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ASPECTOS POLÍTICOS E ECONÔMICOS ENVOLVIDOS NA RETOMADA DO DEBATE SOBRE DESIGUALDADE E DISTRIBUIÇÃO DE RENDA

POLITICAL AND ECONOMIC ASPECTS INVOLVED IN RESUMING THE DEBATE ON INCOME DISTRIBUTION

LES ASPECTS POLITIQUES ET ÉCONOMIQUES LIÉS À LA REPRISE DU DÉBAT SUR LA RÉPARTITION DES REVENUS

Resumos

Objetivo é mostrar que a temática da distribuição de renda tem retomado importância no debate acadêmico e político. Ilustra-se a evolução da desigualdade de renda desde o pós-Segunda Guerra à atualidade, organizando dados elaborados por autores que trabalham em centros de pesquisa internacionais. A desigualdade de renda passa a aumentar a partir da ascensão do neoliberalismo, nos anos 1980, tornando-se ainda maior nos anos 2000, concentrando-se no 1% mais rico dos países. Essa realidade traz para o debate a contribuição de profissionais da Sociologia, da Ciência Política e da Economia Política. Esses autores têm demonstrado como as mudanças na ordem internacional e seus efeitos sobre o padrão de acumulação capitalista em favor do rentismo alterou a forma pela qual o funcionamento das Democracias representativas tem afetado a desigualdade econômica nos países capitalistas, contrastando o que ocorria nos “Anos Dourados” do capitalismo (1945-1980) com o que acontece desde os anos 1980.

Desigualdade Econômica e Social; Distribuição de Renda; Democracia; Mercado de Trabalho; Rentismo


This paper discusses how the issue of income distribution has resumed its importance in recent decades, showing the evolution of income inequality from the post-Second World War to the present, based on data from studies elaborated by researchers who work in internationally renowned academic centers. Income inequality starts to increase with the rise of neoliberalism in the 1980s, becoming greater in the 2000s, concentrated in the richest 1% of capitalist countries. This reality has demanded new interpretations by scholars, bringing to the debate contributions from Sociology, Political Science and Political Economy. Authors have shown how changes in the international order and its consequences on the pattern of capitalist accumulation in favor of rentier capitalism a predominantly financial accumulation of capital have altered the functioning of representative Democracies and affected economic inequality in capitalist countries, contrasting what happened in the “Golden Age” of capitalism (1945-1980) with what has been happening since the 1980s and especially in the 2000s.

Social and Economic Inequality; Income Distribution; Democracy; Labor Market; Rentism


Cet article examine comment le thème de la répartition des revenus a repris de l’importance au cours des dernières décennies, en montrant l’évolution de l’inégalité des revenus de l’après-Seconde Guerre mondiale à aujourd’hui, sur la base des données provenant d’études élaborées par des chercheurs qui travaillent dans des centres universitaires de renommée internationale. L’inégalité des revenus commence à augmenter avec la montée du néoliberalisme dans les années 80, pour devenir plus grave dans les années 2000, concentrée dans les 1% les plus riches des pays. Cette réalité a exigé de nouvelles interprétations de la part des chercheurs, qui ont apporté au débat des contributions de la Sociologie, des Sciences Politiques et de l’Économie Politique. Les auteurs ont montré comment les changements dans l’ordre international et leurs conséquences sur le modèle d’accumulation capitaliste en faveur du capitalisme rentier une accumulation de capital à prédominance financière ont modifié le fonctionnement des démocraties représentatives et affecté l’inégalité économique dans les pays capitalistes, en contrastant ce qui s’est passé pendant l’“age d’or” du capitalisme (1945-1980) avec ce qui s’est passé depuis les années 1980 et surtout dans les années 2000.

Inégalité Economique et Sociale; Répartition des Revenus; Démocratie; Marché du Travail; Rentisme


INTRODUÇÃO

O economista James Galbraith,1 1 Professor/pesquisador na Lyndon B. Johnson School of Public Affairs e no Department of Govenment na Universidade do Texas, em Austin. Na mesma universidade, dirige o consagrado University of Texas Inequality Project. Em 2016, foi conselheiro da campanha presidencial do senador Bernie Sanders. James Galbraith é filho do eminente economista John Kenneth Galbraith, que teve experiência profissional igualmente importante tanto na academia como na vida pública dos EUA. John Kenneth teve papel de destaque como formulador de conceitos econômicos que se contrapuseram à Teoria Econômica convencional/neoclássica (ao “saber convencional” em Economia, como ele mesmo gostava de dizer). Como homem público, atuou na gestão da economia de guerra nos anos 1940; nos anos seguintes, continuou atuando como assessor econômico do Partido Democrata. Assessorou tanto Franklin D. Roosevelt como John Kennedy. um dos principais estudiosos e pesquisadores do tema da desigualdade econômica, em palestra2 2 A exposição de James Galbraith está publicada na edição da primavera de 2019 da revista Review of Keynesian Economics . Ver: Galbraith (2019) . proferida em encontro da Eastern Economic Association3 3 A Eastern Economic Association é uma associação sem fins lucrativos devotada a promover debates sobre temas acadêmicos na área de Economia. A entidade edita uma revista ( Eastern Economic Journal ) e promove encontros anuais entre seus membros para debater os mais variados temas na área de Economia. Os encontros da Eastern se caracterizam pela presença de trabalhos que procuram aproximar a área da Economia de estudos das áreas de Ciência Política e Sociologia. ocorrido em março de 2018, protestou contra o fato de que apenas cinco das 848 subcategorias nos códigos de classificação do Journal of Economic Literature (JEL)4 4 Esses códigos servem para classificar os artigos acadêmicos segundo áreas da Economia e subáreas dentro de cada área. Galbraith comenta que a defasagem e inadequação da classificação da JEL dificulta (embora não impeça) a publicação de artigos sobre desigualdade econômica. estejam relacionadas à temática da desigualdade de renda. Entre essas cinco, duas estão dentro das definições da área de microeconomia, outras duas sob os códigos relativos ao tema mais geral definido por Health, Education and Welfare e apenas uma classificada sob a questão do trabalho. Segundo a exposição do pesquisador, não há nenhum código relacionado à questão da desigualdade de renda sob os registros vinculados à macroeconomia, a não ser que se considere o código denominado “Aggregate Factor Income Distribution”, o qual, porém, conforme pondera o autor, se relacione ao aspecto funcional da distribuição da renda. O autor também protesta contra o fato de que, sob a classificação de Economia Internacional e mesmo sob o registro de Desenvolvimento Econômico (Development Economics), não há qualquer código que possa ser relacionado ao tema da desigualdade de renda. A seguir, ele ainda comenta, ironicamente, que Kuznets5 5 Em Kuznets (1955) , o autor formula a relação entre desenvolvimento econômico e distribuição de renda, em modelo que posteriormente receberia a denominação de “Curva de Kuznets” ou curva do “U invertido”, na qual o autor sustenta que, nos períodos iniciais de crescimento econômico, existe uma tendência a que a desigualdade de renda aumente, atingindo nível máximo ainda durante o período de expansão da renda (dada pela migração de pessoas de renda mais baixa, do setor atrasado ou agrícola, para o setor industrial, caracterizado por ter maiores rendimentos, maior produtividade e maior sofisticação tecnológica) e, a partir de certo ponto, voltaria a se reduzir. Esse artigo se tornaria um clássico a fazer parte do conjunto de estudos que compõem a Teoria do Desenvolvimento e, também, uma referência para os estudos sobre distribuição de renda. Em 1971, devido a essa e outras contribuições teóricas, Simon Kuznets, um economista bielorrusso naturalizado americano, seria laureado com o Prêmio Nobel em Economia. deveria estar se revirando na tumba se soubesse que a academia, durante tantos anos, relegou seu assunto a uma situação de quase irrelevância, pelo menos do ponto de vista formal.

A explicação de Galbraith (2019)GALBRAITH, J. K. A global macroeconomics – yes, macroeconomics, dammit – of inequality and income distribution – Inaugural Godley – Tobin Memorial Lecture, Eastern Economic Association, Boston, MA, USA. Review of Keynesian Economics, v. 7, n. 1, p. 1-5, 2019. – expressa na mesma exposição oral – para que a temática distributiva fosse relegada ao “gueto” se sustenta em dois argumentos, um deles de um ponto de vista teórico e o outro relacionado à disponibilidade de dados. O argumento teórico deve-se ao fato de que, segundo Galbraith, a questão distributiva é, na essência, um tema microeconômico, relacionado à interação entre oferta e demanda em mercados específicos. Nas palavras de Galbraith (2019): “A disciplina existe, em grande medida, para explicar retornos fatoriais. Se ela não explica – e eu não disse ‘justifica’ – o pagamento do trabalhador e o retorno do capital, então tudo o mais que ela fizer não a sustentaria enquanto disciplina”6 6 No original: “ The discipline exists, largely, to explain factor returns. If it doesn’t explain – I don’t say ‘justify’ – the pay of the worker and the return to capital, then the rest of what it does would not sustain it ”. . A questão da disponibilidade de dados recebe do autor também uma menção ferina e irônica, ao criticar o fato de que os microeconomistas empiristas preferem utilizar a disponibilidade de dados (geralmente obtidos pela via de pesquisas domiciliares amostrais) para descrever características da mão de obra, segundo critérios que, muitas vezes, fazem parte de uma preocupação com pautas identitárias, e não de um esforço de compreensão acerca da natureza dos processos de reprodução da desigualdade de renda e da acumulação de capital nas sociedades capitalistas.

Essa palestra/protesto do autor chama atenção para a defasagem da classificação dos compêndios acadêmicos com relação a um tema que, segundo James Galbraith, tem retomado relevância não apenas na vida acadêmica, mas também na esfera da discussão política, em países dos mais variados graus de desenvolvimento – e em todos os continentes.

Na mesma palestra e também em suas obras, James Galbraith defende a necessidade de colocar o debate distributivo em termos macroeconômicos e ressalta a importância de fazer uma interpretação estrutural do fenômeno, a qual, segundo ele, deveria abarcar, além dos aspectos macroeconômicos, também elementos político-institucionais de tal maneira que a desigualdade seja interpretada de forma multidisciplinar. Tendo isto em vista, o objetivo deste artigo é interpretar as razões pelas quais a temática da distribuição de renda tem retomado importância tanto no debate acadêmico como no político nas últimas décadas, destacando em especial como essa crescente relevância do tema também vem sendo acompanhada de mudanças na natureza da discussão que envolve o assunto.

O debate sobre desigualdade econômica e distribuição de renda passou a incorporar, notadamente a partir dos anos 2000, a contribuição de profissionais da Sociologia, da Ciência Política e da Economia Política7 7 Os economistas a que nos referiremos neste artigo têm uma linha de análise que interpreta as crises econômicas como resultados de conflitos distributivos, e entende as relações econômicas como relações de poder e de disputa pelos excedentes gerados no processo de acumulação capitalista. Neste artigo, a análise econômica adotada e os economistas mencionados estão, grosso modo, na linha do que Streeck (2018) descreve em seu livro inspirado na obra de Michal Kalecki: “eu queria explicar aos conhecedores da matéria, por meio da visão teórica de conjuntura política de Kalecki, que o que tenho em mente é uma concepção de economia como política (em oposição às teorias econômicas institucionalistas tradicionais, ou seja, a política retratada como economia). Em outras palavras, uma representação das leis econômicas como projeção das relações sociais de poder, e das crises, certamente como aquelas discutidas no livro, como conflitos distributivos ou como suas consequências” ( Streeck, 2018 , p. 16-17). em sua interpretação, tornando-o, portanto, multidisciplinar. A magnitude da expansão da desigualdade nos anos 2000, bem como a mudança na composição dos rendimentos do topo da distribuição, com a ascensão da presença de rendimentos provenientes da posse de diversos tipos de ativos, tornam imperioso que a temática seja abordada de maneira multidimensional, ou seja, sob um ponto de vista que supere as tradicionais análises centradas em aspectos microeconômicos acerca do funcionamento dos mercados de trabalho. Dessa forma, a abordagem multidimensional deve incorporar, nos indicadores de desigualdade de renda, não apenas os rendimentos obtidos nos mercados de trabalho, mas as rendas oriundas da posse de riqueza (estas também em forte ascensão nos anos 2000), em suas diversas modalidades, bem como as transferências feitas por meio das políticas públicas, elemento muito importante das sociedades capitalistas desenvolvidas desde o segundo pós-guerra e ainda hoje relevantes nos orçamentos familiares e nos gastos públicos, a despeito dos ataques sofridos pelos sistemas nacionais de welfare state 8 8 Termo consagrado na literatura e que, em português, poderíamos chamar de Estado de bem-estar social. a partir, notadamente, dos anos 1980.

Para cumprir esses objetivos, o artigo é composto de duas partes, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira parte, procura-se destacar os motivos pelos quais a temática refluiu no debate econômico de meados do século XX, para depois reemergir, notadamente a partir do início dos anos 1980, como resposta aos efeitos que as transformações da ordem financeira internacional e as novas formas de organização empresariais tiveram sobre o perfil distributivo nos países desenvolvidos a partir de então. Na segunda parte – e a mais importante –, são apresentados os novos contornos que assume a discussão sobre a desigualdade econômica, à medida em que se consolida o reconhecimento de que a concentração da renda e da riqueza se explica especialmente pelo que ocorre no topo das pirâmides distributivas dos países (o chamado “1% mais rico” e suas subdivisões menores). Tal constatação passa a exigir, da interpretação da natureza da concentração da renda e da riqueza, uma análise multidisciplinar e multidimensional, conforme mencionamos anteriormente. A crescente presença de sociólogos e de cientistas políticos, ao lado de economistas – estes, desde que com a formação mencionada – torna-se central para debater como o funcionamento da Democracia explica o que alcunhamos aqui de “hiperconcentração da renda”, ocorrida a partir dos anos 2000, especialmente. Nas considerações finais, além de recuperar, sob novos termos, os principais pontos discutidos ao longo do texto, procuramos destacar que o debate sobre desigualdade econômica e distribuição de renda somente se mostra profícuo quando desenvolvido de forma multidimensional e multidisciplinar – incorporando profissionais de todas as áreas das Ciências Humanas.

EVOLUÇÃO DO DEBATE SOBRE DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NO FINAL DO SÉCULO XX

O livro The affluent society (Galbraith, [1958] 1998) é uma obra original e de reconhecida erudição, na qual o autor, com base em conceitos próprios e formulações críticas/heterodoxas direcionadas aos autores fundadores da Economia Política Clássica (Smith, Ricardo, Malthus), trata das transformações na sociedade americana desde a Depressão dos anos 1930 até o pós-Segunda Guerra.

No final dos anos 1990, foi lançada uma edição comemorativa de 40 anos de publicação da obra, para a qual John Kenneth Galbraith redigiu uma nova introdução em que ele afirma ter decidido não alterar nada do conteúdo da versão original do livro, uma vez que, segundo suas palavras, considerava válidas as principais conclusões da obra que fora escrita no final dos anos 1950. Na referida introdução, porém, o autor ressalva que, se tivesse que fazer algum reparo à versão original do livro, daria maior ênfase ao fato de que a desigualdade de renda estava aumentando nos últimos tempos, especialmente nos EUA. O registro dessa ponderação por parte do autor reflete a ascensão, no tempo decorrido entre a edição original e a comemorativa em questão, da percepção de aumento da desigualdade econômica (e também social), ou seja, de piora das condições de distribuição de renda e de riqueza.

Segundo John K. Galbraith ([1958] 1998), no contexto da “sociedade afluente” do final dos anos 1950, o tema da desigualdade econômica e da distribuição de renda havia perdido protagonismo nos debates acadêmicos e mesmo políticos. Segundo a interpretação do autor, a própria prosperidade econômica e social daqueles anos, contrastando com o que ocorrera nas décadas precedentes (1930 e início da década de 1940), legava a temática da desigualdade a um patamar de irrelevância. Ademais, ele ponderava que o “triunfo do pensamento conservador” consagrara as ideias segundo as quais o sucesso seria fruto do esforço pessoal e de que o individualismo seria o caminho para a prosperidade; dessa forma, a temática da desigualdade social e econômica deixava de ser encarada como problema social. A rigor, John Kenneth Galbraith, assim, procurava compreender e explicar o fato de que a desigualdade deixará de ser um tema relevante dos estudos econômicos nos anos 1950/60.

Ainda sobre as transformações sociais do período, o autor faz alusão aos programas que compuseram as políticas públicas da chamada “Guerra à Pobreza” do governo de Lyndon Johnson nos anos 1960, mas não o coloca como aspecto pertencente ao debate sobre desigualdade, e sim como um conjunto de medidas devotadas a aliviar a pobreza, especificamente. Os argumentos centrais de John Kenneth sobre o tema deixam claro, portanto, que o cenário de prosperidade da economia americana então vigente, nos anos 1960, colocava o tema da desigualdade em um plano secundário, embora isso não significasse, segundo ele próprio fez questão de salientar, que a desigualdade não permanecesse, já então, como problema grave da sociedade americana.

No mesmo momento histórico (anos 1950/1960), a realidade dos países europeus ocidentais era também de prosperidade, que havia se iniciado logo após a consolidação da reconstrução das devastações materiais produzidas pela II Guerra Mundial. O cenário era de crescimento robusto do produto interno bruto (PIB) e do PIB per capita, em movimento que durou desde a reconstrução até pelo menos meados dos anos 1970. Essa trajetória de expansão econômica era acompanhada pela instalação e expansão de políticas públicas, definidas no âmbito da democratização desses países, que deram origem aos Estados de bem-estar social, financiados com políticas tributárias progressivas (desenhadas no âmbito dos respectivos Parlamentos nacionais) e em grande medida financiadas com recursos crescentes advindos do aumento da arrecadação oriunda da dinamização dos mercados de trabalho, que tinham como norma o assalariamento formal e a ampliação dos direitos sociais e trabalhistas.9 9 Sobre a ascensão da “sociedade salarial”, ver Castel (1998), especialmente cap. VII.

Até meados dos anos 1970, ainda existia um consenso10 10 O aforismo de Helmut Schmidt, na campanha eleitoral de 1976, ilustra o que temos dito: “Antes 5% de inflação do que 5% de desemprego” (citado em Streeck, 2018 ; p. 80). de que o pleno emprego “constituía a pedra angular do contrato social do capitalismo do pós-guerra” ( Streeck, 2018STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. , p. 79).11 11 Streeck (2018) se refere aos países europeus ocidentais. O pleno emprego atingido na maioria dos países capitalistas desenvolvidos, durante cerca de 25 anos, ampliava o poder de barganha dos sindicatos de trabalhadores, sem necessariamente deprimir, em termos absolutos, os lucros do setor privado empresarial ( Husson, 1999HUSSON, M. Fim do trabalho ou redução de sua duração? Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), Niterói, n. 5, p. 5-23, dez. 1999. ). O cenário de Guerra Fria e a consequente preocupação das autoridades econômicas dos referidos países, naquele contexto histórico peculiar, com uma eventual ascensão, pela via eleitoral, dos partidos comunistas ou socialistas do Ocidente e com o exemplo da URSS (a leste), também em franco processo de recuperação econômica, tornava-as mais condescendentes com as demandas sociais e políticas dentro de sociedades que se democratizavam e se reindustrializavam a passos largos. Dessa maneira, aos aspectos econômicos promovidos pelo crescimento do PIB e do PIB per capita a uma velocidade sem precedentes na história do capitalismo ( Hobsbawm, 1995HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ) conjugavam-se fatores geopolíticos, políticos e sociais que abriam espaço para uma melhoria do perfil distributivo dessas sociedades, notadamente no que se refere à distribuição da renda pessoal (rendas do trabalho mais rendimentos provenientes de transferências sociais, incluindo as previdenciárias). Não é sem motivo que os anos 1950, 1960 e 1970 exibiram, nos países desenvolvidos ( Mattos, 2009MATTOS, F. A. M. Flexibilização do trabalho: sintomas da crise. São Paulo: Annablume, 2009. ; Piketty, 2014PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. ), notórios movimentos de redução das desigualdades pessoais de renda, conforme ilustrado no Gráfico 1 , mais à frente.

Gráfico 1
Parcela (%) da renda nacional (*) total apropriada pelo 10% mais rico

Em poucas palavras, pode-se afirmar que, sob o capitalismo do pós-guerra, vigorou o poder político da “democracia de massas” ( Streeck, 2018STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. ), em tempos de formação do welfare state e da expansão do emprego, da renda e do compartilhamento dos ganhos de produtividade sistêmica ( Mattos, 2019MATTOS, F. A. M. Desigualdade e repartição dos ganhos de produtividade horária do trabalho nos países capitalistas centrais. In: ENCONTRO NACIONAL DA ABET, 16., 2019, Salvador. Anais […]. Salvador: UFBA, 2019. ) favorável à expansão da parcela da renda dos trabalhadores na renda nacional ( Glyn, 2006GLYN, A. Capitalism unleashed: finance, globalization and welfare. Oxford: Oxford University Press, 2006. ). O referido ciclo virtuoso era gerado pelo processo de crescimento puxado pela expansão industrial e pela sinergia entre investimentos públicos e privados ( Guttmann, 1994GUTTMANN, R. How credit-money shapes the economy. New York: M. E. Sharpe, 1994. ; 1996; Mattos, 2009MATTOS, F. A. M. Flexibilização do trabalho: sintomas da crise. São Paulo: Annablume, 2009. ).

O cenário dos Anos Dourados, porém, começaria a mudar a partir de meados dos anos 1970, tanto nos EUA como na Europa. Entre os principais aspectos das mudanças geopolíticas, políticas e econômicas que promoveram essa mudança estão as duas crises do petróleo (1973 e 1979), o fracasso ianque na Guerra do Vietnã, o recrudescimento de conflitos no Oriente Médio, a evidência das contradições da ordem financeira internacional (OFI) criada em Bretton Woods (BW) e a ascensão de Alemanha e Japão como potências industriais que ameaçavam diversas atividades manufatureiras nas quais os EUA haviam sido, até os anos 1960, líderes mundiais. O pensamento liberal-conservador começava a recuperar terreno12 12 Para contextualizar a mudança da hegemonia ideológica entre os anos 1940 e o início dos anos 1980, vale registrar trechos de uma longa citação de Hobsbawm (1995 , p. 265-266): “Essencialmente [os Anos Dourados], foi uma espécie de casamento entre liberalismo econômico e democracia social […]. Por isso, a reação contra ele, dos defensores ideológicos do livre mercado, seria tão apaixonada nas décadas de 1970 e 1980, quando as políticas baseadas nesse casamento já não eram salvaguardadas pelo sucesso econômico. Homens como o economista austríaco Friedrich von Hayek jamais haviam sido pragmatistas, dispostos (embora com relutância) a ser persuadidos de que atividades econômicas que interferiam com o laissez-faire funcionavam […]. Eram verdadeiros crentes da equação “Livre Mercado = Liberdade do Indivíduo” […]. Tinham defendido a pureza do mercado na Grande Depressão. Continuavam a condenar as políticas que faziam de ouro a Era de Ouro, quando o mundo ficava mais rico e o capitalismo (acrescido do liberalismo político) tornava a florescer com base na mistura de mercados e governos. Mas entre as décadas de 1940 e a de 1970 ninguém dava ouvidos a tais Velhos Crentes”. e a dominar a narrativa interpretativa da crise econômica, marcada por aumento concomitante da inflação e da taxa de desemprego (contrariando algumas interpretações econômicas consagradas até então, que colocavam um trade-off entre esses dois indicadores econômicos).

As mudanças ocorridas na OFI gestada em BW foram progressivamente promovendo importantes alterações na regulação do capitalismo desde os anos 1970. Entre as principais mudanças se destacam o abandono do compromisso dos EUA com a paridade e conversibilidade de sua moeda (dólar) com o ouro13 13 Moffitt (1984) , Belluzzo (1995) e Mattos (2009) . e a expansão progressiva de medidas de desregulamentação dos mercados financeiros nacionais, culminando com a contínua elevação da movimentação de capitais especulativos em torno de todas as principais praças financeiras mundiais. Esses dois elementos estão por trás do aumento da instabilidade cambial entre as principais moedas e da própria expansão do volume de ocorrências de crises sistêmicas do mercado financeiro internacional desde os anos 1970 (a crise de 2008 é resultado ainda dessas modificações iniciadas nos anos 197014 14 No caso dos EUA, por exemplo, o ponto culminante desse processo de desregulamentação do mercado financeiro, que vinha ocorrendo desde, pelo menos, meados dos anos 1970, foi a extinção da Lei Glass-Steagall, ocorrida em novembro de 1999 (durante o Governo Clinton). A Glass-Steagall Act havia sido promulgada em 1933, e compunha parte importante das reformas executadas durante o primeiro mandato do presidente Roosevelt para enfrentar a Grande Depressão deflagrada pela crise de 1929. A Glass-Steagall era a principal componente da Lei dos Bancos. Entre suas principais resoluções se destacavam a separação total das atividades bancárias das atividades de investimentos no sistema financeiro dos EUA e o combate à cartelização bancária. A eliminação dessas regulações foram progressivamente ampliando o caráter especulativo de um crescente fluxo de capitais financeiros internacionais, tendo a praça dos EUA como seu principal centro irradiador financeiro (e ideológico, por suposto). ).

Ainda sobre estas alterações ocorridas na OFI, Dedecca (2012)DEDECCA, C. S. Os países desenvolvidos e a desigualdade econômica. Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 3, p. 449-484, 2012. ressalta os impactos que, progressivamente, essas mudanças promoveram no comportamento das grandes empresas transnacionais, pela via da reorganização de suas estruturas produtivas.15 15 Por exemplo: a mudança de plantas produtivas para outros estados dos EUA ou para outros países, ou mesmo a ameaça de isso ocorrer já representa(va) por si só um elemento importante para enfraquecer o movimento sindical. Da mesma forma, pondera que o cenário político e geopolítico afetou diversas ações dos Estados nacionais na regulação de elementos que, direta ou indiretamente, influenciam todas as esferas de geração de rendimentos, quer seja nos mercados de trabalho, quer seja nos mercados financeiros ou nas políticas públicas, personagens cada vez mais (e ainda contemporaneamente) importantes sob o capitalismo do pós-Segunda Guerra.

O que salta aos olhos quando se comparam diferentes momentos históricos do capitalismo pós-1945 é que, em quase todos os países capitalistas avançados, a desigualdade econômica diminuiu de forma substancial até meados dos anos 1970, passando a crescer, também de maneira resoluta, a partir dali, com pequenas diferenças temporais entre os países, conforme mostra o Gráfico 1 , que compara a evolução da parcela da renda nacional apropriada pelos 10% mais ricos (decil superior)16 16 Forma mais tradicional de avaliar a evolução do perfil distributivo na segunda metade do século XX. em países selecionados.

O início dos anos 1980, com as eleições de Thatcher (1979) e de Reagan (1980), representa, mais do que uma mudança na hegemonia ideológica, uma alteração na forma pela qual a renda e a riqueza geradas passam a ser repartidas, como resultado de diversas medidas tributárias,17 17 As medidas empreendidas no campo tributário foram amplamente baseadas na chamada Teoria da Tributação Ótima (TTO), que se consolidou academicamente ao longo das décadas de 1970-1980, e compartilhava com a economia neoclássica seus principais postulados. Entre as principais medidas preconizadas pela TTO – e sumariamente seguidas pelos governos citados – estavam a drástica redução da taxação dos rendimentos do capital, e a preconização do aspecto da eficiência em detrimento da distribuição na implantação dos tributos. Para uma análise da TTO e sua aplicação em diversos sistemas, ver: Gobetti (2018) e Gobetti e Orair (2016) . de desregulação dos mercados de trabalho e de inversão de prioridades nos gastos públicos. Na edição brasileira de A sociedade afluente, 18 18 Edição de 1987, uma tradução da edição de 1984 do mencionado livro. O prefácio a que nos referimos foi redigido na primavera de 1984. John Kenneth Galbraith (1987)GALBRAITH, J. K. A sociedade afluente (tradução da 4ª edição americana). Ed. Pioneira Novos Umbrais, 1987. , referindo-se à versão original de seu livro e ao momento histórico então vivido, contextualiza, na seguinte passagem, essa mudança de cenário e seu efeito sobre a manifestação e interpretação ideológica da desigualdade:

o governo Reagan pós-1980 tem se empenhado para reavivar o tema da distribuição de rendas como questão política. Conseguiu isso reduzindo os gastos com bem-estar social da população e cortando os impostos das pessoas físicas e jurídicas – o que resultou em grandes e absolutas vantagens para os afluentes. Essa façanha foi acompanhada por um reconhecimento da parte de um dos seus funcionários de alto escalão, David Stockman, de que a chamada supply-side economics era na realidade uma camuflagem para obscurecer este objetivo. […] A recessão com depressão de 1981-82 também reavivou o interesse político pela distribuição de renda. Quando, conforme se sugere neste livro, homens e mulheres estão empregados e recebendo salários crescentes, eles não se mostram muito preocupados se houver outros – seja qual for a justificativa ou ausência de justificativa – que têm mais ou muito mais. A comparação relevante não é com o que os outros têm, mas com a própria posição econômica anterior – o que se nota é a melhoria em relação ao ano que passou.

Portanto, conforme pontua John Galbraith na passagem apresentada,19 19 Redigida “no calor da hora” das mudanças ocorridas na política econômica e na “nova” repartição dos excedentes. essa mudança de cenário, refletida pela inversão da “curva de Kuznets”, recoloca o debate da desigualdade no centro das discussões políticas. Alguns anos depois, uma vez já sentidos os efeitos das referidas mudanças, Atkinson (1997)ATKINSON, A. Bringing income distribution in from the cold. The Economic Journal, v. 107, n. 441, p. 297-3214, 1997. afirmaria que, diante da alteração da realidade econômica e social, o debate sobre distribuição de renda fora “descongelado”.20 20 O autor inclusive exibe estatísticas que ilustram a ampliação da presença de estudos sobre o tema na revista acadêmica ( The Economic Journal ) que estava publicando seu artigo. Tomando como referência o trabalho de Kuznets (1955)KUZNETS, S. Economic Growth and Income Inequality. The American Economic Review, Washington, [s. l.], v. 45, n. 1, p. 1-28, 1955. , Atkinson (1997)ATKINSON, A. Bringing income distribution in from the cold. The Economic Journal, v. 107, n. 441, p. 297-3214, 1997.21 21 O título (e o conteúdo) do referido artigo é o mesmo do discurso do autor, proferido quando assume a Presidência da Royal Economic Society . chama atenção para o fato de que, ainda em meados dos anos 1970, havia uma generalizada crença segundo a qual a desigualdade continuaria a cair indefinida e rapidamente. Mas, logo a seguir, o autor pondera: “Conforme sabemos, a desigualdade de rendimentos não continuou a cair”22 22 No original: “ As we now know, income inequality did not continue to fall ”. ( Atkinson, 1997ATKINSON, A. Bringing income distribution in from the cold. The Economic Journal, v. 107, n. 441, p. 297-3214, 1997. , p. 301). Seu estudo, portanto, contextualiza as mudanças ocorridas e, dado o “ineditismo” das mesmas e o grau com que ocorreram as alterações, chama atenção para a necessidade de se retomar estudos sobre a desigualdade e, em especial, para a relevância e urgência de se discutir o aspecto pessoal da distribuição de renda, fazendo coro com estudo clássico citado e resgatado por ele, de autoria de Dalton (1920)DALTON, H. Some aspects of the inequality of incomes in modern communities. London: Routledge, 1920. , no qual aquele autor pontuava que “a distribuição de renda entre pessoas [e não entre fatores de produção] revelava-se um problema de mais óbvio interesse”23 23 No original: “ distribution as between persons was a problem of more direct and obvious interest ”. ( Atkinson, 1997ATKINSON, A. Bringing income distribution in from the cold. The Economic Journal, v. 107, n. 441, p. 297-3214, 1997. , p. 299), em comparação com a distribuição da renda segundo os fatores de produção, como era mais encontradiço nos estudos clássicos sobre o tema.

A argumentação central de Atkinson (1997)ATKINSON, A. Bringing income distribution in from the cold. The Economic Journal, v. 107, n. 441, p. 297-3214, 1997. procura ressaltar dois aspectos importantes do cenário econômico daquele momento (meados dos anos 1990), uma vez já claramente sentidos os efeitos, sobre os perfis de distribuição de renda, das diversas transformações iniciadas a partir do início dos anos 1980: (a) a piora do perfil da distribuição pessoal da renda representa uma deterioração das condições de vida e um aumento sistêmico da desigualdade econômica nas sociedades capitalistas ocidentais, algo que contrastava com o recém-terminado período de prosperidade e esperanças sociais construído concomitantemente com o surgimento (ou ampliação) do welfare state , sistema que tinha no autor um dos principais articuladores e entusiastas ( Atkinson, 1995ATKINSON, A. Incomes and the Welfare State: essays on Britain and Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. ); (b) a participação da renda do trabalho no conjunto da renda das famílias estava em queda, o que abria dois flancos de avaliação que também seriam aprofundados em estudos nas décadas seguintes: a necessidade de estudar as rendas provenientes do capital24 24 Notadamente os rendimentos provenientes da miríade de ativos financeiros criados no bojo do processo de desregulamentação da ordem financeira internacional, como também diversas origens e formas de rendimentos provenientes do capital produtivo e também decorrentes de posse de ativos como patentes, e outros direitos de propriedade e de exploração de conhecimentos tecnológicos, ganhos com ações etc. De todo modo, também e ainda do ponto de vista dos salários, deve-se destacar a proeminência de estudos sobre alterações nos mecanismos de remuneração dos altos executivos – os supersalários, conforme veremos na seção seguinte. e, também, as rendas provenientes das políticas sociais, estas fortemente afetadas pela dinâmica da política25 25 Atkinson (1997 , p. 317): “Meu propósito principal aqui é o de argumentar que a análise econômica da distribuição de renda necessita de ulteriores desenvolvimentos antes que possamos almejar dar uma resposta definitiva para questões nas quais as pessoas comuns estejam interessadas – tais como: o que determina a dimensão da desigualdade e porque ela aumentou? Isso não significa que a teoria econômica atual não tenha nada a contribuir. Ela certamente oferece esclarecimentos para parte da história, mas o que se exige é que os diferentes aspectos do problema sejam analisados em conjunto. Precisamos de um instrumental completo, tanto conceitual quanto empírico, dentro do qual possam estar inseridos diferentes mecanismos de análise. As diferenças de habilidades que explicam as diferenças salariais são válidas, mas se trata de apenas parte da história. O mercado de trabalho não pode ser visto como algo totalmente independente do mercado de capitais. Tanto as explicações econômicas quanto as políticas têm seu lugar na compreensão da desigualdade de rendimentos. No original: “ My principal purpose here has been to argue that the economic analysis of the distribution of income is in need of further development before we can hope to give a definitive answer to the questions in which the ordinary person is interested – such as what determines the extent of inequality and why has inequality increased? This does not mean that current economic theory has nothing to contribute. It certainly offers insights into parts of the story, but what is required is for the different elements to be brought together. We need an overall framework, both conceptual and empirical, within which to fit the different mechanisms. The skill shift explanation for wage differentials is valuable, but it is only part of the story. The labour market cannot be seen as totally independent from the capital market. Both economic and political economy explanations have their place ”. e da democracia nos anos seguintes. Eszas questões surgiriam de forma mais organizada no debate sobre desigualdade dos anos 2000 – tema da próxima seção deste artigo.

O DEBATE DOS ANOS 2000: a hiperconcentração de renda e seus aspectos políticos e institucionais

A compreensão dos mecanismos recentes de promoção da desigualdade econômica informa muito sobre a natureza das transformações ocorridas não apenas no mundo do trabalho, como também nas relações econômicas internacionais, bem como na conformação do atual padrão de acumulação capitalista, centrado no rentismo e na valorização “fictícia”26 26 Segundo a interpretação marxiana, o capital é dito de caráter fictício quando perde sua relação intrínseca com o processo real de produção no qual o valor-trabalho é gerado. O surgimento e a disseminação do capital fictício ou especulativo representa, portanto, uma autonomia relativa e crítica da esfera da circulação sobre a produção. Para uma análise detalhada sobre o crescimento desse tipo de capital no mundo ao longo dos anos 1990 e 2000, e sua relação direta com a crise de 2008, ver: Guttmann (2008) e Mollo (2011) . ( Chesnais, 1996CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. ; Marx, 1894 [1991]) do capital.

O gráfico 2 mostra a evolução da parcela da renda nacional apropriada pelo 1% do topo da distribuição em diversos países capitalistas selecionados. É a partir dos anos 2000, notadamente após os efeitos da crise do subprime de 2008, que a “questão do 1%” passa a dominar a temática da desigualdade e a preocupação em explicá-la.27 27 Os dados expostos nos Gráficos 2, 3 e 4 referem-se a todas as formas de rendimentos (ou seja, incluem, além de rendimentos do trabalho, rendas de transferências sociais, rendimentos provenientes de ativos financeiros e também não financeiros) antes da incidência de impostos, mas não incluem ganhos de capital (valorização de ativos “não realizadas”, ou seja, não transformadas em rendimentos por parte de seus detentores).

Gráfico 2
Parcela (%) da renda nacional (*) total apropriada pelo 1% mais rico

Conforme indicam diversos trabalhos28 28 Ver: Piketty (2014) , Keister (2014) , Alvaredo et al. (2013) e Atkinson, Piketty e Saez (2011). recentes, a expansão da desigualdade nos anos 2000 se explica, mais do que no debate dos anos 1980/1990 (mencionados na primeira seção deste artigo), pelo que ocorre na trajetória, magnitude e composição da renda auferida pelo 1% do topo da distribuição de renda e suas subdivisões menores (daí o termo “hiperconcentração” que usaremos aqui). O Gráfico 3 permite olhar com maior detalhe o que sugere uma interpretação inicial do gráfico anterior. No Gráfico 3 está exposta a evolução da relação entre a renda apropriada pelo 1% mais rico e aquela apropriada pelos 10% mais ricos, ou seja, mostra que a “inversão da curva de Kuznets” que se inicia em meados dos anos 1970 parece, a partir dos anos 2000, acentuar-se no percentil mais elevado da pirâmide distributiva dos países. Percebe-se, pelas barras de cada país, que a razão (renda do 1%+/renda dos 10%+) já vinha subindo desde os anos 1990, mas aumenta especialmente a partir dos anos 2000.

Gráfico 3
Evolução do perfil da renda (*) no topo da pirâmide (relação entre a renda apropriada pelo 1% e o 10% mais rico)

Nesta seção, discorre-se sobre os contornos principais do debate sobre distribuição de renda dos anos 2000. A partir do resgate desse debate, pretende-se destacar como a temática do “1% do topo da distribuição” permite ampliar a interpretação recente sobre a trajetória da desigualdade, incorporando aspectos não “estritamente econômicos” para uma compreensão mais abrangente e elucidativa acerca do fenômeno da desigualdade nos últimos vinte anos. Quando destacamos fatores “não estritamente” econômicos, estamos afirmando que outros elementos devem ser incorporados na interpretação do fenômeno de ampliação da desigualdade econômica (como também, por óbvio, de outras dimensões da desigualdade – que não serão debatidas aqui por falta de espaço), procurando evitar uma interpretação “economicista” de um fenômeno tão complexo em suas causas, desdobramentos e formas de medição/avaliação. Esses outros elementos de análise devem ser buscados na Ciência Política, na Sociologia e em outras áreas do conhecimento humano dentro das Ciências Sociais.

O vigor da concentração da renda no topo também se exprime pelo fato de que, mesmo dentro da parcela do 1% mais elevado (ou mais rico) parece que tem ocorrido uma ampliação da desigualdade, conforme indica o Gráfico 4 , que coloca uma lupa no cenário sugerido no Gráfico 3 , pois agora vamos avaliar a razão 0,1% mais rico/1% mais rico – e, da mesma forma que mostra o gráfico anterior, percebe-se uma acentuação da concentração à medida que se “caminha” para o topo da distribuição – e à medida que se aproximam e se adentram os anos 2000.

Gráfico 4
Evolução do perfil da renda (*) no topo da pirâmide distributiva (relação entre a renda apropriada pelo 0,1% e o 1% mais rico)

Tal cenário de “hiperconcentração de renda” justifica a necessidade de uma interpretação da desigualdade econômica dos tempos atuais como a expressão de “diversas desigualdades”, ou seja, daquela que não advém simplesmente das rendas geradas nos mercados de trabalho, mas também por toda uma miríade de rendimentos, muitos deles oriundos de ganhos auferidos nos mercados financeiros, decorrentes da posse de diversos ativos, com diferentes características, como também de variadas outras fontes ( Dedecca, 2009DEDECCA, C. S. Desigualdade, mas de qual falamos? Campinas: Unicamp, 2009. (Textos para Discussão n. 168). ; Piketty, 2014PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. ), como a propriedade de patentes das novas tecnologias, diretos autorais de diferentes formas de manifestações artísticas ou literárias, copyrights , além de rendimentos provenientes da “velha” situação de posse de capital produtivo.

Esse é razão pela qual Dedecca (2012)DEDECCA, C. S. Os países desenvolvidos e a desigualdade econômica. Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 3, p. 449-484, 2012. chama atenção para a necessidade de analisar a evolução da desigualdade econômica contemporânea sob um ponto de vista da multidimensionalidade. O autor registra e ilustra a queda da participação das rendas do trabalho na composição dos orçamentos familiares, mas nem por isso afirma que isso signifique uma redução da importância do Trabalho nas sociedades contemporâneas. Pelo contrário. Em muitos países, o número de trabalhadores assalariados ou de pessoas que “vivem do trabalho” atingiu patamares inauditos. O que os dados mostram, na verdade, é uma precarização dos mercados de trabalho, o que inclui não apenas deterioração das relações de trabalho, mas também uma queda dos valores reais dos rendimentos e/ou uma intermitência de seu recebimento. Ao mesmo tempo, ampliam-se os “produtos” financeiros disponíveis a parcelas cada vez mais amplas da população, embora não de forma equânime, evidentemente. A própria expansão da riqueza em sua forma financeira ( Chesnais, 1996CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. ; Keister, 2014KEISTER, L. A. The one percent. The Annual Review of Sociology, [s. l.], n. 40, p. 347-367, 2014. ; Piketty, 2014PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. ) é um vetor de ampliação da desigualdade econômica, uma vez que esta é justamente a forma de riqueza que não só mais tem crescido, como também aquela que carrega consigo o maior grau de desigualdade interna (o segmento financeiro da riqueza acumulada tem se mostrado mais concentrado do que a riqueza proveniente de ativos produtivos).29 29 Cf. Keister (2014) e Chesnais (1996) . Da mesma forma, embora a expansão dessa forma de riqueza (financeira) tenha sido capaz de “chegar” às mãos de uma parcela expressiva da população (daí a constituição do que Piketty (2014)PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. chama de “classe média patrimonial”), contrariamente, por exemplo, ao que ocorria nos séculos XVIII ou XIX (quando apenas a aristocracia tinha acesso a estes ativos), a expansão recente da posse de ativos financeiros tem se distribuído de maneira crescentemente desigual dentro da pirâmide distributiva.30 30 Cf. Keister (2014) , Thernborn (2011), Piketty (2014) e Palma (2006) .

A realidade socioeconômica dos países desenvolvidos nos anos 2000, portanto, promoveu novo impulso (e novas dimensões) no debate sobre o tema da desigualdade. Especialmente depois de sentidos os efeitos da crise do subprime (2008 e desdobramentos imediatos), a questão da desigualdade adquire incomum protagonismo, devido à crescente percepção (entre pesquisadores, mas também na população em geral) acerca da relação entre concentração da renda/riqueza e a concentração do poder, ou seja, os condicionantes políticos31 31 A colocação do tema no debate político pode ser sintetizada pelo slogan “We are the 99%”, que animou manifestações em dezenas de cidades nos EUA e em outros países desenvolvidos, uma vez sentidos os efeitos sociais concretos da crise deflagrada pela falência do sistema de créditos do subprime , a partir de setembro de 2008, originado nos EUA, mas que se espraiou para todos os países do mundo, gerando aumento do desemprego, perdas de renda para os assalariados, precarização do trabalho na retomada do nível de atividade econômica e, principalmente, na percepção (também baseada nos dados e na tradição já consolidada de apresentá-los segundo a distribuição da renda nacional apropriada por decis ou percentis) de que, uma vez tomadas as medidas de “saneamento” de instituições financeiras que haviam sido combalidas pela crise, muitos de seus executivos saíram dela incólumes e a concentração da renda e da riqueza se mostrariam ainda piores do que antes da crise. que ela encerra.

Dados mencionados por Atkinson, Piketty e Saez (2011) ilustram o caráter concentrador do capitalismo contemporâneo. Citando o caso dos EUA, os autores sublinham que, entre 1976 e 2007, o primeiro percentil da distribuição de renda captou 58% de todo o crescimento da renda do período. No entanto, caso seja considerado apenas o período compreendido entre 2002 e 2007, esse valor sobe para 65%; ou seja, cerca de dois terços do aumento da renda ocorrido entre 2002 e 2007, nos EUA, foi apoderado pelo 1% mais rico do país. Após a crise do subprime , esse percentual aumentou mais ainda, segundo se pode depreender de estudo de Saez (2015)SAEZ, E. Striking it richer: the evolution of top incomes in the United States (Updated with 2013 preliminary estimates). Berkeley: University of California, 2015. Disponível em: https://eml.berkeley.edu/~saez/saez-UStopincomes-2018.pdf. Acesso em: 5 jul. 2022.
https://eml.berkeley.edu/~saez/saez-USto...
, que mostra, com base em dados oficiais do U.S. Census Bureau of Current Population Report, que, na recuperação de 2009-2012, o 1% mais rico se apoderou de nada menos do que 91% da renda criada. Essa realidade se relaciona, em grande medida, aos benefícios (tributários, por exemplo) concedidos aos detentores do capital e seus funcionários diretos na gestão de seus patrimônios. A situação contrasta com o que acontece no mundo do trabalho, no qual, desde pelo menos os anos 1980, em todos os países capitalistas, tem havido um descolamento entre os ganhos de produtividade e os aumentos salariais reais – estes últimos cada vez mais abaixo dos anteriores.

A explicitação dessa realidade trouxe para o debate autores da Ciência Política e da Sociologia, num reconhecimento de que tal dimensão da expansão da desigualdade jamais poderia ser resultado de “forças de mercado”; ou então, seria resultado delas, mas de um mercado moldado por decisões políticas e mudanças institucionais que precisam ser avaliadas de perto e com mais rigor, conforme faremos a seguir.

Também economistas políticos como, por exemplo, Robert Wade (2014)WADE, R. The strange neglect of income inequality in economics and public policy. In: CORNIA, G. A.; STEWART, F. (ed.). Towards human development: new approaches to macroeconomics and inequality. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 99-121. , que refuta os cânones do neoliberalismo que se tornou hegemônico a partir dos anos 1980, chamam atenção para a necessidade de se incluir o aspecto político na discussão da dinâmica de funcionamento do atual estágio do capitalismo. Vale registrar a seguinte passagem, ilustrativa do tom que temos tentado conferir a esta seção deste artigo:

Quando financistas e rentistas conseguem privatizar lucros e se tornam imunes a perdas de renda (como na justificativa de Robert Rubin segundo a qual bancos são “muito grandes para falir”), e quando eles e outras entidades ricas conseguem moldar políticas públicas aos seus desejos de através do financiamento de partidos políticos e as práticas de portas giratórias [entre atuação no setor público e depois no setor privado], nosso Sistema não é mais um “capitalismo democrático”, mas sim um “capitalismo oligárquico impune” ( Wade, 2014WADE, R. The strange neglect of income inequality in economics and public policy. In: CORNIA, G. A.; STEWART, F. (ed.). Towards human development: new approaches to macroeconomics and inequality. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 99-121. , p. 119).32 32 No original: “ When financiers and rentiers are able to privatize profits and to immunize themselves from losses (as in Robert Rubin’s justification for banks that are “too big to fail”), and when they and other wealthy entities are able to shape public policies to their liking through political-party financing and revolving-door appointments, our system is no longer “democratic capitalism”, but rather “oligarchic impunity capitalism ”.

A citação de Wade aqui registrada chama atenção para a nova relação (em comparação com o que ocorrera ao longo dos chamados Anos Dourados) entre a democracia atual e o regime de acumulação de capital vigente na totalidade dos países, cada um com suas peculiaridades. Nesse sentido, diversos estudos mostram, por exemplo, que a concentração da renda e da riqueza no topo resultam, em boa medida, de decisões tomadas em relação a regras de tributação dos mecanismos de renda auferidas no trabalho (remunerações do CEOs das grandes corporações, por exemplo33 33 Cf. Piketty (2014) e Galbraith (2016) . ) e/ou de regras de tributação de rendas auferidas nas aplicações financeiras, em diversos tipos de ativos. As próprias regras de determinação dos níveis de rendimentos dos grandes executivos (CEOs) têm permitido uma expressiva ampliação da desigualdade de renda, concentrada no topo das pirâmides distributivas dos países.34 34 Existem dezenas de estudos sobre as regras de remuneração dos executivos das grandes empresas dos setores produtivo e financeiro. Não é nosso objetivo aqui nos determos em detalhe nesse assunto, mas vale sugerir a leitura de Huber, Huo e Stephens (2019), Keister (2014) e Mishel e Sabadish (2012) . Em Piketty (2014) , ressalta-se, inclusive, que essas “regras” por vezes não são provenientes de regulações formais do mercado ou do governo, mas meramente questões de costumes e de como os diversos povos lidam eticamente com os ditos “supersalários”.

Uma contribuição original, teoricamente robusta e bem embasada vem da obra do cientista político americano Jeffrey Winters (2011)WINTERS, J. A. Oligarchy. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. ,35 35 A referida obra foi vencedora, em 2012, do consagrado prêmio Gregory M. Luebbert, conferido pela American Political Science Association, como o melhor livro de política comparada. Como uma das principais referências no assunto, Winters foi entrevistado pelo New York Times em 18 de janeiro de 2016, e o jornal publicou as seguintes opiniões do cientista político: “Estes são níveis sem precedentes de estratificação em toda a História da Humanidade”, disse o Sr. Winters, seja comparado com a Roma Antiga ou com ditaduras autoritárias que tenham exercido quase total controle sobre os recursos de um país. “Nenhum outro país concentrou tanto a riqueza como este tem concentrado”. No original: “ These are unprecedented levels of stratification in all of human history ”, Mr. Winters said, whether compared with ancient Rome or authoritarian dictatorships that exert near-total control of a country’s resources. “No other system has concentrated wealth as much as this system has ”. na qual o autor cunhou a expessão “ income defense industry ”, para caracterizar tanto o significado do rentismo como suas formas de reprodução e perpetuação. Da contribuição teórica de Winters (2011)WINTERS, J. A. Oligarchy. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. pode-se inferir que o rentismo é mais do que meramente um fenômeno econômico. Inclui aspectos institucionais e políticos que se unem para formatar os modos de reprodução da riqueza fictícia ( Belluzzo, 2016BELLUZZO, L. O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo. São Paulo: Contracorrente, 2016. ; Belluzzo; Galípodo, 2019BELLUZZO, L. G.; GALÍPODO, G. A escassez na abundância capitalista. São Paulo: Contracorrente, 2019. ) e também para atuar no sentido de promover mudanças na legislação e regulação de mercados de forma a reproduzir a defesa (e promover a ampliação contínua e sem limites) das rendas do topo. As seguintes palavras de Winters (2011WINTERS, J. A. Oligarchy. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. , p. 212) definem aspectos importantes que desnudam as relações políticas moldadas, dentro da atual ordem democrática, entre o Estado e os negócios do setor privado:

Desde tempos passados, a taxação tem sido sempre um tema central e conflituoso na Economia Política. Impostos e obrigações tributárias são um reflexo direto do poder. Embora discussões possam ser nebulosas, quem paga impostos e quanto pagam está relacionado a importantes noções de justiça, razoabilidade, moralidade, legitimidade e cidadania.36 36 No original: “ Since ancient times, taxation has always been a central and conflictual matter in political economy. Tax rates and burdens are a direct reflection of power. Although discussions can be mind-numbing, who pays taxes and how much they pay is linked to important notions of justice, fairness, morality, legitimacy, and citizenship ”.

Tratam-se, portanto, de relações de poder que moldam e são moldadas pelos interesses que se entrelaçam no ambiente do rentismo internacional37 37 Streeck (2018) fala do poder que a “diplomacia governamental e financeira internacional” tem para impor regras de austeridade e outras que, a rigor, acabam defendendo os ganhadores de sempre, impulsionando novas rodadas de concentração da renda e da riqueza. . A seguinte passage também é elucidativa:

Tanto como provedores de serviços assim como agentes políticos, a Indústria de Defesa da Renda existe apenas por causa das ameaças materiais que os oligarcas vislumbram e devido ao poder material que eles exercem para contê-las. Este argumento especifica os interesses que os oligarcas possuem e traça os mecanismos pelos quais seu poder é usado – bem como os resultados políticos que são alcançados – para atender a esses mesmos interesses ( Winters, 2011WINTERS, J. A. Oligarchy. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. , p. 214).38 38 No original: “ Both as service providers and as political agents, the Income Defense Industry exists only because of the substantial material threats oligarchs face and the material power they exercise to counter them. This argument specifies the interests oligarchs have and traces the mechanisms through which power is used – and political outcomes are achieved – to address those interests ”.

Dessa forma, fica claro como, sob a ordem capitalista atual, os conflitos de classes e os interesses específicos de grupos econômicos e financeiros vão se transladando para disputas em torno da elaboração dos orçamentos públicos. Da mesma forma, a democracia dos tempos atuais encaminha as decisões sobre todas as formas de regulação pública39 39 Entre elas, se destacam várias, como as formas de regulação do trabalho, a atividade da Justiça trabalhista ou da Justiça em geral, nos países onde não há uma forma específica de Justiça dedicada a questões do trabalho; a regulação e normas de acesso aos benefícios do seguro-desemprego; as regras da Previdência Social, notadamente no que afeta ao funcionamento do mercado de trabalho e à geração de renda e seu impacto sobre o dinamismo da própria economia; a relação entre as políticas educacionais e o mercado de trabalho (notadamente no que se refere às políticas de formação profissional) etc. Para mais detalhes acerca dessas formas de regulação, ver: Dedecca (2009 , 2010 ). que, em outros momentos, tiveram efeitos positivos (do ponto de vista do trabalho, mas também do ponto de vista de grupos capitalistas que visavam aos mercados internos dos países) em termos de uma mais equânime distribuição dos excedentes produtivos criados nas atividades manufatureiras e em outras atividades produtivas.

O conflito distributivo, portanto, se dá em torno das finanças públicas e nas regras definidas tanto para a decisão acerca da política tributária como também em relação aos gastos públicos. A “indústria de defesa da renda” procura interferir não somente nas atividades parlamentares (o que começa a ocorrer já nas campanhas, conforme também mostram outros respeitáveis trabalhos40 40 Ver: American Political Science Association – APSA (2004) , Hacker e Pierson (2010) , Bonica et al. (2013) , Streeck (2018) e Huber, Huo Stephens (2019). ), mas também no amplo sistema de proliferação e/ou consolidação da ideologia dominante, que tem no “rentismo” sua face mais perversa, tanto para a geração de empregos como para o enfrentamento do problema da desigualdade ( Belluzzo; Galípodo, 2019BELLUZZO, L. G.; GALÍPODO, G. A escassez na abundância capitalista. São Paulo: Contracorrente, 2019. ). Dessa forma, as modificações institucionais conduzidas pelos respectivos Estados nacionais, em países de variados tipos e modalidades de capitalismos41 41 Quer sejam os escandinavos, ou os países da Europa do norte continental, ou os países europeus meridionais, sem contar aqueles que faziam a “transição” para o capitalismo (Leste Europeu, incluindo Rússia), para não dizer do caso dos países de origem anglo-saxônica dentro (Reino Unido) ou fora da Europa (EUA, Nova Zelândia, Austrália), conforme lembram Grotti e Sherer (2014). , diante do cenário político e ideológico que se inicia nos anos 1980, acabariam interferindo, em favor do capital, nas diversas formas pelas quais a ação estatal afeta o comportamento da desigualdade, notadamente por meio: (a) da tributação e do gasto público;42 42 Não é aleatória a presença em destaque da questão tributária nessa análise dos benefícios rendidos ao capital a partir dos anos 1980. Foi justamente nesse período, como citamos anteriormente, que a Teoria da Tributação Ótima começa a ganhar espaço na formatação dos sistemas tributários ao redor do mundo, com sua ode ao capital subtaxado, ou taxado a zero em certos casos, e a relegação da questão distributiva a um plano inferior, atrás da eficiência e exclusivamente concernente à questão dos gastos públicos, e não da forma de arrecadação dos tributos. (b) da regulação do mercado de trabalho e das regras previdenciárias; e (c) da oferta de serviços públicos. Assim vão se desgastando os mecanismos pelos quais, segundo lembram Grotti e Scherer (2014), poderiam ser corrigidas as desigualdades geradas pelo mercado, instituição que distribui a renda de maneira mais desigual.

Streeck (2018)STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. também destaca o papel da mídia, construindo a “opinião pública” e promovendo valores ideológicos em prol do referido sistema de acumulação. Suas ponderações se somam ao conceito de income defense industry cunhado por Winters (2011)WINTERS, J. A. Oligarchy. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. . Vale registrar uma longa citação de Streeck (2018STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. , p. 108):

Os proponentes da justiça de mercado procuram impor-se em termos retóricos e ideológicos denunciando a justiça social como “política”, no sentido particularista da palavra, e, portanto, como contaminada ou até corrupta. No entanto, considera-se que a justiça do mercado, dados seu caráter aparentemente impessoal e a alegada calculabilidade em termos de teoria de preços, funciona independentemente da política – portanto, de acordo com princípios universalistas -, sendo, assim, “pura”; isto é, apolítica. Esse tipo de distinções e equiparações há muito penetrou na linguagem comum: é frequente a afirmação de que algo foi decidido “politicamente” ser suficiente para fazer parecer que a decisão favoreceu um determinado grupo de interesses. Os mercados, de acordo com a suposição promovida incansavelmente pelas relações públicas capitalistas, distribuem segundo regras universais, enquanto a política, pelo contrário, distribui segundo o poder e as relações. Ao que parece, é mais fácil ignorar que os mercados, na avaliação do desempenho e na atribuição de remunerações, não consideram a posição inicial desigual de seus participantes – uma vez que tudo isso se baseia na ausência de decisão – do que ignorar as medidas de uma política redistributiva, as quais precisam ser discutidas num processo controverso e implementadas ativamente. Além disso, as decisões políticas podem ser atribuídas a determinados decisores ou instituições que podem ser responsabilizadas pelas mesmas, enquanto, aparentemente, as decisões de mercado caem do céu, sem intervenção humana – sobretudo quando o mercado se supõe como um estado natural – e têm de ser – manifestamente, também podem ser – aceitas como destino por trás do qual se esconde um sentido superior, possivelmente acessível apenas a peritos.

Nesse contexto, o processo político, tanto no que se refere às campanhas eleitorais como no que tange ao exercício dos mandatos parlamentares, tornam-se cada vez mais submetidos à mercantilização – e, inevitavelmente, aos interesses de quem financia campanhas e influencia mandatos. Não é, portanto, por acaso, que se verifica uma crescente incapacidade de a democracia “corrigir” ou pelo menos atenuar as desigualdades criadas nas atividades econômicas privadas – em claro contraste com o que ocorria durante o período da Guerra Fria, notadamente entre 1945 e final da década de 1970 – a “construção política” dos Anos Dourados a que se refere Hobsbawm (1995)HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. .

Estudo organizado pela American Political Science Association (2004)AMERICAN POLITICAL SCIENCE ASSOCIATION – APSA. American democracy in an age of rising inequality. Task Force on Inequality and American Democracy. Washington, DC, 2004 analisou a realidade dos EUA no início do século, mas ainda se mostra adequado para ilustrar o que temos afirmado. O referido estudo avalia a participação da cidadania, a capacidade de resposta dos governos e os padrões de execução das políticas públicas para interpretar o processo de ampliação da concentração de renda e de riqueza recentes, concluindo, entre outros fatores, que o modo de participação política mudou nas últimas décadas, no sentido de redução da participação efetiva das pessoas na política (e, o que é pior, com redução de participação especialmente dos mais pobres) e ampliação da contribuição monetária das pessoas no processo eleitoral (notadamente das mais ricas), com efeitos notáveis na maneira pela qual os parlamentares exercem seus mandatos, devotando maiores esforços para a execução de políticas que favoreçam o grande capital, e/ou criando regras que acabam acentuando as desigualdades já existentes. Dessa forma, os que não votam se tornam cada vez menos representados nas decisões político/institucionais definidas pela democracia parlamentar. Assim, parte crescente das conquistas sociais que haviam sido obtidas nos anos 1950/1960 nos EUA começaram a ser revertidas a partir dos anos 1980 (e, desde então, sem trégua).

Na mesma linha, em ampla pesquisa organizada por Bonica et al. (2013)BONICA, A.; MCCARTHY, N.; POOLE, K. T.; ROSENTHAL, H. Why hasn’t Democracy slowed rising inequality? Journal of Economic Perspective, [s. l.], v. 27, n. 3, p. 103-124, Summer 2013 . , os autores avaliam que a convivência da democracia com as desigualdades em expansão decorre de características do processo político do país e também da hegemonia do pensamento liberal/conservador. Destaca-se, por exemplo, o fato de que tanto os republicanos como a grande maioria dos democratas aderiu, nos últimos anos, às ideias do livre mercado e, então, adotaram medidas de desregulamentação dos mercados de trabalho e financeiros, políticas fiscais regressivas e esvaziaram programas sociais, de tal forma que desidrataram o papel que as políticas redistributivas haviam exercido na sociedade americana nas décadas do pós-Segunda Guerra.

Todos esses problemas relacionados ao funcionamento da democracia americana foram os responsáveis pelas decisões centrais que levaram à desregulação do mercado financeiro e também à adoção de medidas de benefícios fiscais e tributários a grupos econômicos importantes, sem contrapartida de melhorias na geração de empregos e demais resultados positivos nos mercados de trabalho (estes também crescentemente desregulamentados). Todas essas medidas concretas que afetam o funcionamento da economia levaram à trajetória de crescente desigualdade da renda e da riqueza. A leitura de Streeck (2018)STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. , retratando aspectos do funcionamento da democracia nos principais países europeus revelam que, em linhas gerais, as questões elencadas pelo estudo de Bonica et al. (2013)BONICA, A.; MCCARTHY, N.; POOLE, K. T.; ROSENTHAL, H. Why hasn’t Democracy slowed rising inequality? Journal of Economic Perspective, [s. l.], v. 27, n. 3, p. 103-124, Summer 2013 . também valem para os casos de países europeus.

Streeck (2018)STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. lembra que, na Europa, notadamente nos anos 1990, década que antecedeu à adesão da moeda única, os mercados de trabalho foram significativamente flexibilizados, conforme se depreende tanto das mudanças legislativas postas em prática, que levaram a uma ampliação expressiva da presença de contratos de duração determinada (CDD) e/ou de ocupações em tempo-parcial, muitas das quais representavam, na prática, formas de manifestação de desemprego disfarçado.43 43 Essas mudanças ocorridas nos mercados de trabalho europeus resultaram de medidas tomadas nos respectivos parlamentos. Para um histórico do processo de flexibilização dos mercados de trabalho europeus ocorrido nos anos 1980 e 1990, ver Mattos (2009) . Tendo como referência o cenário europeu diante da ordem financeira internacional, Str eeck (2018) registra que a deterioração dos mercados de trabalho representa uma reversão histórica das conquistas sociais que foram as marcas do período do pós-Segunda Guerra. Na disputa retórica das discussões políticas e ideológicas, denuncia o autor, a própria deterioração do cenário econômico para as pessoas “da rua” ( Streeck, 2018STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. , p. 92) acabariam sendo usados politicamente, conforme lembra Streeck (2018STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. , p. 4), justamente para promover novas medidas de “demolição do Estado de bem-estar social do capitalismo do pós-guerra” (). Ou seja, novas formas de reduzir despesas sociais e/ou de promover medidas de flexibilização das relações de trabalho e demais decisões que, na prática, já vêm há anos provocando piora tanto na distribuição funcional quanto na distribuição pessoal da renda.

A hegemonia do discurso neoliberal, para Streeck (2018)STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. , vem junto do momento em que os mercados financeiros são cada vez mais internacionalizados, o que retira as decisões das respectivas esferas nacionais, reforçando a necessidade de que as Nações tenham de se “adaptar” aos interesses do poderio financeiro, que impõe as chamadas medidas de austeridade fiscal (o que, na verdade, significa sacrificar os investimentos sociais em todas as suas dimensões – em favor dos gastos financeiros destinados aos detentores de títulos públicos) e, estas, invariavelmente, têm sido acompanhadas de resultados práticos pífios (quando não desastrosos) sobre indicadores da “economia real”, como emprego, crescimento do PIB per capita, taxa de desemprego etc. – enfim, vários aspectos que atuam para ampliar a desigualdade econômica e a social.

À medida que esse processo de generalizada “retirada” do Estado das suas funções reguladoras foi se aprofundando, a concentração de renda e de riqueza foi se tornando mais aguda, simbolizada pelo que ocorreu no topo da pirâmide distributiva, ou seja, no estrato do 1% mais rico e em suas subdivisões menores. A análise do perfil dos rendimentos, segundo sua origem, à medida que avaliamos a composição de rendimentos dentro do topo da pirâmide distributiva, revela a crescente proeminência das rendas do capital e, dentro delas, daquelas oriundas das rendas do capital financeiro, conforme mostraram diversos trabalhos recentes.44 44 Keister (2014) , por exemplo, mostra que, nos anos 2000, tem aumentado não apenas a concentração de renda em favor do estrato do 1% do topo da distribuição, mas também a presença de rendas do capital nesse mesmo segmento e, em especial, de rendas oriundas do capital financeiro. Seus dados ilustram muito claramente o que chamamos aqui de processo de financeirização do capitalismo contemporâneo. Piketty (2014) também revela informações nessa mesma esteira. Esse processo ocorreu não apenas em países desenvolvidos já reconhecidamente desiguais, como EUA e Reino Unido, mas também em países marcados por certo igualitarismo (dentro dos padrões do capitalismo), como os países escandinavos ( Atkinson; Sogaard, 2016ATKINSON, A.; SOGAARD, J. E. The long-run history of income inequality in Denmark. The Scandinavian Journal of Economics, v. 118, n. 2, p. 264-291, 2016. ; Gustafsson; Johansson, 2003GUSTAFSSON, B.; JOHANSSON, M. Steps toward equality: how and why income inequality in urban Sweden changed during the period 1925-1958. European Review of Economic History, [s. l.], v. 7, n. 2, p. 191-211, 2003. ; Piketty, 2014PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. ; Roine; Waldestrom, 2012ROINE, J.; WALDESTROM, D. On the role of capital gains in Swedish Income inequality. The Review of Income and Wealth, [s. l.], v. 58, n. 3, p. 569-587, 2012. ).

Em suma, recuperando o que foi discutido nesta segunda seção, percebe-se que as mudanças ocorridas na ordem financeira internacional, a partir do segundo quarto do século XX, promoveram alterações importantes na divisão internacional do trabalho, na forma de organização das empresas, no perfil e ritmo de acumulação da renda e da riqueza – em favor, especialmente, da riqueza financeira. O rentismo é muito mais do que simplesmente uma mudança no perfil da renda dos orçamentos familiares e no portfólio das empresas. É também uma forma de organização das sociedades, que pressupõe não uma retirada do Estado das formulações econômicas, como muitos afirmam, mas uma postura de ação estatal em favor do grande capital financeiro e produtivo – sendo este último cada vez mais atrelado ao próprio rentismo. Ademais, o rentismo também pressupõe uma nova forma de funcionamento da democracia, radicalmente distinto da que animara sua atuação durante os chamados Anos Dourados. As palavras de Streeck (2018STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. , p. 157) ilustram esse importante aspecto do capitalismo contemporâneo, incluindo o papel decisivo exercido pelos organismos financeiros internacionais:

O Estado de consolidação europeu do início do século XXI não é uma estrutura nacional, mas internacional – um regime supraestatal regulador dos Estados Nacionais que aderiram a ele, sem um governo com responsabilidade democrática, mas com regras vinculativas: com governance em vez de gouvernment , com uma democracia domesticada pelos mercados, não mercados domesticados pela democracia.

Feitas estas considerações e este registro final, resta-nos tecer alguns comentários a título de conclusões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo procurou mostrar a evolução do debate sobre a desigualdade econômica desde meados do século XX, reiterando como a democracia foi sendo crescentemente controlada pelos detentores do capital e seus defensores ideológicos, em cenário favorecido pelas mudanças ocorridas na ordem financeira internacional que havia sido gestada no pós-Segunda Guerra e que, entre 1945 e o final dos anos 1970, foi capaz de conviver (e até mesmo promover) com um ambiente econômico de prosperidade e redução das desigualdades (uma era de exceção na história do capitalismo, conforme sublinhou Hobsbawm, 1995HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ).

Nos anos 2000, o processo de concentração da renda e da riqueza, que já vinha ocorrendo desde o início dos anos 1980 na quase totalidade dos países capitalistas desenvolvidos, torna-se ainda mais intenso, incentivando o surgimento de novas formas de interpretação da desigualdade econômica, que passaria a ser encarada, na literatura internacional, como um conjunto amplo de manifestações de desigualdades (no plural, na verdade).

O debate sobre o “1% do topo” se mostra mais robusto, multidimensional e multidisciplinar do que os contornos do debate sobre concentração de renda que haviam se consolidado no século XX. A compreensão da natureza da “hiperconcentração” da renda e da riqueza, nos já vinte anos do século XXI, exige que fatores políticos, geopolíticos e sociais sejam incorporados às análises econômicas que dominavam o debate anterior (século XX). É nesse momento do debate que as contribuições de sociólogos e de cientistas políticos se mostram fundamentais e enriquecedoras. Deve-se pontuar também que, entre os economistas, apenas os economistas políticos (que incorporam, em suas análises e estudos, os aspectos relacionados às relações de poder, como os que surgem e se consolidam com a ascensão do rentismo) conseguem entender e descrever esses novos e tenebrosos tempos de crescente desigualdade econômica e social, os quais se refletem, por sua vez, em diversas esferas da vida humana e do cotidiano das pessoas.

As “regras do jogo”, que incluem decisões relacionadas aos funcionamentos dos mercados de bens (em âmbito internacional, inclusive – daí a necessidade cada vez mais imperiosa de se compreender as relações geopolíticas gestadas no cenário mundial), ao mercado de trabalho e suas regulações, à propriedade e uso das novas tecnologias e, não menos importante, às políticas tributárias e ao controle dos parlamentos sobre os orçamentos públicos, são formadas, portanto, por elementos eminentemente políticos cujos determinantes se deve sempre procurar entender se se deseja conhecer a natureza e a dimensão das diversas maneiras de manifestação das desigualdades do mundo moderno.

Não obstante, é nesse cenário que surge e se expande uma revisão, recheada de autocrítica, dentro do braço neoclássico no campo da tributação, incluindo neste processo autores novos como Piketty, Saez e Zucman, mas também autores canônicos da Otimização Tributária, tais quais Mirrlees, Atkinson e Stiglitz.45 45 Como exemplos práticos dessa “guinada” mais recente dos autores na direção de uma maior preocupação com as questões distributivas, ver: Atkinson (2015) , Mirrlees (2011) e Stiglitz (2012) . Nesse processo revisional, ainda que sem abandono dos paradigmas tradicionais do neoclassicismo, têm sido discutidas amplamente as questões da desigualdade e sua escalada recente, a relevância de uma taxação significativa sobre os rendimentos do capital para ajudar a reverter este quadro, e a necessidade de discutir a tributação em bases mais amplas, incluindo aspectos multidisciplinares da Ciência Política e da Sociologia, e não somente via modelagens e cálculos matemáticos frios.

A complexidade da desigualdade econômica contemporânea exige que sejam interpretadas as origens dos rendimentos oriundos de políticas sociais, por um lado, e também como são gerados, tributados e reproduzidos os rendimentos provenientes das variadas formas de riqueza e seus ativos. Todas estas rendas, assim como as sempre importantes remunerações definidas nos mercados de trabalho, são direta ou indiretamente definidas por fatores políticos e sociais (no que se destaca a relevância de se compreender os fatores – institucionais, inclusive – que determinam o funcionamento das democracias contemporâneas). Dessa forma, conclui-se que a análise da desigualdade econômica deve ser sempre multidimensional (para compreender as várias fontes de rendimentos) e também multidisciplinar – daí a necessidade de se incorporar as contribuições de profissionais de diversas áreas das Ciências Humanas.

A “indústria financeira” alimenta e é alimentada pela disputa de narrativas (através da mídia “especializada” e dos meios acadêmicos) e pela hegemonia ideológica de um neoliberalismo que cada vez menos entrega o que promete ou, então, que se dá ao “direito” mesmo de não prometer nada, diante de um cenário de falência da democracia.

Resta saber onde vai desaguar essa “democracia” que vem sendo (des)construída nos últimos tempos e que sociedades ela vai produzir nos mais variados países – e como o próprio capitalismo vai “sobreviver” (ou se “adaptar”?) a ela.

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  • WINTERS, J. A. Oligarchy. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
  • 1
    Professor/pesquisador na Lyndon B. Johnson School of Public Affairs e no Department of Govenment na Universidade do Texas, em Austin. Na mesma universidade, dirige o consagrado University of Texas Inequality Project. Em 2016, foi conselheiro da campanha presidencial do senador Bernie Sanders. James Galbraith é filho do eminente economista John Kenneth Galbraith, que teve experiência profissional igualmente importante tanto na academia como na vida pública dos EUA. John Kenneth teve papel de destaque como formulador de conceitos econômicos que se contrapuseram à Teoria Econômica convencional/neoclássica (ao “saber convencional” em Economia, como ele mesmo gostava de dizer). Como homem público, atuou na gestão da economia de guerra nos anos 1940; nos anos seguintes, continuou atuando como assessor econômico do Partido Democrata. Assessorou tanto Franklin D. Roosevelt como John Kennedy.
  • 2
    A exposição de James Galbraith está publicada na edição da primavera de 2019 da revista Review of Keynesian Economics . Ver: Galbraith (2019)GALBRAITH, J. K. A global macroeconomics – yes, macroeconomics, dammit – of inequality and income distribution – Inaugural Godley – Tobin Memorial Lecture, Eastern Economic Association, Boston, MA, USA. Review of Keynesian Economics, v. 7, n. 1, p. 1-5, 2019. .
  • 3
    A Eastern Economic Association é uma associação sem fins lucrativos devotada a promover debates sobre temas acadêmicos na área de Economia. A entidade edita uma revista ( Eastern Economic Journal ) e promove encontros anuais entre seus membros para debater os mais variados temas na área de Economia. Os encontros da Eastern se caracterizam pela presença de trabalhos que procuram aproximar a área da Economia de estudos das áreas de Ciência Política e Sociologia.
  • 4
    Esses códigos servem para classificar os artigos acadêmicos segundo áreas da Economia e subáreas dentro de cada área. Galbraith comenta que a defasagem e inadequação da classificação da JEL dificulta (embora não impeça) a publicação de artigos sobre desigualdade econômica.
  • 5
    Em Kuznets (1955)KUZNETS, S. Economic Growth and Income Inequality. The American Economic Review, Washington, [s. l.], v. 45, n. 1, p. 1-28, 1955. , o autor formula a relação entre desenvolvimento econômico e distribuição de renda, em modelo que posteriormente receberia a denominação de “Curva de Kuznets” ou curva do “U invertido”, na qual o autor sustenta que, nos períodos iniciais de crescimento econômico, existe uma tendência a que a desigualdade de renda aumente, atingindo nível máximo ainda durante o período de expansão da renda (dada pela migração de pessoas de renda mais baixa, do setor atrasado ou agrícola, para o setor industrial, caracterizado por ter maiores rendimentos, maior produtividade e maior sofisticação tecnológica) e, a partir de certo ponto, voltaria a se reduzir. Esse artigo se tornaria um clássico a fazer parte do conjunto de estudos que compõem a Teoria do Desenvolvimento e, também, uma referência para os estudos sobre distribuição de renda. Em 1971, devido a essa e outras contribuições teóricas, Simon Kuznets, um economista bielorrusso naturalizado americano, seria laureado com o Prêmio Nobel em Economia.
  • 6
    No original: “ The discipline exists, largely, to explain factor returns. If it doesn’t explain – I don’t say ‘justify’ – the pay of the worker and the return to capital, then the rest of what it does would not sustain it ”.
  • 7
    Os economistas a que nos referiremos neste artigo têm uma linha de análise que interpreta as crises econômicas como resultados de conflitos distributivos, e entende as relações econômicas como relações de poder e de disputa pelos excedentes gerados no processo de acumulação capitalista. Neste artigo, a análise econômica adotada e os economistas mencionados estão, grosso modo, na linha do que Streeck (2018)STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. descreve em seu livro inspirado na obra de Michal Kalecki: “eu queria explicar aos conhecedores da matéria, por meio da visão teórica de conjuntura política de Kalecki, que o que tenho em mente é uma concepção de economia como política (em oposição às teorias econômicas institucionalistas tradicionais, ou seja, a política retratada como economia). Em outras palavras, uma representação das leis econômicas como projeção das relações sociais de poder, e das crises, certamente como aquelas discutidas no livro, como conflitos distributivos ou como suas consequências” ( Streeck, 2018STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. , p. 16-17).
  • 8
    Termo consagrado na literatura e que, em português, poderíamos chamar de Estado de bem-estar social.
  • 9
    Sobre a ascensão da “sociedade salarial”, ver Castel (1998), especialmente cap. VII.
  • 10
    O aforismo de Helmut Schmidt, na campanha eleitoral de 1976, ilustra o que temos dito: “Antes 5% de inflação do que 5% de desemprego” (citado em Streeck, 2018STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. ; p. 80).
  • 11
    Streeck (2018)STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. se refere aos países europeus ocidentais.
  • 12
    Para contextualizar a mudança da hegemonia ideológica entre os anos 1940 e o início dos anos 1980, vale registrar trechos de uma longa citação de Hobsbawm (1995HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. , p. 265-266): “Essencialmente [os Anos Dourados], foi uma espécie de casamento entre liberalismo econômico e democracia social […]. Por isso, a reação contra ele, dos defensores ideológicos do livre mercado, seria tão apaixonada nas décadas de 1970 e 1980, quando as políticas baseadas nesse casamento já não eram salvaguardadas pelo sucesso econômico. Homens como o economista austríaco Friedrich von Hayek jamais haviam sido pragmatistas, dispostos (embora com relutância) a ser persuadidos de que atividades econômicas que interferiam com o laissez-faire funcionavam […]. Eram verdadeiros crentes da equação “Livre Mercado = Liberdade do Indivíduo” […]. Tinham defendido a pureza do mercado na Grande Depressão. Continuavam a condenar as políticas que faziam de ouro a Era de Ouro, quando o mundo ficava mais rico e o capitalismo (acrescido do liberalismo político) tornava a florescer com base na mistura de mercados e governos. Mas entre as décadas de 1940 e a de 1970 ninguém dava ouvidos a tais Velhos Crentes”.
  • 13
    Moffitt (1984)MOFFITT, M. O dinheiro do mundo: de Bretton Woods à beira da insolvência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. , Belluzzo (1995)BELLUZZO, L. G. O declínio de Bretton Woods e a emergência dos mercados globalizados. Economia e Sociedade, Campinas, n. 4, p. 11-20, jun. 1995. e Mattos (2009)MATTOS, F. A. M. Flexibilização do trabalho: sintomas da crise. São Paulo: Annablume, 2009. .
  • 14
    No caso dos EUA, por exemplo, o ponto culminante desse processo de desregulamentação do mercado financeiro, que vinha ocorrendo desde, pelo menos, meados dos anos 1970, foi a extinção da Lei Glass-Steagall, ocorrida em novembro de 1999 (durante o Governo Clinton). A Glass-Steagall Act havia sido promulgada em 1933, e compunha parte importante das reformas executadas durante o primeiro mandato do presidente Roosevelt para enfrentar a Grande Depressão deflagrada pela crise de 1929. A Glass-Steagall era a principal componente da Lei dos Bancos. Entre suas principais resoluções se destacavam a separação total das atividades bancárias das atividades de investimentos no sistema financeiro dos EUA e o combate à cartelização bancária. A eliminação dessas regulações foram progressivamente ampliando o caráter especulativo de um crescente fluxo de capitais financeiros internacionais, tendo a praça dos EUA como seu principal centro irradiador financeiro (e ideológico, por suposto).
  • 15
    Por exemplo: a mudança de plantas produtivas para outros estados dos EUA ou para outros países, ou mesmo a ameaça de isso ocorrer já representa(va) por si só um elemento importante para enfraquecer o movimento sindical.
  • 16
    Forma mais tradicional de avaliar a evolução do perfil distributivo na segunda metade do século XX.
  • 17
    As medidas empreendidas no campo tributário foram amplamente baseadas na chamada Teoria da Tributação Ótima (TTO), que se consolidou academicamente ao longo das décadas de 1970-1980, e compartilhava com a economia neoclássica seus principais postulados. Entre as principais medidas preconizadas pela TTO – e sumariamente seguidas pelos governos citados – estavam a drástica redução da taxação dos rendimentos do capital, e a preconização do aspecto da eficiência em detrimento da distribuição na implantação dos tributos. Para uma análise da TTO e sua aplicação em diversos sistemas, ver: Gobetti (2018)GOBETTI, S. W. Tributação do capital no Brasil e no mundo. Brasília, DF: Ipea, 2018. (Texto para Discussão n. 2380). e Gobetti e Orair (2016)GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. Progressividade tributária: a agenda negligenciada. Brasília, DF: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2380). .
  • 18
    Edição de 1987, uma tradução da edição de 1984 do mencionado livro. O prefácio a que nos referimos foi redigido na primavera de 1984.
  • 19
    Redigida “no calor da hora” das mudanças ocorridas na política econômica e na “nova” repartição dos excedentes.
  • 20
    O autor inclusive exibe estatísticas que ilustram a ampliação da presença de estudos sobre o tema na revista acadêmica ( The Economic Journal ) que estava publicando seu artigo.
  • 21
    O título (e o conteúdo) do referido artigo é o mesmo do discurso do autor, proferido quando assume a Presidência da Royal Economic Society .
  • 22
    No original: “ As we now know, income inequality did not continue to fall ”.
  • 23
    No original: “ distribution as between persons was a problem of more direct and obvious interest ”.
  • 24
    Notadamente os rendimentos provenientes da miríade de ativos financeiros criados no bojo do processo de desregulamentação da ordem financeira internacional, como também diversas origens e formas de rendimentos provenientes do capital produtivo e também decorrentes de posse de ativos como patentes, e outros direitos de propriedade e de exploração de conhecimentos tecnológicos, ganhos com ações etc. De todo modo, também e ainda do ponto de vista dos salários, deve-se destacar a proeminência de estudos sobre alterações nos mecanismos de remuneração dos altos executivos – os supersalários, conforme veremos na seção seguinte.
  • 25
    Atkinson (1997ATKINSON, A. Bringing income distribution in from the cold. The Economic Journal, v. 107, n. 441, p. 297-3214, 1997. , p. 317): “Meu propósito principal aqui é o de argumentar que a análise econômica da distribuição de renda necessita de ulteriores desenvolvimentos antes que possamos almejar dar uma resposta definitiva para questões nas quais as pessoas comuns estejam interessadas – tais como: o que determina a dimensão da desigualdade e porque ela aumentou? Isso não significa que a teoria econômica atual não tenha nada a contribuir. Ela certamente oferece esclarecimentos para parte da história, mas o que se exige é que os diferentes aspectos do problema sejam analisados em conjunto. Precisamos de um instrumental completo, tanto conceitual quanto empírico, dentro do qual possam estar inseridos diferentes mecanismos de análise. As diferenças de habilidades que explicam as diferenças salariais são válidas, mas se trata de apenas parte da história. O mercado de trabalho não pode ser visto como algo totalmente independente do mercado de capitais. Tanto as explicações econômicas quanto as políticas têm seu lugar na compreensão da desigualdade de rendimentos. No original: “ My principal purpose here has been to argue that the economic analysis of the distribution of income is in need of further development before we can hope to give a definitive answer to the questions in which the ordinary person is interested – such as what determines the extent of inequality and why has inequality increased? This does not mean that current economic theory has nothing to contribute. It certainly offers insights into parts of the story, but what is required is for the different elements to be brought together. We need an overall framework, both conceptual and empirical, within which to fit the different mechanisms. The skill shift explanation for wage differentials is valuable, but it is only part of the story. The labour market cannot be seen as totally independent from the capital market. Both economic and political economy explanations have their place ”.
  • 26
    Segundo a interpretação marxiana, o capital é dito de caráter fictício quando perde sua relação intrínseca com o processo real de produção no qual o valor-trabalho é gerado. O surgimento e a disseminação do capital fictício ou especulativo representa, portanto, uma autonomia relativa e crítica da esfera da circulação sobre a produção. Para uma análise detalhada sobre o crescimento desse tipo de capital no mundo ao longo dos anos 1990 e 2000, e sua relação direta com a crise de 2008, ver: Guttmann (2008)GUTTMANN, R. A primer on finance-led capitalism and its crisis. Revue de la Regulation, [s. l.], n. 3-4, 2008. Disponível em: http://regulation.revues.org/index5843.html. Acesso em: 4 jul. 2022.
    http://regulation.revues.org/index5843.h...
    e Mollo (2011)MOLLO, M. L. R. Crédito, capital fictício, fragilidade financeira e crises: discussões teóricas, origens e formas de enfrentamento da crise atual. Economia e Sociedade, Campinas, v. 20, n. 3, p. 449-474, 2011. .
  • 27
    Os dados expostos nos Gráficos 2, 3 e 4 referem-se a todas as formas de rendimentos (ou seja, incluem, além de rendimentos do trabalho, rendas de transferências sociais, rendimentos provenientes de ativos financeiros e também não financeiros) antes da incidência de impostos, mas não incluem ganhos de capital (valorização de ativos “não realizadas”, ou seja, não transformadas em rendimentos por parte de seus detentores).
  • 28
    Ver: Piketty (2014)PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. , Keister (2014)KEISTER, L. A. The one percent. The Annual Review of Sociology, [s. l.], n. 40, p. 347-367, 2014. , Alvaredo et al. (2013)ALVAREDO, F.; ATKINSON, A.; PIKETTY, T.; SAEZ, E. The top 1 percent in international and historical perspective. Journal of Economic Perspectives, v. 27, n. 3, p. 3-20, 2013. e Atkinson, Piketty e Saez (2011).
  • 29
    Cf. Keister (2014)KEISTER, L. A. The one percent. The Annual Review of Sociology, [s. l.], n. 40, p. 347-367, 2014. e Chesnais (1996)CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. .
  • 30
    Cf. Keister (2014)KEISTER, L. A. The one percent. The Annual Review of Sociology, [s. l.], n. 40, p. 347-367, 2014. , Thernborn (2011), Piketty (2014)PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. e Palma (2006)PALMA, J. G. Globalizing inequality: ‘centrifugal’ and ‘centripetal’ forces at work. New York: Department of Economic and Social Aff Airs, 2006. (DESA Working Paper n. 35). .
  • 31
    A colocação do tema no debate político pode ser sintetizada pelo slogan “We are the 99%”, que animou manifestações em dezenas de cidades nos EUA e em outros países desenvolvidos, uma vez sentidos os efeitos sociais concretos da crise deflagrada pela falência do sistema de créditos do subprime , a partir de setembro de 2008, originado nos EUA, mas que se espraiou para todos os países do mundo, gerando aumento do desemprego, perdas de renda para os assalariados, precarização do trabalho na retomada do nível de atividade econômica e, principalmente, na percepção (também baseada nos dados e na tradição já consolidada de apresentá-los segundo a distribuição da renda nacional apropriada por decis ou percentis) de que, uma vez tomadas as medidas de “saneamento” de instituições financeiras que haviam sido combalidas pela crise, muitos de seus executivos saíram dela incólumes e a concentração da renda e da riqueza se mostrariam ainda piores do que antes da crise.
  • 32
    No original: “ When financiers and rentiers are able to privatize profits and to immunize themselves from losses (as in Robert Rubin’s justification for banks that are “too big to fail”), and when they and other wealthy entities are able to shape public policies to their liking through political-party financing and revolving-door appointments, our system is no longer “democratic capitalism”, but rather “oligarchic impunity capitalism ”.
  • 33
    Cf. Piketty (2014)PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. e Galbraith (2016)GALBRAITH, J. K. Inequality: what everyone needs to know. Oxford: Oxford Press, 2016. .
  • 34
    Existem dezenas de estudos sobre as regras de remuneração dos executivos das grandes empresas dos setores produtivo e financeiro. Não é nosso objetivo aqui nos determos em detalhe nesse assunto, mas vale sugerir a leitura de Huber, Huo e Stephens (2019), Keister (2014)KEISTER, L. A. The one percent. The Annual Review of Sociology, [s. l.], n. 40, p. 347-367, 2014. e Mishel e Sabadish (2012)MISHEL, L.; SABADISH, N. CEO pay and the top 1%: how executive compensation and financial-sector pay have fuelded income inequality. Economic Policy Institute, n. 33, 2012. . Em Piketty (2014)PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. , ressalta-se, inclusive, que essas “regras” por vezes não são provenientes de regulações formais do mercado ou do governo, mas meramente questões de costumes e de como os diversos povos lidam eticamente com os ditos “supersalários”.
  • 35
    A referida obra foi vencedora, em 2012, do consagrado prêmio Gregory M. Luebbert, conferido pela American Political Science Association, como o melhor livro de política comparada. Como uma das principais referências no assunto, Winters foi entrevistado pelo New York Times em 18 de janeiro de 2016, e o jornal publicou as seguintes opiniões do cientista político: “Estes são níveis sem precedentes de estratificação em toda a História da Humanidade”, disse o Sr. Winters, seja comparado com a Roma Antiga ou com ditaduras autoritárias que tenham exercido quase total controle sobre os recursos de um país. “Nenhum outro país concentrou tanto a riqueza como este tem concentrado”. No original: “ These are unprecedented levels of stratification in all of human history ”, Mr. Winters said, whether compared with ancient Rome or authoritarian dictatorships that exert near-total control of a country’s resources. “No other system has concentrated wealth as much as this system has ”.
  • 36
    No original: “ Since ancient times, taxation has always been a central and conflictual matter in political economy. Tax rates and burdens are a direct reflection of power. Although discussions can be mind-numbing, who pays taxes and how much they pay is linked to important notions of justice, fairness, morality, legitimacy, and citizenship ”.
  • 37
    Streeck (2018)STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. fala do poder que a “diplomacia governamental e financeira internacional” tem para impor regras de austeridade e outras que, a rigor, acabam defendendo os ganhadores de sempre, impulsionando novas rodadas de concentração da renda e da riqueza.
  • 38
    No original: “ Both as service providers and as political agents, the Income Defense Industry exists only because of the substantial material threats oligarchs face and the material power they exercise to counter them. This argument specifies the interests oligarchs have and traces the mechanisms through which power is used – and political outcomes are achieved – to address those interests ”.
  • 39
    Entre elas, se destacam várias, como as formas de regulação do trabalho, a atividade da Justiça trabalhista ou da Justiça em geral, nos países onde não há uma forma específica de Justiça dedicada a questões do trabalho; a regulação e normas de acesso aos benefícios do seguro-desemprego; as regras da Previdência Social, notadamente no que afeta ao funcionamento do mercado de trabalho e à geração de renda e seu impacto sobre o dinamismo da própria economia; a relação entre as políticas educacionais e o mercado de trabalho (notadamente no que se refere às políticas de formação profissional) etc. Para mais detalhes acerca dessas formas de regulação, ver: Dedecca (2009DEDECCA, C. S. Desigualdade, mas de qual falamos? Campinas: Unicamp, 2009. (Textos para Discussão n. 168). , 2010DEDECCA, C. S. Trabalho, financeirização e desigualdade. Campinas: Unicamp, 2010. (Textos para Discussão n. 174). ).
  • 40
    Ver: American Political Science Association – APSA (2004)AMERICAN POLITICAL SCIENCE ASSOCIATION – APSA. American democracy in an age of rising inequality. Task Force on Inequality and American Democracy. Washington, DC, 2004 , Hacker e Pierson (2010)HACKER, J. S.; PIERSON, P. Winner-Take-all politics: public policy, political organization, and the precipitous rise of top incomes in the United States. Politics & Society, [s. l.], v. 38, n. 2, p. 152-204, 2010. , Bonica et al. (2013)BONICA, A.; MCCARTHY, N.; POOLE, K. T.; ROSENTHAL, H. Why hasn’t Democracy slowed rising inequality? Journal of Economic Perspective, [s. l.], v. 27, n. 3, p. 103-124, Summer 2013 . , Streeck (2018)STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. e Huber, Huo Stephens (2019).
  • 41
    Quer sejam os escandinavos, ou os países da Europa do norte continental, ou os países europeus meridionais, sem contar aqueles que faziam a “transição” para o capitalismo (Leste Europeu, incluindo Rússia), para não dizer do caso dos países de origem anglo-saxônica dentro (Reino Unido) ou fora da Europa (EUA, Nova Zelândia, Austrália), conforme lembram Grotti e Sherer (2014).
  • 42
    Não é aleatória a presença em destaque da questão tributária nessa análise dos benefícios rendidos ao capital a partir dos anos 1980. Foi justamente nesse período, como citamos anteriormente, que a Teoria da Tributação Ótima começa a ganhar espaço na formatação dos sistemas tributários ao redor do mundo, com sua ode ao capital subtaxado, ou taxado a zero em certos casos, e a relegação da questão distributiva a um plano inferior, atrás da eficiência e exclusivamente concernente à questão dos gastos públicos, e não da forma de arrecadação dos tributos.
  • 43
    Essas mudanças ocorridas nos mercados de trabalho europeus resultaram de medidas tomadas nos respectivos parlamentos. Para um histórico do processo de flexibilização dos mercados de trabalho europeus ocorrido nos anos 1980 e 1990, ver Mattos (2009)MATTOS, F. A. M. Flexibilização do trabalho: sintomas da crise. São Paulo: Annablume, 2009. .
  • 44
    Keister (2014)KEISTER, L. A. The one percent. The Annual Review of Sociology, [s. l.], n. 40, p. 347-367, 2014. , por exemplo, mostra que, nos anos 2000, tem aumentado não apenas a concentração de renda em favor do estrato do 1% do topo da distribuição, mas também a presença de rendas do capital nesse mesmo segmento e, em especial, de rendas oriundas do capital financeiro. Seus dados ilustram muito claramente o que chamamos aqui de processo de financeirização do capitalismo contemporâneo. Piketty (2014)PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. também revela informações nessa mesma esteira.
  • 45
    Como exemplos práticos dessa “guinada” mais recente dos autores na direção de uma maior preocupação com as questões distributivas, ver: Atkinson (2015)ATKINSON, A. Desigualdade: o que pode ser feito? Tradução de Elisa Câmara. São Paulo: LeYa, 2015. , Mirrlees (2011)MIRRLEES, J. et al. Tax by design: The Mirrlees Review. Oxford: Oxford University Press, 2011. e Stiglitz (2012)STIGLITZ, J. The price of inequality: how today’s divided society endangers our future. New York: WW Norton & Company, 2012. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2020
  • Aceito
    20 Jun 2022
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