restabelecer o caráter emancipatório da música moderna. Enfim, se o autor nos dá pistas e hipóteses para apreender o significado da música no nosso tempo, elas não podem ser tomadas como explicações definitivas, e sim como pontos de partida para uma crítica e uma investigação.

Nesse sentido, propomo-nos a entender a música popular emergente das periferias a partir de um olhar crítico a respeito das contribuições adornianas. Buscamos seguir o mesmo caminho proposto por Napolitano (2002)NAPOLITANO, M. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 120 p., que sugere uma leitura de Adorno sob uma perspectiva que não tenha a pretensão de “rever” seus conceitos, ou avaliar sua eficácia teórica e analítica, mas utilizar suas formulações como mobilizadores de problematizações para os processos sociais e políticos que circunscrevem as produções estéticas das canções populares periféricas. Esse olhar crítico sobre as formulações adornianas não significa a eliminação dos postulados do autor acerca da música moderna, mas a aplicação de um olhar mais amplo sobre a estética da música popular, principalmente aquela que se substancializa fora dos centros econômicos. Tal olhar pode ir além dos pressupostos racionais iluministas e promover uma relativização dos pressupostos unilaterais de determinação da indústria fonográfica sobre a música. Abre-se espaço para a compreensão da agência dos sujeitos históricos na produção da música popular moderna.

Mesmo não adotando tal linha de reflexão, não se pode limitar a música popular a uma arte populista, que se materializa por força do consumo de massa, o que pode nos levar a acreditar que o simples fato de pôr o povo como objeto de representação artística, transcrevendo uma relação epidérmica entre ele e a música de forma superficial, traria o real significado estético de tais canções. É evidente ser um equívoco não atentar para o fato de que a música popular, nos séculos XX e XXI, se destaca pela expressão artística com maior disseminação e penetração nas diversas camadas sociais. Como bem cultural de consumo, ela se desenvolve concomitantemente ao surgimento da indústria fonográfica e ao desenvolvimento dos meios técnicos de divulgação (do gramofone ao rádio), que vão consolidá-la socialmente, permitindo que ela adquira sua abrangência. A acessibilidade advém tanto do aspecto físico da divulgação quanto da questão da recepção e da apreensão da subjetividade musical pelo indivíduo.

Nesse sentido, em sua análise da era da reprodutibilidade técnica moderna, Benjamin (1975)BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: LOPARIC, Z.; FIORI, O. (Org.). Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975. p. 09-35. nos aponta outros elementos que devem ser levados em consideração sobre a relação entre obra de arte e a indústria cultural. O autor reduz o pessimismo adorniano ao destacar que, nesse processo dialético, a indústria cultural desponta também como possibilidade de as massas acessarem as produções artísticas antes restritas à “alta cultura”.3 3 Alta cultura é uma categoria utilizada por Walter Benjamin (1975) para definir a cultura das camadas mais abastadas de uma sociedade, sendo elas, durante um grande período, privilegiadas no acesso as artes. Podemos citar, como exemplo, o acesso restrito às músicas eruditas no período renascentista, pois o acesso a essas obras estava circunscrito aos grandes teatros ou aos bailes da aristocracia. Vivemos a era da reprodutibilidade técnica da arte, e sua transformação em mercadoria é viabilizada pela revolução tecnológico-industrial, que promoveu a reprodução em série da obra de arte (Benjamin, 1975BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: LOPARIC, Z.; FIORI, O. (Org.). Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975. p. 09-35.).

Para Benjamim (1975), esse potencial caráter de expansão que a indústria cultural propicia não pode ser avaliado de forma fatalista, de modo que as características negativas sejam acentuadas a ponto de obscurecer seus efeitos positivos, convertendo os indivíduos em autômatos conduzidos por uma engrenagem central. Pensando a partir dessa perspectiva, a abordagem adorniana aparece de forma unilateral, pois identifica problemas decorrentes da relação entre a música e a indústria cultural, ao mesmo tempo em que não atenta para seu alcance em termos de acesso à arte, atribuindo ao ouvinte um papel passivo. Por isso, é preciso compreender tal associação de forma dialética, apreendendo na indústria cultural tanto o seu espectro ideológico e seu impacto na padronização da música popular quanto suas contradições internas, deixando emergir da configuração do fenômeno os meios que permitem seu questionamento, apresentando, assim, os conteúdos e singularidades que escapam de seu controle e abrindo espaço para seus próprios elementos de superação.

É preciso, nesse ínterim, compreender que a música popular é fruto da interação (tanto na forma, como no conteúdo) do artista com elementos intrínsecos da cultura do seu país e mesmo de outros países. Por isso, durante muito tempo, foi percebida como sinônimo da música folclórica. A partir do século XX, a música popular tomou outros contornos, mas manteve, em sua base, uma sutil variedade do povo que a produz e a absorve. Nesse momento uma de suas principais características passa a ser a intensa disseminação no seio da população, devido aos veículos de comunicação de massa, o que lhe conferiu ligação direta com elementos comerciais e cosmopolitas da sociedade moderna. É interessante apontar que, mesmo sob o contorno de massificação, a música popular preserva sua vinculação com a existência cotidiana e cultural. Como nos aponta Burnett (2011BURNETT, H. Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil: ensaios de filosofia e música. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. 264 p., p. 148):

[...] música popular é, antes de tudo, uma expressão dessa chamada verdade musical, na medida em que revela, no caso do Brasil, e provavelmente em todos os países onde se desenvolveu, as sutis variedades do povo que a produz e consome.

Paul Gilroy (2001)GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2001. 432 p. em O Atlântico Negro, nos lança uma pista para as alternativas de ruptura com a ideologia imposta pela indústria fonográfica, a partir da forma como a estética musical negra, na diáspora africana, se constitui como um importante modo de (re)existência dessas populações em suas insurgências culturais, suas batalhas contracoloniais e sua oposição às engrenagens das hierarquias raciais. Nesse sentido, o autor salienta que a (re)existência negra produz dialeticamente uma eficácia estética que a coloca em um movimento contraditório com as condições modernas:

Através de uma discussão da música e das relações sociais que a acompanham, desejo esclarecer alguns dos atributos distintivos das formas culturais negras que são, a um só tempo, modernas e modernistas. São modernas porque têm sido marcadas por suas origens híbridas e crioulas no Ocidente; porque têm se empenhado em fugir ao seu status de mercadorias e da posição determinada pelo mesmo no interior das indústrias culturais; e por que são produzidas por artistas cujo entendimento de sua própria posição em relação ao grupo racial e do papel da arte na mediação entre a criatividade individual e a dinâmica social é moldado por um sentido da prática artística como um domínio autônomo, relutante ou voluntariamente divorciado da experiência da vida cotidiana (Gilroy, 2001GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2001. 432 p., p. 159).

Se observarmos com cuidado a explosão dos inúmeros estilos musicais afrodiaspóricos surgidos no século XX, dentre eles o folk o blues, o rock music, o reggae e o samba, veremos que essas sonoridades não se destacam somente pelos conteúdos contestatórios de suas letras, ou pelas performances dos outsiders artistas negros. Mas se destacam também pela potencialidade que esses sons tiveram de desorganizar as estabelecidas tradições estéticas harmônicas ocidentais. Esses estilos, embora surgidos imersos nas culturas de massas e ligados diretamente às indústrias fonográficas, trazem ao mundo da música moderna um conjunto de estilos excêntricos.

As pulsões sonoras da musicalidade negra nas Américas terão, como seus pilares formativos, suas origens crioulas e sua capacidade de transpor o caráter mercadológico e subordinador imposto pela industrial cultural fonográfica. O reggae jamaicano é um exemplo disso. Para Albuquerque (1997), o reggae, como gênero musical que emerge do terceiro mundo, realiza uma façanha que poucos estilos musicais conseguiram alcançar: quebra as barreiras do consumo estabelecido pela indústria fonográfica pop, ao conseguir não uma ascensão fugaz, mas se manter entre os hits do pop mundial.

Nesse sentido, é necessário salientar que esse processo de difusão do reggae só se tornou possível porque os recursos técnicos utilizados em suas composições, mesmo sendo frutos da ampliação das bases técnicas capitalistas sobre a esfera da cultura e da arte em países periféricos – indústria cultural, indústria fonográfica e financiamentos estatais –, apresentam uma singularidade estética. Ou seja, eles se referem a um contexto social específico e, ao mesmo tempo, transpõem esses limites ao encontrarem uma mediação universal (forma e conteúdo) com as condições de vida de grupos sociais subordinados em todos os continentes do planeta.

Diferentemente das formulações que Gilroy (2001)GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2001. 432 p. nos apresenta sobre a música negra, o posicionamento vanguardista da teoria adorniana limita a música popular, uma vez que restringe muito a capacidade de superação de sua fetichização e a aprisiona, mantendo-a identificada a uma figura e a um estilo muito reduzido, com pouca amplitude social, ou seja, ele a compreende como uma produção passiva e sem autonomia frente à indústria fonográfica.

Como nos aponta Renato Ortiz (2008)ORTIZ, R. Prefácio. In: DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 11-14., refletir sobre a música popular corresponde a se abrir para uma realidade em que a musicalidade não se ensimesma nas condições impostas pela indústria fonográfica, apesar de sofrer forte influência dela. Para o autor, a criação artística e os músicos não se rendem de forma passiva diante dos arroubos mercadológicos, e é preciso entender como se dá o processo estético de substancialização, ligado às relações mediadas pelo campo de organização social, cultural e econômico. Essa mediação traz para o campo da produção da música popular processos produtivos que perpassam por negociações e táticas que levam em consideração, em seus processos de constituição estética, o jogo de forças desiguais entre as estratégias da indústria fonográfica e a as táticas de criação artística. Em outras palavras, uma disputa entre a tentativa de padronização e a busca por autonomia.

Um dos exemplos mais salutares dessa fuga da lógica de mercantilização é apontado por Howard (2009)HOWARD, D. Copyright and the music business in Jamaica: protection for whom? Brasília: revista brasileira do Caribe, v. 9, n. 18, p. 503-527, jan./jun. 2009. ao tratar do caso dos direitos autorais e de como se deu a instauração e a aplicação da lei que regula esses direitos na Jamaica. As preocupações dos ingleses com o controle das músicas produzidas na colônia datam do início do século XX. A primeira lei de direitos autorais promulgada na ilha em 1913 foi uma cópia das leis que regiam a questão na metrópole, onde eram voltadas para a proteção de mestres musicais colonos que migraram com os afazeres musicais e tinham medo da apropriação na América. Uma boa parte dos compositores da Jamaica não tinha conhecimento da existência da lei e da possibilidade de acumular recursos a partir da proteção dos direitos de criação artística, e essa condição criou um limite importante para que a lógica da mercantilização e da troca não absorvesse as composições artísticas.

Muitas das composições criadas no SKA, no Rocksteady e no reggae, têm mais de um autor e, por vezes, é impossível saber quem, de fato, as compôs. Um exemplo disso é o que aconteceu com o próprio Bob Marley, que, em sua trajetória de negociação com a indústria cultural, buscando fugir das garras dos produtores e ser solidário aos amigos e familiares, colocou diversas vezes algumas de suas produções em nome de outros. Como exemplo, a célebre No Woman, no Cry foi registrada em nome do amigo de infância de Trenchtown, Vincent Ford, ou ainda, os créditos que também foram dados ao amigo e à sua esposa, Rita Marley, pelos hits Positive Vibration e Crazy Bald heads (White, 2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011. 542 p.).

Sempre penso em homens como Tata, Bragga e Georgie, que também se tornaram meus amigos, homens que eu sabia que tinham a confiança de Bob, homens que também confiavam em Bob. Tata recebeu créditos como coautor de No womam no cry. Bob fez isso para homenagear um amigo íntimo, uma figura paterna do mesmo quilate de Coxsone (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p., p. 45).

Ademais, Ortiz (2008)ORTIZ, R. Prefácio. In: DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 11-14., em diálogo com os escritos adornianos, nos apresenta um possível caminho para pensar a dimensão da criatividade musical frente à indústria fonográfica sem necessariamente recorrer a um movimento de ruptura. Voltemos a atenção para as elaborações de Ortiz (2008)ORTIZ, R. Prefácio. In: DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 11-14. a partir do processo de globalização. Diferentemente do que poderíamos concluir a partir de uma análise adorniana, para o autor, o processo de globalização não levaria a uma simples padronização das formas e conteúdos estéticos, o que não nega a influência dos processos mercadológicos nas produções musicais modernas.

A internacionalização do mercado da música teria também sido orientada por uma flexibilização da indústria do entretenimento, que não repercutiu, com equidade de força, a relação entre a criatividade artística e a lógica capitalista do mercado musical, mas levou a indústria do entretenimento a criar outras estratégias e a lidar com novas demandas apresentadas pelas novas necessidades mercadológicas de expansão. No campo da indústria fonográfica, o processo de expansão do mercado do entretenimento buscou usar, como estratégia de expansão de seu poder, a apropriação das produções locais. Mas o que, de longe, poderia ser entendido como simples apropriação também resultou na entrada de uma diversificação de estilos e gêneros musicais no hall de apreciação mercadológica. Tal diversificação implica multiplicidade de formas criativas de produção que passaram a desafiar as formas de captura da indústria fonográfica.

É bem verdade que, como coloca Ortiz (2008)ORTIZ, R. Prefácio. In: DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 11-14., não podendo a indústria controlar todos os mecanismos de produção, passou a controlar os meios de difusão da música, a partir dos quais um estilo ou gênero existe translocalmente. O fato é que a indústria fonográfica modificou o mecanismo de controle, mas também se abriram novas lógicas de subversão a partir da participação de uma maior diversidade de produções musicais dentro do mercado da música. Tomemos como exemplo os casos do jazz, do rock in roll e do reggae jamaicano, que se utilizaram das possibilidades oferecidas pela diversificação da indústria fonográfica em expansão para inovar em seus processos de produção musical (Costa, 2019COSTA, A. de J. Você não vai ajudar a cantar essas canções de liberdade? (“Won’t you help to sing these songs of freedom?”): o reggae como pulsões sonoras de resistência. 2019. 208 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Federal da Bahia, Salvador, 2019.).

Como nos aponta Hobsbawm (2016)HOBSBAWM, E. História social do jazz. São Paulo: Paz e Terra, 2016. 380 p., ao fazer a genealogia da história do jazz e dialogar com o rock, alguns estilos revolucionaram singularmente ao inovarem musicalmente. No primeiro caso, o autor nos apresenta como o jazz tem sua sonoridade inovadora ao usar escalas originárias da África Ocidental (modo escalar que não era utilizado nos padrões musicais da tradição erudita europeia e em seus desdobramentos populares) e (ou) ao misturar essas escalas de matriz africana com as do modelo europeu, ou, ainda, ao experimentar, em suas sonoridades, as escalas africanas com formas harmônicas europeias. Como demonstra Hobsbawm (2016HOBSBAWM, E. História social do jazz. São Paulo: Paz e Terra, 2016. 380 p., p. 49), a sonoridade do jazz renova na “combinação da escala blue” – a escala maior comum, com a terceira e a sétima abemoladas – usadas na melodia, com a escala maior comum usada para harmonia.

O jazz e outros estilos afrodiaspóricos, como o reggae e o samba, trazem como característica de conformação de seus sons uma forte referência no ritmo, elemento utilizado nas tradições sonoras africanas, em contraposição às opções musicais adotadas por estilos europeus, como o music-hall inglês, a chanson francesa, a canzione napolitana e o fado português, que baseiam suas composições nos padrões estruturais harmônico-melódicos, evitando a marcação rítmica acentuada. As pulsões sonoras da diáspora negra apresentaram ao mundo as batidas rítmicas constantes e uniformes, alternando pulsões de dois a quatro compassos em diferentes variações conduzidas pela rítmica.

Em se tratando do rock, a inovação no estilo está na ousadia em experimentar sonoramente as novas possibilidades apresentadas pelo avanço tecnológico no século XX. O rock-and-roll inaugura a música eletrônica ao trazer para os palcos sons produzidos, sistematicamente, pela eletrificação dos instrumentos. Com a utilização proeminente de sintetizadores sonoros, esse estilo substituiu, em sua estética musical, os instrumentos acústicos por elétricos, abusando dos efeitos especiais que os novos instrumentos propiciavam aos sons, atrelados ao apoio oferecido pelos técnicos de som e os profissionais de estúdio. O estilo combinou vários instrumentos eletrônicos rítmicos – teclado, guitarra, baixo, bateria, etc. – formando conjuntos diversos, cada um apresentando suas próprias complexidades nas potências rítmicas (Hobsbawm, 2016HOBSBAWM, E. História social do jazz. São Paulo: Paz e Terra, 2016. 380 p.).

É nesse contexto que a música popular, devido às suas próprias peculiaridades, ganha destaque no campo estético afrodiaspórico como umas das condutoras das dimensões da sensibilidade negra. Napolitano (2002)NAPOLITANO, M. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 120 p. aponta que a música, no contexto histórico do século XIX e XX, foi uma salutar tradutora dos dilemas afrodiaspóricos e um veículo importante de compartilhamento das utopias sociais para as camadas populares nas Américas. Assim, nas Américas, com a experiência da diáspora, a música popular constituiu umas das principais formas desses povos (re)existirem nesse contexto de tantos impasses.

Narrar o diálogo possível entre essas formulações é desenhar caminhos mais complexos de compreensão do lugar da música popular dentro das contradições presentes na relação entre a indústria fonográfica e o processo de criação musical. Faz-se necessário ir além das contribuições adornianas, sem perdê-las de vista, ampliando seu postulado para uma análise na qual seja possível investigar a experiência de negação na arte que contemple outros movimentos artísticos, como o da música popular despontada na periferia do mundo. Obras como as de jazz, de rock in roll e de reggae surgem com um conteúdo estético que busca contrapor aspectos aparentemente positivos dessa sociedade, explicitando, assim, contradições e angústias vivenciadas na cotidianidade de miséria que esses artistas criam as suas glebas.

Ao mesmo tempo, tal postulado deve buscar solucionar os contrastes gerados pelas características peculiares ao processo que envolve a composição dessas obras, pois, ao explorar essas peças populares, faz-se necessário lidar com o fato de que elas são produzidas por meio da indústria cultural.

Música popular: o caso do reggae jamaicano e suas interfaces criativas diante de uma indústria fonográfica periférica

Essa problemática abriu espaço para a discussão sobre a possibilidade de a indústria fonográfica ter múltiplas formas de atuação a partir das contingências geradas pela singularidade do funcionamento desigual das condições econômicas, políticas e culturais de cada região, não se perdendo de vista que tais configurações locais são partes integrantes do próprio modo de produção capitalista. Dito de outra forma, isso significa que o modo de produção capitalista deve ser pensado em suas múltiplas determinações, o que implica, do ponto de vista da arte, compreender traços unitários e heterogeneidades na criação artística nas diversas partes do globo terrestre. Ao mesmo tempo, surgem algumas indagações: será que essa circunstância propicia espaços para que tais músicas ganhem mais autonomia em relação ao modo de produção, quando comparado a outras situações sociais? Ou ainda: esses conteúdos contestatórios, emancipatórios, casados a esses novos contrastes sonoros, são utilizados como formas de potencializar o comércio, adequando-se ao gosto gerado pelas contradições sociais dessas regiões?

Para poder refletir sobre tais questões, retomaremos algumas condições sociais vivenciadas no processo de criação do reggae jamaicano. O reggae é um estilo que emerge das circunstâncias produzidas por força das contradições edificadas da indústria fonográfica em um estado periférico. As composições de reggae jamaicano foram gestadas em um contexto de contradições da própria infraestrutura das forças de produção da indústria fonográfica, entre centros e periferias.

A indústria fonográfica dos centros repercutiu, durante o início do século XX, a tentativa de imposição de um padrão musical ao resto do mundo. Os investimentos do mercado da música serviram, nesse contexto, para fomentar a produção e a difusão das produções estéticas musicais produzidas nos centros. O fluxo de difusão musicológica seguia, predominantemente, um fluxo entre centro e periferias. Isso porque, no século XX, os grandes centros euroamericanos capitalistas detinham as condições materiais para financiamento de seus aspectos culturais, colocando o processo de produção das artes em outro patamar. Tal fato atuou como um potencializador da promoção de suas músicas e de incentivo criativos para os seus artistas. Eram reduzidíssimos os estilos e gêneros periféricos que conseguiram, até meados do século XX, galgar algum espaço de difusão no centro. Diante da abundância de finanças, os governos e as igrejas dos estados centrais euroamericanos passaram a ser importantes financiadores das artes nacionais, ao mesmo tempo em que despontava uma poderosa indústria do entretenimento, que, no campo da música euroamericana, passa a ser o pilar das produções musicais de massa (Costa, 2019COSTA, A. de J. Você não vai ajudar a cantar essas canções de liberdade? (“Won’t you help to sing these songs of freedom?”): o reggae como pulsões sonoras de resistência. 2019. 208 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Federal da Bahia, Salvador, 2019.).

Em contraposição a essa realidade de abundância, os estados periféricos sofriam com a escassez de recursos e tinham poucos investimentos em aspectos culturais. Ou, quando os recursos chegavam, eram destinados a objetivos específicos, diante do fato de que os estados nacionais haviam acabado de conquistar a independências e tinham muitas necessidades materiais. Coube, então, à cultura, de forma geral, e às artes, em particular, o papel de criar amálgamas de unificação em torno da criação de uma unidade ideológica da identidade nacional de cada território periférico recém-independente administrativamente, a exemplo do que aconteceu com o samba brasileiro no Estado Novo, que, acompanhando a ditadura populista de Getúlio Vargas, obteve financiamentos em troca de que os conteúdos de suas músicas acompanhassem o projeto de unificação da identidade nacional brasileira (Costa, 2019COSTA, A. de J. Você não vai ajudar a cantar essas canções de liberdade? (“Won’t you help to sing these songs of freedom?”): o reggae como pulsões sonoras de resistência. 2019. 208 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Federal da Bahia, Salvador, 2019.).

Assim, diante de uma indústria fonográfica dos centros, que moldava o fluxo de difusão musicológica no sentido do centro para as periferias, o reggae jamaicano existiu, por um tempo, como gênero musical fabricado de modo diferente dos gêneros musicais de massa e não despertava o interesse da indústria fonográfica dos centros. Com efeito, os estilos e gêneros que surgiram no contexto de escassez dos países periféricos criaram suas próprias estratégias de compartilhamento da produção musical.

Diante da precariedade e da ausência de verbas, esses artifícios acarretaram o arranjo de uma indústria fonográfica periférica artesanal, que estava muito distante do poderio econômico e organizacional da indústria fonográfica dos centros. No início, a indústria fonográfica periférica jamaicana foi criada por pequenos comerciantes apaixonados por música e sedentos por uma oportunidade de ascensão social, a partir dos muitos grupos de músicas que eclodiam das yard4 4 Os yard são formas de habitação popular que derivam da constituição de moradias chamadas de quintais urbanos. Esse tipo de comunidade começou a surgir na Jamaica em meados do século XVIII. Tal formato de moradia foi incialmente motivado pelos costumes dos escravizados africanos e afrojamaicanos oriundos das regiões rurais do país, a partir da abertura de algumas concessões realizadas pelos senhores de escravos. de Kingsnton. As músicas produzidas eram difundidas em pequenas casas, através de meios artesanais, e serviam ao consumo musical local. Nesse primeiro momento, poucos artistas conseguiram uma dimensão internacional, conforme nos relata Rita Marley (2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p., p. 25),

Estávamos na metade dos anos 60, e todas as pessoas que eu conhecia estavam empolgadas com um novo tipo de música jamaicana chamado rock steady. Nossos artistas favoritos eram Tootsand the Maytals, Delroy Wilson, The Paragons, Ken Booth, Marcia Griffiths e, acima de todos, um grupo que se chamava Wailing Wailers. Os Wailers haviam gravado alguns compactos de rock steady em um estúdio de Trench Town que ficava perto de onde eu e Dream morávamos. Naquela época, Kingston contava com uma boa quantidade de pequenos estúdios. Alguns deles eram negócios múltiplos gerenciados por uma só pessoa, como o Beverley’s Record and Ice Cream Parlor (onde também funcionava uma papelaria). Outro deles era, ao mesmo tempo, estúdio e loja de bebidas, o Studio One, na Brentford Road. Pertencia a ‘sir Coxsone’, cujo o nome verdadeiro era Clement Dodd, que, além de ter sido um dos primeiros entusiastas da música jamaicana, teve grande importância em seu desenvolvimento.

Atrelado aos estúdios e à indústria fonográfica periférica da ilha caribenha, havia dois outros instrumentos catalizadores do fluxo exponencial de música, que emergiam dos jovens da periferia de Kingston: as rádios locais e os sound system. As estações de rádio locais funcionavam como satélites das produções musicais dos grandes centros, como R&B, blues, jazz e rock in roll. O pouco espaço que restava em sua programação era relegado às produções locais, e servia como difusor dos novos talentos surgidos nos guetos da cidade. Nesse espaço temporal marginal, as rádios realizavam uma série de concursos de calouros, sem muitos critérios de qualidade, mas que serviam como alicerce para que os estúdios locais pudessem garimpar possíveis tesouros musicais entre os jovens afrojamaicanos.

As rádios estavam associadas aos estúdios de forma direta, muitas delas tendo os mesmos proprietários. Diante das debilidades desses instrumentos da indústria fonográfica periférica, os sonhos desses jovens estavam sempre agregados à possibilidade de serem vistos por produtores de estúdios da indústria fonográfica dos centros. Alimentados pela expectativa de ascender socialmente a partir da música, os inúmeros grupos musicais de jovens corriam para as rádios sempre que se abriam concursos de calouros, principalmente quando começaram a surgir notícias acerca do interesse dos produtores da indústria cultural do centro nas músicas produzidas em periferias, como a Jamaica.

O que todos comentavam em Trench Town era que qualquer Yard boy com voz decente e música à altura conseguiria gravar um disco no estúdio de um canal da UBC. Quando correu a notícia de que a JBC estava instituindo suas próprias paradas de sucesso no início de agosto para aferir a vendagem de discos americanos e jamaicanos na ilha, logo se formaram filas de cantores ansiosos com seus violões debaixo do braço em frente à estação de rádio. O mesmo acontecia na RJR, onde A Hora da Oportunidade de Vere Johns– um programa de calouros transmitido ao vivo na noite de sábado – tinha maior importância na cabeça dos aspirantes locais a vocalistas e instrumentistas que as &10 do prêmio máximo. O programa surgira a partir dos shows semanais de calouros que aconteciam nos teatros Majestic, Palace e Ambassador do centro da cidade. Vere Johns, o jornalista apresentador do programa, oferecia aos ganhadores, escolhidos pelos ouvintes, celebridade da noite para o dia. Embora quem já tivesse ganhado não pudesse concorrer de novo, Jonhs tinha o hábito de levar os favoritos de volta ao programa várias vezes como convidados especiais, dando-lhes a chance de exibir seu material ainda não gravado para todos os produtores e donos de estúdios na Jamaica. A variedade do material executado pelos jovens e tenazes talentos que se valiam de todos os meios para entrar nos estúdios apinhados e mal equipados era impressionante, representando muitos estilos e temas musicais diferentes, além do que os tacanhos empresários da classe média se mostravam interessados em ouvir, eram capazes de entender ou estavam dispostos a impingir aos seus ouvintes. Levar ao ar lançamentos locais nas estações jamaicanas continuaria sendo uma prática conservadora, cautelosa e altamente restritiva. Havia muito mais artistas com material original do que os gerentes das rádios conseguiam acolher. Muito tempo ainda passaria antes que qualquer show exclusivamente dedicado aos artistas jamaicanos contemporâneos fosse incluído na programação de uma estação de rádio (White, 2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011. 542 p., p. 134-135).

Com a pequena capacidade de absorção dos inúmeros grupos musicais pela indústria fonográfica local através das rádios e nos estúdios, a saída encontrada pelos jovens foi invadir os espaços de entretenimento. Um dos principais meios de entretenimento musical da ilha era o sound system, que constituiu o instrumento mais popular da indústria fonográfica jamaicana. Ele surgiu como estratégia das equipes de rádios e gramofones que, percebendo que as condições econômicas das massas populares da Jamaica impediam a ampliação de ouvintes paras suas rádios, visto que, a maioria das casas das periferias de Kingston não tinha transistor e nem verba para comprar aparelho de rádio, a saída mais viável para ouvir música eram os estabelecimentos que tinham sistemas de som.

As aparelhagens dos sistemas de som amplificado movimentaram as periferias de Kingston, sem perder de vista o objetivo de consolidação do mercado de entretenimento, que atendia aos interesses da associação entre os proprietários dos equipamentos e a indústria internacional de bebidas alcoólicas, cujas principais empresas eram Red Stripe, Guinness, Heineken e as grandes destilarias. Podemos citar, como exemplo, o caso de dois dos principais donos de estúdios musicais mais importantes nas gravações dos gêneros musicais de Kingston (respectivamente o Studio One e o Studio Treasure Island), Coxsone e Duke Reid, que tinham uma relação estreita com os dois ramos, devido ao fato de serem proprietários dos mais proeminentes sound system de Kingston: Downbeat Sound System e Sistem Trojan. Ambos atrelavam, através dos negócios familiares que gerenciavam, o interesse do mercado de bebidas alcoólicas e o do mercado de entretenimento musical (ver Bradley, 2014BRADLEY, L. Bass culture: when reggae was king. Madrid: Machado Grupo de Distribución, 2014.).

O sound system não foi, para a população afrojamaicana, apenas um armário de móveis com amplificação de som, ou um circuito publicitário para a difusão de músicas. Ele ocupou um papel muito mais significativo para o processo de (re)africanização das comunidades afrodiaspóricas periféricas, criando um sistema de conexão coletiva negra a partir do compartilhamento das pulsões sonoras.

Segundo Bradley (2014)BRADLEY, L. Bass culture: when reggae was king. Madrid: Machado Grupo de Distribución, 2014., a importância dos sistemas de som era grande para a realidade dos jovens periféricos. Eles constituíam mais do que um espaço de entretenimento: esses sistemas se tornaram referência na composição da identidade dos jovens, uma vez que cada jovem escolhia construir um vínculo de afinidade com um sound system, escolhendo-o para seguir, acompanhando-o e tornando-se parte dele. Nessa relação, os jovens construíam pertencimento e sua identidade.

O movimento popular dos sound system criou vínculos catalisados pela música. O compartilhamento de gostos musicais serviu como amálgama para colocar em curso o sentimento de pertencimento territorial, de companheirismo entre os seguidores e o fortalecimento da solidariedade periférica e negra. À medida que o tempo foi passando, os ímpetos populares do povo periférico afrojamaicano foram ganhando cada vez mais espaço e subvertendo a lógica comercial de seus produtores e donos. O envolvimento intenso dos jovens com os sound system estabeleceu relações diferentes das impulsionadas pelos empresários locais, pois o compartilhamento de músicas pelos sons amplificados deixou de servir apenas ao mercado de entretenimento. Nesse sentido, cada vez mais ser seguidor de um sound system significava cantar, dançar e honrar sua identidade social. Vejamos como Rita Marley (2004)MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p. caracteriza a efervescência dos dancehalls jamaicanos (denominação dos sound system quando aconteciam em espaços fechados):

O dancehall jamaicano já foi chamado de ‘casa noturna’, agência de notícias, dancehall jamaicano, sala de reuniões, igreja, teatro e escola reunidos em uma coisa só. A música pop contemporânea da Jamaica é conhecida como dancehall. Um ‘salão’ de dança poderia, na verdade, se realizar em qualquer lugar, até ao ar livre. Às vezes uma multidão se juntava em um recinto qualquer, mas também era comum reunir-se num quintal, num campo aberto ou num estacionamento. Havia música ao vivo ou som eletrônico, a cargo de um DJ. A música explodia por todos os lados através de sistemas de som ligados a enormes alto-falantes. Os DJs falavam por cima das músicas, como os locutores de rádio americanos, para animar as pessoas e fazer que elas não parassem de dançar (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p., p. 35).

À medida que as populações dos bairros de lata foram se apropriando dos circuitos criados pelos sound systems, a partir de uma lógica de funcionamento que escapulia dos produtores e dos donos dos sistemas de sons, uma nova situação foi sendo desenhada. Os moradores desses bairros passaram a criar um circuito próprio e colaborativo de vendas de diversos produtos (comidas, peixes fritos ou embalados, carrinhos de coco, cana de açúcar, bananas, mangas, caminhonetes de bebidas, etc.). Nas ruas que circunscreviam os terrenos onde aconteciam os sound systems, eclodiam várias pequenas iniciativas que garantiam a permanência, nesses guetos, de parte do que era gerado ali.

Esses salões de dança ao ar livre, com nomes extravagantes como Tom, ou Grande Sebastian, V Rochet Count Smith, ou Blues Baster, Sir Nick ou Campeão, Rei Edwards ou Lorde Koos do Universo, começaram como uma forma de entretenimento urbano e eles acabaram se tornando o núcleo em torno do qual girou a vida dos bairros populares de Kingston (Bradley, 2014BRADLEY, L. Bass culture: when reggae was king. Madrid: Machado Grupo de Distribución, 2014., tradução nossa).

A cultura do sound system, nas periferias jamaicanas, funcionou como um fenômeno ativador de um processo intenso de empoderamento. Como define Ribeiro (2015)RIBEIRO, D. O empoderamento necessário. Portal Geledés. 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-empoderamento-necessario. Acesso em: 24 jul. 2019.
https://www.geledes.org.br/o-empoderamen...
, tal empoderamento corresponde ao processo de transformação coletiva desenvolvido pelos indivíduos, motivados pelo reconhecimento das desigualdades e segregações que sofrem, acompanhado por uma consciência social dos direitos sociais que lhes são pertencentes, uma vez que “essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma realidade em que se encontra. É uma nova concepção de poder que sai a resultados democráticos e coletivos” (Ribeiro, 2015RIBEIRO, D. O empoderamento necessário. Portal Geledés. 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-empoderamento-necessario. Acesso em: 24 jul. 2019.
https://www.geledes.org.br/o-empoderamen...
).

Nesse sentido, os sistemas de som foram um dos principais ativadores do movimento de empoderamento dos afrojamaicanos moradores das periferias de Kingston. Eles fizeram com que esses sujeitos passassem a compartilhar um sentimento de pertencimento periférico e racial, que aos poucos foi se conectando e se transformando em um processo de empoderamento compartilhado. Assim, emergiam da música os elos de afirmação do antirracismo e do antielitismo entre as populações negras do país.

Outrossim, cada sound system compunha seu repertório musical que, em sua maioria, era dominado por estilos como rhythm and blues e jazz, trazidos pelos produtores dos Estados Unidos. Tornou-se uma prática comum a saída dos donos dos sistemas de sons para o EUA, em busca de novidades que pudessem renovar a musicalidade de seu repertório, para fazê-lo mais atrativo ao público.

Um dos fatores que mais tornava um sound system respeitado pelo público eram suas seleções de músicas. Os produtores e donos dos sistemas sonoros buscavam sempre inovar a partir de produções sonoras exclusivas que outros sistemas não tinham, pois

La única manera de mantener el interés del público y cimentar uma carrera duradera era seguir moviéndose. Por elo los bailes se convirtieron em campos de experimentación para nuevos singles y estilos de música y la gente siempre era protagonista de los acontecimentos (Bradley, 2014BRADLEY, L. Bass culture: when reggae was king. Madrid: Machado Grupo de Distribución, 2014.).

Esse perfil de sempre buscar a autenticidade dos seus sistemas de som a partir do elemento enunciado de um novo estilo musical se tornou a referência do perfil da cultura dos sound system e um legado para a cultura musical dos outros estilos que surgiram depois.

Segundo White (2011)WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011. 542 p. a característica de experimentalismos adotada pelos sound system e pelos estilos musicais dos jamaicanos no século XX tem uma base ancestral. Ela constitui herança direta das matrizes musicais indigenistas e africanas de períodos anteriores às condições de nação administrativamente independente da Jamaica.

No curso da história jamaicana, não existia carência de atividade musical de onde tirar inspiração. Os índios aruaques confeccionavam tambores e pandeiros de troncos e tocos de caroba, cobrindo-os com a pele flexível de mamíferos aquáticos como o manati ou peixe-boi. Eles esculpiam instrumentos de sopro primitivos a partir de galhos e ossos que eram tocados pelos chefes tribais em cerimônias de comemoração por uma grande colheita ou nos lamentos funerais de guerreiros abatidos em luta. Os escravos da África Ocidental que resistiram à travessia trouxeram consigo uma tradição musical baseada nos diálogos dos tambores burru. Os achantis os usavam em grupos de três, o agudo atumpam funcionando como solo livre, acompanhado pelas batidas do contralto e do baixo, chamados, respectivamente, de tambores apentemma e petia. Tocados em concerto com guizos, caixas de rumba, chocalhos, saxas (saxofones de garrafa, cuja boca era recoberta por uma membrana), os tambores burru frequentemente saudavam um escravo que retornava ao lar após o cárcere ou uma vítima de açoitamento cujos ferimentos haviam sarado (White, 2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011. 542 p., p. 140).

Um exemplo marcante de como essa forma experimental dos sound system influenciou a forma de criação estética dos músicos jamaicanos está nas transformações sonoras feitas do rock in roll para criação de outros estilos e gêneros musicais. Os músicos jamaicanos produziram sucessivamente três estilos que derivam de intervenções presentes na forma do rock, através de processos de desaceleração do rock, o que gerou, primeiramente, o SKA e, em seguida, o rocksteady e, por último, o reggae.

A indústria fonográfica local, até então, não tinha se dado conta de quão ricas e inovadoras eram as músicas que estavam sendo produzidas pelos jovens rudes boys5 5 Os rudes boys eram jovens das periferias de Kingston, um grupo que tinha como critérios de unidade a rebeldia e a contestação de regras sociais. A tribo urbana ficara estigmatizada por transformar o cotidiano das ruas da capital da Jamaica em um espaço tido como de “vadiagem”. Eles se utilizavam de violência, puxando navalhas, furtando bolsas, roubando carteiras, estuprando e assaltando de maneira violenta. das periferias do país. À medida que os produtores tomaram conhecimento da potência sonora que saía dos guetos de Kingston, passaram a acrescentá-la em seus repertórios e a gravar, em seus estúdios, as músicas produzidas por esses grupos de despossuídos. As raízes de experimentação e da busca pela inovação estavam internalizadas pelos jovens, que, além de músicos, eram frequentadores assíduos e apreciadores dos sistemas de sons. A partir desse momento, os sound system, na Jamaica, se abriram para a riqueza das músicas negras da periferia.

Como destaca Bradley (2014)BRADLEY, L. Bass culture: when reggae was king. Madrid: Machado Grupo de Distribución, 2014., “más que una simple cuestión de diversión o una forma cultural relevante, estas sensiones de los soundsystems cambiaron Jamaica y su relación con el resto del mundo para siempre”. A cultura dos soundsystems levou a música para o centro da existência do ser social jamaicano. O casamento dos estímulos sonoros que saíam daqueles ambientes que fervilhavam com os estilos e os gêneros musicais dos afrodiaspóricos que (re)existam na EUA e na Inglaterra foram a inspiração para a formação do reggae como um material sonoro que refletia as próprias tendência sociais de um povo que resistia à subalternidade capitalista e colonialista.

Decerto, foi esse contexto de racialização e de precariedade das condições de existência que, por vezes, condenou muitos afrojamaicanos ao fracasso. A única saída encontrada por alguns desses jovens foi criar novas afetividades catalisadas pelas pulsões cotidianas trazidas, principalmente, pela ancestralidade de uma música localizada pelos anseios da descolonização. “Naquela época, parecia que todo mundo de Trench Town estava tentando cantar, tocar um instrumento ou formar um grupo vocal” (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p., p. 25).

É, diante disso, que as trajetórias trilhadas pelos músicos nos apresentam novas possibilidades de afetividade trazidas pelo reggae, pois criaram um movimento ativo de transfigurações das histórias desses jovens, a exemplo do que nos apresenta o relato de Rita Marley (2004)MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p. sobre as relações estabelecidas no studio de Coxson:

Antes de Coxson comprá-lo, o Studio One era provavelmente uma casa. Coxsone havia derrubado algumas paredes, mas era fácil visualizar onde ficavam o quarto, o banheiro e a sala. Era muito fácil sentir-se em casa lá, porque não parecia uma empresa. Era como se fosse uma família. Quando alguma coisa ocorria, todos se entusiasmavam: os músicos, os cantores, as pessoas de fora. O mais empolgante era quando alguém dizia: ‘Hoje nós criamos um sucesso!’ ‘Nós’ significa que aquela canção de sucesso pertencia a todos. Ficávamos lá dias inteiros, virando noites, e ninguém reclamava. Era muito divertido acordar pensando: ‘Oooh! Hoje eu tenho de ir para o estúdio!’ (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p., p. 29).

Essas lacunas deixadas pela indústria fonográfica são elementos fundamentais para a compreensão do desenvolvimento criativo de vários estilos que surgiram dos “becos”, que retroalimentaram o circuito musical de pulsões sonoras, que gritam pela liberdade e agridem a ordem em sua forma e em seu conteúdo. Segundo Rita Marley (2004)MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p., foi no meio da falta de estrutura apresentada pelos estúdios da Jamaica que se forjaram suas principais estrelas da música.

Coxsone havia gravado alguns dos grupos mais bem-sucedidos da Jamaica, incluindo os famosos Skatalites, uma das primeiras bandas de ska. Marcia Grififiths, que mais tarde cantaria ao meu lado com uma das I-Three, dizia que o Studio One era a Motown da Jamaica, ‘onde todas as grandes estrelas surgiram [...] era como se formar em uma universidade’. Normalmente muitas pessoas trabalhavam lá ao mesmo tempo; canções eram compostas por todos os lados. Se você ficasse atento, não tinha como não deixar de aprender alguma coisa. Coxsone tinha uma guitarra que emprestava para quem era muito pobre para comprar uma. Bob ficava com ela a maior parte do tempo (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p., p. 30).

Foi essa “liberdade”, deixada inicialmente pela expansão do mercado da música nas periferias do mundo, que permitiu o reluzir de canções que surgiram das pulsões coletivas do povo. Inspirados em sonhos de liberdade, o que era produzido nesses contextos resplandecia para negar a hegemonia do sistema de motivações econômicas, através de músicas que emergiam de rodas de jovens em suas diversões, do compartilhamento de suas angústias e das mazelas em que estavam inseridos. A autoria da música ali era coletiva e mola propulsora da criatividade.

Para Gilroy (2001)GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2001. 432 p., as expressões musicais negras configuram-se como uma contracultura distintiva da modernidade, uma vez que elas propiciaram a emergência das culturas contracoloniais afrodiaspóricas para além da oposição posta nos embates acadêmicos entre essencialismo e pluralismo. Ao mesmo tempo elas se apresentavam com potenciais para subverter os embates entre tradição, modernidade e pós-modernidade, presentes no debate sobre a definição do tempo histórico e cultural contemporâneo. A música afrodiaspórica traz sentido para as existências humanas a partir da mediação entre a dureza do capitalismo e da racialização e as possibilidades de superação de suas amarras, trazendo eficácia para continuar vivendo no presente.

O movimento conduzido pelos graves jamaicanos no reggae constituiu as bases do reconhecimento do estilo em todo o mundo. As músicas do reggae são pulsões sonoras, cuja sonoridade se apresenta ao mundo a partir da presença marcante dos graves do baixo, como o instrumento que coloca a assinatura cultural e que comunica as estruturas de claves rítmicas para as músicas – um estilo que faz o corpo pulsar. A presença marcante do baixo na música reggae materializou ondas mecânicas graves, que deu um sentido à sua sonoridade mais corporal (física), ao levar essa energia sonora a explodir nos corpos dos ouvintes, gerando incômodo e fazendo dançar em sua marcha flutuante. Em outras palavras, o modelo da canção do reggae – cujo tratamento orquestral e vocal seguia os padrões que se pautavam pela acentuação de uma determinada célula “rítmica” do grave, do baixo – conduzia os corpos para a dança.

Nas músicas de Bob Marley, as melodias são executadas em claves, o que mostra que essas músicas têm uma identificação muito forte com aquelas culturas africanas que ali chegaram com os escravizados, os quais, apesar de passados quase cem anos, não tinham perdido ainda suas características de identificação. Dessa forma, é preciso entender a clave como uma assinatura cultural a partir da sonoridade.

À medida que o tempo passou, os valores presentes na música reggae jamaicana se tornaram cada vez mais evidentes, fazendo com que surgisse o reconhecimento de personalidades da música e da indústria fonográfica dos centros, principalmente pessoas do eixo euroamericano. Esse interesse logo despertou um olhar comercial sobre o estilo jamaicano, que passou a ser encarado como uma possibilidade que poderia renovar o cenário de música nos centros e render lucros para a sua indústria fonográfica.

O reggae, com suas pulsões, passou a encantar públicos e empresários da música não só nas periferias, mas agora também nos centros. O fato de serem canções cantadas em inglês foi um elemento facilitador da internacionalização do estilo jamaicano. Ao mesmo tempo, o inglês crioulo, que soava nas vozes dos cantores de reggae, a princípio gerou, nos grandes centros, um sentimento de estranhamento entre os músicos e o próprio público. Esse movimento produzido pelo estilo jamaicano levou a um verdadeiro processo de desarticulação dos objetivos da indústria fonográfica dos centros, invertendo o fluxo da música: do centro para as periferias, passou a ser das periferias para o centro. O gênero levou ao mundo uma cultura sonora e política anticolonialista, de matriz afrodiaspórica, além de novas composições étnicas, novos valores transnacionais e também novos conflitos sociais resultantes da relação com a indústria fonográfica dos centros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, percebemos que é preciso refletir sobre as interfaces de interação entre a música popular e indústria fonográfica a partir das movimentações contraditórias de sua dimensão dialética. Logo, essa relação deve ser compreendida a partir de suas múltiplas determinações, recheadas por simetrias e assimetrias, coesões e coercitividades que, em muitos casos, são guiadas por interesses relativos ao próprio campo estético ou exógenos a ele. Mesmo as músicas que estão circunscritas a um determinado campo estético não se desvinculam das aspirações da cultura e da realidade social em que estão inseridas. Nesse sentido, não existe música pura e que fala apenas por si só. Toda produção musical apresenta espectros exógenos ao seu produto: a diferença está nas mediações, tendências, contextos e nos seus modos de criação.

Nesse sentido, a música, em geral, e a música popular periférica, em específico, surgem como expressões de nexos profundos e como interlocutoras de um dado tempo e das formas de sociabilidade constituídas em sua realidade. Ampliando os sentimentos internalizados e representados na obra para além da sensibilidade do artista, essas composições musicais, ao apresentarem um sentimento intersubjetivo entre o eu e sua vivência no mundo, carregadas de cotidianidade, formam uma síntese compartilhada entre mundo histórico e subjetividade. A música popular jamaicana, expressa neste artigo pelo reggae, constitui-se ao se afastar da essencialização de uma forma unilateral de composição musical, baseada em uma lógica instrumentalizada, inerente à indústria fonográfica dos centros.

Essas experiências musicais emergem dos movimentos contraditórios de uma realidade que expõe uma precária substancialidade para a produção de sínteses, conciliações e unidades. Os mais expressivos estilos musicais populares do mundo periférico, no século XX, estão imersos nos processos de constituição das novas formas culturais e das estreitas possibilidades oferecidas pela indústria fonográfica local. Essas canções carregam, como característica marcante, sentimentos, dores, alegrias, gritos e sussurros que emergem de subjetividades que se alicerçam em sentimentos coletivos de existência.

Ampliar a compreensão a respeito da criação estética e da forma de produção da música popular nos cenários periféricos é romper com uma lógica analítica restrita e reificada, situada a partir dos contextos dos centros, a qual descomplexifica seu conteúdo estético e sua mediação com a sociedade, apontando somente para seus processos de constituição a partir de um epicentro unívoco, o da estandardização da indústria cultural. Esse percurso nos leva às formulações que focam em seus limites, conduzindo, em sua maioria, a concepções absorvidas pelo fosso das simplificações, relacionadas à massificação e à mercantilização da música.

Por conseguinte, salientamos que essa relação conflituosa com a indústria fonográfica e suas intervenções no fazer artístico da música popular periférica não pressupõe uma negação completa da profundeza da relação da música popular, aqui representada pelo reggae jamaicano, com a realidade social e com a cultura local. A música popular realiza uma relação de alteridade entre a música e a cultura, que está alicerçada no terreno da diversidade, das trocas, dos diálogos e embates pela sua constituição. Assim, o trânsito entre arte e cultura é realizado por processos criativos de resistência, que são forjados por meio de novos contornos de produção e novas formas estéticas, operado por uma mediação mais estreita com os sentidos e significados trazidos pelas contradições dos cotidianos nos quais os músicos e os povos estão imersos.

REFERÊNCIAS

  • ADORNO, T. Philosophie de la nouvelle musique. Paris: Gallimard, 1982. 244 p.
  • ADORNO, T. “Der Widerstand gegen die Neue Musik”. In: STOCKHAUSEN, K. Texte zur Musik 1977-1984 Köln: Verlag M. DuMont Schauberg, 1989. p. 458-483. v. 6. Entrevista entre Theodor W. Adorno e Karlheinz Stockhausen na rádio Hessischer Rundfunk, em 22 de abril de 1960.
  • ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores).
  • ADORNO, T. “Moda intemporal: sobre o jazz”. In: ADORNO, T. Primas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ed. Ática, 2001. p. 117-130.
  • ADORNO, T. W. Indústria cultural e sociedade São Paulo: Paz e Terra, 2002. 120 p.
  • ADORNO, T. Teoria estética Lisboa: Edições 70, 2008. 555 p.
  • ADORNO, T. Introdução à sociologia da música São Paulo: Unesp, 2011. 419 p.
  • ALBURQUERQUE, C. O eterno verão do reggae. São Paulo: Ed. 34, 1997. 192 p.
  • BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: LOPARIC, Z.; FIORI, O. (Org.). Textos escolhidos São Paulo: Abril, 1975. p. 09-35.
  • BRADLEY, L. Bass culture: when reggae was king. Madrid: Machado Grupo de Distribución, 2014.
  • BURNETT, H. Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil: ensaios de filosofia e música. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. 264 p.
  • CÂMARA, A. da S. A contribuição da dialética para o estudo da arte. In: NÓVOA, J. (Org.). Incontornável Marx. Salvador: EDUFBA; São Paulo: UNESP, 2007. p. 369-368.
  • COSTA, A. de J. O conteúdo emancipatório nas músicas de Bob Marley 2014. 99 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Federal da Bahia, Salvador, 2014.
  • COSTA, A. de J. Fundamentos de uma sociologia da música. In: CÂMARA, A. da S.; SILVA, B. E.; LESSA, R. O. (Org.). Ensaios de Sociologia da Arte Salvador: EDUFBA, 2018. p. 185-204.
  • COSTA, A. de J. Você não vai ajudar a cantar essas canções de liberdade? (“Won’t you help to sing these songs of freedom?”): o reggae como pulsões sonoras de resistência. 2019. 208 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Federal da Bahia, Salvador, 2019.
  • FRANK, I. M. ABC da música: o essencial da teoria musical e conhecimentos gerais. 3. ed. Porto Alegre: AGE, 2011. 152 p.
  • GILROY, P. O Atlântico negro São Paulo: Editora 34, 2001. 432 p.
  • HEGEL, G. W. F. Estética: pintura e música. Lisboa: Guimarães Editores, 1962. 292 p.
  • HEGEL, G. W. F. Estética Lisboa: Guimarães Editores, 1983.
  • HENRY, B. Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil São Paulo: Unifesp, 2011. 264 p.
  • HOBSBAWM, E. A era dos extremos São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 632 p.
  • HOBSBAWM, E. História social do jazz São Paulo: Paz e Terra, 2016. 380 p.
  • HOWARD, D. Copyright and the music business in Jamaica: protection for whom? Brasília: revista brasileira do Caribe, v. 9, n. 18, p. 503-527, jan./jun. 2009.
  • LUKACS, G. La música. In: LUKACS, G. Estética 1: cuestiones liminares de lo estético. Barcelona: Grijalbo, 1982. v. 4, cap. 14, p. 7-32.
  • MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. 239 p.
  • MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 297 p. (Coleções os economistas, v. 1).
  • MENEZES, F. Apresentação à edição brasileira Adorno e os paradoxos da música radical. In: ADORNO, T. W. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011. p. 13-44.
  • NAPOLITANO, M. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 120 p.
  • NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira: dois problemas e uma contribuição. Per Musi, Belo Horizonte, n. 22, p. 181-195, 2010.
  • ORTIZ, R. Prefácio. In: DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 11-14.
  • PAHLEN, K. A História universal da música São Paulo: Melhoramentos, [19--]. 376 p.
  • RIBEIRO, D. O empoderamento necessário. Portal Geledés. 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-empoderamento-necessario Acesso em: 24 jul. 2019.
    » https://www.geledes.org.br/o-empoderamento-necessario
  • VÁZQUEZ, A. S. As ideias estéticas de Marx São Paulo: Expressão Popular, 2010. 272 p.
  • WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011. 542 p.
  • 1
    Segundo as formulações de Theodor W. Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., a música ligeira corresponderia às composições produzidas com o objetivo de entreter os ouvintes. Tal estilo teria entrado em decadência com o avanço dos interesses econômicos sobre as obras, o que implicou a massificação delas. Para o autor, os vários gêneros da música popular são considerados músicas ligeiras.
  • 2
    Para Theodor W. Adorno (1996)ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 191 p. (Coleção os Pensadores)., a música séria, ou clássica, corresponde aos estilos em que suas composições estão relacionadas à elevação de sua forma e de seu conteúdo criativos. A consubstancialização desse fazer estético elevado confere um sentido concreto a partir da totalidade de seu desenvolvimento.
  • 3
    Alta cultura é uma categoria utilizada por Walter Benjamin (1975)BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: LOPARIC, Z.; FIORI, O. (Org.). Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975. p. 09-35. para definir a cultura das camadas mais abastadas de uma sociedade, sendo elas, durante um grande período, privilegiadas no acesso as artes. Podemos citar, como exemplo, o acesso restrito às músicas eruditas no período renascentista, pois o acesso a essas obras estava circunscrito aos grandes teatros ou aos bailes da aristocracia.
  • 4
    Os yard são formas de habitação popular que derivam da constituição de moradias chamadas de quintais urbanos. Esse tipo de comunidade começou a surgir na Jamaica em meados do século XVIII. Tal formato de moradia foi incialmente motivado pelos costumes dos escravizados africanos e afrojamaicanos oriundos das regiões rurais do país, a partir da abertura de algumas concessões realizadas pelos senhores de escravos.
  • 5
    Os rudes boys eram jovens das periferias de Kingston, um grupo que tinha como critérios de unidade a rebeldia e a contestação de regras sociais. A tribo urbana ficara estigmatizada por transformar o cotidiano das ruas da capital da Jamaica em um espaço tido como de “vadiagem”. Eles se utilizavam de violência, puxando navalhas, furtando bolsas, roubando carteiras, estuprando e assaltando de maneira violenta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2019
  • Aceito
    18 Out 2019
Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Centro de Recursos Humanos Estrada de São Lázaro, 197 - Federação, 40.210-730 Salvador, Bahia Brasil, Tel.: (55 71) 3283-5857, Fax: (55 71) 3283-5851 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revcrh@ufba.br