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BRASIL, UMA DEMOCRACIA EM COLAPSO

L. F., MIGUEL. O colapso da democracia no Brasil. : da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. 216

Terra arrasada. É assim que o professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/UnB), Luis Felipe Miguel, retrata o Brasil da atualidade em seu recente livro O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016 , publicado no segundo semestre de 2019 pela Fundação Rosa Luxemburgo e pela Editora Expressão Popular. Esse sentimento, que mescla um denuncismo e um derrotismo do campo democrático, é anunciado tanto no título da obra como na sua capa, ilustrada por um poço sem fundo. Os principais eventos responsáveis seriam o golpe de 2016 e a vitória eleitoral da extrema-direita, capitaneada pelo ex-deputado federal do ‘baixo clero’ Jair Bolsonaro.

O problema que motiva as reflexões do livro é: “como foi possível que o regime democrático e o sistema de direitos construído no Brasil ao longo de mais de duas décadas ruíssem em tão curto prazo?” ( Miguel, 2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 14-15). É importante dizer que a obra não apresenta uma resposta taxativa ao problema proposto. Como os bons livros de Ciências Sociais, o trabalho explora eventos, fatos, notícias e dados empíricos diversos em articulação com elaborações teóricas variadas, que vão formando indícios, caminhos, narrativas e interpretações complexas. Com base nesse questionamento, análises e reflexões são desenvolvidas e aprofundadas ao longo dos cinco capítulos da obra, além das conclusões.

No primeiro capítulo, “A transição política e a democracia no Brasil”, Miguel reflete sobre os períodos que vão desde 1945 e 1964 à Ditadura Militar (1964-1985), passando pela Constituinte até às primeiras eleições diretas para a Presidência da República, que resultaram na vitória do projeto neoliberal encarnado na figura de Fernando Collor de Mello. Nesse capítulo, destacam-se as discussões empreendidas sobre democracia e representação, o papel político dos militares e a Constituição Federal de 1988.

O autor alerta que democracia não possui um sentido único, sendo evocada por diferentes forças políticas, e que a ideia de democracia representativa guarda uma contradição em termos, à medida que a representação delega poderes a uma minoria que, em muitos casos, não governa para seus representados. Assim, a democracia representativa seria o governo do povo onde este não governa. Nessa acepção, em que a participação política se expressa apenas por meio de eleições, o voto é criticado porque seria um instrumento insuficiente para o controle dos representantes e para a expressão das preferências do eleitorado.

Sobre os militares, a experiência brasileira mostra que as Forças Armadas sempre tiveram o papel de intervir, ora a favor da Constituição, ora contra ela, e de tutelar nossa democracia. Tanto que antes mesmo do golpe de 64 já havia tentativas de golpear presidentes legitimamente eleitos a partir de 1945. “As Forças Armadas assumiram o poder com a missão de sufocar as demandas por igualdade, lidas como manifestações da interferência comunista”, explica Miguel (2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 42). Após um longo período autoritário, a abertura seria então controlada por um lento e gradual processo de distensão política. É importante ressaltar que tal abertura não foi fruto da benevolência dos agentes da ditadura, e sim consequência da pressão social, interna e externa ao Brasil.

Nessa conjuntura, em que os militares ainda detinham significativa força política, a Constituinte espelhou a ambiguidade das forças progressistas e conservadoras na disputa pela Carta Magna atualmente vigente do Brasil. Assim, a Constituição Federal de 1988 “ganhou um caráter algo paradoxal […] o resultado foi uma série de soluções de compromisso que refletiam a correlação de forças do momento” ( Miguel, 2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 53). E apesar das muitas ausências no texto constitucional – como os direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), por exemplo –, é considerada uma Carta avançada, cidadã, sobretudo se confrontarmos com as reformas atuais que Michel Temer fez e que o Governo Bolsonaro vem fazendo para esvaziá-la.

No segundo capítulo, intitulado “O PT e o lulismo”, o autor analisa a trajetória do principal partido político brasileiro desde a sua fundação, no início da década de 80, até a sua retirada à força do Governo Federal com o golpe de 2016. Miguel reconhece que o PT representou uma experiência inovadora para a esquerda nacional e internacional, pautado em um projeto transformador que reunia redistribuição e participação democrática. Ao longo de todo o capítulo, o autor se esforça em demonstrar como o PT caminhou de um “irritante purismo” a um “pragmatismo desenfreado” (Miguel, 2019, p. 64), argumentando que a agremiação não só sofreu alguns efeitos daquilo que Robert Michels (1982MICHELS, R. Sociologia dos partidos políticos. 1ª edição [1911]. Brasília, DF: Editora UnB, 1982. [1911]) falara na sua obra clássica sobre os partidos em nível interno, como também foi pressionado pelos incentivos institucionais do sistema político à acomodação, em nível externo.

Se, por um lado, o autor faz análises precisas sobre o petismo quando diz que “o lulismo representa uma versão abastarda do pacto social-democrata” ( Miguel, 2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 74), ou que “o script é sempre o mesmo: iniciativa governamental para avançar determinada agenda, grita dos conservadores, recuo” ( Miguel, 2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 85) para ilustrar os desafios do partido no governo; por outro, é pouco justo ao criticar iniciativas como a política de participação social, por exemplo, que expressam no aumento de conselhos e conferências de políticas públicas, nos mais diversos temas.

Os espaços institucionalizados de participação (Abers; Serafim; Tatagiba, 2014) são interpretados por alguns autores, com a anuência de Miguel, como mero “mecanismo de legitimação, produção de consensos e cooptação de lideranças populares” (Miguel, 2019, p. 78), ignorando muitos dos ganhos resultantes das instituições participativas, desde os mais visíveis (como a implementação de determinadas políticas ou normas) àqueles de mais difícil mensuração (formação de redes e difusão de processos de educação política), conforme demonstrado por Almeida (2017)ALMEIDA, D. C. R. Os desafios da efetividade e o estatuto jurídico da participação: a Política Nacional de Participação Social. Revista Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 32, n. 3, p. 649-679, 2017. , em análise mais cuidadosa sobre diferentes dimensões da efetividade da participação. Além disso, se as instituições participativas fossem tão somente mecanismos legitimadores do Governo Federal, a Câmara dos Deputados não teria interditado a Política Nacional de Participação Social (PNPS), nem Jair Bolsonaro teria desmontado os conselhos em uma de suas primeiras ações na Presidência.1 1 Bolsonaro, em 2019, assina o Decreto 9.759/2019, que extingue e limita os conselhos de participação popular. Em resposta a essa ação autoritária, diversos pesquisadores(as) sobre participação social criaram a campanha #OBrasilPrecisaDeConselho. Disponível em: https://democraciaeparticipacao.com.br/index.php/mobilizacoes/campanha-obpc . Acesso em: 24 mar. 2021.

O terceiro capítulo, “A recomposição da direita brasileira”, constrói um interessante mapeamento das forças políticas, as quais chamamos genericamente de direita. Merece atenção o papel do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) que, por muito tempo, representou este campo. O PSDB surgiu no final da década de 80 ainda com um projeto de centro, mas foi se deslocando para a direita do espectro político tanto nos anos 90, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e suas políticas neoliberais, caracterizadas pela privatização de diversas estatais e pelo desinvestimento público na área social, como nos anos 2000, na oposição aos governos petistas. “Os anos petistas testemunharam, assim, dois fenômenos paralelos: o PSDB entendeu que seu caminho era liderar a direita; e a direita entendeu que havia espaço para radicalizar seu discurso” ( Miguel, 2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 94).

As outras forças políticas da direita destacadas pelo autor são os libertarianistas, os fundamentalistas religiosos e os anticomunistas. Convém lembrar – ainda que não tenha sido explorado por Miguel neste capítulo – que a direita é ainda mais heterogênea, aglutinando grupos complexos e contraditórios entre si, como monarquistas, militares, artistas, mulheres antifeministas, gays conservadores, negros contra cotas raciais, adeptos da maçonaria, jornalistas, empresários, membros do judiciário e do sistema de segurança, latifundiários, entre outros, cada um lutando por interesses específicos e cujo principal elo é o combate ao PT e à esquerda.

“Os meios de comunicação e a democracia” são o foco do quarto capítulo. Embora seja uma seção em que o autor discute uma miríade de questões, seus três principais arcos são (a) a característica do campo jornalístico brasileiro; (b) a interferência da grande mídia nas eleições nacionais e subnacionais; e (c) a liberdade de expressão. Miguel desmistifica algumas narrativas centrais do jornalismo, como a de que seria imparcial e um instrumento que serviria de accountability da política institucional. O jornalismo não seria imparcial porque seus agentes não o são, e mesmo que quisessem não conseguiriam sê-lo, uma vez que partem de perspectivas sociais mais ou menos comuns e definem o que é importante ou não, segundo a sua ótica.

Nesse aspecto, concordamos com a posição do autor, sobretudo quando falamos da mídia hegemônica, composta por grandes empresas de comunicação patrocinadas pelo mercado e pelas elites econômicas do país. A Rede Globo, por exemplo, acumula notável histórico de interferências nas eleições brasileiras (algumas assumidas pela própria emissora). Em 1982, nas primeiras eleições relativamente competitivas desde o Golpe de 64, a Rede Globo foi parte de um esquema chamado “Proconsult”, que tentou fraudar as eleições estaduais do Rio de Janeiro em desfavor de Leonel Brizola. Depois, em 1989, na primeira eleição presidencial após a ditadura, a Globo apoiou fortemente o candidato de direita Fernando Collor de Mello e manipulou o debate entre Collor e Lula pouco antes da votação, em desfavor do Partido dos Trabalhadores.

Já em 1994, a emissora fortaleceu o Plano Real, que funcionou como uma campanha velada ao PSDB. Em seguida, em 1998, após a aprovação da Emenda da reeleição no Congresso Nacional, a estratégia da Globo foi reduzir o máximo possível o debate político-eleitoral para que Fernando Henrique Cardoso fosse naturalmente reeleito à Presidência e, em 2002, buscou agendar todos os candidatos para a manutenção da política econômica até então vigente. As próximas eleições – 2006, 2010, 2014 e 2018 – seriam bombardeadas midiaticamente com os escândalos do mensalão, do petrolão, ou com a repercussão positiva das ações arbitrárias da Operação Lava-Jato, com clara finalidade de prejudicar a esquerda.2 2 Parte dessas informações foram extraídas de um artigo de Luis Felipe Miguel intitulado “A eleição visível: a Rede Globo descobre a política em 2002”, publicado na revista Dados, em 2003.

O quinto e derradeiro capítulo do livro analisa “A derrota de 2014 e a produção do golpe” em quatro principais debates: o primeiro é sobre algumas ações de Dilma Rousseff que geraram mais hostilidade entre seus aliados (como a chamada “faxina ética”, que derrubou muitos de seus Ministros de Estado); o segundo é sobre as jornadas de junho de 2013; o terceiro, sobre a derrota de Aécio Neves em 2014; e o quarto recorda a rendição de Dilma, que modificou o seu programa de governo para atender seus opositores. Mesmo com um dos cenários mais adversos na história eleitoral do PT, o partido derrotou pela quarta vez consecutiva a direita nas urnas e é essa “derrota de 2014” do título do capítulo que o autor quis enfatizar. Foi a derrota do PSDB que acionou os motores da corrida que chegaria ao golpe de 2016.

O autor acerta ao conferir centralidade e recordar o protagonismo do PSDB no golpe de 2016, à medida que esse evento contou com uma miscelânea de grupos e atores políticos: empresários, jornalistas, juristas, Michel Temer, Eduardo Cunha, Janaina Paschoal, Sergio Moro, Jair Bolsonaro. Em nossa percepção, o PSDB, muitas vezes, é deixado de lado nas análises e comentários políticos sobre a sua participação no processo de impedimento presidencial e de ataques à democracia. Naquela ocasião, os tucanos não aceitaram o resultado das urnas eletrônicas, pediram recontagem de votos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), articularam a movimentação pelo impeachment , financiaram grupos de direita, como o Movimento Brasil Livre (MBL), para protestarem pela saída à força da presidenta, compuseram o Governo Temer.

Outro mérito do trabalho é o reconhecimento de que o Golpe de 2016 não aconteceu apenas motivado pela luta econômica ou por disputas na institucionalidade política, mas foi produzido também por embates culturais e por uma forte reação à conquista de direitos que determinados segmentos da sociedade vinham adquirindo durante os governos petistas. Os fundamentalistas religiosos tornaram-se “uma força política no Brasil a partir dos anos 1990, sobretudo com o investimento das igrejas neopentecostais em prol da eleição de seus pastores” e são definidos “pela percepção de que há uma verdade revelada que anula qualquer possibilidade de debate” ( Miguel, 2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 101-102). Além de evangélicos, também compõem essa corrente membros da Igreja Católica, cujo projeto político das duas denominações é impor um conservadorismo moral, sobretudo às mulheres e à população LGBT. No entanto, o pesquisador poderia ter dialogado mais com produções que visaram a apresentar as perspectivas sociais destes segmentos diretamente afetados, como o importante livro O golpe na perspectiva de gênero , organizado por Rubim e Argolo (2018)RUBIM, L.; ARGOLO, F. (org.). O golpe na perspectiva de gênero. Salvador: EDUFBA, 2018. , e que conta com artigos de diversas intelectuais feministas. O mesmo vale para outras manifestações antirracistas e anti-LGBTfóbicas.3 3 Embora seja importante lembrar que muitos desses trabalhos sobre o Golpe de 2016 foram produzidos no mesmo período, logo após o impeachment da presidenta. Considerando o tempo editorial para publicação desses trabalhos, é possível que o autor não tenha tido acesso a outros materiais quando da feitura do seu livro.

No fechamento da obra, “Conclusão: o futuro da resistência democrática”, o autor descreve o conjunto de retrocessos do Governo Bolsonaro – a começar pela sua coalizão formada por corruptos, entreguistas, empresários, saudosos da Ditadura Militar, fundamentalistas religiosos, lunáticos seguidores de Olavo de Carvalho, juízes e procuradores repressivos, militares, grupos de mídia, entre outros; a degradação do debate público; a ampliação da violência seletiva das instituições; o retorno da intimidação como instrumento da disputa política; o combate a valores como igualdade e solidariedade; a criminalização do PT e da esquerda; o desfiguramento da ordem democrática prevista na Constituição, expresso em medidas de exceção, como a concessão de ultrapoderes a Sergio Moro pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região; ou a permissão da prisão de Lula pelo Supremo Tribunal Federal (STF)4 4 Pouco antes do fechamento desta resenha, o STF havia declarado a parcialidade de Sergio Moro nos processos judiciais envolvendo Lula, sinalizando mudanças na conjuntura política do país. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56503901 . Acesso em: 3 abr. 2021. – e se pergunta: “diante deste cenário, ainda podemos falar em democracia no Brasil?” ( Miguel, 2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 186).

Seu argumento é de que se trata de um gradiente , em que “estamos entrando no finalzinho do gradiente, no lusco-fusco, entre uma democracia que já não é e uma ditadura que ainda não pode ser” ( Miguel, 2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 187), afinal, ainda temos eleições, mesmo que enviesadas pelas elites econômicas e políticas, e distantes daquilo que podemos chamar de eleições livres. É justamente sobre as eleições que recai uma de suas críticas ao campo progressista, uma vez que a esquerda apostaria centralmente nela. Para Miguel (2019MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. , p. 189), “a resistência que vier das ruas há de se espelhar nas urnas – mas o polo dinâmico, que imprime a direção, precisa estar sempre nas ruas”. A aposta do autor, então, está na mobilização política pelos direitos e pela restauração da democracia que vá além das instituições, para que, em consequência, rebata nelas.

Aqui também cabe problematizações. Ao afirmar que o campo progressista investe energia política centralmente em eleições, o autor perde de vista inúmeras iniciativas da sociedade civil e dos movimentos sociais que não têm como objetivo primordial a obtenção de ganhos eleitorais imediatos. Um trabalho que reforça o nosso argumento é o de Tatagiba e Galvão (2019)TATAGIBA, L.; GALVÃO, A. Os protestos no Brasil em tempos de crise (2011-2016). Opinião Pública, Campinas, v. 25, n. 1, p. 63-96, 2019. . Sua pesquisa verificou que, entre 2011 e 2016, diversos grupos sociais saíram às ruas com pautas sem conexões diretas com processos eleitorais.

Estamos falando de trabalhadores, movimentos de moradia, estudantes, grupos identitários, coletivos artísticos, povos originários, ambientalistas, defensores de direitos humanos, familiares e amigos de vítimas, entre outros que reivindicavam ganhos salariais e melhores condições de trabalho, políticas sociais, promoção de justiça, direitos humanos e segurança, direito a terra, ações ambientais e na área da igualdade de gênero, raça e sexualidade, para mencionarmos apenas essas agendas. O próprio processo de impeachment contou com significativa resistência de setores progressistas, fora das instituições políticas e dos partidos, para manutenção do mandato de Dilma Rousseff.

Como se viu ao longo das linhas anteriores, trata-se de um livro-intervenção, que visa iluminar como a democracia brasileira colapsou nos últimos tempos para que novas ações sejam adotadas pelo campo democrático. Talvez por isso o autor tenha evitado prescrever soluções ou orientar a ação política. Até porque, de fato, não há saídas fáceis em nossa rota. As evidências de que se trata de um livro-intervenção e que o autor pretendeu dialogar com um campo muito mais amplo de atores, para além da academia e de pesquisadores, é que sua escrita é muito mais fácil e fluida que outras produções anteriores suas ( Miguel, 2014MIGUEL, L. F. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2014. , 2017MIGUEL, L. F. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2017. , 2018MIGUEL, L. F. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo, 2018. ), sem muitas marcas científicas, como citações teóricas ou notas de rodapé explicativas, que geralmente interrompem a leitura para complementar informações. Outra evidência disso está no valor do livro, que custa apenas quinze reais no site da editora, viabilizando a aquisição por membros do campo popular, como ativistas de movimentos sociais, militantes partidários, estudantes, professores, entre outros. Sua versão digital pode ser baixada gratuitamente no site da editora.5 5 Disponível em: https://www.expressaopopular.com.br/loja/wp-content/uploads/2020/07/colapso-democracia-brasil-digital.pdf . Acesso em: 3 abr. 2021.

Contudo, uma opção como essa também tem seus custos: apesar de ser um livro que aborda muitas questões, o que demonstra uma capacidade complexa de conectar temas e processos na interpretação de fenômenos, a leitura às vezes é apressada e alguns pontos não são aprofundados, ou mesmo exemplos que ajudariam na compreensão dos argumentos não são ilustrados na exposição. Por exemplo, fala-se na ação violenta da direita contra as universidades, mas casos de violência política e ataques contra a democracia, como foram as inúmeras fake news e as ameaças dirigidas ao ex-parlamentar Jean Wyllys, que renunciaria ao seu mandato e buscaria exílio do Brasil, não foram devidamente abordados. Episódios de violência contra intelectuais e professoras, como Tatiana Lionço ou Debora Diniz, ambas da Universidade de Brasília, só para exemplificarmos esses pouquíssimos casos, já que foram muitos Brasil afora (inclusive contra o próprio autor quando ofertou a componente curricular O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil , na UnB6 6 Sobre este episódio, indico a leitura de uma entrevista que realizei com Luis Felipe Miguel para a edição de lançamento da Revista Debates Insubmissos da Universidade Federal de Pernambuco – Campus Agreste. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/debatesinsubmissos/article/view/236385 . Acesso em: 26 mar. 2021. ), também não foram mencionados.

Por outro lado, penso ser demasiado exigente cobrar do autor a cobertura completa dos passos que nos levaram ao nosso atual estágio democrático. E justiça seja feita: em muitos momentos Miguel recorda de acontecimentos e detalhes que funcionam não apenas como contextualizadores da leitura, mas também como registro e memória da política brasileira contemporânea, e que já parecem estar num passado longínquo dado o volume de informações que recebemos diariamente. Pequenos exemplos desses detalhes, dos quais o livro é deliciosamente recheado, foi a menção à reportagem de Sérgio Pardellas e Débora Bergamasco para a Revista Isto É , em 2016, na qual a presidenta Dilma era apresentada como uma “Presidenta fora de si” (reforçando o argumento de que o golpe foi também misógino). Também foi lembrada a revelação do voto de José Sarney em Aécio Neves, ao passo que havia declarado apoio a Dilma, em 2014; ou mesmo que o nascimento de Sasha, a filha da apresentadora Xuxa, recebera mais tempo de cobertura do Jornal Nacional do que os candidatos à eleição presidencial no ano de 1998.

Nesse sentido, O colapso da democracia no Brasil (2019) é uma leitura útil para compreender as condicionantes que nos levaram ao poço sem fundo ilustrado na capa do livro (lembrando que, à época de seu lançamento, não havia sequer pistas de que seríamos atingidos em seguida pela pandemia de coronavírus) e, ao mesmo tempo, prazerosa, em que se misturam análises sofisticadas, reflexões críticas e uma narrativa sagaz de fatos e episódios que ativam a memória de quem acompanha a política no Brasil cotidianamente. O texto contribui diretamente para o amplo campo das Ciências Sociais e Humanas, da Ciência Política, para quem exerce a política no seu cotidiano e para aqueles e aquelas que apenas querem entender os percalços do sistema político nacional e da difícil construção democrática no Brasil.

REFERÊNCIAS

  • ABERS, R.; SERAFIM, L.; TATAGIBA, L. Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 57, n. 2, p. 325-357, 2014.
  • ALMEIDA, D. C. R. Os desafios da efetividade e o estatuto jurídico da participação: a Política Nacional de Participação Social. Revista Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 32, n. 3, p. 649-679, 2017.
  • MICHELS, R. Sociologia dos partidos políticos. 1ª edição [1911]. Brasília, DF: Editora UnB, 1982.
  • MIGUEL, L. F. A eleição visível: a Rede Globo descobre a política em 2002. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 46, n. 2, p. 289-310, 2003.
  • MIGUEL, L. F. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
  • MIGUEL, L. F. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
  • MIGUEL, L. F. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019.
  • RUBIM, L.; ARGOLO, F. (org.). O golpe na perspectiva de gênero. Salvador: EDUFBA, 2018.
  • TATAGIBA, L.; GALVÃO, A. Os protestos no Brasil em tempos de crise (2011-2016). Opinião Pública, Campinas, v. 25, n. 1, p. 63-96, 2019.
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    Bolsonaro, em 2019, assina o Decreto 9.759/2019, que extingue e limita os conselhos de participação popular. Em resposta a essa ação autoritária, diversos pesquisadores(as) sobre participação social criaram a campanha #OBrasilPrecisaDeConselho. Disponível em: https://democraciaeparticipacao.com.br/index.php/mobilizacoes/campanha-obpc . Acesso em: 24 mar. 2021.
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    Parte dessas informações foram extraídas de um artigo de Luis Felipe Miguel intitulado “A eleição visível: a Rede Globo descobre a política em 2002”, publicado na revista Dados, em 2003.
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    Embora seja importante lembrar que muitos desses trabalhos sobre o Golpe de 2016 foram produzidos no mesmo período, logo após o impeachment da presidenta. Considerando o tempo editorial para publicação desses trabalhos, é possível que o autor não tenha tido acesso a outros materiais quando da feitura do seu livro.
  • 4
    Pouco antes do fechamento desta resenha, o STF havia declarado a parcialidade de Sergio Moro nos processos judiciais envolvendo Lula, sinalizando mudanças na conjuntura política do país. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56503901 . Acesso em: 3 abr. 2021.
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  • 6
    Sobre este episódio, indico a leitura de uma entrevista que realizei com Luis Felipe Miguel para a edição de lançamento da Revista Debates Insubmissos da Universidade Federal de Pernambuco – Campus Agreste. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/debatesinsubmissos/article/view/236385 . Acesso em: 26 mar. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2020
  • Aceito
    09 Abr 2021
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