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A DISSEMINAÇÃO DE VALORES ECONÔMICOS NO SISTEMA DE ENSINO E A EROSÃO DA EDUCAÇÃO COMO BEM PÚBLICO

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa. : o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Editora. Boitempo, 2019. 326

Nas páginas finais do livro Les Régles de l’art, Pierre Bourdieu salientou que o longo processo de autonomização dos campos literário, científico e artístico encontrava-se ameaçado pela intrusão da lógica do campo econômico na produção e circulação dos bens culturais e pela pressão de atender às exigências do mercado. Em trabalhos posteriores, destacou que os profetas do novo evangelho neoliberal professam tanto em matéria de cultura como em outras questões que a lógica do mercado não pode trazer senão benefícios para a sociedade. O livro A escola não é uma empresa mantém um diálogo implícito com a questão da coação da lógica econômica sobre a autonomia da produção cultural ressaltada por Pierre Bourdieu (1992BOURDIEU, P. Les Règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire. Paris. Éditions Seuil. p. 459-473. 1992., 1998BOURDIEU, P. Acts of Resistance: against the new myths of our time. Cambridge. Polity Press. 1998.) em vários de seus trabalhos.1 1 A este propósito ver os trabalhos de Pierre Bourdieu: Les Règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire (em especial o pós-escrito denominado, Pour un corporativisme de l’universel. pp. 459-473). Éditions Seuil. Paris. 1992: Acts of Resistance: Against the New Myths of our Time. Polity Press. Cambridge. 1998. Ver também a este propósito, o artigo de Gisèle Saporo (et colls) Transformations des champs de production culturelle à l’ère de la mondialisation. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. n. 206-207. p. 4-13. 2015.

O livro de Christian Laval – Professor de Sociologia da Universidade Paris Nanterre – tem como objeto de investigação a penetração dos valores e práticas do neoliberalismo nas instituições educacionais da França desde os níveis iniciais da escolarização até a universidade. Aborda, também, as políticas educacionais de outros países, orientadas pelos mesmos princípios que vêm sendo difundidos e aplicados na sociedade francesa. Ao mobilizar no livro a influência de determinados organismos internacionais, como a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Banco Mundial e a Comissão Europeia, tanto no contexto educacional francês quanto em outros países, o autor beneficiou-se da obra Le nouvel ordre educatif mondial, na qual abordou a construção de uma nova concepção mundial de educação, inspirada numa lógica econômica. De acordo com essa nova ideia, a educação é vista como fator de produção, voltada para formação de recursos humanos para o mercado de trabalho e direcionada para a competitividade econômica dos países no contexto do processo de globalização. Vale registrar que, num período mais recente, Christian Laval, em parceria com Pierre Dardot, publicou o livro La nouvelle raison du monde. Essai sur la société neoliberal no qual alarga a discussão do neoliberalismo, um dos eixos centrais das mudanças que estão ocorrendo no sistema educacional analisadas no trabalho A escola não é uma empresa.2 2 Este livro de Christian Laval e Pierre Dardor foi traduzido com o título: A Nova razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo: São Paulo, 2016.

O livro encontra-se estruturado em três partes. Na primeira, enfoca a produção da noção de capital humano, que vem sendo utilizada de forma recorrente pelo discurso neoliberal, como um fator a serviço da empresa. Nessa direção, aborda as questões do conhecimento enquanto um fator de produção. A segunda parte trata da mercantilização do ensino, por meio do processo de liberação do intercâmbio comercial de instituições propiciado pelo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt). Na dinâmica deste processo, aborda a globalização do ensino superior e sua inserção num vasto mercado mundial de educação, que opera de forma transfronteiriça, numa lógica pós-nacional e de maneira empresarial. Na terceira parte, discute a modernização e gestão do sistema de ensino que tem impulsionado a elaboração de um novo léxico para se referir ao sistema educacional no contexto neoliberal, na França e em outros países. Ressalta que os discursos fabricados pela imprensa francesa a respeito do “fim da escola republicana” – “a morte de Jules Ferry” (1832-1893), que foi parlamentar, ministro da Educação e um dos mais conhecidos defensores de um ensino público, laico, gratuito e obrigatório no país – coincide com uma escalada da “modernização” do sistema escolar que tem alterado de forma significativa seus valores e suas finalidades.

Tomando como referência as mudanças em curso no sistema educacional francês, o trabalho, longe de considerá-las como consequências de forças mecânicas e/ou impessoais, coloca em tela a participação de uma multiplicidade de atores institucionais e individuais que têm direta ou indiretamente contribuído para implementá-las. Nesse sentido, o livro apoia-se numa sólida documentação e ampla bibliografia pertinente ao tema tratado, para analisar o impacto das organizações internacionais mencionadas anteriormente sobre o sistema de ensino, assim como o discurso modernizador da ERT (Mesa Redonda Europeia dos Industriais), que representa um dos principais think tanks empresariais que inspiram a elaboração dos Relatórios da Comissão Europeia. Aborda também os posicionamentos economicistas de integrantes do Mouvement des Entreprieses de France, que reúne os empresários franceses, bem como a participação de docentes reformistas, que apesar de suas boas intenções acabam incorporando o discurso modernizador produzido por esses agentes.

O trabalho destaca, igualmente, o papel do Estado francês como um outro ator relevante na condução de políticas neoliberais no campo educacional que, paradoxalmente, foram acentuadas pelo governo socialista eleito em 1981. Após afastar-se de seus princípios políticos, incorporou as lógicas de mercado em sua administração pública.

Nessa direção, o autor expôs os discursos de vários ministros da Educação do governo socialista que passaram a exaltar o espírito da empresa e adotaram a lógica gerencial como um elemento central da nova concepção da esquerda governamental que foi estendida ao sistema escolar. Numa das passagens do livro, o autor cita a afirmação de Laurent Fabius – ex-Primeiro-Ministro do Governo Mitterrand – de que uma das mudanças importantes daquele período consistiu no fim dos preconceitos contra a empresa e das falsas oposições entre setor público e setor privado, pois, para ele, tanto no setor público como no setor privado o espírito de empresa é indivisível. Nessa direção, propunha adotar a mesma postura empreendedora na solução dos diversos problemas sociais, inclusive nos educacionais. Ao inserir o seu objeto de investigação no contexto da dinâmica da globalização do capitalismo neoliberal, de suas representações ideológicas e práticas sociais, o autor ampliou seu horizonte de análise e articulou, de forma exitosa, a análise da conjuntura política e educacional da França, com a atuação de poderosos organismos internacionais que têm formulado agendas para a educação num âmbito mundial. Desta forma, o livro rompeu com a postura denominada por Ulrich Beck de nacionalismo metodológico, que tem feito parte dos cientistas sociais circunscrever o tratamento analítico de seus trabalhos tão-somente nos limites das sociedades nacionais, desconsiderando a existência de forças sociais que operam em um nível supranacional e que tendem a reverberar nas sociedades nacionais.3 3 Na visão de Daniel Chernilo (2011), a noção do nacionalismo metodológico se manifesta através de uma visão estreita dos processos sociais. Nesta perspectiva, os processos sociais que ocorrem no interior de uma sociedade são analisados como fenômenos típicamente nacionais, sem manter relações recíprocas com forças supra-nacionais que tornaram-se operante no contexto do processo de globalização. Esta ao enfocar a analise em fenômenos tão somente nacionais, mina a investigação dos processos transnacionais e transfronteiriços e promove um relato internalista das mudanças sociais. Ver o artigo de Danilo Chernilo, The critique of methodological nationalism. Theory and history. Thesis eleven. pp. 98-117. 2011. A respeito da crítica da noção de nacionalismo metodológico, ver: Ulrich Beck: Cosmpolitan Vision. Polity Press. Cambridge. 2006; Gerard Delanty, The Cosmopolitan Imagination: the renewal of critical theory. Cambridge University Press. 2009.

As mudanças na visão do sistema de ensino são situadas num contexto de transformações do capitalismo que se tornaram mais palpáveis a partir dos anos 1980, tais como a globalização das trocas comerciais, financeirização das economias, desobrigação do Estado, privatização de empresas públicas, transformações dos serviços públicos em quase empresas em várias parte do mundo, emergência do individualismo como valor social etc. Nessa conjuntura, as teorias do capital humano ocupam uma posição central na mutação da concepção de ensino. A perspectiva teórica individualista de Gary Becker, ganhador do Nobel de Economia em 1992, concebeu o capital humano como um bem privado que proporciona um retorno ao indivíduo ao longo da vida, com vista a aumentar sua produtividade no trabalho, sua renda e suas vantagens sociais. Em função de sua posição acadêmica, Becker contribuiu para a difusão do conceito de capital humano. A OCDE também ocupou uma posição destacada na disseminação mundial desta noção, salientando que o capital humano reúne tanto as qualificações adquiridas no sistema de ensino quanto as competências individuais, tais como maneiras de ser e pensar, capacidade de relacionamentos, criatividade, aptidão para resolver problemas, aprender a reciclar-se, ou seja, o atributo de determinados comportamentos associados ao “espírito das empresas” que podem ser transpostos para o mercado de trabalho. Dessa forma, a noção de capital humano, além de assimilar a educação como um bem privado, contribui também para a formação de uma sociedade constituída por indivíduos que têm como meta de vida maximizar seus interesses particulares.

O livro destaca que apesar de o discurso oficial de diversos governos enfatizar a educação como uma condição relevante no progresso econômico e social, é possível constatar a corrosão dos fundamentos e finalidades de uma instituição que até pouco tempo atrás se dedicava à transmissão da cultura e à reprodução de referenciais sociais e simbólicos da sociedade. Os objetivos “clássicos” da educação comprometidos com a emancipação política e com o desenvolvimento pessoal assumidos por instituições escolares em diversos países têm sido substituídos por uma outra concepção que privilegia a subordinação da produção do conhecimento a finalidades econômicas. Visando estreitar a relação entre universidades e empresas, a lei sobre pesquisa e inovação formulada por Claude Alegre em 1999 – ministro da Educação do governo socialista de Lionel Jospin – procurou facilitar as relações comerciais entre organismos públicos de pesquisa e empresas privadas. A lei previa também a possibilidade de pesquisadores e professores universitários criarem empresas com sócios do setor privado, sem perder a condição de funcionários públicos, ao contrário do que determinavam os dispositivos legais anteriores, que limitavam as relações entre o servidor público que deixava suas funções para fundar uma empresa. Posteriormente, esta lei foi complementada por uma série de facilidades que possibilitaram aos empresários e pesquisadores do setor privado tornarem-se professores nas universidades públicas.

O livro apresenta uma contribuição importante para a área da sociologia ao abordar o tema da globalização do ensino superior. Essa temática tem recebido uma atenção moderada por esta disciplina tanto no plano internacional quanto nacional, relegando a questão à área da educação que, por sua vez, vem adotando uma perspectiva normativa, ou seja, vem considerando a globalização do ensino superior como um fator positivo.4 4 Em um recente mapeamento realizado por Kuzhabekova, A e Hendel.D (2015) a respeito da produção acadêmica sobre o ensino superior no plano internacional, abarcando os cinco continentes, os dados fornecidos indicam que entre os 20 autores mais citados mundialmente que direta e/ou indiretamente tem abordado mudanças no ensino superior internacional, prevalece de forma significativa à presença de acadêmicos provenientes da área de educação. Kuzhabekova. A e Hendel. D. Mapping Global Research on International Higher Education. , in Research in Higher Education. Vol. 56 (8) pp.861-882. 2015. A respeito das relações entre o processo de globalização e o ensino superior, ver artigo de minha autoria: Carlos Benedito Martins, “Notas sobre a formação de um sistema transnacional de ensino superior”, in Caderno CRH, 28 (74): 291-308. 2015. Neste sentido, assinala que a expansão de matrículas do ensino superior em escala mundial, implementada a partir da década de 1970 criou as condições para a formação de um mercado global de educação e sua exploração comercial por conglomerados educacionais. Entre eles, o grupo norte-americano Appolo5 5 Apollo Grupo Inc, é uma empresa americana sediada na área de South Phoenix em Phoenix, Arizona. Este grupo detém, através das suas subsidiárias, diversas instituições de ensino com fins lucrativos, incluindo a Universidade de Phoenix, BPP Holdings no Reino Unido, Universidade para as Artes, Ciências e Comunicação em Santiago, Chile, e Universidad Latinoamericana no México. Ver a este respeito, o artigo de Cronin, J. e Bachorz, P. The Rising of Phoenix, and What It Means for Higher Education pp 11-21, in The Journal of Education 186 (1) the Trustees of Boston University. 2006. e uma série de universidades situadas nos países mais desenvolvidos, inclusive a França. A formação de uma vasta rede mundial composta por milhares de instituições de ensino superior e milhões de estudantes e sua consequente exploração comercial foram impulsionadas pelas medidas de liberalização de trocas de produtos pelo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), que equiparou os serviços educacionais aos demais bens contemplados em seu texto. Na dinâmica desse processo, os países mais desenvolvidos competem entre si para atrair estudantes estrangeiros, cobrando taxas escolares mais elevadas em relação aos estudantes nativos. Em 1998, a França criou a agência denominada EduFrance, com o objetivo de atuar no mercado mundial da educação e introduzir lógicas de mercado no sistema educacional. A França ocupa a terceira posição, ao lado dos Estados Unidos e da Inglaterra, no processo de absorção de estudantes estrangeiros, de tal forma que suas universidades tornaram-se um componente expressivo da dinâmica do seu comércio exterior.

Neste mercado formam-se verdadeiros conglomerados de instituições de ensino superior que oferecem cursos on-line. As maiores universidades dos Estados Unidos, como a Universidade da Califórnia, criaram filiais com grupos de mídia privados para disponibilizar esta modalidade de cursos e explorá-la comercialmente. Universidades corporativas, ou seja, acopladas a grandes empresas, oferecem cursos pagos e certificados em seus próprios nomes para um público mais geral. As empresas que oferecem serviços educacionais fazem concorrência entre elas, estabelecem relações frequentes de compra e venda de instituições, tal como ocorre no campo dos negócios.6 6 A respeito da comercialização no processo de desterritorialização do ensino superior, através da instalação de filiais de universidades estrangeiras em outros países, consultar: Stefan Collini. Speaking of universities. Verso. Londres. 2018. Bjanason, S. (2004), “Borderless Higher Education”, in R. King (org.), The university in the global age, Palgrave MacMillan, Londres, p. 142-164; Cunningham, S. & Stedman, L. (2000), The Business of Borderless Education. Department of Employment, Education, Training and Youth Affairs, Canbera; Garret, R. (2017), “International Branch Campuses: Success Factors”. The Observatory on Borderless Higher Education, The State University of New York at Albany, Albany.

Ao abordar o novo idioma que vem sendo utilizado no sistema educacional em nível mundial, o autor assinala que palavras, termos e expressões que circulam nos documentos oficiais internacionais e do governo francês nunca são neutros, mesmo quando se revestem de uma aparente linguagem técnica ou de meras descrições objetivas. Com isso, acabam por penetrar na linguagem cotidiana dos empresários, políticos e educadores. Nesse sentido, a expressão aprendizagem ao longo da vida, lançada nos anos 1970 pela Unesco, foi recuperada em 1996 pela OCDE e tornou-se um dos componentes principais do discurso dominante, que objetiva implementar uma orientação utilitarista para o ensino e a aquisição de conhecimentos. Para a Comissão Europeia e a OCDE, o que interessa é a capacidade do trabalhador continuar aprendendo durante toda a vida aquilo que for útil na esfera profissional. Sob esta perspectiva, o aprendizado ao longo da vida prepara o trabalhador menos para a obtenção de um diploma, o qual poderia dar acesso a um emprego e a uma carreira estável, e mais para a aquisição de competências básicas, as quais permitiriam sua constante adaptação às transformações econômicas e às necessidades do mercado. O princípio do aprendizado ao longo da vida encontra-se presente em diversas instituições sociais, ou seja, no sistema escolar, nas empresas, no processo de socialização que ocorre no interior das famílias e no contexto de uma sociedade desregulamentada. Dessa forma, o risco de exclusão e marginalização é cada vez maior, pois os indivíduos são impulsionados a responder pelas suas vantagens e custos de sua aprendizagem e das consequências de suas escolhas individuais e profissionais.

A noção de competência expressa um outro léxico que vem sendo utilizado de forma recorrente tanto na esfera educacional quanto nos campos econômico e profissional em substituição à concepção de qualificação, pois na sociedade salarial a qualificação funcionava como uma categoria social, associada a um conjunto de garantias e de direitos. Na França, desde a Liberação, a qualificação era definida com base em diplomas e constituía a base dos salários.7 7 A Liberação da França é o período que ocorreu no final da Segunda Guerra Mundial, compreendendo a tomada progressiva pelos Aliados das regiões da França ocupadas desde 1940 pelo exército das Potências do Eixo. No plano militar, a libertação traduz-se com o fim da ocupação militar alemã, o fim do regime de Vichy e o estabelecimento do Governo Provisório da República Francesa. Ver a este respeito o livro de Winock. M. La France libérée (1944-1947). Editions Perrin. Paris. 2021. No contexto do neoliberalismo, as dimensões institucionais da relação salarial vêm sendo enfraquecidas na medida em que a função do Estado é questionada pelos empresários em nome de uma maior individualização das relações sociais. Ao mesmo tempo, o empresariado francês adotou um discurso de desconfiança com relação à obtenção do diploma escolar. Para eles, o diploma enrijece a hierarquia profissional, impede a atualização constante do trabalhador, dificulta a avaliação de produtividade e a recompensa pelo resultado apresentado.

A profissionalização constitui outra expressão do novo léxico do sistema de ensino que aparece tanto nos documentos dos organismos internacionais – que têm procurado criar uma relação de sinergia com o mundo econômico – quanto nas iniciativas do governo francês. Essa ideologia que transforma a política educacional em um recurso visando à adaptação ao mercado de trabalho é um dos principais caminhos para a perda da autonomia das instituições de ensino em todos os seus níveis. A partir de 1984, a Lei Savary sobre o ensino superior outorgou às instituições de nível superior o status de estabelecimento público de caráter científico, cultural e profissionalizante.8 8 Trata-se da Lei de 26 de 1984 sobre o ensino superior na França que recebeu o nome do então Ministro Alain Savary. Esta lei promoveu uma ampla reforma do ensino superior francês e particularmente das universidades, sendo que várias disposições desta lei vigoram nos dias correntes. A lei define as quatro missões para o ensino superior, como (i) treinamento inicial e continuado; (ii) pesquisa científica; (iii) divulgação da cultura científica; (iv) cooperação internacional. A lei criou em termos de instituições, os estabelecimentos públicos de natureza científica, cultural e profissional. Com relação ao ensino superior na França, ver, Musselin, C. La longue marche des universités françaises. Presses universitaires de France, Paris, 2001; Mascret, A, Enseigment supérieur et recherche em France: uma ambition d’excelence. La Documentation Française.2015. Paris. Nesse sentido, a universidade deve operar conciliando a formação e a empregabilidade de tal forma que o título conferido (bacharelado ou licenciatura) passe a ser um diploma profissional. O autor questiona a concepção estreita de universidade que a restringe a uma formação superespecializada e ajustada às necessidades imediatas das empresas em contraposição a uma formação geral que possibilite aos estudantes uma maior autonomia intelectual durante o transcurso de suas vidas.

Um outro termo que integra o novo glossário do universo escolar é gestão educacional, pautado pelo princípio de eficiência de resultados dos professores, alunos e das próprias instituições. Geralmente este discurso é apresentado como uma crítica do centralismo governamental que caracteriza o ensino francês e uma resposta às aspirações da base por mais liberdade de iniciativa. No entanto, para o autor, não é a democracia que vence, tampouco é a iniciativa de base que é mobilizada, mas trata-se de mudanças que fortalecem o domínio dos controles e das injunções sobre os professores e os alunos. Na realidade, a disposição de imitar a empresa no sistema de ensino impulsionou iniciativas de colocar chefes na direção das unidades descentralizadas, encarregadas de aplicar de maneira eficiente as políticas de modernização, capazes de mobilizar energias, introduzir inovações e controlar os professores.

A modernização da escola vem sendo utilizada de forma corrente na plataforma de políticas sugeridas para o sistema de ensino pelo Banco Mundial, Comissão Europeia e OCDE apontando para a tríade de eficiência, avaliação e inovação a ser introduzida no interior das instituições de ensino. Por meio dessas palavras aparentemente neutras, o modelo de inspiração a ser transplantado para as escolas repousa no modus operandi das empresas na sua busca de eficiência. A ideologia da modernização voltada para a busca da eficiência tem impulsionado o sistema de ensino francês a criar um novo estilo de governança, ou seja, uma reconfiguração da ação pública, por meio de uma certa dose de retraimento da participação do Estado e simultaneamente o estabelecimento de novas “parcerias” com agências e serviços do setor privado aos quais se delega uma ação de “missão pública”.

O livro A escola não é uma empresa desvendou com competência analítica a constituição de uma complexa rede de atores institucionais e individuais, no contexto francês, que operam em aliança com organismos internacionais, como OCDE, Comissão Europeia e outros, visando condicionar os sistemas de ensino à lógica do campo econômico, cujos resultados apresentam uma séria ameaça à autonomia institucional da educação formal desde seus níveis iniciais até a universidade. O trabalho representa uma valiosa contribuição não apenas para os cientistas sociais interessados em questões educacionais e sua inserção no contexto do neoliberalismo, como também para o público em geral, que pode usufruir intelectualmente da crítica contundente dos rumos na educação no mundo contemporâneo, numa escrita clara, cativante e de fácil compreensão.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    A este propósito ver os trabalhos de Pierre Bourdieu: Les Règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire (em especial o pós-escrito denominado, Pour un corporativisme de l’universel. pp. 459-473). Éditions Seuil. Paris. 1992: Acts of Resistance: Against the New Myths of our Time. Polity Press. Cambridge. 1998. Ver também a este propósito, o artigo de Gisèle Saporo (et colls) Transformations des champs de production culturelle à l’ère de la mondialisation. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. n. 206-207. p. 4-13. 2015.
  • 2
    Este livro de Christian Laval e Pierre Dardor foi traduzido com o título: A Nova razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo: São Paulo, 2016.
  • 3
    Na visão de Daniel Chernilo (2011)CHERNILO, D. The critique of methodological nationalism. Thesis eleven. p. 98-117. 2011., a noção do nacionalismo metodológico se manifesta através de uma visão estreita dos processos sociais. Nesta perspectiva, os processos sociais que ocorrem no interior de uma sociedade são analisados como fenômenos típicamente nacionais, sem manter relações recíprocas com forças supra-nacionais que tornaram-se operante no contexto do processo de globalização. Esta ao enfocar a analise em fenômenos tão somente nacionais, mina a investigação dos processos transnacionais e transfronteiriços e promove um relato internalista das mudanças sociais. Ver o artigo de Danilo Chernilo, The critique of methodological nationalism. Theory and history. Thesis eleven. pp. 98-117. 2011. A respeito da crítica da noção de nacionalismo metodológico, ver: Ulrich Beck: Cosmpolitan Vision. Polity Press. Cambridge. 2006; Gerard Delanty, The Cosmopolitan Imagination: the renewal of critical theory. Cambridge University Press. 2009.
  • 4
    Em um recente mapeamento realizado por Kuzhabekova, A e Hendel.D (2015) a respeito da produção acadêmica sobre o ensino superior no plano internacional, abarcando os cinco continentes, os dados fornecidos indicam que entre os 20 autores mais citados mundialmente que direta e/ou indiretamente tem abordado mudanças no ensino superior internacional, prevalece de forma significativa à presença de acadêmicos provenientes da área de educação. Kuzhabekova. A e Hendel. D. Mapping Global Research on International Higher Education. , in Research in Higher Education. Vol. 56 (8) pp.861-882. 2015. A respeito das relações entre o processo de globalização e o ensino superior, ver artigo de minha autoria: Carlos Benedito Martins, “Notas sobre a formação de um sistema transnacional de ensino superior”, in Caderno CRH, 28 (74): 291-308. 2015.
  • 5
    Apollo Grupo Inc, é uma empresa americana sediada na área de South Phoenix em Phoenix, Arizona. Este grupo detém, através das suas subsidiárias, diversas instituições de ensino com fins lucrativos, incluindo a Universidade de Phoenix, BPP Holdings no Reino Unido, Universidade para as Artes, Ciências e Comunicação em Santiago, Chile, e Universidad Latinoamericana no México. Ver a este respeito, o artigo de Cronin, J. e Bachorz, P. The Rising of Phoenix, and What It Means for Higher Education pp 11-21, in The Journal of Education 186 (1) the Trustees of Boston University. 2006.
  • 6
    A respeito da comercialização no processo de desterritorialização do ensino superior, através da instalação de filiais de universidades estrangeiras em outros países, consultar: Stefan Collini. Speaking of universities. Verso. Londres. 2018. Bjanason, S. (2004), “Borderless Higher Education”, in R. King (org.), The university in the global age, Palgrave MacMillan, Londres, p. 142-164; Cunningham, S. & Stedman, L. (2000), The Business of Borderless Education. Department of Employment, Education, Training and Youth Affairs, Canbera; Garret, R. (2017), “International Branch Campuses: Success Factors”. The Observatory on Borderless Higher Education, The State University of New York at Albany, Albany.
  • 7
    A Liberação da França é o período que ocorreu no final da Segunda Guerra Mundial, compreendendo a tomada progressiva pelos Aliados das regiões da França ocupadas desde 1940 pelo exército das Potências do Eixo. No plano militar, a libertação traduz-se com o fim da ocupação militar alemã, o fim do regime de Vichy e o estabelecimento do Governo Provisório da República Francesa. Ver a este respeito o livro de Winock. M. La France libérée (1944-1947). Editions Perrin. Paris. 2021.
  • 8
    Trata-se da Lei de 26 de 1984 sobre o ensino superior na França que recebeu o nome do então Ministro Alain Savary. Esta lei promoveu uma ampla reforma do ensino superior francês e particularmente das universidades, sendo que várias disposições desta lei vigoram nos dias correntes. A lei define as quatro missões para o ensino superior, como (i) treinamento inicial e continuado; (ii) pesquisa científica; (iii) divulgação da cultura científica; (iv) cooperação internacional. A lei criou em termos de instituições, os estabelecimentos públicos de natureza científica, cultural e profissional. Com relação ao ensino superior na França, ver, Musselin, C. La longue marche des universités françaises. Presses universitaires de France, Paris, 2001; Mascret, A, Enseigment supérieur et recherche em France: uma ambition d’excelence. La Documentation Française.2015. Paris.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2020
  • Aceito
    18 Out 2021
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