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AÇÃO PÚBLICA SOCIOAMBIENTAL EM QUESTÃO: desafios da cogestão de uma Resex Marinha na Amazônia brasileira

SOCIO-ENVIROLMENTAL PUBLIC ACTION IN QUESTION: challenges of co-management of a marine Resex in the Brazilian Amazon

L’ACTION PUBLIQUE SOCIO-ENVIRONNEMENTALE EM QUESTION: défis de la cogestion d'um Marine Resex em Amazonie brésilienne

Resumos

O objeto em questão é a participação na construção de um Plano de Manejo, dispositivo exigido pela implementação de um instrumento de política pública ambiental como a Resex. A referência territorial envolve a Resex Marinha Caeté-Taperaçu, situada no município de Bragança, Estado do Pará. O objetivo é compreender como se coproduziu o Plano de Manejo, relacionando-o a um contexto de ambientalização e participação para demonstrar as relações entre os atores envolvidos, seus conhecimentos, práticas e interesses em confronto. A partir de uma abordagem sociológica da ação pública, traz-se uma perspectiva das políticas públicas onde o Estado tem sua centralidade contestada e onde a participação de diferentes atores nas discussões e gerenciamento de seu território, se não tem sido evidente, não deixou também de se constituir enquanto horizonte de governança a ser buscado em dinâmicas e mobilizações locais, expressas na capacidade dos atores e de sua atuação em ações coletivas.

Palavras-chave:
Ação Pública; Participação; Resex Marinha; Plano de Manejo; Amazônia


The object in question is participation in the construction of a Management Plan, a device required by the implementation of environmental public political instrument such as Resex. The territorial reference involves the Caeté-Taperaçu Marine Resex, located in the municipality of Bragança, state of Pará. The objective is to understand how the Management Plan was co-produced, relating it to a context of environmentalization and participation, to demonstrate the relationships between the actors involved, their knowledge, practices and interests in confrontation. From a sociological approach to public action brings a perspective of public policies, where the state has its centrality challenged and where the participation of different actors in the discussions and management of its territory has not been evident, but also constitute as a horizon of governance to be sought in local dynamics and mobilizations, expressed in the capacity of the actors and their performance in collective actions.

Keywords:
Public Action; Participation; Marine Resex; Management Plan; Amazon


L'objet en question est la participation à la construction d'un plan de gestion, un disposit if requis par la mise en œuvre d'un instrument de politique publique environnementale tel que Resex. La référence territoriale concerne le Résex marin Caeté-Taperaçu, situé dans la municipalité de Bragança, dans l’État de Pará. Dont l'object if est de comprendre comment le plan de gestion a été coproduit, en le reliant à un contexte d'environnement alisation et de participation, afin de démontrer les relations entre les acteurs impliqués, leurs connaissances, leurs pratiques et leurs intérêts en confrontation. L'approche sociologique de l'action publique donne une perspective des politiques publiques, où la centralité de l’État est contestée et où la participation de différents acteurs aux discussions et à la gestion de son territoire n'a pas été évidente, mais où constituer comme un horizon de gouvernance à rechercher dans les dynamiques et les mobilisations locales, se traduisant par la capacité des acteurs et leur performance dans les actions collectives.

Mots-clés:
Action publique; Participation Marine Resex; Plan de Gestion; Amazon


INTRODUÇÃO

No caso das Resex, em especial as Marinhas, no qual se inscreve o campo de observação1 1 É de autoria do primeiro autor a tese de doutorado cuja base empírica e perspectiva teórica principais foram retomadas na elaboração deste artigo. Um produto vinculado aos projetos de pesquisa: Navegar é preciso? Diagnóstico das embarcações pesqueiras, relações sociais e saberes incutidos na carpintaria naval paraense, financiado via Fapespa; Desafios da implementação do Plano de Manejo na Resex Marinha Caeté-Taperaçu: ação pública e participação em um contexto de educação em ambientes não escolares, financiado pela Propesp/UFPA; Desafios sociopolíticos da gestão da água e governança territorial, financiado pelo CNPq (2017-2020). deste artigo, os conselhos deliberativos, assim como outros instrumentos de sua gestão, constituem meios através dos quais as populações concernidas (reconhecidas como populações tradicionais) devem exercer o papel de cogestoras desses territórios, considerando exigências legais e diretrizes socioambientais. Trata-se de uma inovação em termos de concepção e implementação de políticas públicas, trazida pelo movimento de retomada da democracia no Brasil a partir de meados dos anos de 1980, e de descentralização do Estado na década seguinte, marcada pelos apelos ao associativismo, à participação e à governança, sobretudo em situações nas quais conflitos, organizações e resistências por direitos sociais ambientalizam-se (Lopes, 2006LOPES, J. S. L. Sobre processos de “ambientalização” de conflitos e sobre dilemas da participação. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 31-64, 2006.).

É nesse contexto que, na zona costeira do estado Pará, é iniciada, no começo dos anos 2000, uma dinâmica de criação de reservas extrativistas marinhas. Nessa dinâmica, destacamos como objeto uma ação pública na qual se inscreve a construção de um instrumento de gestão territorial, o Plano de Manejo de uma dessas Reservas, denominada Caeté-Taperuçu, implementada em Bragança,2 2 Em Bragança, de acordo com os dados do Censo IBGE 2010, habitam 113.165 pessoas – 57.244 homens e 55.921 mulheres; na cidade 72.595 habitantes e fora da zona urbana 40.570 pessoas. um dos municípios costeiros do estado do Pará. Nota-se que o Plano de Manejo, como exigido legalmente, aufere legitimidade e reconhecimento a uma unidade de conservação como a Resex. Isto porque é o meio de apropriação do território pelas populações interessadas, que nele podem imprimir suas competências socioculturais, políticas e ambientais. Tratando-se, nesse sentido, de uma dinâmica de ação pública envolvendo desafios socioterritoriais para a construção de acordos e a participação efetiva das referidas populações.

Situado no nordeste do estado do Pará, o município de Bragança, entreposto pesqueiro entre o Pará e o Maranhão, tem importância comercial que remonta ao período colonial. Entretanto, a partir do fim dos anos 1980, a presença dos vastos manguezais do nordeste paraense tem sido reconhecida como uma de suas mais expressivas características territoriais. Habitat de crustáceos, moluscos e berçário para a reprodução de várias espécies de peixes, o manguezal, integrado ao modo e aos meios de vida de populações locais e regionais, passa então, em um contexto de ambientalização, a ser percebido como ameaçado pelos impactos da exploração econômica sobre recursos naturais, base de uma economia centrada no extrativismo marinho, em um contexto de ambientalização.

A presença do manguezal em Bragança, integrado a uma faixa costeira contínua que a leste alcança o estado do Maranhão, e a oeste o estado do Amapá,3 3 Trata-se de uma faixa linear de 700 quilômetros, incidente desde a costa do estado do Maranhão, passando pelo Pará e indo até o Amapá. é determinante na vida de populações extrativistas de caranguejo para o autoconsumo e para alimentar uma cadeia de produção vinculada ao abastecimento do mercado regional. Dados levantados em estudos da primeira metade dos anos 2000, quando a pressão do mercado se amplia, indicavam que o caranguejo constituía a principal fonte de renda para 38% dos habitantes do município de Bragança (PA). Se considerado o beneficiamento e a comercialização desenvolvidos na economia do caranguejo, mais de 50% da população obtinha dela a renda básica de suas famílias (Glaser; Cabral; Ribeiro, 2005GLASER, M.; CABRAL, N. W. S. S.; RIBEIRO, A. L. (org.). Gente, ambiente e pesquisa: manejo transdisciplinar no manguezal. Belém: Numa, 2005.).

Ainda sobre a importância econômica das zonas estuarinas e manguezais, nos anos 2000, os estudos indicavam que, de seus produtos e de uma agricultura em pequena escala, dependiam aproximadamente 80% dos domicílios (Glaser; Cabral; Ribeiro, 2005GLASER, M.; CABRAL, N. W. S. S.; RIBEIRO, A. L. (org.). Gente, ambiente e pesquisa: manejo transdisciplinar no manguezal. Belém: Numa, 2005.). Os dados são significativos da importância das atividades extrativistas para as populações locais que dependem dos recursos naturais de um território para o qual foi reivindicada uma Resex Marinha, cuja implementação no município contou com mobilização social, dinâmica de produção de conhecimento científico, cujos resultados confortaram as justificativas da criação da Resex em benefício das populações extrativistas e contribuíram com a conservação de parte da maior faixa contínua de manguezal do litoral brasileiro.

Tratava-se então de, por meio da Resex, um instrumento de política pública ambiental, fazer face aos efeitos da implementação de estrutura rodoviária e empreendimentos turísticos percebidos como potencializadores da pressão sobre seus recursos. Por exemplo, a construção de uma rodovia ligando Bragança à Ajuruteua, a PA-458, sobre extensa área de manguezal, que facilitou o acesso às praias oceânicas e o desenvolvimento de atividades turísticas, além de produzir uma intensificação da exploração dos produtos do mangue, uma vez mais facilmente acessados e escoados por meio rodoviário (Alves, 2017ALVES, A. B. PA-458: território, territorialidade e dinâmica socioeconômica na área costeira de Bragança-PA (Bacuriteua, 1974-2016). 2017. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará, Belém, 2017.). Essa rodovia, ao lado da industrialização da pesca, trouxe significativas mudanças no território favoráveis aos interesses de políticos e empresários defensores do desenvolvimento econômico gerador de conflitos socioambientais, o que, por sua vez, impôs os desafios da mobilização e da participação social (Silva, 2018SILVA, T. I. Conflitos sociais e partilha de políticas públicas: a atuação da Associação dos Usuários da Resex Marinha Caeté-Taperaçu, Bragança-PA. 2018. (Dissertação de Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas da Universidade Federal do Pará (UFPA).; Silva Junior; Maneschy et al., 2018SILVA JUNIOR, Sebastiao Rodrigues. et al. Desafios da gestão participativa de recursos naturais em uma Reserva Extrativista Marinha no Pará. Novos Cadernos NAEA, [s. l.], v. 21, n. 2. p. 173-191, 2018.).

Os conflitos em torno do uso e controle dos recursos se expressaram, sobremaneira, nos debates e mobilizações pela criação de uma Resex no município de Bragança como via de proteção dos territórios historicamente vividos por populações, cujo modo de vida e reprodução de suas práticas tradicionais, considerados como mais adequados à conservação dos recursos naturais, foram percebidos como ameaçados pelas mudanças de padrão da pesca e do extrativismo nos mangues. Criada em 2005 nos limites municipais de Bragança (PA), a Reserva Extrativista Marinha Caeté-Taperaçu integra uma área protegida que incide sobre 42.489,174 4 Disponível em: http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/unidades-de-conservacao/biomas-brasileiros/cerrado/unidades-de-conservacao-cerrado/2107-resex-marinha-de-caete-taperacu.html. Acesso em: 15 out. 2013. hectares – 20% da área do município –, destes, 24 mil hectares constituídos de manguezais. Trata-se do aspecto de uma produção socioterritorial, assim como da construção de seus instrumentos de gestão, entre outros, o Plano de Manejo, envolvendo atores com pesos diferenciados e concepções diversas sobre usos e apropriações da natureza e do território. A partir da concepção sociológica da ação pública local (Lacoumes; Le Galès, 2012LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. Sociologia da ação pública. Maceió: Edufal, 2012.) analisaremos o potencial de inovação da proposta de participação dos atores sociais envolvidos na coprodução das políticas participativas, propostas na institucionalização das Resex. Os desafios para a inclusão das demandas de grupos alijados do processo democrático, como as populações tradicionais, são parte dessa análise.

O objetivo deste artigo, então, é compreender criticamente os desafios de elaboração do Plano de Manejo (PM) da Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu (PA) ao longo dos anos de 2011 e 2012, entendendo-o como um processo relacionado à territorialização de populações tradicionais, em princípio reflexo de conquista de direitos e de projeção de identidades específicas na formatação desse dispositivo de regulação social e ambiental. Processo que envolve uma diversidade de atores e seus interesses, instituições, representações e processos que afetam os resultados dos projetos envolvidos. Por isso, importa observar, além da ação dos “grandes”, o repertório de ações coletivas e dos atores individuais que contribuem para redesenhar as políticas participativas (Lascoumes; Le Galès, 2012LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. Sociologia da ação pública. Maceió: Edufal, 2012.). Cabe, nesse sentido, captar as interações entre os atores coletivos e individuais envolvidos na coprodução do Plano de Manejo da Resex Caeté-Taperaçu, destacando as tensões, suas diferentes estratégias sociopolíticas e atuações nas frestas institucionais. Para isso, apontaremos os distintos conhecimentos e práticas, seus interesses, os conflitos e acordos desenhados, a formação de grupos e as regras do jogo. Apontamentos baseados em dados de pesquisa qualitativa (direta e indireta, considerando estudos sociais e ambientais concluídos), mais concentrada no período de 2014 a 2016, com organizações e atores da sociedade civil, com agentes do Estado e do campo econômico.5 5 Fizeram parte da oficina entidades com diversas perspectivas para a constituição do projeto Resex, entre elas: a Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP), a Prefeitura Municipal de Bragança (Secretaria de Pesca), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Associação dos Usuários da Resex Marinha Caeté-Taperaçu (Assuremacata). Entre seus participantes, além dos organizadores, estavam: discentes vinculados a programas de pós-graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA); a gestora da Resex Araí-Peroba; representantes e moradores das comunidades do Treme, Acarajó, Bacuriteua, Caratateua, Acarajozinho, Tamatateua, Abacateiro, Resex Gurupi-Piriá, Associação de Usuários da Resex de Tracuateua (Auremat) e Pontinha do Bacuriteua.

O artigo está estruturado em três sessões, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira sessão, contextualizamos historicamente como se deu a discussão ambiental e a inclusão das populações locais nos debates públicos na região de Bragança; na segunda, evidenciamos a implementação dos instrumentos de gestão da Resex Caeté-Taperaçu, considerando os desafios do controle local sobre o ecossistema de manguezal. Na terceira sessão, buscamos revelar a constituição das estratégias e dos arranjos de participação das populações locais e dos demais atores dos processos na coprodução socioterritorial, a partir da elaboração do Plano de Manejo. Por fim, nas considerações finais, apontamos controvérsias e possibilidades de apropriação do PM, de constituição de uma ação pública diante do desafio da inclusão das populações tradicionais.

BRAGANÇA AMBIENTAL: manguezal e populações na agenda

O V Encontro Nacional de Educação Ambiental em Áreas de Manguezal (Eneam), ocorrido em 1995, no município de Bragança, constitui evento significativo da entrada das populações tradicionais em arenas de debate público sobre a conservação dos recursos naturais, fato inédito na história do município onde até então aportavam políticas públicas planejadas, criadas e executadas pelo Estado sem participação deliberativa de outros atores da sociedade civil. Destacar esse evento e demais ações em Bragança para a criação da Resex Caeté-Taperaçu é fundamental para entendermos a territorialização de um problema público – o conflito em torno da pesca e da coleta de caranguejo – envolvendo uma diversidade de atores públicos e privados e formas de mobilização, com o objetivo de resolver uma questão comum, conformando assim uma ação pública (Lascoumes; Le Galès, 2012LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. Sociologia da ação pública. Maceió: Edufal, 2012.). Além disso, cabe ressaltar dois aspectos: a confrontação de mundos possíveis na institucionalização da Resex e a confluência de conexões internacionais, nacionais, regionais e locais que concorreram para essa ação pública.

Em se tratando de Bragança, verificou-se que nos anos 1990 houve fortalecimento da mobilização dos extrativistas, contando com parcerias envolvendo agências públicas, organizações da sociedade civil e políticos. Em geral, duas perspectivas informavam tal mobilização. Primeira: a da importância, para a conservação e a sustentabilidade do manguezal, das populações territorialmente a ele associadas; segunda: a ideia de que o movimento dos seringueiros do Acre, sob a liderança de Chico Mendes em defesa dos povos da floresta, demonstrava pertinência em relação a demandas locais de ordem social e ambiental pela criação de uma Resex. Dessa mobilização informada, nas perspectivas referidas, resulta na reedição da aplicação de um instrumento de política pública ambiental do Governo Federal em 2005, amparado legalmente no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC),6 6 O SNUC, instituído no Brasil pela Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000, fundamenta-se nas diretrizes de uma Política Nacional de Meio Ambiente de acordo com os requisitos do desenvolvimento sustentável e da proteção da biodiversidade. no município de Bragança. Em termos formais, chegava-se a um resultado que, por princípio, estava vinculado à valorização e ao reconhecimento dos modos de vida, dos saberes e competências, e dos direitos sociais das populações tradicionalmente presentes nos territórios.

Para os participantes do V Eneam, o debate ambiental em Bragança se tornou um marco, pois foi nesse fórum que, de forma concreta se socializou e se discutiu a criação de uma área protegida no município, na modalidade Reserva Extrativista. Um debate público ambientalizado, pois nele se incluíram temáticas interdisciplinares como objetos de políticas públicas, expertises e atores heterogêneos que conquistam sua participação e o legitimam. Como assinalado por José Sérgio Leite Lopes (2006LOPES, J. S. L. Sobre processos de “ambientalização” de conflitos e sobre dilemas da participação. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 31-64, 2006., p. 34), ao caracterizar o contexto de ambientalização, tomam parte do debate “desde empreendedores a populações entendidas como vulneráveis ou sob risco”.

No referido encontro, o mote da degradação das áreas de manguezais e seus impactos nas populações locais traz o desenho de um ideário marxista herdado do Movimento Eclesial de Base, no qual muitos líderes que ali participavam foram politicamente formados. Esse mote vinha já sendo integrado nas propostas de educação ambiental executadas. Acrescenta-se a isso a importância das medidas acordadas em favor dos direitos e deveres do pescador, respaldados juridicamente, bem como a crítica à forma como o Estado vinha abordando a pesca artesanal. Esses aspectos foram discutidos numa interlocução com representantes das comunidades, com a incorporação de suas demandas, seus saberes e territorialidades. Nisso repercutia o posicionamento político e prático hegemônico em um movimento que estava em curso no Brasil para o qual a sustentabilidade, a cooperação e a finitude dos recursos como possibilidade valorizavam a atuação coletiva dos grupos na gestão do manguezal, em colaboração com agências do poder público.

O contexto era favorável. Instituições públicas, coletivos do movimento social, pesquisadores, envolvidos em ações pela proteção da Amazônia, projetam esse território para o centro do debate socioambiental no Brasil e no mundo. Tais forças legitimavam o seu discurso através da produção científica – contribuição decisiva para o reconhecimento da Amazônia das águas doces e estuarinas e das florestas – caracterizada como uma das últimas fronteiras da biodiversidade, em grande parte estimada como não conhecida, e ameaçada pelas práticas econômicas predatórias do desenvolvimentismo.

A presença e atuação de pesquisadores e professores ligados ao Madam,7 7 O também denominado Programa de Manejo e Dinâmica em Áreas de Manguezais (1995-2005) se constituiu em uma iniciativa integrada a uma política de conservação dirigida para os ecossistemas costeiros do norte do Pará até o Amapá, onde, junto à costa maranhense, se concentram 20% das florestas de Mangue do Brasil. Assinado um acordo de cooperação entre o Brasil e a Alemanha, e contando com o apoio do CNPq e com o Centro de Ecologia Marinha e Tropical da Universidade de Bremen, as atividades de pesquisa foram iniciadas em 1996 (Silva; Costa; Silva, 2003). alguns vinculados à Universidade Federal do Pará (UFPA) ou ao Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), na produção de conhecimento e na formação de cientistas naturais, durante uma década, constituiu aspecto relevante no processo de construção da proposta e criação da Resex Caeté-Taperaçu. Como desdobramento desse envolvimento das instituições de pesquisa na construção da proposta da Unidade, quando em vigência o Conselho Deliberativo, criado em 2007, a UFPA, com um assento, atuará na coprodução de seu Plano de Manejo, um dos instrumentos orientadores da gestão dessa área ambientalmente protegida.

Conforme observamos em Giddens (1991)GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991 e Beck (2010)BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010., constitui-se aí um corpo técnico de conhecimento perito, os “experts”, que acabam influenciando de forma importante na construção da política pública e na mobilização de recursos que originam a Unidade de Conservação. Para além da questão social e ambiental que move os agentes comunitários, o discurso perito é parte fundamental na produção de quadros que, atuando como mecanismos cognitivos, ajudam a formular problemas sociais no contexto em tela. No entanto, o discurso técnico-científico, em certos momentos, vai interferir também na produção de outros conflitos, confrontando e se sobrepondo aos saberes tradicionais. Tal questão é observada nos reclamos sobre a linguagem técnica presente no PM, bem como sobre a falta de atividades alternativas ao uso de técnicas tradicionais na área da Reserva.

Por outro lado, coletivos locais também colaboraram na organização do evento e com estratégias com vistas à criação da Resex. Destaca-se, nesse sentido, a organização não governamental, chamada MoveMaré, criada pela sra. Clemilda Nery, pertencente ao quadro de técnicos da unidade da Emater em Bragança. Assim também, sem representar institucionalmente o legislativo local, ocorreu o envolvimento de alguns vereadores na organização e realização do evento.

As organizações sociais eram formadas por representantes, em sua maioria, ligadas à pesca, sendo assessorados por outras organizações ligadas direta ou indiretamente à Igreja Católica, como a Associação Movimento dos Pescadores do Pará (Mopepa) e o Conselho Pastoral de Pescadores (CPP). Teve atuação relevante também o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Lideranças a ele vinculadas tiveram atuação relevante na mobilização de associações de pescadores e mesmo de extrativistas, que já estavam discutindo as possibilidades de criação de uma Resex, além de questões ligadas a direitos trabalhistas. Diferente da colônia de pescadores, que não teve um envolvimento direto nas atividades do Eneam, o sindicato ajudou na difusão e comunicação com as comunidades rurais.

À realidade do manguezal como objeto de uma preocupação ambiental restrita passam a se incorporar questões relativas ao modo de vida, territorialidade, os saberes e as práticas das populações pescadoras e extrativistas, sobretudo chamadas de tradicionais. Amplia-se então uma concepção politizada da questão ambiental chamando atenção do poder local, cujos representantes um pouco mais tarde se inserem no debate e em ações exigidas pela implementação da Reserva, tais como a participação no Conselho Deliberativo da Resex. Participação significativa do reconhecimento e da pertinência desse fórum como arena legítima de confrontação de interesses divergentes, na produção de acordos e na deliberação sobre questões que não só diziam respeito ao território da Unidade de Conservação, mas também ao território de responsabilidade da gestão pública municipal.

De acordo com a noção de ação pública de Lascoumes e Le Galès (2012)LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. Sociologia da ação pública. Maceió: Edufal, 2012., acompanhamos a formação, a partir da diversidade de atores sociais e de estratégias sociopolíticas, de um projeto mais amplo que possibilita também entender a elaboração dos acordos e parcerias que desenham o futuro do território ambiental. A presença de lideranças comunitárias no movimento de criação da reserva altera, senão de forma significativa, mas alvissareira, a reflexão sobre as mudanças propostas na elaboração de uma política socioambiental que se propunha inovadora. Sem perder de vista, no entanto, as disputas entre atores de grandezas diferenciadas, que expõem as desigualdades no cenário rural brasileiro, cabe considerar que o Eneam constituiu oportunidade para que as lideranças comunitárias pudessem identificar a defesa da pesca artesanal e das atividades extrativistas como causa comum, um fundamento para estratégias de ações conjuntas. É o que a literatura dos movimentos sociais chama de “estrutura de oportunidades” (Tarrow, 2009), cuja identificação de eventos pelos movimentos sociais permite a inserção de suas demandas, facilitando conquistas sociais. Nesse sentido, uma das comunidades emblemáticas do extrativismo, a Vila do Treme, ao longo do processo de criação da Caeté-Taperaçu, avançou significativamente por meio de sua organização, especializando-se ainda mais na coleta e beneficiamento do caranguejo, assim conquistando maior inserção e visibilidade dos seus produtos no mercado. Mais tarde, o representante do Treme no Conselho da Reserva, desempenhará papel relevante. No caso da ONG Movemaré, já referida, seu protagonismo na articulação e mobilização pela criação da Resex, há de se destacar sua contribuição ao trabalho de difusão do ideal de conservação dos recursos e do patrimônio cultural e natural dos ambientes marinhos e costeiros. Esse ideal é compartilhado por significativo número de lideranças comunitárias, assim como por professores do Campus Bragança da Universidade Federal do Pará, que perceberam na Resex, a exemplo das experiências do Acre, uma forma adequada para coibir as práticas predatórias de uso dos recursos costeiros e dos manguezais.

Entre outras instituições, envolvidas efetivamente no processo tratado, há de se reconhecer as de perfil técnico e/ou comunitário – no caso da Emater e do Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT), vinculado à época ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). É da articulação de agentes ligados a essas instituições que se origina a proposta de criação da Resex, e não dos segmentos organizados de populações locais. No entanto, à medida que esses segmentos foram se inserindo no processo, a legitimidade da demanda pela criação de uma Resex se amplia.

Tratou-se, evidentemente, de um processo que trazia bastante elementos inovadores em termos de proposta de gestão dos bens públicos e que foi também apropriada localmente por atores historicamente distanciados do poder de decisão política sobre os territórios por eles vividos. Aprendizados, incorporação de referências, intercâmbio com atores do meio técnico-científico interessados na criação da Resex, convergência de perspectivas, vão levar à adesão dos segmentos locais a uma proposta de mudança da relação das populações com os recursos da pesca e do extrativismo. Tal dinâmica converge com situações recorrentes no campo ambiental, no qual afinidades eletivas oportunizaram a apropriação de uma questão social apropriada pelo campo ambiental e vice-versa, a exemplo do ocorrido com o movimento social liderado por Chico Mendes (Allegretti, 2008; Almeida, 2004).

No mês de fevereiro de 2000, em meio a essa mobilização, foi realizado o “I Seminário de Criação da RESEX de Bragança”, no Campus da UFPA em Bragança, que contou com a participação de alunos da graduação, pós-graduação, de ONGs e do próprio CNPT/Ibama. Como citado no documento final do Plano de Manejo, na ocasião foi discutido, do ponto de vista metodológico, o processo de criação e implantação da Reserva Extrativista. Esse evento, assim como o Eneam, compôs decisivamente com a mobilização em curso, legitimando-se a acolhida da iniciativa pela Universidade que, dessa maneira, vai afirmando seu envolvimento direto na ambientalização do contexto local.

A ASSOCIAÇÃO DA RESEX CAETÉ-TAPERAÇU: desafios face ao controle privado dos bens públicos

Em maio de 2005, foi decretada a criação de quatro Resex Marinhas na área de manguezal do nordeste paraense. Nesse conjunto, constava a Resex Marinha Caeté-Taperaçu. Como expressão da legitimidade das justificativas socioambientais, seguia-se, assim, uma dinâmica marcada pela replicação de um instrumento de política pública em territórios costeiros na Amazônia, que havia sido iniciada em 2001, com a criação da Resex Marinha de Soure, no município homônimo, situada na ilha do Marajó. Na sequência de Soure, em 2002, mais quatro Unidades de Conservação da mesma modalidade tiveram suas criações decretadas. Num movimento contínuo até 2005, nove Resex Marinhas passam a incidir oficialmente sobre os manguezais paraenses.

Lembremos que o funcionamento de uma Resex exige a instituição de uma associação de usuários. É com essa associação que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) estabelece o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU)8 8 O CCDRU é o instrumento pelo qual as populações do território, objeto do contrato, obtêm reconhecimento formal e garantias de acesso a políticas públicas. Disponível em: https://uc.socioambiental.org/pt-br/noticia/184232. Acesso em: 12 nov. 2019. da área. Para responder a essa exigência, em agosto de 2005 – três meses depois da publicação do Decreto de Criação da Unidade de Conservação – a Assuremacata (Associação dos Usuários da Resex Caeté-Taperaçu) foi criada. Esta implicou uma adesão significativa das comunidades locais, sensibilizadas por suas lideranças quanto ao avanço da degradação ambiental e quanto ao entendimento de que a Resex poderia regular atividades pesqueiras e extrativistas no estuário e nos manguezais de Bragança com controle do território exercido com a participação e em nome dos interesses das populações tradicionais, o que estava se desenvolvendo em outros territórios próximos, constituiu-se então em fator de impacto mobilizador considerável. Além disso, o engajamento em um movimento pelo controle do território e a própria criação da Associação de Usuários por representantes das comunidades abrangidas pela Resex obtêm apoio no âmbito do município (Silva Júnior, 2013SILVA JUNIOR, Sebastiao Rodrigues. Participação e relações de poder no Conselho Deliberativo da Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu, Bragança-PA. 2013. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará, Belém, 2013.).

Formalizada a existência da Reserva e da Associação, o desafio da gestão participativa se coloca na ordem do dia. Uma gestão participativa da Resex que, conforme entendimento produzido em reuniões preparatórias, das quais participou aquele que veio a ser o primeiro presidente da Associação, a ela caberia. Como então estabelecer uma relação pública entre a Associação e as populações tradicionais locais, baseada em acordos acerca dos benefícios e dos objetivos da Associação e da Reserva? Recursos públicos por meio de políticas associadas ao instrumento Resex contavam institucionalmente com a responsabilidade da Associação em uma gestão transparente e justa. No entanto, critérios de compadrio e de parentesco acabam por prevalecer na gestão dos recursos dirigidos aos moradores e usuários da Resex, não como direitos, e sim como “ajuda”. Foi o caso dos recursos do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) e do Programa Bolsa Verde (PBV) do Governo Federal.

Viu-se que as práticas patrimonialistas e clientelistas de gestão pública foram transpostas para um espaço de conquistas. Características evidenciadas na construção dos cadastros de usuários, definindo as pessoas qualificadas ao acesso desses direitos sociais. Segundo um entrevistado, ocorreram disparidades entre dois cadastros elaborados em épocas diferentes. Um entrevistado de perfil técnico afirma que “existia um cadastro de oito mil usuários, quando foi fazer a revisão desse total, apenas dois mil trabalhavam na pesca. Aí você vai ver que, no primeiro cadastramento, eles foram pegando gato, cachorro e periquito e foram cadastrando, por interesses partidários e pessoais”. Além da diminuição no número de famílias beneficiadas, desvios no critério de escolha são ressaltados. Uma das técnicas entrevistadas afirma que “tem muita gente que nunca pescou na vida e tá cadastrada”.

Evidenciam-se, nesse caso, os desvios quanto aos critérios utilizados para o acesso aos direitos, privilegiando-se o critério familiar e o das redes de confiança dos comunitários. Critérios com os quais, em tese, procurava-se romper, pois característicos de formas de gestão dos bens públicos apropriados privadamente em uma arraigada cultura política de restrita cidadania.

Observamos que interesses políticos e partidários se impuseram na implementação de direitos ao Crédito Habitação e Apoio, oriundos do II Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), e ao Programa Bolsa Verde, os quais se tornaram fonte de conflitos sociais no território, afetando a participação e a confiança na gestão da Resex Caeté-Taperaçu (Ribeiro; Sousa, 2018RIBEIRO, T. G.; LIMA, P. V. L. Cidadania, renda e conservação: percepções sobre uma política socioambiental na Amazônia. Nova Revista Amazônica, Bragança, v. 6, p. 193-211, 2018.; Silva, 2018SILVA, T. I. Conflitos sociais e partilha de políticas públicas: a atuação da Associação dos Usuários da Resex Marinha Caeté-Taperaçu, Bragança-PA. 2018. (Dissertação de Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas da Universidade Federal do Pará (UFPA).). Lideranças comunitárias buscam se fortalecer internamente por meio de estratégias de controle nessa distribuição, excluindo pessoas com pleno direito, o que logo as afastou da Associação. Esse modo de proceder contrariou lideranças e comunitários que acreditaram que a gestão da Associação teria uma prática diferenciada. O afastamento de muitos sócios e a interrupção no pagamento das mensalidades veio como resposta às práticas que desvalorizaram a entidade como representante dos interesses de um coletivo. A probidade e a lisura esperada no controle e distribuição dos bens públicos se colocaram ainda mais distantes de sua efetividade, uma vez prometida e não cumprida em novo contexto.

A fragilização da Associação repercutirá nas dificuldades na construção de acordos a serem sistematizados no Plano de Manejo da Resex. Com baixa representatividade, a Associação cede a pressões oriundas de grupos do poder local, cujos interesses e perspectivas estavam distantes dos segmentos das populações tradicionais e de agências ambientais públicas envolvidas produção de importante dispositivo de gestão como o Plano de Manejo.

PLANO DE MANEJO: participação e produção de acordos

Como já referimos, a Resex Caeté-Taperaçu e a Associação dos usuários foram criadas em 2005. Dois anos depois, o Conselho Deliberativo da Resex foi instituído via portaria emitida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.9 9 Ao ICMBio, agência da administração direta do Governo Federal criada em agosto de 2007, foi atribuída a execução das ações do Sistema Nacional das Unidades de Conservação no território nacional. É nesse Conselho, orientado pela premissa das decisões construídas coletivamente por atores heterogêneos da gestão e responsabilidades compartilhadas, que se constituirá o espaço de construção do Plano de Manejo da Resex. Trata-se da experimentação de uma prática que se impôs com as diretrizes de organismos multilaterais para a prática da gestão compartilhada por agências governamentais e atores da sociedade civil, valorizando-se a governança e, portanto, a participação.

Abordando experiências nesse contexto de descentralização no qual as referências à participação e à governança são acionadas, a perspectiva sociológica da ação pública em Lascoumes e Le Galès (2012)LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. Sociologia da ação pública. Maceió: Edufal, 2012. é oportuna, uma vez que os autores vêm analisando as transformações sociais, a resolução dos conflitos e a interação entre diferentes grupos com diversos interesses na gestão das políticas públicas. Implicando, essa gestão, na repartição de recursos e na regulação das tensões, com participação de atores sociais com diferentes níveis de organização e autoridades políticas. Então, o foco analítico é voltado para as interações entre diferentes atores, seus interesses, suas concordâncias e discordâncias, a formação de grupos, as regras do jogo, os conflitos ocorridos, suas mediações e produção de respostas a ele. Em se tratando do contexto brasileiro, vários estudos refletem sobre os desafios de constituir os fóruns participativos, caracterizados pela mútua constituição entre Estado e sociedade civil, observando-se a tênue fronteira de influência e atuação dos atores dessas esferas sociais (Abers; Bullow, 2011ABERS, R; UON BÜLOW, M. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade? Sociologias, [s. l.], v. 13, n. 28, p. 52-84, 2011.; Gurza Lavalle; Szwako, 2015LAVALLE, A. G.; SZWAKO, J. Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate. Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, p. 157-187, 2015.; Tatagiba, 2005TATAGIBA, L. Conselhos gestores de políticas públicas e democracia participativa: aprofundando o debate. Revista de Sociologia Política, Curitiba, n. 25, p. 209-213. 2005.).

Quando da instituição do Conselho Deliberativo, dispositivo de gestão presidido pelo agente do ICMBio, nomeado Chefe da Resex, conflitos ocorrem envolvendo essa instituição e a Assuremacata que tem denunciados seus critérios de determinação dos beneficiários das políticas públicas. O controle então sobre a distribuição dos benefícios passa a ser exercido Conselho Deliberativo e se acirram indisposições diante de forças políticas e econômicas do município, até então favorecidas pela situação anterior, tais como determinados comerciantes, empresas da construção civil, partidos políticos e algumas lideranças comunitárias, cujos interesses foram resguardados durante o período de controle da distribuição dos benefícios exercido pela Assuremacata.

Como efeito dessa mudança de cenário, a participação no Conselho Deliberativo será priorizada, assim como em fóruns e em oficinas de qualificação para a produção do Plano de Manejo, dos quais tomam parte atores diversos, movidos pela ideia de poder compartilhado, a exemplo dos conselhos de políticas constituídos por representantes da sociedade civil e do poder público que vinham se organizando em âmbito nacional a partir da Constituição de 1988, indicando um potencial democratizante em movimento no Brasil (Leite Lopes; Heredia, 2014LOPES, J. S. L.; HEREDIA, B. M. A. Introdução. In: LOPES, J. S. L.; HEREDIA, B. M. A (org.). Movimentos sociais e esfera pública: o mundo da participação: burocracias, confrontos, aprendizados inesperados. Rio de Janeiro: CBAE, 2014. p. 19-40.).

A memória e as análises em literatura especializada da produção do Plano de Manejo, presente em documentos e nos relatos de pessoas que dela tomaram parte, referem três etapas. A primeira, de 2009 a 2010, resultou na não aprovação do PM e, portanto, na insatisfação com a prestação da empresa de consultoria contratada. A segunda etapa, a partir de 2011, consideradas as informações levantadas com os membros do Conselho Deliberativo da Resex e a atuação de um Grupo de Trabalho criado para acompanhar o Plano de Manejo. Na terceira, iniciada em 2012 com uma consultoria, apoiada nos resultados do trabalho realizados no âmbito do Conselho Deliberativo e parte do diagnóstico produzido na primeira etapa, foi finalizada a produção do Plano de Manejo, vindo este a ser publicado no Diário Oficial da União no ano seguinte.

Participação ausente e a produção de um diagnóstico

Na primeira etapa, o objetivo principal era produzir um diagnóstico da Resex, exigência oficial a ser atendida. Para isso, em 2009, foi contratado um consultor como pessoa física, via edital público de licitação nacional do Ministério do Meio Ambiente. O fato da não participação dos atores locais, de representantes das instituições públicas ligadas a um contexto social, político e econômico específicos nesse procedimento trouxe dificuldades. Como os critérios para tal escolha não se baseavam em conhecimento e experiência da realidade local, logo se viu que os dados técnicos para o diagnóstico não consideravam as referências técnico-científicas e os conhecimentos e práticas das populações locais, disponibilizados pelo Conselho Deliberativo. O trabalho dessa consultoria foi questionado e um conflito se estabeleceu, pois o “modus operandi” do “primeiro consultor” não se adequava à perspectiva de uma gestão participativa do território da Resex, de uma ação pública que vinha sendo construída, onde não cabia a ausência de debates nem a instrumentalização do Conselho Deliberativo.

Na maneira de trabalhar desse primeiro consultor, reproduzindo resultados de experiências anteriores na elaboração de diagnósticos em outras Unidades de Conservação para integrar um PM, sem a participação efetiva do Conselho, foi identificado autoritarismo inaceitável. Como não levar em consideração as dinâmicas, as demandas e os contexto locais, inclusive já sistematizados em documentos disponibilizados pelo Conselho Deliberativo?

Sem referência à realidade local, práticas e modos de vida comunitários, coletivos, não totalmente integrados ao mercado, o diagnóstico apresentado nessa primeira etapa, sem contemplar também um conjunto de estudos e análises já realizados, sem considerar as práticas participativas acolhidas pelo Conselho Deliberativo, foi considerado insatisfatório. Assim, uma mobilização coordenada pelo próprio ICMBio junto ao CD e à Assuremacata levou à não aprovação do documento apresentado pelo consultor.

Prevendo-se a demora de licitação de uma nova consultoria para garantir a continuidade na elaboração do PM, o Conselho institui um Grupo de Trabalho atribuindo a este a responsabilidade pelo levantamento, produzir e sistematizar informações necessárias à gestão da Resex.

Parceria entre Conselho Deliberativo e serviço de expertise contratado: meios e resultados

O Grupo de Trabalho para participar da elaboração e do acompanhamento do Plano de Manejo da Resex Marinha de Caeté-Taperaçu, segundo ata de reunião do Conselho Deliberativo, foi criado na 1ª Reunião Extraordinária, datada de 14 de maio de 2012. Dez representantes de diferentes segmentos – técnicos, representantes de comunidades de usuários da Resex, agentes públicos do legislativo e do executivo municipal e Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) o compuseram. Esse Grupo de Trabalho trabalhará em parceria com a empresa de consultoria10 10 A empresa chama-se Ecooideia e é sediada em Brasília (DF), e, de acordo com seu site, atua com cooperativismo, educação ambiental, manejo florestal, gestão de resíduos, valoração ambiental e tecnologias sociais. Disponível em: http://www.ecooideia.org.br/home/. Acesso em: 14 set. 2015. escolhida via edital público do ICMBio.

Em 2012, mesmo ano de criação do Grupo de trabalho, a empresa de consultoria assume a direção da elaboração do Plano de Manejo e se instala no município de Bragança (PA) para realizar o trabalho. Um trabalho que começa por oficinas práticas participativas11 11 Cf. Maneschy et al. (2017), trabalho que, pela abordagem de redes sociais, apoiada em Pierre Bourdieu e Mark Granovetter, analisaram oficinas de elaboração do Plano de Manejo na Resex Caeté-Taperaçu como parte do processo no qual a racionalidade dos agentes é entendida no plano das interações, portanto sensíveis às expectativas alheias. com pescadores artesanais experientes e lideranças comunitárias, habitantes do interior e do entorno da Resex, com base no diagnóstico produzido pela consultoria anterior e em informações obtidas com o Grupo de Trabalho. Nessas oficinas, foram discutidos os objetivos de uma Resex, sua missão, visão de futuro, zoneamento e programas de gestão, com base nas referências adotadas pelo ICMBio. Cada oficina resultava em um relatório e seu conjunto subsidiou a elaboração de Plano.

Um diagnóstico preliminar da reserva foi então produzido e submetido à avaliação, incorporação de demandas, críticas e revisões pelo gestor da Resex e pelo Grupo de Trabalho. Assim, o que estava sendo produzido naquele momento passava concomitantemente por um acompanhamento que contou com parceiros da sociedade civil, do setor privado e do setor público. Pela perspectiva do agente do ICMBio, gestor da Reserva à época, esse acompanhamento da construção do Plano com a participação do Conselho Deliberativo revelava o alcance do interesse público, representado nos objetivos de criação da Resex em termos de formulação de demandas, na superação de conflitos e disputas, tendo como horizonte um governo do território apoiado em instrumentos nele e por ele produzidos, com a participação de suas comunidades e a elas permitindo reconhecimento a suas competências e seus direitos na gestão de seu território.

As demandas e recomendações identificadas pelos participantes das comunidades e recomendadas para constarem no Plano, no entanto, estavam condicionadas à decisão final do ICMBio, medida que traduz a ascendência do conhecimento e das práticas técnico-científicas sobre os conhecimentos chamados tradicionais ou nativos. Tensões vieram à luz como resultado dessa assimetria entre conhecimentos e competências comumente identificadas nessas situações de construção de bens públicos nas quais se faz apelo à participação. Essa problemática da assimetria e seus efeitos para a democracia vêm sendo acompanhados pela literatura sociológica com certo ceticismo quanto ao futuro de parcerias nas quais hierarquias entre especialistas e não especialistas. Para os “céticos” (Cortês, 2005), as distinções de capitais sociais e políticos coíbem a ampliação da esfera da participação e da governança. E mais: revelam que práticas participativas nas decisões de distribuição de bens e políticas públicos por si só não garantem inclusão social, visto que a cultura política patrimonialista e clientelista constitui ainda marca bastante forte na direção das relações entre sociedade e Estado no Brasil e na América Latina (Cortês, 2005; Jacobi, 2003JACOBI, Pedro Roberto. Espaços públicos e práticas participativas na gestão do meio ambiente no Brasil. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 18, n. 1-2, p. 137-154. 2003.).

No entanto, na percepção de representantes de instituições públicas que colaboraram com o trabalho desenvolvido pela Ecooideia, o resultado alcançado foi bem aceito, pois estava de acordo com diretrizes técnicas e sociais presentes no que foi contratado. Um trabalho que, em certa medida, considerou os resultados da primeira consultoria para avançar e chegou à identificação do perímetro da Resex e da sinalização de limites por meio de placas, à finalização do Plano de Manejo e à sua aprovação pelo Conselho Deliberativo.

Evidentemente, esse trabalho de produção participativa de um instrumento de gestão territorial não ocorreu sem tensões, como já referido, uma vez que o poder público municipal procurava influenciar membros do Conselho Deliberativo a legitimar e priorizar demandas, entre cujos efeitos estava a permanência de estratégias, como a troca de favores entre políticos e as pessoas de segmentos historicamente alijados do poder de decidir com liberdade.

De todo modo, a experiência em participar e deliberar produzida na implementação da Reserva Extrativista Caeté-Taperaçu se constituiu, de certo modo, em caminho de inserção de segmentos sociais que passavam a ser considerados, com suas práticas e conhecimentos, importantes e legítimos colaboradores. Há de se reconhecer que, nesse processo, eles mobilizaram por uma iniciativa de ordenamento territorial informado nas referências da ambientalização, como as da conservação dos recursos naturais e da sustentabilidade. Ainda que sob a hegemonia e certa centralização exercida pelos agentes do Estado na gestão do território, que estava sendo implementado naquele contexto, uma relativa autonomia em relação aos interesses do poder local, sobretudo, ocorreu. Destacou-se também o envolvimento das populações tradicionais locais, conquistando visibilidade nos debates e nas disputas em torno de suas demandas. Mesmo que com conflitos pessoais tornados mais visíveis no seio do conselho deliberativo, atualizando tensões advindas da atuação na Associação de Usuários, alvo de disputas entre grupos políticos divergentes, que não se restringiam aos associados, mas também pela interferência de agentes extralocais, mediante alianças, conforme demonstrado por Silva (2018)SILVA, T. I. Conflitos sociais e partilha de políticas públicas: a atuação da Associação dos Usuários da Resex Marinha Caeté-Taperaçu, Bragança-PA. 2018. (Dissertação de Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas da Universidade Federal do Pará (UFPA). ao analisar os conflitos em torno da partilha de recursos do II Plano Nacional de Reforma Agrária.

Essas ações levaram a certa instabilidade no coletivo do Conselho e na gestão da Resex dadas a projeção alcançada nos debates pelas tensões entre os interesses dos segmentos tradicionais e os objetivos institucionais da produção do Plano de Manejo face aos interesses políticos de grupos econômicos para os quais uma gestão conservacionista legitimada pelo Governo Federal constituía-se num obstáculo. Em Araújo (2013), podemos observar como se caracterizam a ação dos diferentes grupos de interesses incidem na conformação das políticas ambientais no Brasil. As estratégias de diferentes grupos identificados pela autora – socioambientalistas, tecnocratas esclarecidos, desenvolvimentistas moderno e tradicionais, sociourbanistas, urbanocratas – e constituem uma gradação de proposições que vão de uma agenda verde até a marrom. Ou seja, a escala de intervenção varia desde aqueles que constituem uma narrativa em torno da ideia do uso sustentável e da preservação ambiental, atrelada à ação integrada dos diferentes níveis de governo, em acordo com diferentes tipos de instrumentos de política ambiental. Na outra ponta, verificam-se os desenvolvimentistas clássicos, informados numa visão antropocêntrica e utilitária liberados de exigências ambientais ou urbanísticas (Araújo, 2013). Essas forças sociais, em diferentes espectros, se manifestavam na conformação do Plano de Manejo.

Às tensões verificadas no trabalho de produção do Plano se voltaram estratégias para facilitar a compreensão dos temas debatidos no Conselho, trazidos pelo GT, destacando-se aí a “tradução” da linguagem pela qual os temas e as questões eram apresentados. Facilitar o entendimento de conceitos, referências teóricas e metodologias operacionalizadas em pesquisas, cujos dados eram considerados naquele trabalho. Tratava-se, de fato, de construir acordos a compor um instrumento de gestão diferenciado, em parceria com segmentos historicamente distanciados do controle político sobre seus territórios.

Tratava-se de um grande desafio facilitar o conhecimento e reconhecimento de dispositivos jurídico-legais dos quais as populações tradicionais só conheciam a natureza proibitiva e, portanto, a eles resistiam facilitando sua instrumentalização por grupos políticos e econômicos dominantes no município. Os grupos eram habituados a lidar com e a neutralizar resistências pela troca de favor, contribuindo assim para a reprodução de uma estrutura de dominação tradicional. Conforme podemos atestar na fala de um dos representantes das comunidades tradicionais, que trabalhou parte significativa de sua vida como pescador e havia presidido a Associação dos Usuários da Resex: “muitas vezes nós não fomos educados a discutir, nós pescadores, somos muito acomodados a concordar com tudo, que venha tudo, para ter facilidade e não trabalho, ‘deixa assim mesmo’, nós não fomos educados” (informação verbal).12 12 Entrevista concedida por N. C. em 1 de julho de 2016.

Retornando ao desafio da “tradução”, o objetivo era fazer de fato a participação ocorrer, socializando-se os debates amplamente entre as pessoas que se faziam presentes. Esse trabalho importou, em certa medida, na inserção de práticas e conhecimentos tradicionais no Plano de Manejo. Exemplar nesse sentido é seu tópico “Aves da região”: uma lista das espécies encontradas no estuário do rio Caeté, em Bragança, Pará, registrada com as nomenclaturas científicas e populares das espécies conhecidas nesse ecossistema, o que não deixa de ser representativo da valorização dos conhecimentos tradicionais.

Muitos aspectos, no entanto, não foram contemplados, e a linguagem do Plano de Manejo produzido não permitiu acessibilidade igual a todos e todas. Assim, há de se reconhecer certos limites à participação dos representantes das comunidades e à compreensão do que ali realmente foi acordado. Como expressou o segundo presidente da Assuremacata: “muitas coisas foram colocadas, outras não. Até mesmo a interpretação, eles colocavam palavras que o caboclo não entendia, e colocavam palavras que deixava em aberto” (informação verbal).13 13 Entrevista concedida pelo segundo presidente da Assuremacata, em 1 de julho de 2016.

Apesar disso, o conhecimento empírico, tradicional e local de pescadores e extrativistas sobre o território foi sistematizado e consta como “Informação” no documento final. Um conhecimento que ocupa lugar central nas contextualizações ambientais, sociais e econômicas do instrumento produzido, sendo decisivo nas justificações para a criação da Resex. Já o conhecimento científico, base também do documento, encontra-se relacionado na seção das Referências do PM.

Essa assimetria na representatividade das formas de saberes no documento persiste e cabe aqui pensar sobre ela enquanto uma contradição como parte do processo de produção do PM da Resex. Uma contradição que nos estimula a acompanhar sociologicamente as ações públicas em contextos marcados por uma distribuição muito desigual da riqueza produzida, por um distanciamento significativo da maior parte das populações do domínio dos códigos formais da linguagem e da escrita, pela prevalência do saber científico sobre outros saberes. Uma contradição que não inviabilizou uma experiência inovadora em termos de produção de fóruns híbridos, como um CD, e dentro dele da produção de instrumentos de gestão de um território protegido na Amazônia em contexto de ambientalização. Isso nos permite considerar também, além das disputas de poder, as disputas de saber, com a sobreposição de ontologia e epistemologia modernas sobre o saber tradicional do “outro” (Leff, 2012).

A assimetria entre a legitimidade dos conhecimentos acionados na coprodução do PM da Unidade de Conservação aqui tratada corresponde às características de uma sociedade na Amazônia na qual se combinam três ordens: a moderna, a pós-moderna e a tradicional, como analisado por Philippe Léna (2002)LÉNA, P. As Políticas de Desenvolvimento Sustentável para a Amazônia: problemas e contradições. Boletim Rede Amazônia, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, p. 9-20, 2002.. Se em cada ordem dessas há campos de poder onde disputas e conflitos se materializam, muito mais complexo então é quando as várias ordens se combinam e uma dominação tradicional é mantida nas relações dentro dos grupos e entre os grupos sociais. Entre os pescadores e extrativistas, essa dominação é presente também na Associação, assim como nas relações entre o meio técnico-científico e os segmentos tradicionais. Embora seja evidente a identificação de instituições como o ICMBio com os valores e práticas ambientalistas, com uma percepção ecológica, comprometida com a sustentabilidade, as características de uma dominação tradicional não desaparecem. Assim como dessas características não se afastam completamente as práticas e as percepções de agências do poder local, representadas numa ação que propõe e implementa uma Resex e produz os instrumentos de sua gestão em um território. Fricções entre projetos e perspectivas no processo se verificam, e uma de suas expressões, justamente, é a assimetria de legitimidade entre as formas de conhecimento e de práticas que ali se encontram e se confrontam, se conhecem e se inter-reconhecem. É também a permanência de hierarquias, de estruturas verticalizadas nas quais o poder simbólico (Bourdieu, 2014BOURDIEU, P. Curso de 7 de fevereiro de 1991. In: BOURDIEU, P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.) da autoridade científica, por exemplo, joga papel importante na reprodução delas. No entanto, isso não anula a possibilidade de atuações outras, de referências vindas de conhecimentos e de práticas não científicas influenciando acordos sistematizados em um instrumento de gestão como o PM.

Mesmo com linguagem técnico-científica ocupando a centralidade no PM, trazendo dificuldades à sua compreensão entre os portadores de outros conhecimentos, verificou-se a adoção de um conjunto de estratégias na última etapa da produção do Plano para superar essa distância em relação a aspectos técnicos estranhos à compreensão dos atores locais. A linguagem, a terminologia científica do Plano, é fato, não é indispensável a aprendizados, à comunicação, nos meios tradicionais, como o da pesca e do extrativismo, onde a expressão oral é de longe a mais praticada. No entanto, visando diminuir esse distanciamento, empregou-se, junto às comunidades, a técnica do mapa falado com base nas referências paisagísticas, da territorialidade das comunidades, de seus modos de vida e de trabalho. A partir disso, exercitou-se a identificação de correspondências entre as representações científicas e as de outros registros de conhecimentos.

Muitas dificuldades finalmente não foram superadas. Apropriação da linguagem técnica constitui uma das mais significativas. Para os representantes de comunidades, o número total de oficinas realizadas na última etapa da construção do Plano impossibilitou tal apropriação. Foram apenas oito dias de oficinas, entre os meses de julho e agosto de 2012, sendo dois dias para cada um dos polos de comunidades, e as comunidades relacionadas à Reserva foram reunidas em oito polos, dos quais cada reunião de dois dias congregava comunidades de dois polos. As implicações desse pouco tempo apontado pelos interlocutores são da dificuldade de compreensão dos temas debatidos e da contextualização com as questões locais.

Apesar da permanência do desafio em efetivamente participar e deliberar na construção dos acordos, aprendizados se produziram e se traduziram, especialmente num sentimento de pertencimento ao processo de institucionalização da Resex, numa autopercepção enquanto contribuinte na tomada de decisões, deliberando sobre o presente e o futuro de um território. Mesmo que se imponha a força simbólica da “última palavra” dada pelo segmento técnico-científico num conjunto de regras como o PM; mesmo se controvérsias restem após decisões tomadas em espaços públicos inovadores, que acolhem os debates, os intercâmbios e aprendizados, a experiência, objeto de análise desse artigo, corresponde a uma compreensão da participação como construção.

Entre retrocessos e perspectivas de futuro, é um processo que, mesmo refreado por assimetrias políticas e sociais, avança, como afirmado abaixo por um dos atores das comunidades. “A minha avaliação sobre o Plano é que foi muito bom a participação das entidades. Tiveram voz, decidiram. Teve alguns itenzinhos que a gente discordou, mas foi muito bom a participação de todos e o fechamento do Plano que foi importante” (informação verbal.14 14 Entrevista concedida por A. A. em 31 de maio de 2016.

Assim, além da ação dos ainda atores dominantes no cenário das políticas participativas, identificamos um repertório de ações coletivas e dos atores individuais que contribuem para dinamizar a ruptura, em potencial, com formas tradicionais de elaboração e gestão das políticas públicas. Entendendo esses espaços híbridos, como os da cogestão das Reservas Extrativistas no Brasil, a partir da sociologia da ação pública (Lascoumes; Le Galès, 2012LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. Sociologia da ação pública. Maceió: Edufal, 2012.) e do debate sobre os caminhos e descaminhos da governança, pensamos contribuir com a compreensão da agência do voluntarismo político, da “mão única” do Estado e do processo de decisão das políticas públicas, sobretudo por se levar em conta os processos contraditórios, os atores ocultos, as pressões das ações coletivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, evocamos a ambientalização, por meio do V Encontro Nacional de Áreas de Manguezal (Eneam) ocorrido em 1995, dado o significado de tal evento para o reconhecimento da educação ambiental, sua relação com a presença da Universidade em Bragança e seu trabalho na produção de conhecimento científico sobre os manguezais, a inserção de populações tradicionais e o uso dos ecossistemas nas discussões de temas voltados à sua realidade e como se posiciona o poder local entre políticas socioambientais e interesses econômicos de grupos hegemônico. Nesse contexto, outras relações, diálogos e o debate público em torno das Unidades de Conservação culminaram na mobilização para a criação de uma Reserva extrativista, uma Associação de usuários e um Conselho Deliberativo. Nesse processo, procuramos tratar dos desafios em operar com políticas públicas de modo participativo e com uma multiplicidade de atores e interesses, na elaboração de um instrumento de gestão territorial como o Plano de Manejo da Reserva. Nesse processo, evidenciou-se o reconhecimento da existência de uma arena política com diferentes atores, incluindo os historicamente alijados de processos decisórios junto ao Estado, com possibilidade de demandar e participar de decisões referentes ao presente e ao futuro de um território sobre o qual passa a incidir, como instrumento de política pública, uma Reserva Extrativista Marinha.

Entre os desafios enfrentados estão a reprodução ainda de práticas administrativas próprias de um sistema de poder local clientelista em entidades como a Associação de usuários, geradoras de disputas de efeitos nocivos da organização da sociedade para propor e defender o bem comum. Ao lado disso, outro importante desafio é o enfrentamento da instrumentalização de instâncias como o Conselho Deliberativo para defender interesses políticos e de mercado contrários aos princípios socioambientais, com implicações concretas em um instrumento de gestão territorial, como o Plano de Manejo. Por fim, e não menos importante, a grande questão das assimetrias quanto à distribuição de poder político e econômico entre os segmentos representados no Conselho e a ascendência do conhecimento científico sobre outras formas de savoir-faire, consideradas como tradicionais, resultando em uma coprodução de ordenamento territorial participativo com muitos limites em seus instrumentos (a Associação, o Conselho Deliberativo e o Plano de Manejo), constituindo assim entraves a uma ação pública e a um projeto de território inclusivo socialmente e ambientalmente capaz de assegurar a longo prazo o equilíbrio de um ecossistema como o manguezal.

No entanto, há de se levar em conta a riqueza do processo em termos de aprendizados e conquistas, capaz de contribuir em parte com a renovação da democracia, apesar dos efeitos de uma hegemonia baseada em racionalidade, presente nas instituições públicas do poder local, que não é instruída nas ideias de sustentabilidade e direitos sociais. O que não nos impede de reconhecer a capacidade de resistir, inventar e aprender, que segmentos sociais como as populações tradicionais, em parceria com outros segmentos de atores (ONG, instituições de ensino e pesquisa, certas agências do Estado), em um contexto favorável marcado pela redemocratização e a ambientalização, a forças políticas e econômicas que, atualmente ainda mais fortalecidas, continuam a negá-la em seus direitos, assim como negam as exigências ambientais, nas quais incluímos, com base em Latour (2017)LATOUR, B. Où atterrir? Comment s'orienter en politique. Paris: La Découverte, 2017., uma prática política que considere as outras formas de expressão da vida como sujeitos. Sujeitos esses se expressando com cada vez mais frequência, em fenômenos que conformam no planeta um estado de emergência climática para o qual, na sinergia entre o social e o natural, contribuiu e contribui decisivamente a agência humana.15 15 Cf. Latour (2017) e Cardoso e Santos (2022).

  • 1
    É de autoria do primeiro autor a tese de doutorado cuja base empírica e perspectiva teórica principais foram retomadas na elaboração deste artigo. Um produto vinculado aos projetos de pesquisa: Navegar é preciso? Diagnóstico das embarcações pesqueiras, relações sociais e saberes incutidos na carpintaria naval paraense, financiado via Fapespa; Desafios da implementação do Plano de Manejo na Resex Marinha Caeté-Taperaçu: ação pública e participação em um contexto de educação em ambientes não escolares, financiado pela Propesp/UFPA; Desafios sociopolíticos da gestão da água e governança territorial, financiado pelo CNPq (2017-2020).
  • 2
    Em Bragança, de acordo com os dados do Censo IBGE 2010, habitam 113.165 pessoas – 57.244 homens e 55.921 mulheres; na cidade 72.595 habitantes e fora da zona urbana 40.570 pessoas.
  • 3
    Trata-se de uma faixa linear de 700 quilômetros, incidente desde a costa do estado do Maranhão, passando pelo Pará e indo até o Amapá.
  • 4
  • 5
    Fizeram parte da oficina entidades com diversas perspectivas para a constituição do projeto Resex, entre elas: a Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP), a Prefeitura Municipal de Bragança (Secretaria de Pesca), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Associação dos Usuários da Resex Marinha Caeté-Taperaçu (Assuremacata). Entre seus participantes, além dos organizadores, estavam: discentes vinculados a programas de pós-graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA); a gestora da Resex Araí-Peroba; representantes e moradores das comunidades do Treme, Acarajó, Bacuriteua, Caratateua, Acarajozinho, Tamatateua, Abacateiro, Resex Gurupi-Piriá, Associação de Usuários da Resex de Tracuateua (Auremat) e Pontinha do Bacuriteua.
  • 6
    O SNUC, instituído no Brasil pela Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000, fundamenta-se nas diretrizes de uma Política Nacional de Meio Ambiente de acordo com os requisitos do desenvolvimento sustentável e da proteção da biodiversidade.
  • 7
    O também denominado Programa de Manejo e Dinâmica em Áreas de Manguezais (1995-2005) se constituiu em uma iniciativa integrada a uma política de conservação dirigida para os ecossistemas costeiros do norte do Pará até o Amapá, onde, junto à costa maranhense, se concentram 20% das florestas de Mangue do Brasil. Assinado um acordo de cooperação entre o Brasil e a Alemanha, e contando com o apoio do CNPq e com o Centro de Ecologia Marinha e Tropical da Universidade de Bremen, as atividades de pesquisa foram iniciadas em 1996 (Silva; Costa; Silva, 2003SILVA, Rommel Benicio Costa da; COSTA, Antonio Carlos Lola da; SILVA, Lívia Rejane Gomes da. Desenvolvimento Sustentável em ecossistemas de manguezais. Educação Ambiental em Ação, n. 4, ano 1, março-maio. 2003.).
  • 8
    O CCDRU é o instrumento pelo qual as populações do território, objeto do contrato, obtêm reconhecimento formal e garantias de acesso a políticas públicas. Disponível em: https://uc.socioambiental.org/pt-br/noticia/184232. Acesso em: 12 nov. 2019.
  • 9
    Ao ICMBio, agência da administração direta do Governo Federal criada em agosto de 2007, foi atribuída a execução das ações do Sistema Nacional das Unidades de Conservação no território nacional.
  • 10
    A empresa chama-se Ecooideia e é sediada em Brasília (DF), e, de acordo com seu site, atua com cooperativismo, educação ambiental, manejo florestal, gestão de resíduos, valoração ambiental e tecnologias sociais. Disponível em: http://www.ecooideia.org.br/home/. Acesso em: 14 set. 2015.
  • 11
    Cf. Maneschy et al. (2017)MANESCHY, M. C. A. et al. Sociologia e gestão ambiental: considerações a partir de uma Reserva Extrativista Marinha. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, v. 53, n. 2. p. 339-348, 2017., trabalho que, pela abordagem de redes sociais, apoiada em Pierre Bourdieu e Mark Granovetter, analisaram oficinas de elaboração do Plano de Manejo na Resex Caeté-Taperaçu como parte do processo no qual a racionalidade dos agentes é entendida no plano das interações, portanto sensíveis às expectativas alheias.
  • 12
    Entrevista concedida por N. C. em 1 de julho de 2016.
  • 13
    Entrevista concedida pelo segundo presidente da Assuremacata, em 1 de julho de 2016.
  • 14
    Entrevista concedida por A. A. em 31 de maio de 2016.
  • 15
    Cf. Latour (2017)LATOUR, B. Où atterrir? Comment s'orienter en politique. Paris: La Découverte, 2017. e Cardoso e Santos (2022)CARDOSO, T. M.; SANTOS, G. M. Emergência climática: questões e possíveis saídas. Suplemento Pernambuco, Recife, 18 jul. 2022. Disponível em: http://suplementopernambuco.com.br/artigos/2924-emerg%C3%AAncia-clim%C3%A1tica-quest%C3%B5es-e-poss%C3%ADveis-sa%C3%ADdas.html. Acesso em: 30 ago. 2022.
    http://suplementopernambuco.com.br/artig...
    .

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2020
  • Aceito
    17 Ago 2022
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