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CAPITALISMO INDUSTRIAL DE PLATAFORMA: externalizações, sínteses e resistências

INDUSTRIAL PLATFORM CAPITALISM: externalizations, syntheses and resistances

LE CAPITALISME INDUSTRIEL DE PLATEFORME: externalisations, synthèses et résistances

Resumos

Na contramão das teses da sociedade pós-industrial, o artigo desenvolve o argumento de que as plataformas digitais sintetizam contemporaneamente a radicalização e o espraiamento da lógica produtiva industrial. Ao analisar o capitalismo de plataforma e os mecanismos de externalização da produção, considera que as plataformas são apenas a ponta do iceberg e a comprovação empírica do desenvolvimento da lógica industrial, da produção de mercadorias (produto ou serviço, material e/ou imaterial, tangível ou intangível). Trata-se, assim, de um capitalismo industrial de plataforma. Com esse processo em curso, observa-se a tendência de espraiamento da plataformização do trabalho e suas formas de exploração de trabalho, de relações de trabalho destituídas de direitos que, por sua vez, encontram resistência nas lutas dos trabalhadores e trabalhadoras que desnudam a faceta perversa do trabalho plataformizado.

Capitalismo Industrial de Plataforma; Externalizações; Resistências; Trabalho Plataformizado; Ação Sindical


Contrary to the theses of post-industrial society, this article argues that digital platforms simultaneously synthesize the radicalization and spread of industrial productive logic. When analyzing platform capitalism and its mechanisms of product externalization, the text considers platforms as just the tip of the iceberg and empirical evidence of the development of industrial logic, of the production of goods (product or service, material and/or immaterial, tangible or intangible). It is, therefore, an industrial platform capitalism . As an ongoing process, it tends to spread labor platformization and its conditions of labor exploitation, disenfranchised labor relations that, in turn, face resistance by the workers, laying bare the perversion of platformized work.

Industrial Platform Capitalism; Externalizations; Resistances; Platform Work; Union Action


Contrairement aux thèses de la société post-industrielle, cet article soutien que les plateformes numériques synthétisent à la fois la radicalisation et la diffusion de la logique productive industrielle. En analysant le capitalisme de plateforme et ses mécanismes d’externalisation des produits, le text considère que les plateformes ne sont que la partie émergée de l’iceberg et la preuve empirique du développement de la logique industrielle, de la production de biens (produit ou service, matériel et/ou immatériel, tangible ou intangible). Il s’agit donc d’un capitalisme industriel de plateforme. en tant que processus continu, il tend à étendre le travail de plateforme et ses formes d’exploitation du travail, des relations de travail dépourvues de droits qui, à leur tour, sont combattues par les ouvrières qui exposent la facette perverse du travail de plateforme.

Capitalisme Industriel de Plateforme; Externalisations; Résistances; Travail de Plateforme; Action Syndicale


INTRODUÇÃO

A chegada da sociedade pós-industrial ( Bell, 1973BELL, D. O advento da sociedade pós-industrial: uma tentativa de previsão social. São Paulo: Cultrix, 1973. ), impulsionada pelo desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação (TICs), na qual o trabalho criativo e com autonomia seriam a regra demora a se fazer presente. Mais do que um argumento utópico, esse diagnóstico é, por vezes, utilizado como instrumento político e ideológico – que persuade e evoca o trabalhador à ruptura com laços formais de trabalho que aprofundam a exploração e a dominação das classes trabalhadoras. Nesse processo, o autogerenciamento do trabalho é um mecanismo adicional de responsabilização que aprofunda a subsunção real do trabalho ao capital.

Em oposição às teses que, por equívoco ou interesse, defenderam e divulgaram uma sociedade capitalista não industrial, consideramos que o capitalismo de plataforma, cunhado em 2016 por Nick Srnicek, consiste em uma radicalização da lógica produtiva industrial. Ou seja, ao contrário de uma sociedade pós-industrial, o capitalismo de plataforma, e os mecanismos de externalização do qual as plataformas são apenas a ponta do iceberg, seria a comprovação empírica do desenvolvimento da lógica industrial. Mais do que isso, a cooperação-industrial seria o elemento central da produção capitalista, mas tomaria, nas últimas décadas, uma nova conformação. 1 1 Em Marx (1988) , a cooperação é apresentada como uma nova força produtiva que, a olhos nus, aparece apenas como jornada de trabalho combinada. É sob a cooperação que se organiza a divisão social do trabalho especificamente capitalista, a saber, a jornada de trabalho parcelada, formando, assim, a figura do trabalhador coletivo. A novidade é não apenas a soma de trabalhos individuais, mas a produção do trabalho social, no qual a exploração é realizada sobre o conjunto combinado de trabalhadores e trabalhadoras pelo mando do capitalista. O trabalho não pago, assim, concretiza-se como trabalho social. Nova, mas que manteria esse pilar de estruturação industrial de forma que o capitalismo de plataforma seria, na prática, para sermos conceitualmente rigorosos, um capitalismo industrial de plataforma .

Para o desenvolvimento deste argumento, é necessário fazermos duas ressalvas em relação à noção de indústria. A primeira delas se refere à denominação “sociedade pós-industrial” na qual, na maioria das vezes, o “industrial” é entendido como sinônimo de “fabril”, isto é, a um tipo de combinação produtiva, entre tantas outras possíveis, da forma industrial de produção. Isso levou muitos autores, por conta dos processos de automação produtiva e de redução do número de empregos nas fábricas, a dar adeus, por exemplo, ao trabalho, à classe trabalhadora e ao antagonismo classista. 2 2 Para aprofundar essa discussão, ver Santos (2013) . A segunda ressalva, menos problemática, mas ainda necessária, se refere à divisão, fundamentalmente econômica, das sociedades em setores: primário, secundário e terciário ou agricultura, indústria e serviços, respectivamente. Essa divisão permanece parcial e restritiva no sentido em que faz parecer que a forma industrial de produção seria apenas aquela da indústria estrito senso, e que tanto a agricultura e pecuária quanto os serviços não pudessem ser organizados com base na produção industrial. A parcialidade dessa indicação pode ser contestada ao observarmos, por exemplo, como Marx faz referência às primeiras formas da indústria capitalista presentes no campo na “Assim chamada acumulação primitiva” (1988).

Entendemos, assim, a forma-indústria como Marx a indicou em O capital , isto é, no sentido em que “abarca todo o ramo da produção conduzido de modo capitalista” ( Marx, 1988MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultura, 1988. , p. 39). Com base nessa indicação, podemos inicialmente partir da pressuposição de que a indústria não se limita à fábrica, à produção apenas de mercadorias tangíveis e não se restringe a um setor específico da sociedade. Ela é, na prática, uma forma, uma maneira de produzir ou, ainda, a maneira central de produzir nas sociedades capitalistas.

Com base nessa concepção e tendo como objetivo desenvolver a ideia de que o “capitalismo de plataforma” é, na verdade, um capitalismo industrial de plataforma , nosso artigo se divide em mais três partes, além da conclusão. Na primeira, analisamos como, desde as décadas de 1960 e 1970, o capital realiza um intenso e abrangente processo de externalização, desconcentração e flexibilização produtiva, chegando, aos dias de hoje, nas plataformas digitais de trabalho. Em seguida, discutimos as externalizações dos processos produtivos, características das plataformas digitais, concebidas neste texto como uma síntese da forma-indústria e uma das formas centrais contemporâneas de extração de sobretrabalho. A importância dessa discussão se deve a sua expressão empírica, quando observado o espraiamento das plataformas digitais de trabalho em curso ( Cardoso; Garcia, 2021CARDOSO, A. C. M.; GARCIA, L. Viagem ao inferno do trabalho em plataformas. Outras Palavras, São Paulo, 2 dez. 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/viagem-ao-inferno-do-trabalho-em-plataformas/ . Acesso em: 22 mar. 2022.
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). Por fim, na terceira parte, o texto se debruça, ainda que de forma breve, sobre as respostas políticas que os trabalhadores e trabalhadoras vêm dando ao trabalho plataformizado, demonstrando que as discussões sobre a obsolescência da forma sindicato e a sua incapacidade de responder a essas modalidades de trabalho não encontra correspondência na realidade empírica, ainda que em muitos casos a ação sindical ainda se encontre incipiente. As condições de trabalho, as formas de gestão desse trabalho pelas empresas, os conflitos e a própria experiência dos trabalhadores vão criando as condições para a ação coletiva, que desembocam tanto na criação de novos sindicatos quanto de outros meios de organização com forte apelo para a solidariedade classista.

O PROCESSO DE EXTERNALIZAÇÃO E A REPRODUÇÃO DA FORMA-INDÚSTRIA

O regime de acumulação flexível ( Harvey, 1992HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992. ) se apoia no processo de desconcentração produtiva, na flexibilização da produção, no desemprego e na narrativa da participação e responsabilidade por parte dos trabalhadores, em diálogo com a ideologia neoliberal ( Coriat, 1993CORIAT, B. Pensar al revés. Madri: Ed. Siglo XXI, 1993. ). Nesse regime, a “flexibilização” se apresenta nas mais diversas dimensões: internamente às empresas (no que se refere às formas de contratação, remuneração e jornada de trabalho), bem como na relação entre elas, num intenso processo de externalização que se realiza tanto dentro de cada país – outsourcing – como de forma global – worldsourcing ( Tomasina, 2012TOMASINA, F. Los problemas en el mundo del trabajo y su impacto en salud. Crisis financiera actual. Revista de Salud Pública, v. 14, n. 1, p. 56-67, 2012. ).

A flexibilização produtiva interna pode ser nomeada de “heteroflexibilização” ( Cardoso, 2022CARDOSO, A. C. M. C. Empresas-plataforma e seus tempos laborais incertos, controlados, intensos, insuficientes, longos, não pagos e heterônomos. In: DAL ROSSO, S.; CARDOSO, A. C. M.; CALVETE, C. S.; KREIN, J. D. (org.). O futuro é a redução da jornada de trabalho. Porto Alegre: Cirkula, 2022. ), dado que ela é orientada apenas em função dos desejos do capital em adaptar o uso da força de trabalho as suas necessidades no momento exato em que elas se manifestam, remunerando apenas os períodos em que ela é utilizada. Entretanto, no discurso neoliberal, essa heteroflexibilidade aparece como sinônimo de liberdade e autonomia. Assim, menos direitos, menos burocracia, menos controle, menos limites colocados pela ação dos sindicatos e maior colaboração entre capital e trabalho resultariam em mais emprego e em melhor equilíbrio entre vida profissional e privada ( European Trade Union Institute, 2017EUROPEAN TRADE UNION INSTITUTE. HesaMag: The future of work in the digital era, Brussels, n. 16, 2017. ).

Como as políticas neoliberais abrem essa possibilidade ao capital, para os trabalhadores e trabalhadoras, essa suposta flexibilidade – em um contexto de trabalho intenso ( Dal Rosso, 2008DAL ROSSO, S. Mais trabalho: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008. ), em fluxo tenso ( Durand, 2004DURAND, J. P. (ed.). La chaîne invisível: travail aujourd’hui: flux tendu et servitude volontaire. Paris: Seuil. 2004. ), de crises econômicas e desemprego – significa perda de direitos, de segurança e de saúde ( Antunes; Praun, 2015ANTUNES, R.; PRAUN, L. A sociedade dos adoecimentos no trabalho. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, v. 123, p. 407-427, jul.-set. 2015. ), de projetos de futuro e de controle sobre seus tempos de trabalho e de não trabalho ( Cardoso, 2009CARDOSO, A. C. M. Tempos de trabalho, tempos de não trabalho: disputas em torno da jornada do trabalhador. São Paulo: Annablume, 2009. ).

Essa situação é agravada, pois acontece em paralelo ao processo de externalização global, que também é heterodeterminado pelas grandes empresas contratantes. De acordo com Chan, Pun e Selden (2019)CHAN, J.; PUN, N.; SELDEN, M. A política da produção global: Apple, Foxconn e a nova classe trabalhadora chinesa. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 25-43. , esse processo de externalização se inicia já nos anos 1950 e 1960, no contexto da Guerra Fria, quando os Estados Unidos e o Japão deslocam empresas de produtos eletrônicos e iniciam um processo de terceirização dos setores de vestuário e calçados em países como Taiwan, Coréia do Sul, Singapura e Hong Kong. Na década seguinte, esse espraiamento das grandes empresas atinge outros países, como Tailândia, Índia e Filipinas. Ainda conforme Chan, Pun e Selden (2019)CHAN, J.; PUN, N.; SELDEN, M. A política da produção global: Apple, Foxconn e a nova classe trabalhadora chinesa. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 25-43. , nesses países, marcados por um setor agrícola muito forte, as legislações trabalhistas eram quase inexistentes, assim como a organização sindical.

Esse processo de externalização ganha maior abrangência e intensidade na década de 1980 ( Bono; Bulloni, 2021BONO, A. D.; BULLONI, M. N. Tercerización laboral en la era digital: viejos problemas y nuevos desafíos. Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-12, 2021. ), processo esse possibilitado pelas novas tecnologias de transporte, de informação e comunicação, num contexto de fluxos internacionais de capital crescente e vigência de políticas neoliberais. Já na década seguinte, em meio ao processo de digitalização da economia, o movimento de não localização se aprofunda ainda mais ( Iranzo; Leite, 2006IRANZO, C.; LEITE, M. La subcontratación laboral en América Latina. In: DE LA GARZA, E. T. (coord.). Teorías sociales y estudios del trabajo: nuevos enfoques. Barcelona: Anthropos, 2006. p. 404-432. ), de forma que o território da produção se amplia, rompendo fronteiras espaciais e temporais, possibilitando um distanciamento cada vez maior entre os locais de produção e os de decisão (Chesnais,1996). Essa mudança, por sua vez, não significou uma transformação na lógica de produção capitalista industrial, mas, sim, seu aprofundamento, radicalização e espraiamento em novos setores, novos países e novas regiões.

Como as indústrias mantêm o controle e o poder centralizado em uma relação totalmente vertical com as empresas terceirizadas, o processo de externalização impõe que estas últimas se adaptem às exigências das contratantes no que se refere à qualidade e à quantidade de mercadorias produzidas, aos prazos cada vez mais curtos e imprevisíveis, assim como à necessidade de redução de custos. Dessa forma, as empresas contratantes conseguem aumentar suas margens de lucro apesar de reduzirem cada vez mais o trabalho realizado em suas dependências ( Chan; Pun; Selden, 2019CHAN, J.; PUN, N.; SELDEN, M. A política da produção global: Apple, Foxconn e a nova classe trabalhadora chinesa. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 25-43. ). 3 3 Para demonstrar esse movimento, os autores utilizam do exemplo da Apple. Se, por um lado, a empresa teve sua margem de operação ampliada de 18,7%, em 2007, para quase 40% cinco anos depois, por outro, nesse mesmo período, a empresa terceirizada Foxconn, que realiza a maior parte do trabalho da Apple, teve queda em sua margem de operação de 3,7% para 1,5% ( Chan; Pun; Selden, 2019 ).

Assim, as cadeias globais de suprimento na contemporaneidade têm criado condições de trabalho extremamente precárias marcadas por longas jornadas laborais, baixas e inseguras remunerações, trabalho intenso, poucos direitos e muita limitação no que se refere ao processo de organização, representação sindical e negociação coletiva. Além disso, em muitos casos, são as funções de maior risco aos trabalhadores que são terceirizadas para outros países, assim como as de maior perigo ao meio ambiente ( Blanton; Peksen, 2017BLANTON, R. G.; PEKSEN, D. Dying for globalization? The impact of economic globalization on industrial accidents. Social Science Quarterly, [s. l.], v. 98, n. 5, p. 1487-1502, 2017. ). Tais condições têm sido apontadas como produtoras de acidentes ambientais e laborais, riscos psicossociais no trabalho ( Antunes e Praun, 2015ANTUNES, R.; PRAUN, L. A sociedade dos adoecimentos no trabalho. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, v. 123, p. 407-427, jul.-set. 2015. ; Moreno-Jiménez; Garrosa Hernández, 2009MORENO-JIMÉNEZ, B.; GARROSA HERNÁNDEZ, E. Globalización y riesgos laborales emergentes. Ciencia & Trabajo, [s. l.], ano 11, n. 32, p. A31-A34, 2009. ) e suicídios ( Chan; Pun; Selden, 2019CHAN, J.; PUN, N.; SELDEN, M. A política da produção global: Apple, Foxconn e a nova classe trabalhadora chinesa. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 25-43. ). Além das empresas contratantes buscarem “esconder” essas péssimas condições de trabalho e seus consequentes acidentes ambientais, sociais e laborais em outros países, elas não precisam enfrentar as mobilizações e revoltas de trabalhadores, dado que são as empresas terceiras que devem se responsabilizar por essa situação.

Assim, se uma das mais importantes mudanças realizadas pelo modo de produção capitalista foi a separação entre os tempos e os espaços de trabalho remunerado, e os tempos e espaços de não trabalho, concentrando o trabalho nas fábricas ( Thompson, 1967THOMPSON, E. P. Time, work-discipline, and Industrial capitalism. Past & Presente: a journal of historical studies, Oxford, n. 38, p. 56-97, dez. 1967. ), no contexto atual a combinação de tecnologias, mundialização e políticas neoliberais possibilitam ao capitalismo redescentralizar a produção e a força de trabalho. Ao juntar esse movimento com o de flexibilização interna (sobretudo as novas formas de contratação e jornada), vemos, ainda, uma reaproximação entre os tempos e espaços de trabalho e de não trabalho ( Freyssenet, 1994FREYSSENET, M. Quelques pistes nouvelles de conceptualisation du travail. Sociologie du Travail, Paris, n. 94, p. 105-122, 1994. ), dada a invasão do trabalho nos tempos e espaços de não trabalho ( Cardoso, 2009CARDOSO, A. C. M. Tempos de trabalho, tempos de não trabalho: disputas em torno da jornada do trabalhador. São Paulo: Annablume, 2009. ).

Essa heteroflexibilização interna tem sido alcançada ao nível mundial a partir de pressões e ações do capital, e mudanças na legislação. No Brasil, além da terceirização, há o trabalho em tempo parcial, por tempo determinado, temporário, intermitente, a esdrúxula figura do autônomo exclusivo, o falso microempreendedorismo, o teletrabalho e o trabalho em plataforma digitais; mudando, inclusive, direitos conquistados como o conceito de trabalho efetivo, definido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 4, como “o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens ” ( Maeda, 2019MAEDA, P. Contrato zero-hora e seu potencial precarizante. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 121-142. , grifo nosso).

É nesse contexto que o capital, sobretudo a partir dos anos 2020, amplia ainda mais o processo de externalização e de redução de custos, com base na plataformização do trabalho e na total retirada de direitos trabalhistas. É importante frisarmos essa combinação, pois sabemos que, assim como em outros momentos históricos, seria possível a constituição de um processo de inovação tecnológica – neste caso, a plataformização – que não significasse a retirada de direitos. Isso porque não é a tecnologia que define as condições de trabalho, mas, sim, a correlação de forças entre as classes sociais que, no contexto do capitalismo neoliberal, dificulta, mas não impede, a ação e reação política dos trabalhadores e trabalhadoras.

Em diálogo com o que foi dito anteriormente, nos perguntamos se o capitalismo de plataforma ( Srnicek, 2017SRNICEK, N. Platform capitalism. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. ) significaria, enfim, um passo importante na constituição de uma sociedade pós-industrial ou se, ao contrário, seria mais uma fase do processo de externalização, sendo as plataformas digitais, hoje, a ponta do iceberg desse longo processo e, por consequência, a comprovação empírica do desenvolvimento da lógica industrial.

AS PLATAFORMAS DIGITAIS COMO SÍNTESE CONTEMPORÂNEA DA FORMA-INDÚSTRIA

As externalizações dos processos produtivos, em seu conjunto, são a forma fragmentária e pretérita das plataformas digitais. Com base nelas, as plataformas digitais puderam se constituir, tornando-se, mesmo que ainda tendencialmente, a forma contemporânea de extração de sobretrabalho que inaugura uma nova fase do desenvolvimento industrial capitalista. O capitalismo de plataforma seria uma radicalização da lógica produtiva industrial. Diferente de uma sociedade pós-industrial, o capitalismo de plataforma e os mecanismos de externalização são a comprovação empírica do desenvolvimento da lógica industrial. Tal afirmação decorre do fato de a cooperação-industrial ser o elemento central da produção capitalista, o qual tomaria nas últimas décadas uma nova conformação.

Na base dessa indicação está a relação – já longamente debatida, 4 4 Os autores de tradição marxista-maoista ( Bettelheim, 1976 ; Linhart, 1983 ; Magaline, 1977 ) são radicalmente avessos às teses do determinismo tecnológico que fizeram estragos teóricos e sociais no século XX, seja pelo etapismo estalinista (capitalismo-socialismo-comunismo), fundado numa compreensão quase saint-simmoniana de progresso da técnica e da indústria como meio de superação do capitalismo, seja no interior do debate sobre as formas de organização política e de “consciência” revolucionária, interpretadas a reboque do primado das forças produtivas. mas ainda necessária – entre forças produtivas e relações de produção. 5 5 A relação forças produtivas/relações de produção é pano de fundo para a demonstração de nossos argumentos. Menos quando vemos tal relação ser recuperada equivocadamente pelas teses do operarismo digital ( Englert; Woodcock; Cant, 2020 ) e mais adequadamente quando evidenciamos a base na qual se constitui o novo núcleo de subordinação da classe trabalhadora, desenvolvido em um longo processo de amadurecimento tecnológico, gerencial e científico, que criaram as bases para a materialização estrutural das plataformas digitais como a forma atual, mas não finalística, da produção industrial. Essa relação, tão cara a Marx (1988)MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultura, 1988. na construção de muitos de seus argumentos quando da descrição da produção capitalista, desde a cooperação à grande indústria, se apresenta mais uma vez quando nos deparamos com o que aqui denominamos capitalismo industrial de plataforma .

Nesse sentido, entendemos que, ao longo das últimas décadas, foram gestadas, como demonstramos na primeira parte deste artigo, novas formas de exploração e dominação do capital sobre o trabalho, novas relações produtivas, mas que, ainda de forma difusa, não caracterizavam uma nova força produtiva que fundamentasse um novo estágio do industrialismo. Isto é, essas forças produtivas, de alguma maneira, ainda não conseguiam expressar os desejos e interesses do capital de “forma completa”, mesmo que o capital estivesse, incessantemente, em busca de uma nova força produtiva que expressasse um novo grau nos processos de extração do tempo de trabalho excedente. Essa busca está imersa, não sem coincidência, no quadro histórico dos processos de financeirização, impulsionados pelo neoliberalismo ( Chesnais, 2013CHESNAIS, F. As raízes da crise econômica mundial. Revista em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, n. 31, p. 21-37, 2013. ), que se configuram como o “laboratório” para a constituição do capitalismo industrial de plataforma . 6 6 Esses processos de elaboração de novas relações de produção que se materializam em forças produtivas ainda intermediárias em relação às plataformas digitais seriam, portanto, a antessala, a base material que permite sua emersão. Um capitalismo que, apesar das alterações nas relações de trabalho, das políticas estatais e das formas de organização da classe trabalhadora, conserva os pilares da produção industrial como demonstraremos a seguir.

É com base nessa indicação que introduzimos questões basilares para pensarmos como está constituída a produção nas sociedades contemporâneas, sobretudo se examinamos as TICs como elementos estruturadores da produção de mercadorias, seja de forma direta, isto é, sendo elas mesmas o produto a ser realizado, ou auxiliar: como instrumentos para a produção de produtos e serviços de vários tipos (tangíveis ou não). Assim, ponderamos: a indústria do início do século XXI é a mesma dos séculos XIX e XX? Os trabalhadores e as trabalhadoras têm as mesmas qualificações técnicas e científicas? O trabalho realizado tem as mesmas características? As lutas e formas de resistência política que se configuram na atualidade têm alguma relação com aquelas travadas nos séculos anteriores?

A resposta a essas questões demanda uma detida análise do que Mazzucchelli (1985)MAZZUCCHELLI, F. A contradição em processo: o capitalismo e suas crises. São Paulo: Brasiliense, 1985. chamou de “contradição em processo”. Se levarmos em consideração apenas a aparente diferença entre as qualificações profissionais, o conteúdo do trabalho realizado, o modo de vida da classe trabalhadora e as organizações políticas que são criadas nesse contexto marcado pelas TICs e pelo neoliberalismo, a resposta seria: não. Uma observação, portanto, apenas aparente nos levaria a concluir, apressadamente, que a produção subordinada por meio de plataformas digitais não guardaria semelhança alguma com a produção dos séculos anteriores 7 7 Ver, por exemplo: Gorz (2005) ; Hardt e Negri (2005) ; Castells, (1999) e Lazaratto (2001). Mais recentemente, diversos autores conceituam o trabalho plataformizado como aquele que promoveria formas de trabalho pós-capitalistas. Ver, entre outros: Dowbor (2020) , Standing (2016) e Sundararajan (2018) . e que poderíamos até mesmo questionar sua existência no presente.

Essa aparência necessária que reveste a superfície da forma-indústria hoje pode ser explicada de variadas formas, tendo destaque a formulação ancorada no fetiche da tecnologia como forma de libertação dos trabalhadores em relação aos vínculos de submissão, domínio e mando (de várias ordens) capitalistas ( Gorz, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005. ; Standing, 2016STANDING, G. A. Revolt is coming for cloud labor. Huffpost, London, 27 out. 2016. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/guy-standing/cloud-labor-revolt_b_8392452.html . Acesso em: 25 abr. 2020.
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), isto é, em relação aos chefes, supervisores, capatazes ou gerentes. 8 8 Há uma relativa transferência do mando para as forças produtivas e metodologias gerenciais que obscurecem as contradições e os conflitos de interesse entre trabalhadores e capitalistas. Trata-se de uma estratégia que não é nova, na medida em que as TICs permitem (na relação coerção/consenso) a transferência das responsabilidades para os trabalhadores, calcados nas formas da autotaylorização ou autogerenciamento ( Amorim; Grazia, 2021 ). Ou seja, a compreensão de que o desenvolvimento tecnológico promoveria relações de trabalho marcadas pela maior participação e engajamento dos trabalhadores nos processos produtivos e que demandaria uma diminuição da supervisão direta sobre os coletivos de trabalho.

Transferir às tecnologias e às engrenagens gerenciais a subordinação do trabalhador, dando a ela um verniz de autonomia, não é tema novo. Há várias remissões possíveis desse tipo de estratégia produtiva e gerencial. Desde a introdução da maquinaria e das revoltas ludistas ( Engels, 2010ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010. ), do “vestir a camisa”, marcadamente presente nas formas de gestão toyotista do trabalho, do empreendedorismo contemporâneo ( Amorim; Pelegrini; Guilherme; Moda, 2021AMORIM, H.; PELEGRINI, J. G.; GUILHERME, G. H.; MODA, F. O empreendedorismo contemporâneo ou uma forma de mistificação das relações de classe. Contemporânea, São Carlos, v. 11, p. 845-873, 2021. ), até as diferentes formas de mediação digital que visam controlar os coletivos de trabalho com o intuito de despersonificar a gerência, sobretudo em empresas que promovem o trabalho plataformizado. Trata-se de formas historicamente determinadas que buscaram e buscam mistificar o confronto capital versus trabalho no interior da produção, isto é, a luta de classes no interior dos processos produtivos. Não obstante, seja nas versões mais antigas, seja nas mais recentes, é reproduzida a forma-indústria.

Amorim e Moda (2020)AMORIM, H.; MODA, F. Trabalho por aplicativo: gerenciamento algorítmico e condições de trabalho dos motoristas da Uber. Fronteiras, São Leopoldo, v. 22, n. 1, p. 59-71, 2020. observaram esse processo quando analisaram o trabalho dos motoristas da Uber, destacando que, via aplicativo e práticas de gerenciamento algorítmico ( Möhlmann; Zalmanson, 2017MÖHLMANN, M.; ZALMANSON, L. Hand on the wheel: navigating algorithmic management and Uber drivers’ autonomy. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON INFORMATION SYSTEMS, 2017, Seul. Anais […]. Seul: [s. n.], 2017. ), a plataforma digital reproduz a estrutura da indústria, mas aprofundando a subsunção real do trabalho ao capital na medida em que a plataforma dita em tempo real todo o processo de trabalho (metas, tempos e movimentos), acompanhando minuciosamente a execução de todo o trabalho, previamente prescrito e punindo, também em tempo real, quaisquer desvios das normas e regras determinadas pela empresa. 9 9 Nesse sentido, Woodcock (2020) defende a conformação do “panóptico algorítmico”, permanecendo os trabalhadores em constante e minuciosa supervisão por meio da mediação tecnológica.

Nesse sentido, a plataforma digital, essa imensa força produtiva, que com seus braços de subordinação se estende e ramifica seu alcance, não rompe com os tipos de indústria, trabalho e formas de gerenciamento dos séculos passados, se observamos que ainda se fazem presentes e operam de forma a estruturar os processos de produção:

1) a separação entre produtores e meios de produção, o que confere domínio e poder ao capitalista sobre o que produzir e como produzir, continua a dividir as classes sociais; 2) a cooperação como princípio geral da indústria, com a combinação de diversos tipos de trabalho, no sentido de atender ao aumento da produtividade (que pode ser aprofundada via gerenciamento algorítmico ou baseado em softwares de monitoramento e controle), se reproduz como elemento central da produção industrial; e 3) a subsunção real que ainda subordina diretamente o trabalhador coletivo à “nova maquinaria”, isto é, às novas tecnologias da informação e comunicação (aplicativos e softwares), além de incorporar antigas e novas práticas laborais (saber-fazer) do trabalhador coletivo, articula e integra os trabalhadores, radicalizando a extração de mais-trabalho via cooperação ( Amorim; Grohmann, 2021AMORIM, H.; GROHMANN, R. O futuro do trabalho: entre novidades e permanências. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2021. , p. 8).

Dessa forma, a grande transformação, se podemos salientar sua especificidade histórica, está exatamente em como essa imensa força produtiva, esse imenso autômato a serviço do capital (as plataformas digitais), com base nas TICs, aprofundam o controle dos processos de trabalho com base na dataficação ( Mejias; Couldry, 2019MEJIAS, U.; COULDRY, N. Datafication. Internet Policy Review, [s. l.], v. 4, n. 8, p. 1-10, 2019. ), dos mais variados e distintos tipos de trabalho, independentemente de estarem situados no interior de uma estrutura fabril, como nos galpões de logística da Amazon ( Delfanti, 2019DELFANTI, A. Machinic dispossession and augmented despotism: digital work in an Amazon warehouse. New Media & Society, v. 23, n. 1, p. 39-55, 2019. ), ou espalhados ao longo do globo, como no caso da Uber. A exploração do trabalhador coletivo, nessas variadas configurações do trabalho, se robustece, portanto, na medida em que o trabalho socialmente combinado (cooperação capitalista) é redimensionado no espaço e no tempo.

A extração de mais-trabalho do trabalhador coletivo passa, assim, a ser organizada e controlada em tempo real. A “nova maquinaria” ( Amorim; Grohmann, 2021AMORIM, H.; GROHMANN, R. O futuro do trabalho: entre novidades e permanências. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2021. ), a plataforma digital cria consigo, dessa forma, um novo trabalhador coletivo do qual pode extrair como nunca tempo de trabalho excedente aceleradamente, sem, contudo, renunciar à apropriação privada dos louros dessa extração combinada de trabalho, garantida pela propriedade privada dos meios de produção: as próprias plataformas digitais. A plataformização do trabalho é, portanto, uma radicalização da forma-indústria, é a exemplificação contemporânea do trabalhador coletivo (digital).

Nesse sentido, a subsunção real, descrita por Marx em O capital (1988) e que exemplarmente surge com a introdução da máquina-ferramenta no século XVIII, ganharia mais uma forma histórica, uma nova fase se preferirmos cronologizar a constituição de novas forças produtivas que sintetizam nos processos de produção os interesses de valorização e acumulação capitalistas.

Nesse novo momento de radicalização da indústria, isto é, da forma típica da produção capitalista, materializam-se, necessária e simultaneamente, as formas de dispersão do trabalho ( Harvey, 1992HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992. ) em seu duplo sentido. Primeiro, no aprofundamento da divisão do trabalho (tarefa, microtarefa etc.) e, segundo, na manutenção do controle sobre o trabalhador coletivo, isto é, utilizando a internet e as TICs como mecanismos de aglutinação da dispersão ou de combinação da heterogeneidade produtiva, configurando, dessa forma, um nexo comum entre as atividades e tarefas cada vez mais parcializadas. Ou seja, trabalhos e tarefas estão dispersos, mas o uso combinado deles ainda está centralizado por formas de controle física e remota, asseguradas pela centralização e concentração ( Abílio; Amorim; Grohmann, 2021ABÍLIO, L.; AMORIM, H.; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 57, p. 26-56, 2021. ) de um volume imenso de capital, garantido historicamente pela manutenção e reprodução da propriedade privada dos meios de produção.

É, nesse sentido que, na relação dialética entre determinado nível de desenvolvimento tecnológico e as relações de produção que procuram superar essa base tecnológica, a plataforma digital se cristaliza como instrumento sintético da forma industrial contemporânea. Com isso, configura-se um novo patamar de relações de produção no qual convergem tecnologias digitais, gerenciamento algorítmico, robótica, microeletrônica, metodologias ágeis, despotismo digital, mediados, contudo, pelo trabalho assalariado.

Essa tese, apresentada parcialmente em Amorim e Grohmann (2021)AMORIM, H.; GROHMANN, R. O futuro do trabalho: entre novidades e permanências. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2021. , ganha profundidade na medida em que introduzimos o argumento não menos importante de que esse conjunto pretérito de externalizações produtivas, que criam as bases para a plataformização do trabalho, é, na prática, um processo de externalização dentro da mesma lógica: a industrial, já que mantém, de maneira atualizada, os pilares fundamentais da produção tipicamente capitalista . Externaliza-se, assim, no interior, no mesmo padrão estrutural da expansão capitalista. Não há, portanto, nenhuma novidade nessa nova conformação se atentarmos para os ciclos de reprodução do capital ao longo da história, sobretudo depois da passagem da subsunção formal para a subsunção real com a introdução da maquinaria. A reprodução social ainda obedece, nesses termos, aos objetivos classistas dominantes, mesmo que no interior dessas classes sociais o centro de poder econômico, político e simbólico pendule historicamente entre o capital acionário e o produtivo (no sentido estrito).

Naquela ocasião, Amorim e Grohmann (2021)AMORIM, H.; GROHMANN, R. O futuro do trabalho: entre novidades e permanências. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2021. analisavam a forma industrial-cooperativa de maneira mais genérica, dando relevância apenas a como as formas típicas da produção capitalista se fazem presentes na atualidade e também se apresentam como tendência do desenvolvimento industrial. Já em um segundo momento, Abílio, Amorim e Grohmann (2021)ABÍLIO, L.; AMORIM, H.; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 57, p. 26-56, 2021. aprofundaram esse argumento no sentido em que se salientou a necessária presença e reprodução do trabalhador coletivo, isto é, de uma figura histórica fundamental para estruturação da produção de mercadorias e de sua sociabilidade no capitalismo, mesmo em um contexto em que tudo parecia fluido, efêmero, líquido ou heterogêneo, sobretudo no que se refere aos processos de produção, ainda que muitas vezes estes sejam configurados a partir da privação da articulação física dos coletivos de trabalho, garantido pela internet e pelas TICs.

Neste artigo, aprofundamos essa pressuposição na medida em que destacamos a plataformização do trabalho como um novo momento, uma nova fase, do processo de industrialização. Mais do que isso, estamos destacando de forma conceitualmente mais rigorosa que se trata não apenas de um capitalismo de plataforma ( Srnicek, 2017SRNICEK, N. Platform capitalism. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. ), mas de um capitalismo industrial de plataforma no qual a produção de mercadorias (seja um produto ou um serviço) em seus princípios estruturais é ampliada, redimensionada, e a exploração e dominação do trabalho radicalizada.

Assim, consideramos que a plataformização da produção de mercadorias presente hoje no capitalismo contemporâneo é um desdobramento empírico do que foi descrito por Marx (na relação forças produtivas/relações de produção) com relação: 1) ao trabalho socialmente combinado/parcelar (cooperação); e 2) à passagem da manufatura à maquinaria. Tais comparações se sustentam na medida em que, no capitalismo industrial de plataforma , a cooperação é reproduzida por meio das formas de controle combinado dos trabalhadores aparentemente dispersos, e que as plataformas digitais sintetizam as relações de produção anteriores a elas, aprofundando a extração de sobretrabalho.

No século XVIII, as possibilidades históricas foram se construindo ao longo do tempo e os caminhos poderiam ser os mais diversos. No entanto,apenas a maquinaria representava e sintetizava os interesses do capital. O mesmo princípio está presente na plataformização do trabalho. Apesar de ser algo mais detido em relação ao conjunto de externalizações produtivas pretéritas a ela, a plataformização do trabalho inaugura, ao sintetizar os interesses mais urgentes da acumulação capitalista, 10 10 Esse argumento poderia adicionalmente ser desenvolvido com base na teoria do valor-trabalho de Marx, no sentido, sobretudo, de apontar para como as multinacionais do setor de tecnologia da informação são aquelas que mais extraem sobretrabalho, valorizando-se e gerando lucros colossais. Tema central a ser trabalhado futuramente. a redução de custos pela expulsão do tempo de trabalho do processo de produção, 11 11 Ver, por exemplo, a discussão sobre o trabalhador just in time , em Abílio (2020) . sem perder, ou melhor, ampliando o controle sobre os coletivos de trabalho, indicando tendencialmente uma nova fase da subsunção real do trabalho ao capital.

De outra forma, estamos afirmando que, primeiro, a plataformização do trabalho, pensando o iceberg como metáfora, só pôde se constituir na medida em que um conjunto de relações sociais de produção se fizeram presentes antes dela, organizando forças produtivas ainda incipientes aos interesses das classes dominantes no contexto do capitalismo neoliberal. Não obstante, apesar de ser a ponta do iceberg, isto é, a parte menor e visível, é com base na plataformização do trabalho que o capitalismo industrial se radicaliza. Ou seja, não se trata apenas de um iceberg, mas de um conjunto, um sem-número de icebergs que se formam e só puderam se formar por conta desse pretérito, maior e necessário, mais ainda desacoplado, conjunto de externalizações produtivas criado nas últimas décadas.

AÇÃO COLETIVA, RESISTÊNCIAS E RESPOSTAS POLÍTICAS NO QUADRO DO CAPITALISMO INDUSTRIAL DE PLATAFORMAS

As questões discutidas anteriormente são relevantes tanto do ponto de vista teórico como social. Neste caso, contribuem para a compreensão das mudanças qualitativas e quantitativas no que se refere ao mercado laboral, dado o processo de espraiamento das plataformas de trabalho, assim como da atuação dos diversos atores sociais. Como apontam Cardoso e Garcia (2021)CARDOSO, A. C. M.; GARCIA, L. Viagem ao inferno do trabalho em plataformas. Outras Palavras, São Paulo, 2 dez. 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/viagem-ao-inferno-do-trabalho-em-plataformas/ . Acesso em: 22 mar. 2022.
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, se a ideia predominante era de que as plataformas de trabalho seriam apenas uma forma high-tech de reproduzir o trabalho precário em setores onde esta realidade já estava presente – como o serviço de cuidado ( Pereira; Cardoso, 2022PEREIRA, M. J. T.; CARDOSO, A. C. M. Plataformas de trabalho de cuidado: um olhar interseccional necessário. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ), de beleza ( Oliveira; Pereira, 2022OLIVEIRA, J. A.; PEREIRA, M. J. T. Plataformas digitais e o trabalho nos serviços de beleza. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ) ou de entrega ( Festi; Oliveira, 2022FESTI, R.; OLIVEIRA, R. V. Entregues à sua própria sorte: os “autônomos” entregadores por plataformas. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ), no contexto atual, evidencia-se que essa concepção estava equivocada.

Afinal, o processo de plataformização do trabalho não abrange apenas uma pequena parcela da classe trabalhadora, tampouco somente aqueles setores já marcados pelo trabalho precário, mas se espraia pelos subsetores que apresentam melhores índices de formalidade e condições laborais – como no bancário ( Cavarzan, 2022CAVARZAN, G. M. Ensaios de plataformização do trabalho no setor financeiro: o modelo de negócios das fintechs e corretoras de valores. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ), na saúde ( Marcelino; Cardoso, 2002MARCELINO, H. A.; CARDOSO, A. C. M. Plataformas de trabalho no setor de saúde: de quem é a responsabilidade. Revista Ciências do Trabalho, São Pulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ), na educação ( Ikuta, 2022IKUTA, C. Y. S. Manifestações do trabalho em plataformas na educação. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ), no jurídico ( Silva, 2022SILVA, M. C. M. S. As plataformas digitais no setor jurídico. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ) e no de tecnologia da informação ( Melo; Ferro Junior, 2022MELO, M. M. N.; FERRO JÚNIOR, A. M. Plataformas de trabalho no setor de tecnologia da informação – TI. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ). Em realidade, as plataformas digitais adentraram ao mercado de trabalho por meio dos setores ditos precários, buscando, com isso, menor resistência por parte dos consumidores, dos juristas e dos próprios trabalhadores.

Apesar de haver uma enorme variedade de tipos de plataformas de trabalho, com distintos modelos de negócio, relação com clientes e trabalhadores e trabalhadoras e formas de organização do trabalho, a quase totalidade se baseia em alguns fundamentos: infraestrutura e mediação digital – que possibilitam a dispersão da produção e a manutenção do controle centralizado; dataficação – como nova forma de rentabilização; gestão por metas gamificada e por meio de algoritmos – levando a intensificação laboral e ausência de espaços de autonomia para quem trabalha; e desconsideração das legislações, entre elas a trabalhista ( Cardoso, 2022CARDOSO, A. C. M. C. Empresas-plataforma e seus tempos laborais incertos, controlados, intensos, insuficientes, longos, não pagos e heterônomos. In: DAL ROSSO, S.; CARDOSO, A. C. M.; CALVETE, C. S.; KREIN, J. D. (org.). O futuro é a redução da jornada de trabalho. Porto Alegre: Cirkula, 2022. ).

Essa combinação, além de criar péssimas condições de trabalho, possibilita ao capital seguir em seu objetivo de pagar apenas os tempos “efetivamente” trabalhados. Como demonstram diversos estudos, na jornada laboral desses trabalhadores há muito tempo de trabalho não remunerado, como a espera de clientes ou de estabelecimentos, a procura de trabalho, a correção de tarefas e a formação ou construção de perfil nas plataformas ( Cardoso, 2022CARDOSO, A. C. M. C. Empresas-plataforma e seus tempos laborais incertos, controlados, intensos, insuficientes, longos, não pagos e heterônomos. In: DAL ROSSO, S.; CARDOSO, A. C. M.; CALVETE, C. S.; KREIN, J. D. (org.). O futuro é a redução da jornada de trabalho. Porto Alegre: Cirkula, 2022. ; Festi; Oliveira, 2022FESTI, R.; OLIVEIRA, R. V. Entregues à sua própria sorte: os “autônomos” entregadores por plataformas. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ; Kalil, 2019KALIL, R. B. Capitalismo de plataforma e direito do trabalho: crowdwork e trabalho sob demanda por meio de aplicativos. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. ; Organização Internacional do Trabalho, 2019ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Las plataformas digitales y el futuro del trabajo: cómo fomentar el trabajo decente en el mundo digital. Genebra: OIT, 2019. ).

Além disso, a entrada das plataformas nos mais diversos setores vai constituindo outro grupo de trabalhadores e trabalhadoras dentro de cada um dos setores, impactando as organizações políticas das classes trabalhadoras, sobretudo porque um dos objetivos na reprodução ampliada do capital é, antes de materializar sua nova forma dominante, desconstruir e desestruturar os vínculos de solidariedade política construídos ao longo do tempo no seio da classe trabalhadora ( Gramsci, 2001GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 4. ).

Neste contexto de avanço da transformação digital e de emergência do trabalho plataformizado, reaparece uma narrativa que, novamente, coloca o sindicalismo na berlinda na medida em que se afirma que ele teria envelhecido e seria incapaz de responder ao novo mundo do trabalho cada vez mais plataformizado. Isto é, com ocupações emergentes ou reconfiguradas pelo uso que o capital faz das tecnologias informacionais, muitas das quais fora de um mercado de trabalho organizado e protegido – caso dos entregadores de mercadorias e condutores de passageiros – e, uma vastidão de trabalhadores jovens, dispersos, trabalhando nas ruas, nos domicílios, nas fazendas de cliques que, muitas vezes, nunca vivenciaram uma relação de trabalho formal.

Esse discurso sobre os sindicatos reaparece no século XXI, mais de trinta anos depois daquelas teses de crise terminal do sindicalismo feitas por autores pós-fordistas. No entanto, nem o fim do sindicalismo, nem sua morte se efetivou, mesmo que tenha ocorrido redução de taxas de filiação sindical e ação grevista em diversos países, envolto em crises de diferentes matizes e dimensões. Experiências de reinvenções do sindicalismo, de resistências políticas da classe trabalhadora foram captadas e analisadas pelos variados estudos empíricos, contrapondo muitas das teses que afirmavam a obsolescência da instituição sindicato e também das classes sociais.

Segundo Bridi (2021)BRIDI, M. A. Trabalhadores em tecnologias da informação e sindicalismo no Brasil: o que há de novo no horizonte? São Paulo: Annablume, 2021. , circula certa visão de que esses trabalhadores vinculados ao “trabalho digital” são avessos à organização sindical. Entretanto, no caso do Brasil, por exemplo, embora muito pouco conhecido academicamente, os trabalhadores de tecnologia da informação (TI) apresentam trajetória de organização desde a década de 1970, com a formação de Associações de Profissionais de Processamento de Dados (APPDs), quando foram criadas as primeiras empresas públicas de informática no Brasil. Muitas dessas associações se transformaram em sindicatos e outros novos foram criados, totalizando em torno de 30 sindicatos que representam um pool de ocupações de TI, que são desafiados permanentemente a se adaptarem às rápidas mudanças tecnológicas que produzem também alterações no quadro de ocupações e da própria base, descritas em seus estatutos e convenções coletivas de trabalho. 12 12 Os sindicatos de TI no Brasil detêm algumas particularidades se comparados aos outros sindicatos do Brasil, como a representação de trabalhadores do setor público e privado, a realização de negociações coletivas junto a empresas públicas e privadas e de diferentes portes e configurações ( Bridi, 2021 ). E agora o avanço da plataformização também no setor de TI demandará novas respostas desse sindicalismo ( Melo; Ferro Junior, 2022MELO, M. M. N.; FERRO JÚNIOR, A. M. Plataformas de trabalho no setor de tecnologia da informação – TI. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, maio 2022. ).

Conforme Schalit (2021)SCHALIT, J. Os “sindicalistas improváveis” de Israel Organizando os trabalhadores não-manuais do setor de TIC. In: DIRKSEN, U.; HERBERG, Mirko (ed.). Sindicatos em transformação 4.0: histórias de sindicatos enfrentando o novo mundo do trabalho. Berlin: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2021. p. 36-45. , os trabalhadores da área tecnológica que são, em geral, altamente qualificados e bem remunerados, tidos como grupos mais improváveis de sindicalização, foram organizados e sindicalizados pela central sindical Histadrut (Organização Geral dos Trabalhadores em Israel) no período recente.

Nessa esteira, a organização sindical vem se dando inclusive em empresas gigantes do setor de TI, como Google e Amazon, em que os trabalhadores se reconhecem como “trabalhadores” e, como reação às condições objetivas e adversas de trabalho, estão se orientando pela ação coletiva. Essa organização dos trabalhadores na empresa Google, por exemplo, ocorre apesar do imaginário disseminado pelas escolas da administração e agentes do mercado como o “céu do trabalho” em razão das “boas” e diferenciadas condições de trabalho.

Na área de games foi criado, em 2018, o Game Workers Unite , presente em doze países, com o objetivo de sindicalizar os trabalhadores da indústria de videogames, objetivando acabar com as práticas de horas extras; adotar melhoria em diversidade e inclusão, além de apoiar as reivindicações que objetivam garantir salários fixos e justos. No segmento das plataformas de streaming audiovisual, em 2020 foi criada a Means TV , uma cooperativa de produtores audiovisuais de conteúdo anticapitalista com o objetivo de combater o modo dominante generalizado de plataformização do trabalho.

Os trabalhadores da Alphabet, uma empresa que controla a Google, criaram o Sindicato dos Trabalhadores da Alphabet. Entre suas pautas se destacam melhoria das condições de trabalho, luta contra as pressões, assédio, discriminação e perseguições, além de melhores salários. Outra organização que cabe mencionar, sobretudo por se tratar de uma ocupação fora da relação de assalariamento, é o Sindicato dos Youtubers ( YouTubers Union ), criado em 2018 por Jörg Sprave. Filiado ao maior sindicato alemão, o IG Metall , tem como pauta a busca pela maior transparência nos algoritmos e dos critérios para desmonetização dos vídeos, a comunicação com pessoas e não máquinas para a resolução de problemas, a participação nas decisões quanto a mudanças adotadas pela plataforma digital. Interessante observar que youtubers e entregadores de aplicativos, embora tão distintas as ocupações, têm em comum reivindicações por maior transparência das plataformas, gestão do trabalho e melhor remuneração, transparência nas avaliações e comunicação direta com as empresas sem a mediação automática das máquinas. As similitudes das reivindicações são relativas à gestão por algoritmo, condições de trabalho e de remuneração, fatores que impelem a organização desses trabalhadores de distintos perfis e que sequer são considerados “trabalhadores”.

Também no setor de transporte, os entregadores e condutores vêm ampliando a organização e articulação internacionalmente. Em 2020, contando com a participação de 23 países, dentre os quais diversos países latino-americanos, motoristas de aplicativos lograram se organizar internacionalmente fundando a International Alliance of App-Based Transport Workers (IAATW). Os motoristas em plataformas de trabalho se uniram como uma aliança ampla e global para se apoiarem, coordenar e organizar internacionalmente, com o objetivo de impedir práticas exploratórias e prejudiciais, para melhorar a vida e as profissões dos motoristas em todo o mundo, além de promover a solidariedade, a cooperação para ampliar a capacidade de enfrentamento de questões locais quanto à própria indústria global (IAATW). No Brasil, diversas associações de condutores e entregadores estão organizadas ou em processo de organização em diversos estados da federação. Como destaca Kalil (2020)KALIL, R. B. Organização coletiva dos trabalhadores no capitalismo de plataforma. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 79-93, ago.-nov. 2020. , todos ativos nas redes sociais com páginas de Facebook, por exemplo.

São experiências de organização que evidenciam que não há trabalhador inorganizável ( Grohmann, 2020GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: entre a dataficação, a financeirização e a racionalidade neoliberal. Revista Eptic, [s. l.], v. 22, n. 1, p. 106-122, 2020. ). Os conflitos no trabalho, as contradições de um sistema econômico injusto, explorador, acende a chama da organização coletiva. A ausência de instituições formalizadas de representação não significa inexistência de resistência e de formas de organização e ações concretas.

Para esses trabalhadores, contudo, dada a ausência de um local de trabalho e de encontro cotidiano, o uso da mídia social está tomando o lugar da reunião de fábrica, no que é chamado de “ação conectada”, conforme publicação do The Economist (2018). As redes como Facebook, o Reddit e o WhatsApp, assim como ferramentas como o Hustle, um serviço de mensagens de texto, permitem que os grupos coletem informações sobre o trabalho, sobre a forma de gestão das empresas e dos próprios trabalhadores, além de possibilitar a organização e divulgação de campanhas em todo o mundo ( The Economist, 2018THE ECONOMIST. Trabalhadores do mundo, conectai-vos. Tradução de Alexandre Pimenta. LavraPalavra, [s. l.], dez. 2018. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2018/12/07/trabalhadores-do-mundo-conectai-vos/ . Acesso em: 3 jun. 2022.
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). A conexão também é difundida entre usuários de plataformas globais de crowdsourcing , como a Mechanical Turk e a Freelancer, que figuram entre as grandes empresas de terceirização de trabalho on-line, em que os trabalhadores se encontram fora das proteções legais e negociações coletivas.

A literatura vem demonstrando que esses trabalhadores e trabalhadoras se conectam digitalmente e tratam de diversos temas, como carreira on-line, proteção contra fraudes e preços de serviços, por exemplo. Os motoristas de Uber e entregadores, apesar de trabalharem individualmente, participam de grupos, estão ativos nos chats, nas páginas das redes sociais e em grupo de WhatsApp. Na Cidade do México, acompanhando a Unión Nacional de Trabajadores por Aplicación – o primeiro sindicato da região da categoria, a Unión Nacional de Trabajadores de Aplicaciónes Movíles, que se encontrava em processo de criação de um sindicato e o coletivo #NiUmRepartidoMenos –, Bridi (2022)BRIDI, M. A. Relatório de Pesquisa “Configurações do trabalho digital e ação coletiva no contexto pós-pandemia Covid-19: um estudo comparativo entre países latino-americanos”. Curitiba: UFPR, 2022. Disponível em: https://www.prppg.ufpr.br/siga/visitante/Colaborador?idAutor=17754&operacao=projetos . Acesso em: 3 ago. 2022.
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observou que suas reuniões e assembleias são transmitidas on-line a partir de suas páginas, respondendo aos comentários postados e fazendo uso intensivo da comunicação. Aliás, no contexto da pandemia, boa parte das entidades sindicais estão realizando suas reuniões, assembleias e mesmo mesas de negociação a partir de plataformas de comunicação.

Essas ações, por sua vez, ocorrem em paralelo às diversas tentativas de contato presencial entre os trabalhadores tanto ao nível local como internacional, como já dito anteriormente. Observa-se, portanto, uma lógica da ação conectada, o que nos remete a novas modalidades de organização, nas quais os trabalhadores aproveitam as potencialidades para a conexão, troca de ideias, discussão de preços do seu trabalho e situações de injustiças, por exemplo.

As plataformas digitais são palcos de conflitos por suas péssimas condições de trabalho. O engajamento em uma ação coletiva de trabalhadores não se dá por um único caminho e tem relação com as experiências pessoais e coletivas do trabalhador com a própria presença sindical (na medida em que o sindicato consegue canalizar as insatisfações do trabalhador), a percepção de injustiça no trabalho, com a reação contra o autoritarismo, as duras condições de trabalho e a percepção dos riscos que envolvem sua atividade.

A ação coletiva observada exprime um processo de formação classista, visto que ela não é dada e tem sido forjada nos conflitos e embates diários do trabalho. Nessa linha, as plataformas podem ser analisadas como mais um laboratório da luta de classes, sendo que as disputas que envolvem gestão e controle do trabalho apresentam brechas e frestas para a organização ( Grohmann, 2021GROHMANN, R. Trabalho digital: o papel organizador da comunicação. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, v. 18, n. 51, p. 166-185, jan.-abr. 2021. ). Se há potencialidades de luta e organização, há também limites que são de natureza jurídica e geográfica, da dispersão, dos discursos empreendedoristas e ideologias que nublam as relações de trabalho. Esses limites, contudo, embora obstaculizem a ação coletiva, não têm impedido a organização dos trabalhadores em coletivos e mesmo a busca pela formação da velha instituição sindicato, que se mantém como possibilidade de organização das categorias profissionais, mesmo entre aqueles que parecem “inorganizáveis”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos desenvolver a ideia de que o capitalismo industrial de plataforma radicaliza e espraia a produção industrial. Para o desenvolvimento desse argumento, frisamos que a lógica produtiva industrial não pode ser tomada como sinônimo de “fabril”, dado que esta foi e é apenas um tipo de combinação produtiva, tampouco ao denominado “setor produtivo ou industrial”.

Assim, partindo da concepção de Marx (1988)MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultura, 1988. da forma-indústria como a forma principal de produção nas sociedades capitalistas, analisamos os processos de flexibilização interna e externa, iniciados nos anos 1960 e 1970, processos estes que são potencializados com as plataformas digitais.

Terceirização, crowdsourcing, crowd work , home office, trabalho intermitente e informal e, por consequência, os trabalhos subordinados por meio de plataformas digitais seriam, portanto, expressões dessa nova fase de valorização e acumulação do capital. Entretanto, é importante deixar claro que não se trata de uma fase inaugurada com algum tipo de determinismo tecnológico. Pelo contrário, a plataforma digital, pensando a maquinaria como metáfora, sintetizaria um conjunto de relações sociais interessadas que ganham maior profundidade na medida em que todas essas expressões de trabalho e de flexibilização laboral e da produção estariam articuladas e sintetizadas na própria plataforma digital. Nesses termos, a plataforma digital é, na contemporaneidade, apenas a parte mais visível de um longo processo, mas não menos acelerado, de externalizações dos custos produtivos nelas materializados.

Nesse cenário, a ação coletiva e as formas de resistências da classe trabalhadora são observadas em diversos âmbitos e modalidades: desde a organização de coletivos de trabalhadores com questões pontuais em grupos conectados em redes sociais até a modalidade clássica da organização tradicional, a formação – ainda que incipiente em muitos casos – de sindicatos no quadro atual.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Em Marx (1988)MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultura, 1988. , a cooperação é apresentada como uma nova força produtiva que, a olhos nus, aparece apenas como jornada de trabalho combinada. É sob a cooperação que se organiza a divisão social do trabalho especificamente capitalista, a saber, a jornada de trabalho parcelada, formando, assim, a figura do trabalhador coletivo. A novidade é não apenas a soma de trabalhos individuais, mas a produção do trabalho social, no qual a exploração é realizada sobre o conjunto combinado de trabalhadores e trabalhadoras pelo mando do capitalista. O trabalho não pago, assim, concretiza-se como trabalho social.
  • 2
    Para aprofundar essa discussão, ver Santos (2013)SANTOS, V. O. Trabalho imaterial e teoria do valor em Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2013. .
  • 3
    Para demonstrar esse movimento, os autores utilizam do exemplo da Apple. Se, por um lado, a empresa teve sua margem de operação ampliada de 18,7%, em 2007, para quase 40% cinco anos depois, por outro, nesse mesmo período, a empresa terceirizada Foxconn, que realiza a maior parte do trabalho da Apple, teve queda em sua margem de operação de 3,7% para 1,5% ( Chan; Pun; Selden, 2019CHAN, J.; PUN, N.; SELDEN, M. A política da produção global: Apple, Foxconn e a nova classe trabalhadora chinesa. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 25-43. ).
  • 4
    Os autores de tradição marxista-maoista ( Bettelheim, 1976BETTELHEIM, C. A luta de classes na União Soviética. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. ; Linhart, 1983LINHART, R. Lenin, Camponeses, Taylor. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. ; Magaline, 1977MAGALINE, A. D. Reprodução, luta de classes e desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção capitalista: a desvalorização da força de trabalho. In: MAGALINE, A. D. Luta de classes e desvalorização do capital. Lisboa: Moraes, 1977. p. 71-94. ) são radicalmente avessos às teses do determinismo tecnológico que fizeram estragos teóricos e sociais no século XX, seja pelo etapismo estalinista (capitalismo-socialismo-comunismo), fundado numa compreensão quase saint-simmoniana de progresso da técnica e da indústria como meio de superação do capitalismo, seja no interior do debate sobre as formas de organização política e de “consciência” revolucionária, interpretadas a reboque do primado das forças produtivas.
  • 5
    A relação forças produtivas/relações de produção é pano de fundo para a demonstração de nossos argumentos. Menos quando vemos tal relação ser recuperada equivocadamente pelas teses do operarismo digital ( Englert; Woodcock; Cant, 2020ENGLERT, S.; WOODCOCK, J.; CANT, C. Operaísmo digital: tecnologia, plataformas e circulação das lutas dos trabalhadores. Revista Fronteiras, São Leopoldo, v. 22, p. 47-58, 2020. ) e mais adequadamente quando evidenciamos a base na qual se constitui o novo núcleo de subordinação da classe trabalhadora, desenvolvido em um longo processo de amadurecimento tecnológico, gerencial e científico, que criaram as bases para a materialização estrutural das plataformas digitais como a forma atual, mas não finalística, da produção industrial.
  • 6
    Esses processos de elaboração de novas relações de produção que se materializam em forças produtivas ainda intermediárias em relação às plataformas digitais seriam, portanto, a antessala, a base material que permite sua emersão.
  • 7
    Ver, por exemplo: Gorz (2005)GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005. ; Hardt e Negri (2005)HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na Era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. ; Castells, (1999)CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. e Lazaratto (2001). Mais recentemente, diversos autores conceituam o trabalho plataformizado como aquele que promoveria formas de trabalho pós-capitalistas. Ver, entre outros: Dowbor (2020)DOWBOR, L. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. São Paulo: Sesc, 2020. , Standing (2016)STANDING, G. A. Revolt is coming for cloud labor. Huffpost, London, 27 out. 2016. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/guy-standing/cloud-labor-revolt_b_8392452.html . Acesso em: 25 abr. 2020.
    http://www.huffingtonpost.com/guy-standi...
    e Sundararajan (2018)SUNDARARAJAN, A. Economia compartilhada: fim do emprego e ascensão para o capitalismo de multidão. São Paulo: Senac, 2018. .
  • 8
    Há uma relativa transferência do mando para as forças produtivas e metodologias gerenciais que obscurecem as contradições e os conflitos de interesse entre trabalhadores e capitalistas. Trata-se de uma estratégia que não é nova, na medida em que as TICs permitem (na relação coerção/consenso) a transferência das responsabilidades para os trabalhadores, calcados nas formas da autotaylorização ou autogerenciamento ( Amorim; Grazia, 2021AMORIM, H; GRAZIA, M. The precariousness of immaterial labor: self taylorization in the Brazilian software industry. Latin American Perspectives, Thousand Oaks, v. 1, p. 1-17, 2021. ).
  • 9
    Nesse sentido, Woodcock (2020)WOODCOCK, J. O panóptico algorítmico da Deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 23-45. defende a conformação do “panóptico algorítmico”, permanecendo os trabalhadores em constante e minuciosa supervisão por meio da mediação tecnológica.
  • 10
    Esse argumento poderia adicionalmente ser desenvolvido com base na teoria do valor-trabalho de Marx, no sentido, sobretudo, de apontar para como as multinacionais do setor de tecnologia da informação são aquelas que mais extraem sobretrabalho, valorizando-se e gerando lucros colossais. Tema central a ser trabalhado futuramente.
  • 11
    Ver, por exemplo, a discussão sobre o trabalhador just in time , em Abílio (2020)ABÍLIO, L. Uberização: a era do trabalhador just in time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020. .
  • 12
    Os sindicatos de TI no Brasil detêm algumas particularidades se comparados aos outros sindicatos do Brasil, como a representação de trabalhadores do setor público e privado, a realização de negociações coletivas junto a empresas públicas e privadas e de diferentes portes e configurações ( Bridi, 2021BRIDI, M. A. Trabalhadores em tecnologias da informação e sindicalismo no Brasil: o que há de novo no horizonte? São Paulo: Annablume, 2021. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2022
  • Aceito
    29 Jul 2022
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