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VIOLÊNCIA, TRABALHO E PERIFERIA: conflitos morais e convívios nas fronteiras entre dois mundos

VIOLENCE, WORK AND PERIPHERY: moral conflicts and coexistence in the frontiers between two worlds

VIOLENCE, TRAVAIL ET PÉRIPHÉRIE: les conflits moraux et la convivence dans les frontières entre deux mondes

Resumos

A perspectiva analítica que aponta um convívio e uma disputa prático-simbólica entre diferentes regimes normativos em torno do que é moralmente “certo” nas periferias urbanas do Brasil tem crescido. Parte-se do pressuposto teórico de que sujeitos “envolvidos no mundo do crime”, diante de situação em que são alvos de críticas por suas atitudes, sentem necessidade de se justificar. Baseado em uma pesquisa multimetodológica em dois bairros da periferia paulistana, este artigo aborda duas questões centrais: a autoimagem projetada pelos sujeitos que atuam em atividades consideradas criminais do ponto de vista legal como justificativa para sua atuação criminal; e como aqueles que tradicionalmente se entendiam como “trabalhadores” enxergam os “envolvidos no mundo do crime” e suas justificativas. Associando grupos específicos identificados qualitativamente a cada uma dessas visões sobre o “mundo do crime” e seus agentes, o artigo contribui com hipóteses explicativas para elaborar essas diferentes relações de convívio e conflito moral.

Palavras-chave:
Periferia; Violência; Trabalho; Moral; Justificação


The analytical perspective that points to a coexistence and a practical-symbolic dispute between different normative regimes on what is morally “correct” in Brazilian urban peripheries is growing. This work is based on the theoretical presupposition that subjects “involved in the world of crime,” faced with criticisms to their attitudes, feel the need to justify themselves. From the multi-methodological research in two districts of the periphery of the municipality of São Paulo, this article approaches two central questions: the self-image projected by subjects that work in activities considered criminal by the law as justification to their criminal activity; and how those who traditionally see themselves as “workers” see those “involved in the world of crime” and their justifications. Associating specific groups qualitatively identified to each of these perspectives on the “world of crime” and its agents, the article contributes with explanatory hypotheses to develop those different coexistence and moral conflict relationships.

Keywords:
Periphery; Violence; Work; Moral; Justification


La perspective analytique qui suggère une convivence et une dispute pratique-symbolique entre des différents régimes normatifs à propos de ce qu'est moralement “correct” aux périphéries urbaines brésiliennes grandit. On considère la présupposition théorique que les sujets “involucrés avec le monde criminel”, étant critiqués par leurs attitudes, ressentent le besoin de se justifier. Basé sur une recherche multi-méthodologique dans deux districts de la périphérie de São Paulo, cet article approche deux questions centrales: l'image de soi projeté par les sujets qui travaillent en activités considérés comme criminelles d'un point de vue légal ainsi que justificative de leur action criminelle; et comment ceux qui traditionnellement se voient comme des “travailleurs” voient les “involucrés dans le monde criminel” et ses justificatives. Associant groups spécifiques identifiés qualitativement à chacune de ces perspectives sur le “monde criminel”, l'article contribue avec des hypothèses explicatives pour élaborer ces différents relations de convivence et conflit moral.

Mots-clés:
Périphérie; Violence; Travail; Moral; Justification


INTRODUÇÃO

Este artigo busca contribuir para o entendimento de uma questão amplamente debatida no Brasil nas últimas décadas e que diz respeito às formas como a “violência urbana” afeta a vida cotidiana dos moradores das periferias urbanas, em especial na cidade de São Paulo. Mais especificamente, o texto está interessado em analisar as dinâmicas possíveis na interação entre dois “mundos”: o “mundo do crime” e o restante das pessoas que vivem em bairros periféricos da cidade de São Paulo, chamados amplamente aqui de “trabalhadores”.1 1 Embora seja uma identidade que vem perdendo força nas periferias paulistas nas últimas décadas (Fontes, 2021), utilizo o conceito de “trabalhadores” devido à sua importância histórica para a oposição moral e identitária que foi construída nesses territórios, conforme vastamente documentado na literatura (Zaluar, 2000; Feltran, 2007). O autor agradece Gabriel Feltran e Fernanda Lima e Silva por comentários feitos a versões anteriores deste texto. Eventuais equívocos são obviamente de minha inteira responsabilidade.

O texto intenta responder a duas questões centrais: 1) qual a autoimagem projetada por aqueles que atuam em atividades consideradas criminais do ponto de vista legal como forma de justificar sua atuação criminal; e 2) como aqueles que tradicionalmente se entendiam como “trabalhadores” enxergam os “envolvidos no mundo do crime” e suas justificativas.

O tema da violência urbana tem dominado boa parte das discussões na sociologia urbana contemporânea. Nesse campo, as abordagens possíveis são múltiplas, podendo partir de uma ótica focada na análise crítica das políticas de segurança pública ou de uma perspectiva que tem como ponto de vista as ações e transgressões criminais ao regime normativo estatal, mas também de uma ótica que coloca as organizações criminais e os próprios sujeitos envolvidos com atividades ilícitas como centro do problema.

Mais recentemente, em diálogo com pesquisas que tratam das tênues fronteiras da informalidade e da ilegalidade e do crescimento de mercados ilegais (Feltran, 2022a; (Telles, 2006TELLES, V. Trajetória urbanas: fios de uma descrição da cidade. In: TELLES, V; CABANES, R. (org.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.; 2009TELLES, V. Ilegalismos urbanos e a cidade. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 84, p. 153-173, 2009.; Telles & Hirata, 2007TELLES, V.; HIRATA, D. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Estudos Avançados, [s. l.], v. 21, n. 61, p. 173-191, 2007.), tem se desenvolvido uma importante literatura que aborda a relação entre regimes normativos distintos, com destaque para o “trabalho”, o “crime”, a “política” e a “religião” (Feltran, 2014FELTRAN, G. Valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 72, p. 495-512, 2014.; 2022FELTRAN, G. S. (org.). Stolen cars: a journey through São Paulo's urban conflict. Hoboken: John Wiley & Sons, 2022.; Silva, 2004SILVA, L. A. M. Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, 2004.). De acordo com essa leitura, há um convívio e uma disputa prático-simbólica entre diferentes regimes normativos em torno do que é moralmente “certo” e aceitável. Com isso, passamos a análises que se centram não apenas no “mundo do crime” como ator isolado, mas como ator em interação com aqueles que não operam necessariamente em atividades ilegais – ou pelo menos não na maior parte do tempo – em favelas e periferias urbanas, perspectiva da qual parte este trabalho.

Assim, apesar de uma vasta literatura sobre o tema, a contribuição que este artigo pretende dar ao debate acadêmico diz respeito à sistematização da diversidade de estratégias de justificação e de relações possíveis entre “trabalhadores” e “envolvidos no mundo do crime” em um mesmo espaço territorial. O texto busca, ainda, associar essas diferenças a grupos específicos que habitam as periferias urbanas, a partir de uma perspectiva multimetodológica. Ao combinar métodos de pesquisa quantitativos e qualitativos, o texto lança luz sobre as relações e contradições entre as diferentes formas de entendermos a violência urbana, sobretudo em seus aspectos objetivos (os indicadores de práticas criminais), subjetivos (a percepção e o sentimento de insegurança) e como eles se conectam com a representação da violência e seu impacto nas dinâmicas cotidianas nas favelas e periferias urbanas.

Parto do entendimento de que a “expansão do mundo do crime” (Feltran, 2011aFELTRAN, G. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Unesp, 2011a., 2014FELTRAN, G. Valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 72, p. 495-512, 2014.) muda qualitativamente a dinâmica de disputa por legitimidade moral nas periferias urbanas. Essa expansão é entendida aqui como o processo de constituição do “mundo do crime” como um ator que passa disputar “corações e mentes” de jovens moradores das periferias urbanas, oferecendo a eles uma alternativa de vida, econômica, moral e política. Pensar a “expansão do mundo do crime” significa, então, pensar na construção de um regime próprio de justificação entre os que estão “envolvidos no mundo do crime”, baseado em códigos e normas minimamente compartilhados pela sociedade ou pelo menos por aqueles que participam das interações e configurações sociais locais. Significa também que esse regime busca ampliar seu alcance, disputando a legitimidade moral com outras esferas de referência nas quais se baseiam as classes populares para justificar seus atos.

Esse processo de “expansão” e disputa pela hegemonia junto aos moradores das periferias está intimamente ligada, no caso de São Paulo, à consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) como principal facção criminosa do estado, o que reduziu consideravelmente os conflitos entre pequenas facções locais, bem como os casos de enfrentamento entre “bandidos” e forças policiais (Feltran et al., 2022FELTRAN, G. et al. Variations in homicide rates in Brazil: an explanation centred on criminal group conflicts. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 15, p. 349-386, 2022. Número especial.).

Do ponto de vista teórico, esses “mundos” serão entendidos aqui como espaços discursivos e de sociabilidade onde se forjam quadros de referências gramaticais a partir dos quais é possível guiar as condutas e justificar as ações dos sujeitos. Tais quadros de referência se valem de princípios mais gerais, aquilo que Boltanski e Thévenot (1999)BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. The sociology of critical capacity. European Journal of Social Theory, [s. l.], v. 2, n. 3, p. 359-377, 1999. denominam de cité, isto é, uma “gramática moral que permite aos atores fundamentarem seus acordos sociais e submetê-los à crítica” (Campos, 2016CAMPOS, L. A. Qual capacidade crítica? Relendo Luc Boltanski à luz de Margaret Archer. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 3, p. 719-740, 2016., p. 723), mas também de normas e valores situacionais ou construídos historicamente dentro das configurações estabelecidas pelas próprias classes populares e partilhados localmente. A referência teórica ao pragmatismo nos permite analisar a relação entre crítica e justificação ao mesmo tempo em que pontua o caráter situacional e “experimental” dessa relação, ou seja, a partir de dinâmicas de “tentativa e erro” entre os agentes envolvidos.

A pesquisa que deu origem a este texto foi realizada na periferia de São Paulo, mais especificamente nos distritos de Jardim Ângela, na zona sul, e Brasilândia, na zona norte. Nessas regiões realizo, desde 2015, uma pesquisa que combina métodos etnográficos – observação participante, conversas informais e entrevistas em profundidade – com dados quantitativos – extraídos tanto de estatísticas oficiais da Secretaria de Segurança Pública e de um survey aplicado no início de 2015 nos dois bairros. Para o survey, foram realizadas entrevistas em 391 residências, divididas entre os dois distritos mencionados. Dentro dos distritos, foram escolhidas ruas aleatoriamente e, nestas, foi entrevistada uma pessoa de uma a cada dez residências.

O artigo se divide em mais três partes além desta introdução. Na seção seguinte, apresento três leituras possíveis a respeito do tema da violência urbana e os dados quantitativos sobre criminalidade violenta nos bairros pesquisados. Depois, trato das estratégias usadas pelo “mundo do crime” para justificar as atitudes daqueles que estão envolvidos nas atividades ilegais e para se constituir como um dos polos morais em concorrência com outras esferas de justificação. Posteriormente, trato das diferentes visões que “trabalhadores” apresentam a respeito dos que estão “envolvidos” com atividades ilegais. Reservo, por fim, algumas considerações finais para a última seção.

VIOLÊNCIA URBANA EM SÃO PAULO: três leituras possíveis e a “expansão do mundo do crime”

A questão da violência urbana no Brasil é tema permanente no debate público há pelo menos três décadas. No entanto, para fins analíticos, é preciso separar três usos distintos que podem ser dados à ideia de “violência” no contexto urbano e seus impactos nas comunidades mais afetadas.

O primeiro e talvez mais comum uso da noção de violência diz respeito à pratica de crimes ou de transgressões a regras estabelecidas no aparato jurídico-normativo e que ameaçam duas condições básicas da vida na sociedade contemporânea: a integridade física das pessoas e a garantia patrimonial (Silva, 2004SILVA, L. A. M. Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, 2004.). O enquadramento de atos como “crimes” e a variação estatística desses indicadores é relevante do ponto de vista da formulação de políticas pública e, sobretudo, do debate público.

No caso da cidade de São Paulo e de suas periferias, a taxa de crimes contra a vida e contra o patrimônio nem sempre seguiu a mesma direção. No caso das taxas de homicídio, há tendência de alta desde a década 1960, mas com inflexão na intensidade da subida a partir de meados dos anos 1980 e ao longo da década de 1990. A taxa atinge seu auge no fim daquela década e, desde então, passa a cair em ritmo acelerado, em um movimento que perdura até os dias atuais. Por outro lado, furtos e roubos apresentam um viés de alta pelo menos desde meados da década de 1980, ainda que em alguns momentos a taxa tenha se mantido estável ou tenha tido declínios pontuais ao longo da série histórica aqui analisada.

O Gráfico 1 2 2 A Secretaria de Segurança Pública não divulga taxas por 100 mil habitantes para os índices de criminalidade nos bairros e distritos das cidades, pois as áreas abarcadas pelos distritos policiais diferem das regiões administrativas da cidade para os quais é possível obter uma estimativa populacional. Dessa forma, os dados para os homicídios, furtos e roubos nos distritos pesquisados serão apresentados em termos absolutos. Também devido ao fato de os distritos policiais diferirem consideravelmente das áreas administrativas, para chegar aos dados apresentados aqui, foram agrupados, em cada uma das regiões, os dados relativos a três distritos policiais que abarcam os bairros onde desenvolvi a pesquisa, mas que também abrangem pedaços de distritos vizinhos. Para o que estou chamado de “região do Jardim Ângela”, somei os dados dos distritos policiais 100 – Jardim Herculano; 92 – Parque Santo Antônio; e 47 – Capão Redondo. Para a “região da Brasilândia”, utilizei os dados dos distritos 72 – Vila Penteado; 74 – Parada de Taipas; e 45 – Vila Brasilândia. Ainda que o fato de não dispormos de dados relativos à população atrapalhe uma comparação mais detalhada entre as duas regiões, ele não prejudica a observação do movimento mais geral da criminalidade. traz os dados de homicídios para ambas as regiões em que a pesquisa de campo foi realizada. Como pode ser notado, a variação histórica nos números é mais intensa na região do Jardim Ângela, que chegou a ser considerado, em 1996, o bairro mais violento do mundo pela Organização das Nações Unidade (ONU)3 3 A esse respeito, ver matérias disponíveis em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/11/11/brasil/14.html; http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/8/18/brasil/34.html; e http://reporterbrasil.org.br/2006/01/das-manchetes-policiais-para-a-revolucao-social/. quando a região atingiu a marca de 120 mortos por 100 mil habitantes. Os dados apresentados vão até 2015 para coincidir com o momento em que o survey foi aplicado.

Gráfico 1
Quantidade de homicídios nas regiões selecionadas (1984-2015)

O Gráfico 2 apresenta o total de ocorrências de furtos e roubos, incluindo veículos, para a região da Brasilândia; e o Gráfico 3, para o Jardim Ângela. Ainda que o aumento das notificações devido, por exemplo, à possibilidade de fazer o boletim de ocorrência pela internet para alguns crimes possa explicar parte do aumento no registro de crimes contra o patrimônio, a longevidade da série apresentada nos permite notar um claro viés de alta em ambas as regiões ao longo do período analisado.

Gráfico 2
Roubos e furtos totais – Região Brasilândia (1984 – 2015)
Gráfico 3
Roubos e furtos totais – Região Jardim Ângela (1984 – 2015)

Desse modo, com relação à violência entendida enquanto prática de crimes contra a vida e o patrimônio das pessoas, há tendências contraditórias nos bairros analisados. Caem os crimes contra a vida e aumentam os crimes contra o patrimônio. Esses dados, embora não guardem correlação direta, têm influência sobre uma segunda forma de entendimento da violência urbana: a percepção que os moradores e a sociedade como um todo têm sobre o nível de violência nas regiões periféricas e o sentimento de (in)segurança de que quem vive em um desses bairros.

Nesse sentido, a explosão do número de homicídios na década de 1990 e a cobertura jornalística que se fazia – e ainda se faz – sobre esses crimes teve papel crucial na produção de uma representação pública dos moradores das periferias em que a figura do “bandido” se multiplicou na sociedade paulista de maneira geral (Feltran, 2011aFELTRAN, G. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Unesp, 2011a.). Seguiram-se processos de “incriminação preventiva” de determinados “tipos sociais” (Misse, 2010MISSE, M. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, São Paulo, v. 79, p. 15-38, 2010.) – em geral, homens jovens e negros – e de “estigmatização territorial” (Fontes, 2022FONTES, L. Histórias de quem quer fugir e de quem quer ficar: laços comunitários nas cambiantes periferias de São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 37, n. 109, p. e3710902, 2022.; Wacquant, 2007).

Internamente às periferias, a imagem a respeito do risco a que estão expostos pode variar a depender de uma série de fatores, mas há uma visão predominante: a de que se vive em meio à insegurança, seja na cidade, seja no bairro. No survey aplicado nas duas áreas, mais de 80% dos respondentes disseram não se sentir seguros morando em São Paulo e 88% disseram que a violência aumentou na cidade nos últimos 10 anos. Com relação ao bairro, os que disseram não se sentir seguros foram cerca de 60%, e 62% disseram que a violência aumentou em seus respectivos bairros nos últimos 10 anos.

Essa percepção de viver em uma cidade e em um bairro inseguro do ponto de vista da criminalidade leva as pessoas a diversas atitudes que afetam as dinâmicas de seu cotidiano e o próprio modo de vida das periferias (Fontes, 2022FONTES, L. Histórias de quem quer fugir e de quem quer ficar: laços comunitários nas cambiantes periferias de São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 37, n. 109, p. e3710902, 2022.). As atitudes das pessoas nesse contexto conformam o terceiro modo de olhar para a questão da violência urbana: como representação coletiva. Nessa ótica, a violência urbana funciona como categoria do senso comum à qual os moradores se referem para orientar suas ações do ponto de vista moral e instrumental (Feltran, 2014; Silva, 2004).

Nesse sentido, diferentes grupos de moradores das periferias podem adotar discursos e práticas normalizadoras, distintivas ou identitárias com relação à representação da violência que lhes é posta em seus bairros, a depender das redes de sociabilidade das quais a pessoa participa, sua situação socioeconômica, sua trajetória de vida, sua autoimagem em relação aos vizinhos e seus projetos de vida, conforme explorado em outra oportunidade (Fontes, 2022).

A questão que guia a pesquisa e as reflexões deste texto, expostas a seguir, dizem respeito ao inevitável convívio de “duas ordens sociais” (Silva, 2004) ou de dois “regimes normativos” (Feltran, 2014) por vezes antagônicos ou inconciliáveis. O aumento das atividades criminais voltadas sobretudo para crimes patrimoniais, o crescimento da sensação de insegurança nas ruas dos bairros periféricos, além do contexto de “expansão do mundo do crime” apresentado anteriormente colocam essa questão da relação entres “dois mundos” em destaque.

A EXPANSÃO E A BUSCA POR JUSTIFICAÇÃO DO “MUNDO DO CRIME”

Nas últimas décadas, tornou-se cada vez mais comum o convívio mais ou menos pacífico entre quem está dentro e quem está fora do “mundo do crime” e, em alguns casos, as fronteiras se tornam cada vez mais turvas e porosas. É raro encontrar pessoas com menos de 40 anos de idade que não tenham tido colegas de escola, vizinhos ou parentes envolvidos com o crime.

Conforme exposto, parto do pressuposto de que todos os sujeitos são dotados de capacidade crítica e, uma vez colocados em uma situação em que são alvos de uma crítica por parte de outros sujeitos, ou que supõem que terão suas condutas criticadas, sentem necessidade de se justificar (Boltanski, 2016BOLTANSKI, L. Sociologia crítica e sociologia da crítica. In: VANDENBERGHE, F.; VÉRAN, J.-F. (ed.). Além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.; Bolthanski; Thévenot, 1999BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. The sociology of critical capacity. European Journal of Social Theory, [s. l.], v. 2, n. 3, p. 359-377, 1999.). Desse modo, a primeira questão que deve ser posta diz respeito à forma como os sujeitos que são alvo preferencial das políticas repressoras do Estado e de críticas de toda a sociedade por suas condutas criminais constroem respostas a essa situação e, a partir delas, moldam justificativas para suas ações.

Diante da impossibilidade de um “autoenclausuramento moral” (Misse, 2010MISSE, M. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, São Paulo, v. 79, p. 15-38, 2010.) ou de uma imposição apenas pela força bruta, esses grupos tendem a utilizar outras práticas menos coercitivas e formulações discursivas que buscam consolidar o “mundo do crime” como polo em torno do qual as relações sociais gravitam e encontram fonte de legitimação social.

Esta seção irá se valer de uma cena etnográfica vivenciada durante a pesquisa de campo, em 2015, no distrito do Jardim Ângela, em que presenciei e participei da conversa com três homens negros, moradores do bairro e que se conheciam desde a adolescência, um deles “envolvido no mundo do crime”. A cena em questão é ilustrativa da tentativa de justificar as ações do “mundo do crime” por meio de diversos recursos retóricos e pela apresentação de fatos vivenciados por eles. A análise foi feita partir dessa situação e do cruzamento com referências bibliográficas e outras entrevistas e situações vividas ao longo da pesquisa de campo.

Inicio a apresentação dos personagens por Douglas,4 4 Os nomes dos interlocutores foram alterados para preservar a privacidade das pessoas. A idade dos interlocutores se refere ao momento da realização das entrevistas, sobretudo 2015 e 2016. meu interlocutor principal e com quem sigo mantendo contato esporádico até hoje. Na ocasião, ele tinha 31 anos e trabalhava como vigilante. Eu o conheci ainda na fase inicial da minha pesquisa, quando aplicava o referido survey na região como primeira aproximação do campo onde posteriormente desenvolvi a pesquisa etnográfica. Douglas se mostrou aberto e interessado na pesquisa, por isso anotei seu telefone e voltamos a conversar algumas vezes pessoalmente, por telefone e por troca de mensagens.

Ainda que não tenha se envolvido mais diretamente com a “vida do crime”, Douglas contou que “todos meus amigos foram para criminalidade”, inclusive seu irmão, que chegou a ficar preso em um Centro de Detenção Provisória (CDP) e sofreu um acidente de moto em uma tentativa de fuga após um assalto. O acidente do irmão teve grande importância em sua vida, pois foi quando ele decidiu que iria parar de usar drogas para não ser mais uma fonte de preocupação para sua mãe.

Douglas me contou que já trocou favores com traficantes da sua região, como ajudar a descarregar cargas de drogas em troca de uma pequena quantidade para seu uso pessoal ou se aproveitar do fato de trabalhar em uma área central da cidade para repassar alguma “encomenda” para os “playboys” da região onde trabalha e, com isso, ganhar algum dinheiro extra. Apesar disso, ele frisa que não chegou a se “envolver com a vida do crime”, apenas com o “mundo das drogas”.5 5 A diferenciação feita por Douglas entre quem está efetivamente “envolvido com o mundo do crime” e quem mantém apenas alguma relação pontual com essas pessoas, mesmo que obtendo alguma vantagem econômica, como é o caso dele, é digna de nota.

Mesmo tendo saído da casa da mãe e hoje estar morando com a esposa, um filho e um enteado, Douglas ainda conserva amigos de infância e adolescência que seguem envolvidos em atividades criminais. Foi ele quem me apresentou Kadu, gerente da “biqueira”6 6 “Biqueira” é como são conhecidos os pontos de venda de drogas em São Paulo. Mais recentemente, tem sido usada também a denominação “lojinha”. que fica no fim da rua sem saída onde está a casa de sua mãe e onde ele morava antes de se casar.

Kadu tem 22 anos e está “no corre”, como ele mesmo define, desde os 16. Já praticou furtos e roubos, mas hoje prefere concentrar sua atividade na venda de drogas, por ser menos arriscado e mais lucrativo, chegando a tirar cerca de R$ 1.500,00 a R$ 1.600,00 por semana, o mesmo ou até mais que seus amigos ganham em um mês de trabalho.

O terceiro interlocutor em questão é Michel, então com 26 anos que, naquele momento, fazia bicos como pintor de paredes e ganhava, ao mês, cerca de R$ 1.200,00. Na ocasião, sem saber que ele não estava “envolvido com o mundo do crime”, perguntei desde quando ele estava no “corre”, repetindo termo que tanto ele quanto Kadu haviam usado para se referir a suas atividades. Ele se apressou a dizer que estava no “corre do trampo”, mostrando que, apesar da amizade com os que estavam “envolvidos no mundo do crime”, esse não era seu caso.

De todo modo, o fato de usarem o mesmo termo para o trabalho e a atividade criminal é digna de nota, apontando para uma via de mão dupla no que se refere às categorias que o utilizam, mesmo se referindo a “mundos” diferentes. Isso se relaciona diretamente às justificativas usadas pelo “mundo do crime”, que serão exploradas a seguir: a) a aproximação de realidades vividas por todas que moram nas “quebradas”; b) a apropriação do léxico de outros regimes normativos; c) o provimento de apoio material oferecido à comunidade; d) a masculinidade expressa por meio da “honra”, da proteção e do consumo ostentatório; e e) a promessa de paz nas “quebradas”.

Logo no início da conversa, Kadu fez questão de ressaltar que:

Eles [Douglas e Michel] conhecem os moleque tudo do movimento. Desde pequeno, nós jogava bola juntos. Mas aí chegou um certo ponto da vida que cada um sabe o caminho que escolheu. Mas nem por isso nós se prevalece, tá ligado? Nós até ajuda, se precisar (Kadu, 22 anos, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2015).

A fala de Kadu já estabelece um primeiro ponto de busca pela legitimidade do “mundo do crime”. O “mundo do crime” não tem a pretensão de “se prevalecer” sobre os demais, mas sim de se aproximar e manter uma convivência pacífica entre si e “até ajudar”, se preciso for. “Tem o cara que entra pra vida do crime e vira as costas pros cara, né? Eu não, trato os caras aqui, ó, do mesmo jeito”, recebendo a confirmação tácita dos amigos que balançavam a cabeça afirmativamente.

Ao afirmar que não se coloca em uma posição hierarquicamente superior e de imposição por meio da força física ou das armas, Kadu faz um primeiro movimento necessário para aceitação no bairro: a identificação na posição social. O sofrimento ou opressão de que são vítimas os moradores das periferias é comum, algo muito bem traduzido em diversas letras de rap desde os anos 1990 (Fontes, 2020bFONTES, L. Da formação cultural à mobilização social: espaços de formação e mobilização ao longo de três gerações nas periferias de São Paulo. Lua Nova, São Paulo, n. 109, p. 51-101, abr. 2020b., 2021FONTES, L. Trabalhadores e periféricos: identidades em (des)construção nas periferias de São Paulo*. E-cadernos CES, n. 36, 15 dez. 2021. Disponível em: http://journals.openedition.org/eces/6649. Acesso em: 27 out. 2022.
http://journals.openedition.org/eces/664...
). Afinal, como lembrou Michel durante nossa conversa, “a quebrada aqui é a mesma. Tudo que ele [Kadu] passa na quebrada aí, eu passo. A diferença é que eu trabalho e tenho um salário no mês”.

O fato de “a quebrada ser a mesma” é um elemento essencial nesse processo de luta pela legitimação por parte do “mundo do crime”. Esse reconhecimento de que “trabalhadores” e “envolvidos no mundo do crime” são da mesma “quebrada” significa que ambos estão situados em uma “rede bem concreta de pertencimentos” e, ao mesmo tempo, são participantes “de uma condição geral de vida, marcado, sim, pela violência, mas também pela coragem e por uma determinada estética” (Magnani, 2006MAGNANI, J. G. Trajetos e trajetórias: uma perspectiva da antropologia urbana. Revista Sexta-feira, São Paulo, n. 8, p. 30-43, 2006., p. 39).

Ademais, tal fato remete “ao risco, à violência e à carência, mas também ao sentimento de pertencimento e às relações de solidariedade e companheirismo”. Desse modo, trata-se de uma categoria nativa que alude não apenas aos problemas de suas regiões, mas também “à força e à coragem daqueles que dela fazem parte” (Pereira, 2010PEREIRA, A. B. As marcas da cidade: a dinâmica da pixação em São Paulo. Lua Nova, São Paulo, n. 79, p. 143-162, 2010., p. 156). A “quebrada” parece cumprir, para os mais jovens, papel semelhante ao que a categoria “pedaço” cumpria em décadas anteriores (Magnani, 2003MAGNANI, J. G. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2003.), apontando para uma “rede de relações particularizadas” (Pereira, 2010, p. 157), mas também para uma universalização da experiência daqueles que vivem nas periferias.

Com isso, mais do que conviver no mesmo espaço ou fazer atividades em comum e até nutrirem relações de amizade ou coleguismo, promove-se uma operação retórica que busca aproximar as dificuldades da vida cotidiana, enfrentadas tanto por “trabalhadores” quanto por “envolvidos no mundo do crime”. A identificação dos moradores com seu “pedaço” é um processo antigo e já descrito por antropólogos desde a década de 1980 (Magnani, 2003MAGNANI, J. G. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2003.; Zaluar, 2000ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.). Contudo, o que parece estar aumentando nos últimos anos é uma reconstrução, ainda que retórica, de um espírito de solidariedade pelo sofrimento e opressão a que estão sujeitos todos que habitam essas regiões (Fontes, 2021FONTES, L. Trabalhadores e periféricos: identidades em (des)construção nas periferias de São Paulo*. E-cadernos CES, n. 36, 15 dez. 2021. Disponível em: http://journals.openedition.org/eces/6649. Acesso em: 27 out. 2022.
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). A alcunha de “otário”, utilizada em alguns contextos para se referir aos trabalhadores que “trabalhavam cada vez mais e ganhavam cada vez menos” presente em outros tempos (Zaluar, 2000ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.), vai se convertendo em rótulos que aproximam e se solidarizam como “sofredor” ou “oprimido”.

“Trabalhadores” e “envolvidos” compartilham os dramas da “quebrada” com alguns agravantes, como diz Kadu: “o pessoal que trabalha sofre pra caralho. Não tem um transporte da hora, não tem uma condução da hora” e acabam perdendo horas por dia na locomoção até o trabalho. De todo modo, o que mais une os jovens da periferia atualmente, para além das condições materiais, é a oposição à repressão que sofrem por parte das forças policiais e do Estado de maneira geral, conforme disse Kadu: “a polícia não trata ninguém bem na favela, nem a senhorinha”.

Sobretudo após os ataques de 2006 promovidos pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) e da resposta violenta das autoridades estaduais, cresceu um discurso por parte do “mundo do crime” paulista em torno de um papel do crime como “resistência a um ‘sistema repressor’ que humilha e reprime os pobres” (Manso; Dias, 2018MANSO, B. P.; DIAS, C. C. N. A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018., p. 143), a partir da apropriação de um jargão desenvolvido nos movimentos sociais que atuaram nas periferias a partir dos anos 1970 e 1980.

Dessa realidade compartilhada emerge outra categoria nativa: a “vida loka”, que procura representar o drama cotidiano das vidas precárias, incertas, sempre no limiar entre a vida e a morte (Hirata, 2010HIRATA, D. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.). Em outras palavras, trata-se de “uma noção capaz de unificar a diversidade de experiências dos jovens, demarcando o campo da comunicação e ação cotidiana entre eles” e que “baliza as interpretações sobre a vida” (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da vida loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012., p. 148). Afinal, todos estão “no corre”, ainda que em atividades bastante distintas.

Assim, é comum que haja uma aproximação retórica entre as agruras pelas quais passam cotidianamente aqueles que estão ou não envolvidos no “mundo do crime”, uma vez que compartilham a falta de estrutura e de oportunidades das periferias e estão sujeitos às consequências da estigmatização de seus territórios.

Consequência direta dessa aproximação e da oposição a um “sistema opressor” pode ser notada na apropriação pelo “mundo do crime” de categorias vindas de outras esferas de justificação, como o mundo do trabalho, da política, da família e da religião, segunda forma de justificação e aproximação das realidades que pude identificar.

Além de se autodenominarem um “movimento”, o PCC muitas vezes é tratado como “o Partido”, revelando uma aproximação com o mundo da política. O “gerente” da biqueira, como é o caso de Kadu, se subordina ao “patrão”, como são tratados os chefes locais do crime, apontando para o caráter econômico da “firma”. Além disso, aqueles que são “batizados”7 7 O batismo e a necessidade de ter um “padrinho” para se tornar membro do PCC pode remeter a questões de ordem religiosa, mas também pode ter sido cópia de nomenclaturas típicas de organizações mafiosas. pelo PCC são chamados “irmãos” – em uma aproximação com a questão familiar, tão importante para a formação ética dos “trabalhadores”, mas também da religiosidade evangélica, crescente nesses territórios. Aqueles que apenas atuam no crime e agem dentro de suas “leis”, mas não são membros do “Partido” são “companheiros” ou “primos”, como Kadu se identifica, em mais uma associação com a política e com a família.

Nesse aspecto, é interessante notar uma importante diferença entre a forma como o tráfico se organiza em São Paulo e no Rio de Janeiro. Enquanto em terras fluminenses temos a figura do “dono do morro”, que denota certa noção de domínio territorial, em São Paulo, temos uma lógica muito mais empresarial, em que o “patrão” detém poder sobre os pontos de venda de drogas, mas não sobre o território em que eles se situam. “O ‘patrão’ paulista é certamente uma pessoa importante em qualquer bairro das periferias, mas é apenas ‘patrão’, no sentido da relação de contratação que estabelece com seus funcionários” (Hirata; Grillo, 2017HIRATA, D. V.; GRILLO, C. C. Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tempo Social, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 75, 2017., p. 81).

A terceira e talvez mais antiga estratégia usada pelo “mundo do crime” para legitimar seus atos é de ordem material e assistencial. A falta de recursos e a dificuldade em ter acesso a determinados bens é, em geral, a principal justificativa mobilizada pelos que estão envolvidos com atividades ilícitas.

Ser capaz de prover financeiramente seus pares, além de gerar certa “dívida” não monetária e, portanto, impagável, é algo gerador de prestígio e distinção social em situações de precariedade. Consequentemente, pude notar, em diversos relatos, uma preocupação por parte dos criminosos em ajudar os vizinhos prestando assistência material quando necessário. “A comunidade, quando chega, nós dá assistência, tipo assim, remédio, gás, uma mistura…”, disse Kadu.

Em outros casos, essa “ajuda” é mais proativa, como em uma viela na Brasilândia na qual mais de um morador me contou que o asfaltamento do trecho final da rua foi feito “pelo pessoal do tráfico”, pois a prefeitura já havia prometido que o trabalho seria realizado diversas vezes, mas nunca concluíra a obra. Em outro ponto do mesmo distrito, uma moradora relatou que, quando seu filho quebrou o braço e ela precisou de ajuda, pessoas que ela não conhecia, mas que pela sua impressão estavam envolvidas com o crime, se ofereceram para levar o menino ao hospital e, caso precisasse, para comprar remédios.

Desse modo, é possível notar que as organizações criminosas também procuram sustentar sua relação com os demais moradores em valores estimados nessas comunidades, como a reciprocidade, a lealdade e a solidariedade. No entanto, os laços são frágeis, uma vez que a desconfiança é permanente e sempre há o temor de ameaças e sanções ou de cobranças pelo favor prestado.

Diretamente relacionada com essa estratégia de justificação a partir da ajuda comunitária está a colocação daquele que está envolvido com o mundo do crime em uma posição não apenas de “provedor” do território, mas também como dotado de certa honra associada à masculinidade. Isso é expresso por meio do consumo ostentatório de bens de consumo e marcas cobiçadas (Zaluar, 2009aZALUAR, A. Agressão física e gênero na cidade do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 24, n. 71, p. 9-24, 2009a. https://doi.org/10.1590/S0102-69092009000300002
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, 2009bZALUAR, A. Do dinheiro e dos homens no tráfico de drogas. In: WESTPHAL, M. F.; BYDLOWSKI, C. (org.). Violência e juventude. São Paulo: Hucitec, 2009b. v. 1. p. 162-194., 2014ZALUAR, A. Sociability in crime: culture, form of life or ethos? Vibrant, [s. l.], v. 11, n. 2, p. 12-46, 2014.) por boa parte dos jovens e que, portanto, operam como mais um símbolo de distinção e sucesso.

No “mundo do crime”, mas também nas relações patriarcais que seguem dominantes em nossa sociedade, o uso da força e defesa da “honra” daqueles que são “provedores” e “protetores” de suas famílias e de seus pares são meios de assegurar certo status social. Com isso, demostrar sucesso e prestígio por meio de objetos e marcas funciona como forma de impressionar amigos, colegas e vizinhos de maneira geral. É por isso que, apesar de conseguir ganhar mais de R$ 1.500,00 por semana na “biqueira”, Kadu diz que “no corre, o bagulho é louco”, pois “se gasta dinheiro muito à toa”, com “balada, mulher” e bens de consumo, como “óculos, bebidas”, com o único propósito de “ostentar”. Como consequência, ele diz que não consegue guardar “nem um real”.

Assim, para além da relação direta no oferecimento de “ajuda”, essa simbologia do agente criminal como “homem de sucesso”, que se impõe pela força e se destaca em seu papel de provedor do território e na relação com as mulheres, desperta a admiração de parte dos outros meninos e funciona também como legitimador do crime.

A principal mudança operada pelo tráfico de drogas em São Paulo nas últimas décadas e que acabou por se tornar sua principal fonte de legitimação do “mundo do crime” perante o restante dos moradores das periferias de São Paulo está na retórica da “pacificação”, que coloca o “mundo do crime” como uma espécie de “protetor” das “quebradas”, em mais um diálogo com o papel de gênero por eles valorizado. Na conversa com Kadu, ele comparou a realidade atual de São Paulo com o Rio de Janeiro no que se refere à relação entre grupos criminosos:

São Paulo é tranquilo, não é [como] no Rio […]. No Rio, já fui lá no Rio, em Copacabana. Lá é da hora, Copacabana. Agora, nas favelas […]. Lá é… tipo, muitas facção. Guerra declarada… lá é tiro toda hora. Que nem nós tá aqui, não pode ir lá naquela favela lá, tá ligado?

[…]

Tipo assim, fosse lá no Rio, agora, eu não ia tá assim [levanta a camisa pra mostrar que não tem armas na cintura]. Eu ando desarmado pra todo lugar, tá ligado? Lá não, lá é vários caras de fuzil (Kadu, 22 anos, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2015).

A maioria das pessoas que vive nas periferias de São Paulo, mesmo que nunca tenha se envolvido mais diretamente com o crime, sabe da existência de “leis do crime”, em especial da proibição de matar e de roubar na “quebrada”. É o que aparece, por exemplo, em fala do rapper Mano Brown, que menciona um “extermínio temporariamente bloqueado por leis que não são do governo”,8 8 Entrevista “Mano Brown” – Parte 2 – Afropress.com, 2009 – Entrevista coletiva no encerramento da Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PQ4dP2evx9w ou de Douglas, que, em conversa anterior, disse que antigamente “não tinha lei”, mas que “hoje, tem o PCC” e que é preciso “falar com os caras primeiro pra saber se alguém merece morrer”.

Não é à toa que Kadu constrói seu discurso a partir da oposição com a realidade do Rio de Janeiro, que ele ouviu falar por amigos ou pela mídia. A partir dessa comparação, ele afirma que, em São Paulo, o crime passou por uma “revolução” nos últimos anos. Enquanto no Rio “tem muita facção”, em São Paulo “tem a família hoje né, que é o comando” e “o comando é um só, em São Paulo todo… o salve é geral pra todos”. Kadu concluiu seu raciocino batendo no peito e esticando o braço e os dedos indicador e médio: “Paz, né… demorou, paz”.

Essa “revolução” pode ser resumida na máxima: “paz entre os ladrões e guerra contra o sistema” e que busca unificar retoricamente o “mundo do crime” a fim de minimizar a ocorrência de mortes em disputas internas, colocando o “sistema” ou os agentes de segurança do Estado como inimigos a serem enfrentados. Duas frases de Kadu ilustram essa realidade: “Antes, morria muito, era ladrão matando ladrão. Aí isso aí não tem mais agora, tá ligado?” e “Governo, pra mim, é bala nesses cara aí.”

Essa “revolução” é garantida principalmente por meio do “proceder”, de “normas de procedimento” que servem de baliza para as condutas dos que estão envolvidos com o crime dentro e fora dos presídios. Para além da definição de um conjunto particular de regras de comportamento e modos de agir, a ideia de “proceder” situa também essas normas a partir de determinada procedência social: a “quebrada”. Assim, “ter proceder” significa adotar as regras de procedimento e ter uma origem social comum (Malvasi, 2012).

Quem está em “sintonia com o comando”, “corre pelo certo”, “anda reto” e tem uma “caminhada” dentro dessas regras é considerado um “cara de proceder”. Aqueles que fogem da “disciplina” estão sujeitos a variadas punições, a depender da gravidade do caso que podem ir das “ideias” à morte, passando pelo espancamento ou pela expulsão do indivíduo que tenha descumprido as regras.

Quando perguntei a Kadu o que eles faziam, caso alguém fosse pego roubando em sua região, ele me disse: “se nós pegar, nós leva pras ideia, pra dar uma amassada”, sugerindo que as “ideias” podem incluir reprimendas físicas, o “dar uma amassada”. Outra moradora do Jardim Ângela me contou que soube que uma pessoa que havia assaltado o comércio dos seus pais e outras lojas do bairro acabara morta pelos traficantes da região. Nota-se, portanto, que a punição estabelecida pelo “mundo do crime” depende não apenas do delito, mas também de outros fatores, como a reincidência do indivíduo e seu “proceder” de maneira geral.

A força do PCC reside, em grande parte, em sua capacidade de promover, ao menos do ponto de vista retórico, uma promessa de “um mundo do crime pacificado”, no qual a vida de seus integrantes, familiares e moradores dos bairros em que a facção atua seria significativamente melhorada (Manso; Dias, 2018MANSO, B. P.; DIAS, C. C. N. A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018.). Desse modo, a forma de garantir “justiça” e “disciplina” por parte do “mundo do crime” ocorre a partir da quebra dessa própria disciplina, revelando uma contradição intrínseca em sua retórica. Em nome da “paz entre os ladrões”, diversas prescrições são suspensas e imperativos são torcidos, manipulados e disputados (Biondi, 2009BIONDI, K. Junto e misturado: imanência e transcendência no PCC. 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2009.).

A violência segue presente como possibilidade permanente no “mundo do crime” paulista, como uma “ferramenta de trabalho” que pode ser acionada sempre que o “proceder” e a “disciplina” não forem seguidos, mas o enfrentamento entre “ladrões” ou com as forças policiais já não é considerada a opção mais “inteligente” na maior parte dos casos (Malvasi, 2012, p. 95). No discurso de Kadu, essas práticas visam evitar, além do risco para suas próprias vidas, que “o trabalhador, que é inocente, também seja oprimido”.

Desse modo, seja em relação a evitar os confrontos com policiais ou outros traficantes, seja em relação à tentativa de coibir roubos e furtos, há uma preocupação, ao menos retórica, em evitar que a vida dos “trabalhadores” seja prejudicada pelas atividades do “mundo do crime”, constituindo-se como importante fonte de busca da legitimidade e para a justificação de suas atividades.

Desse modo, seja por uma aproximação da realidade de todos que compartilham – a “quebrada” –, da expressão de “sucesso” e de uma masculinidade provedora e protetora valorizada por parte da população ou pela promessa de “paz”, o “mundo do crime” tem tentado encontrar diferentes estratégias para justificar sua atuação. No entanto, a moralidade mobilizada pelo “mundo do crime” na justificação de seus atos é construída internamente às organizações criminais e opera em tensão e em interação com a moralidade dos moradores da vizinhança, e em conflito com o aparato do Estado. Cumpre, portanto, olharmos para a forma como os “trabalhadores” enxergam, interpretam e lidam com o “mundo do crime” no seu cotidiano.

“TRABALHADORES” E “ENVOLVIDOS NA VIDA DO CRIME”: oposição, convívio, medo e respeito

É verdade que a oposição entre “trabalhadores” e “bandidos” nas periferias urbanas do Brasil nunca foi totalmente rígida e, no plano social, essa segregação nunca foi completa. No entanto, no plano moral e na construção da identidade e da dignidade dos que habitam as periferias da cidade, essa oposição desempenhou papel central ao logos dos anos 1970 e 1980, principalmente, de onde emergiram as identidades de “trabalhadores” e “bandidos” (Zaluar, 2000ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.).

Desse modo, a forma como se constroem as relações e visões entre “trabalhadores” a respeito dos que estão “envolvidos” em atividades criminais tem um componente geracional bastante marcante. Para quem tem cerca de 30 ou 35 anos de idade ou é mais jovem do que isso e nasceu e cresceu nas periferias de São Paulo, a convivência em algum ponto da vida com os que estão “evolvidos na vida do crime” é praticamente inevitável, como frisado anteriormente.

A mudança nas formas de identificar os criminosos nessas regiões, sobretudo traficantes de drogas, é também reflexo dessas mudanças. Isso não significa que a figura do “bandido” tenha desaparecido do imaginário dos habitantes das periferias. Ela segue fortemente presente sobretudo quando se quer ressaltar os aspectos negativos do crime e é majoritária entre os mais velhos. O uso do termo, contudo, é significativamente menor entre os mais jovens e vem sendo substituído pela ideia de “envolvimento” com o crime. Desse modo, sai de cena a noção mais essencializada do “bandido” como figura fundamentalmente negativa a ser extirpada do convívio social para a entrada da figura daqueles que estão “envolvidos com o mundo do crime”, cuja “opções de vida” são, em parte, “justificáveis” para alguns moradores da região.

Pretendo apresentar as relações entre “trabalhadores” e “envolvidos no mundo do crime” em linha com a realidade dessa nova configuração que emerge a partir de meados dos anos 1990, fugindo das binariedades e dos maniqueísmos estanques. Para esta seção, em vez de me basear em uma cena etnográfica específica, optei por olhar para uma pluralidade de conversas, entrevistas e situações de campo que vivenciei, o que me permitiu analisar casos diversos e, por vezes, opostos no que se refere às moralidades em jogo.

A partir de meus dados e amparado em outras leituras teóricas, identifiquei cinco leituras morais possíveis por parte dos “trabalhadores” a respeito dos “envolvidos no mundo do crime” que serão detalhadas a seguir. São elas: a) oposição e limpeza simbólica; b) medo e desconfiança; c) reconhecimento da centralidade do PCC na redução da criminalidade; d) respeito e negociação; e e) humanização dos que estão “envolvidos”.

A primeira forma de relação entre “trabalhadores” e aqueles que estão no “mundo do crime”, notadamente mais marcante entre pessoas com mais de 40 anos de idade, é a já conhecida oposição entre “trabalhadores” – ou, mais recentemente, “cidadãos de bem” – e “bandidos”/“vagabundos” (Bueno et al., 2016BUENO, S. et al. Excluir para legitimar: a disputa dos significados da segurança pública nas políticas de participação em São Paulo. In: OLIVEIRA JUNIOR, A. (Ed.). Instituições participativas no âmbito da segurança pública: programas impulsionados por instituições policiais. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.; Zaluar, 2000ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.).

Para aqueles cuja identidade e subjetividade foram construídas em parte sobre essa oposição, o assunto do “mundo do crime” é tratado, em geral, como algo distante de suas realidades. Trata-se de algo que “a gente ouve falar, mas eles ficam entre eles”. Com isso, busca-se efetuar uma espécie de “limpeza simbólica” (Silva; Leite, 2007SILVA, L. A. M.; LEITE, M. P. Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas? Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 3, p. 545-591, 2007.) tanto de si próprios e de suas famílias quanto de seus bairros.

É isso que aparece, por exemplo, nas falas de Cida e de Nelson, dois de meus interlocutores na Brasilândia, que afirmam: “graças a Deus, meus irmãos são tudo trabalhador”; e que “a comunidade sempre foi de gente ordeira, gente trabalhadora”; e que os “marginais […] depois vieram e se infiltraram pra se esconder”. Com isso, esses “trabalhadores” procuram “afastar-se do mundo do crime, reivindicando não serem identificados com os criminosos, enfatizando sua natureza ordeira e pacífica e os padrões de moralidade” publicamente tidos como “corretos” (Silva & Leite, 2007SILVA, L. A. M.; LEITE, M. P. Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas? Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 3, p. 545-591, 2007., p. 574).

Nesse sentido, a reclamação mais comum que ouvi, em especial de moradores mais velhos, com relação à atuação do “mundo do crime” em seus bairros se referia aos chamados “pancadões”, bailes funk que acontecem em ruas das periferias paulistanas. Para além da reclamação com relação ao som alto nas portas de suas casas, aqueles que se queixaram de tais práticas costumam associá-los ao tráfico e ao consumo de drogas, atividades altamente condenáveis em suas visões. A imagem que buscam transmitir desses eventos é de um espaço que representaria a decadência moral das pessoas e do bairro como um todo. Nas descrições que ouvi desses interlocutores, além da venda e do uso de drogas e de muitas vezes afirmarem categoricamente que eles são organizados por traficantes, foram relatadas outras práticas ilegais ou condenáveis do ponto de vista moral, como a prostituição, a exploração sexual infantil e o consumo de álcool e outras drogas por crianças e adolescentes.

Para as gerações seguintes, porém, que cresceram em meio à “expansão do mundo do crime” e que conviveram em diferentes níveis de proximidade com traficantes e outros criminosos, essa oposição radical com relação aos “bandidos” deixa de fazer sentido. Desse modo, distintas formas de relação e de visão a respeito dos que estão “envolvidos” em atividades ilícitas são construídas.

O primeiro ponto a esse respeito que deve ser ressaltado concerne a um reconhecimento mais ou menos disseminado nas periferias em torno do papel que a hegemonia do PCC dentro do crime organizado em São Paulo teve na redução dos homicídios nos bairros periféricos. Esse reconhecimento aparece nas falas de rappers e artistas da periferia, e do meu interlocutor, Douglas, mencionadas anteriormente, mas também nos relatos de muitos outros moradores e militantes de causas sociais, como padre Jaime, importante liderança política e religiosa da região do Jardim Ângela:

Olha, eu tenho que dizer que o crime organizado ajudou muito a diminuir a violência. Tinha aqui, por exemplo, os Ninjas e os Bronx. Eram duas quadrilhas pesadas de Santo Amaro e [Jardim] Kagohara […] de cima das lajes eram tiro de um bairro para outro. Agora, o PCC modificou tudo esses pequenos grupos. Então você não tem mais os conflitos entre eles, entre os pequenos grupos, as disputas pela região, né? Assim, tá tudo organizado (Padre Jaime, 71 anos, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2017).

As interpretações dos demais moradores a respeito das razões para esse “controle” dos homicídios são variadas, desde a redução dos conflitos entre pequenas gangues rivais, como na fala do padre Jaime, passando pelos “acertos” com policiais e por uma busca ativa por parte do PCC em reduzir os conflitos e as mortes, como na fala de Thomás reproduzida a seguir, e chega nas proibições de matar e roubar na “quebrada” a partir de um “código de ética” entre os criminosos, como aparece na fala de Jurandir, que vem em seguida.

[…] eu acho que [o PCC] teve muita influência sim, eu concordo. O PCC se estruturou de um jeito que ele não quer confusão. Quer vender lá a sua farinha, ganhar seu dinheiro ali, é um comerciante […]. Ele está trabalhando com um produto irregular, mas é um comerciante também. Então, ele não quer confusão ali. Então, se começa a acontecer muita coisa, eles vão usar o pessoal do crime para acabar com aquilo (Thomás, 27 anos, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2016).

Eu te diria que em dados momentos as coisas só não são piores – é até estranho eu dizer isso, né? – Mas tem horas que as coisas ainda não são piores, por conta da atuação desse próprio pessoal [do crime]. Eles têm lá um tribunal de ética entre eles, que eles estabelecem algumas regras que os caras têm que seguir, então não pode matar, e roubar só na outra quebrada, entendeu? Não pode roubar na sua quebrada. Então eu acho que isso aí acaba minimizando as coisas um pouco pra gente, porque, se dependesse só da ação da polícia, eu acho que as coisas ainda seriam piores (Jurandir, 47 anos, Jardim Ângela depoimento ao autor, 2016).

Dessa forma, em que pese as críticas e a consciência de que as ações do PCC ou de facções criminosas são “erradas” e ilegais, há um reconhecimento relativamente disseminado de que o “mundo do crime” desempenha funções no controle da criminalidade. Na visão dos demais moradores das periferias, não se trata, portanto, de defender as práticas criminais, mas de reconhecer o papel ativo que o próprio “mundo do crime” tem em manter a criminalidade dentro de determinadas regras.

De outro lado, é inevitável que a convivência com a violência, ainda que velada, produza medo. Em um “mundo” em que o uso da força sempre pode ser um recurso em última instância, o clima que muitas vezes se estabelece nas periferias é de medo, tanto com relação ao “mundo do crime” quanto à polícia. Se há o temor de ser assaltado quando se nota um motoqueiro vindo em sua direção à noite, como me foi relatado por diversas pessoas, há também um medo semelhante quando se avista uma viatura policial, como apontam os depoimentos abaixo:

Nossa, teve toque de recolher onde eu moro faz pouco tempo, que vive tendo essas chacinas. Dá um louco, matam um policial e eles matam sete, mano, e aí você não pode sair de casa. Então, nossa, passa carro da polícia assim, eu nem vou à igreja, mas eu rezo, porque a gente não se incomoda tanto com os traficantes, eu acho, ou com essas coisas, principalmente o pessoal que nasceu e cresceu aqui que é da comunidade, porque você sabe mais ou menos quem são essas pessoas. Se você não faz uma ideia de quem elas são, tipo… tem alguém próximo de você que sabe, e eles sabem que você cresceu ali, né? Eles conhecem. Às vezes conhecem você etc., então eles sabem que você mora lá, geralmente não acontece nada com você, né? Mas com a polícia não, a polícia eu não conheço esses caras. Eu não sei se eu entrar no carro se eu vou sair. […] A polícia não é amiga de ninguém não, eles podem ser qualquer coisa, menos amigos da gente (Jéssica, 18 anos, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2016).

Eu acho que a relação com a polícia é de medo, e a relação com o mundo do crime também é de medo, nenhuma das duas são saudáveis. As pessoas obedecem o tráfico, porque a lei que existe dentro desse poder paralelo ela é muito rápida e eficaz, ponto. Mas eu não acho que é um se relacionar bem, não, e meio que tá todo mundo no desespero, e aí acho que ambas são nocivas (Karina, 36 anos, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2016).

O que eu acho mais assim, no geral, conversando com os alunos, é que ninguém gosta da polícia. Essa é a percepção, de que tem medo do tráfico e tem medo da polícia ou, às vezes, até não tem medo do tráfico e tem mais medo da polícia, isso é uma percepção geral dos alunos (Andressa, 30 anos, Brasilândia, depoimento ao autor, 2016).

Não é coincidência que os três depoimentos apresentados acima são de mulheres. O ideal de masculinidade descrito na seção anterior, associado às ideias de provimento, proteção e honra, reproduzido no “mundo do crime” e por policiais, amplia a sensação de insegurança por parte das mulheres, uma vez que, além do risco de serem vítimas de furtos e roubos, há também o risco de assédio, estupro ou outras formas de violência física, psicológica e sexual, inclusive no ambiente familiar.

Desse modo, há, por um lado, um reconhecimento de que a organização do “mundo do crime” em torno do PCC desempenhou um importante papel na redução de homicídios na região e uma visão de que não há interesse, por parte dos criminosos, em atrapalhar ou ameaçar a vida dos que vivem nas periferias, até para evitar que seus próprios “negócios” sejam prejudicados. Por outro, há uma permanente sensação de desconfiança e medo com relação ao “mundo do crime”, uma vez que se sabe que o recurso à força pode sempre voltar a ser usado em caso de necessidade.

Em paralelo, é possível observar o crescimento de Organizações da Sociedade Civil (OSC) e de projetos sociais nas periferias de São Paulo. Muitas dessas entidades nasceram ou foram impulsionadas justamente pelo aumento dos índices de criminalidade nos anos 1990 e pelo desejo dos próprios moradores de oferecer alternativas de educação, cultura e lazer para crianças e jovens da região. Essas organizações com frequência atuam em parceria com o poder público e são, em grande medida, originárias de movimentos socais constituídos nas décadas de 1970 e 1980 que passaram por um processo de institucionalização nas décadas seguintes.9 9 Para um detalhamento desse, processo ver Fontes (2018, 2020a).

Diante desse contexto, poderíamos supor que a relação entre o “mundo do crime” e essas organizações sociais seria conflituosa, uma vez que o objetivo explícito dos projetos desenvolvidos é retirar esses “meninos” da “vida do crime” e, desse modo, disputar os “corações e mentes” de crianças e adolescentes. Contudo foi possível notar, ao longo da pesquisa, que essa relação é de “respeito” e, em alguns casos, de “negociação”, como relevam diversos depoimentos de gestores desses serviços que colhi. Os motivos para essa relação ser, até certo ponto, amistosa são diversos. O primeiro deles é justamente o convívio histórico no bairro e a relação de respeito que foi se estabelecendo.

O traficante tá lá…tem amizade com ele? Tem porque você é obrigado a ter, a gente é obrigado a ter, ele tá lá e ele chegou primeiro que você. Que nem aqui, a gente tem várias biqueiras por aqui que já tão aqui desde mil novecentos e bolinha, eu cheguei entrei no meio deles, eu vou expulsar eles daqui? Não, tem que conviver junto. A gente tem o respeito. Eu não entro na dele, e ele não entra na minha, então ele não vem aqui querer botar ordem, eu também não vou botar ordem lá. Tem algum problema chegamos junto sentamos, conversamos e se acertamos (Reginaldo, 42 anos, Presidente de OSC, depoimento ao autor, 2016).

Além desse respeito advindo da necessidade de convívio e do compartilhamento do território, parece haver, por parte dos próprios envolvidos com o “mundo do crime”, uma visão positiva a respeito da importância desses serviços para a comunidade, em especial dos serviços que têm como alvo crianças, adolescentes e jovens, como é o caso dos Centros para Crianças e Adolescentes (CCA) e dos Centros para Juventude (CJ). De acordo com meus interlocutores que fazem a gestão desses serviços, haveria, inclusive, uma preocupação por parte dos que estão na “vida do crime” em evitar que seus filhos sigam pelo mesmo caminho.

as organizações sociais, eles [envolvidos com o crime] respeitam, porque normalmente as organizações, elas são as que atualmente cuidam dos filhos [deles], né? Então, minimamente podemos pensar assim: “Nós estamos cuidando dos filhos deles”. Então, é como qualquer pai, qualquer mãe. (Rafael, 31 anos, assistente de direção em um Centro para Crianças e Adolescentes – CCA, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2016).

o que eu acho interessante é que a galera aqui, que tem essas atividades diferenciadas [envolvimento com o crime], algumas crianças são atendidas minhas, são filhas e os pais confiam no nosso trabalho: “Olha, você tem que respeitar a tia”. Tem uns pais que falam: “Olha, tia, eu faço isso, mas ele não vai fazer”. […] Então, assim, é um ponto que eles respeitam e acham importante a criança estar… […] acontece alguma coisa, eles vêm perguntar se estamos precisando de alguma coisa, “estamos por aqui”. Por exemplo, o pai esquece a criança ou a mãe a gente vai entregar na casa a criança, e a gente entra, tem um livre acesso de entrar, sair, eu acredito que é uma cordialidade, o dia que não dá: “Olha, tia, é melhor você não vir”. Eu acho muito importante isso, porque, assim, não é que vá tapar os meus olhos, eles respeitam o trabalho que nós desenvolvemos a ponto de que tem coisas que é preferível você não ver (Patrícia, 35 anos, gestora de um Centro para Crianças e Adolescentes – CCA, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2016).

Eu faço a visita normal, eles [envolvidos com o crime] sabem quando eu tô chegando e sabem quando eu tô saindo, e os meninos também que têm lá hoje… Então, tipo assim, os que foram criança nossa antes, hoje são de lá, então, quando eu chego lá, eles já vem: “Oh tia!”. Aí eles me abraçam, perguntam: “Tá tudo bem, tá precisando de alguma coisa?” (Julieta, 45 anos, gestora de um Centro para Crianças e Adolescentes – CCA, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2016).

Como apontam os relatos, por meio de diversos episódios, a relação dos serviços sociais como o “mundo do crime” é pautada pela inevitabilidade do convívio e na ideia de “respeito”, seja pelo trabalho desenvolvido por essas instituições ou pela própria figura do assistente social.

Por sua vez, os gestores desses serviços, a maioria moradores de longa data das regiões, sabem da importância de manter essa relação de “cordialidade” com os que estão na “vida do crime”. São cientes de que o “mundo do crime” acumulou poder nesses territórios, inclusive no controle sobre a vida e a morte de seus habitantes. Assim, acabam por firmar um acordo tácito de convivência pacífica, ainda que orientados por princípios morais diferentes e, por vezes, opostos.

Da possibilidade de convívio pacífico, respeito e negociação e da noção de que não se trata propriamente de uma “escolha” por parte de um sujeito essencialmente “mau”, advém outra. Trata-se da ideia de que quem está “envolvido com o crime”, em especial com o tráfico de drogas, é “um trabalhador como outro qualquer”, que está “vendendo sua mercadoria”, ainda que sabidamente ilegal. Nesses casos, a pobreza e a falta de alternativas econômicas são constantemente mobilizadas como justificativa para a entrada no “mundo do crime”.

Além disso, como muitas vezes os traficantes são parentes, vizinhos ou conhecidos próximos, opera-se um processo em que se busca “re-humanizar” ou “re-moralizar” o indivíduo, com vistas a acrescentar características positivas ao fato de estarem no “mundo do crime”. Desse modo, compreende-se que, “mesmo adotando uma forma de vida reprovável, a pessoa teria características que a tornam ‘gente como a gente’, e não um monstro moral” (Silva; Leite, 2007, p. 575).

sempre avaliei que o crime era outra profissão. Como eu resolvi ser artista, ele resolveu ser traficante, porque aí foram as opções dadas, então eu sempre tentei não julgar nesse critério, pela nossa realidade mesmo. Então, sempre jogamos bola e tal, daí eu ia para os palcos e eles iam vender alguma coisa (Rafael, 31 anos, Jardim Ângela, depoimento ao autor, 2016).

É isso… quem trabalha na linha de frente, eu falo “trabalha”, porque eles vão por causa da grana, pra sobreviver no tráfico, são meninos muito jovens de famílias muito pobres seduzidos pelo consumo e são eles que morrem (Luciana, 31 anos, Brasilândia, depoimento ao autor, 2016).

Mas é inevitável. A gente poderia tá envolvido, entendeu? Por quê que a gente não tá envolvido? Porque… eu não sei. Ironia do destino, eu não sei… eu me pergunto todo dia isso! Que poderia tá ganhando muito mais envolvido nisso do que hoje, por exemplo, cantando. […] Ele [traficante] ainda é um ser humano. Mas é que essa foi a forma que ele encontrou pra sobreviver, porque todo mundo virou as costas pra ele, e aí é fator social histórico (Anderson, 18 anos, Brasilândia, depoimento ao autor, 2016).

Essa visão, ao que tudo indica minoritária nas periferias paulistanas, poder ser encontrada sobretudo entre militantes de organizações sociais ou ligadas à defesa dos direitos humanos e entre jovens, especialmente aqueles que atuam e participam de movimentos e coletivos culturais.10 10 Para um detalhamento deste tipo de mobilização política mais recente nas periferias paulistas ver Fontes (2018; 2020a; 2020b). Apesar disso, há um esforço em não se mostrar condescendente com as práticas criminais. Mais do que aceitação, há certa resiliência e resignação por parte desses sujeitos, à medida que não encaram o crime como defeito moral, mas como algo que decorre das condições sociais em que vivem.

Por fim, é preciso destacar um ponto que apareceu durante a pesquisa de campo que diz respeito a uma sensação de que o PCC estaria “perdendo o controle” da “quebrada”, em especial com relação aos roubos e furtos nas periferias. Para alguns, como uma interlocutora do Jardim Ângela, não teria “lógica” no que estava acontecendo em sua região, pois, apesar de ouvir dizer que havia “alguns irmãos e primos” no bairro, estaria ocorrendo muitos assaltos, o que não acontecia antigamente. Tal ponto se relaciona diretamente com o aumento nas quantidades de furto e roubo apresentadas anteriormente neste texto.

As explicações que encontrei para isso são variadas. Um interlocutor do Jardim Ângela me disse que hoje “já não temos tantas pessoas com capacidade de segurar o crime”, como se uma espécie de mudança geracional ou o afastamento de pessoas mais antigas – por prisão, morte ou mudança de região de atuação – fosse responsável por esse aumento recente na criminalidade. “O bagulho piorou, porque quando eram os malandros mais velhos” havia maior grau de controle por parte do “mundo do crime”, disse um interlocutor da Brasilândia. Hoje, no entanto, apesar da retórica da disciplina, os próprios envolvidos com a “vida do crime” não estariam respeitando tais regras.

Algo na mesma linha foi dito por outros jovens com quem mantenho contato na Brasilândia. Segundo eles, a troca dos responsáveis pelas biqueiras tem ocorrido com mais frequência, e pessoas de outras regiões da cidade têm sido deslocadas par suas regiões. Esse fato estaria diminuindo o respeito que o “mundo do crime” tem perante os moradores das periferias.

Outro interlocutor da Brasilândia me disse que, “antigamente, tinha aquele lance tradicional das quebradas”, em que “um ou dois traficantes meio que tomavam conta da região”, época em que, para ele, “tinha um pouco mais de disciplina”. Contudo, “de um tempo pra cá, o bagulho tá meio bagunçado”, pois “a molecada da quebrada” estaria “roubando a própria quebrada”, o que incluiria celular nas ruas, mas também itens dentro das casas de moradores dos próprios bairros.

O ponto central, para os propósitos deste texto, é que essas queixas dos moradores e os próprios dados a respeito do nível permanentemente alto de crimes contra o patrimônio, além das eventuais chacinas e vinganças promovidas por criminosos ou por grupos de policiais revelam a fragilidade do equilíbrio encontrado pelo PCC para garantir a “paz entre os ladrões”, parte central de sua estratégia de justificação nas periferias paulistanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A disputa simbólica entre regimes normativos distintos é um elemento central nas periferias urbanas do Brasil contemporâneo. Os sujeitos “envolvidos com o mundo do crime são alvos de críticas diversas por parte da “opinião pública” e de seus vizinhos. Por isso, necessitam pragmaticamente apresentar justificativas para suas condutas.

No caso de São Paulo, o “mundo do crime” se caracterizou por estabelecer um domínio territorial que não repousa em uma dominação apenas fundamentada na força física, por meio de armas ostensivamente expostas ou usadas com frequência, como é comum ouvirmos relatos sobre o domínio nos morros cariocas. Ainda que pesados armamentos como pistolas, fuzis e até mesmo granadas ou outros explosivos estejam presentes nas periferias e estas armas sejam o fundamento principal de autoridade, elas não são exibidas publicamente, sendo utilizadas apenas nessas situações-limite ou para “corres” específicos, como roubos e assaltos ou execuções, sempre após um “debate”.11 11 “Debates” é o modo como são chamados os julgamentos promovidos pelos próprios criminosos, a partir de consultas a membros do PCC que estão dentro das prisões. Para mais detalhes, ver Feltran (2007).

No dia a dia das periferias, contudo, esses grupos tendem a utilizar outras práticas menos coercitivas e de formulações discursivas que buscam consolidar o “mundo do crime” como polo em torno do qual diversas relações sociais gravitam e encontram fonte de legitimação social. Essas práticas variam desde a construção de uma narrativa que aproxima as condições de vida de todos que habitam as periferias, passa pela adoção de determinadas normas de comportamento e pela garantia da “paz” nas “quebradas” e chegam à oferta de ajuda material aos que necessitam e de “proteção” e “justiça” aos que a reivindicam. Assim, o “mundo do crime” tem procurado combinar coerção e consentimento como forma de se fortalecer e se legitimar nas periferias de São Paulo.

Não se trata de medir o “sucesso” das estratégias de justificação, mas de encontrar afinidades eletivas, enraizamento e conflitos entre essas moralidades em outros tempos antagônicas. Nesse sentido, a visão exposta pelo “mundo do crime” de que a “quebrada é a mesma”, na medida em que o sofrimento e opressões sofridos por todos que habitam as periferias da cidade seriam próximos ou equivalentes parece encontrar forte ressonância entre “trabalhadores”, sobretudo os mais jovens.

Da mesma forma, a visão de que São Paulo hoje vive uma realidade “pacificada” graças, sobretudo, às práticas adotadas pelo PCC também é bastante disseminada. Essa visão, elaborada de forma comparativa com um passado relativamente recente de pouco mais de 20 anos atrás ou com o que é noticiado a respeito de outras cidades do Brasil, contribui fortemente para a possibilidade de uma postura de negociação e respeito, observado entre projetos sociais e organizações que atuam nesses territórios.

De outro lado, permanecem posturas de medo e desconfiança, além de uma visão condenatória mais veemente diante das atividades criminais. No entanto, essas duas posturas apresentam perfis sociais distintos. O medo e a desconfiança aparecem com mais frequência, nesta pesquisa, entre mulheres, o que mostra que, se a masculinidade representada pelo crime – e por vezes pela polícia – pode ser bem vista entre parte dos homens, entre as mulheres, ela é fortemente rejeitada e temida. Com relação à condenação moral, que segue opondo os valores – e, por vezes os direitos – de “trabalhadores/cidadão de bem” e “bandidos/vagabundos”, ela aparece com mais intensidade entre pessoas mais velhas e formadas em dinâmicas sociais presentes nas periferias nas décadas de 1970 e 1980, ou seja, antes da “expansão do mundo do crime”.

Em que medida seria possível afirmar que pessoas mais velhas tendem a manter uma oposição moral com o “mundo do crime”, mulheres tendem a ter uma visão de medo e desconfiança, gestores e agentes de projetos sociais tendem a guardar uma relação de respeito e negociação, e jovens e militantes de organizações de direitos humanos tendem a humanizar os “envolvidos no mundo do crime”? Apesar do uso de métodos mistos na pesquisa aqui apresentada, a prevalência é do viés etnográfico e, portanto, qualitativo. Com isso, foi possível levantar algumas hipóteses. Cabe a futuras investigações quantitativas e qualitativas testá-las, aprofundá-las e, eventualmente, confirmar seu alcance.

  • 1
    Embora seja uma identidade que vem perdendo força nas periferias paulistas nas últimas décadas (Fontes, 2021), utilizo o conceito de “trabalhadores” devido à sua importância histórica para a oposição moral e identitária que foi construída nesses territórios, conforme vastamente documentado na literatura (Zaluar, 2000; Feltran, 2007).
    O autor agradece Gabriel Feltran e Fernanda Lima e Silva por comentários feitos a versões anteriores deste texto. Eventuais equívocos são obviamente de minha inteira responsabilidade.
  • 2
    A Secretaria de Segurança Pública não divulga taxas por 100 mil habitantes para os índices de criminalidade nos bairros e distritos das cidades, pois as áreas abarcadas pelos distritos policiais diferem das regiões administrativas da cidade para os quais é possível obter uma estimativa populacional. Dessa forma, os dados para os homicídios, furtos e roubos nos distritos pesquisados serão apresentados em termos absolutos. Também devido ao fato de os distritos policiais diferirem consideravelmente das áreas administrativas, para chegar aos dados apresentados aqui, foram agrupados, em cada uma das regiões, os dados relativos a três distritos policiais que abarcam os bairros onde desenvolvi a pesquisa, mas que também abrangem pedaços de distritos vizinhos. Para o que estou chamado de “região do Jardim Ângela”, somei os dados dos distritos policiais 100 – Jardim Herculano; 92 – Parque Santo Antônio; e 47 – Capão Redondo. Para a “região da Brasilândia”, utilizei os dados dos distritos 72 – Vila Penteado; 74 – Parada de Taipas; e 45 – Vila Brasilândia. Ainda que o fato de não dispormos de dados relativos à população atrapalhe uma comparação mais detalhada entre as duas regiões, ele não prejudica a observação do movimento mais geral da criminalidade.
  • 3
  • 4
    Os nomes dos interlocutores foram alterados para preservar a privacidade das pessoas. A idade dos interlocutores se refere ao momento da realização das entrevistas, sobretudo 2015 e 2016.
  • 5
    A diferenciação feita por Douglas entre quem está efetivamente “envolvido com o mundo do crime” e quem mantém apenas alguma relação pontual com essas pessoas, mesmo que obtendo alguma vantagem econômica, como é o caso dele, é digna de nota.
  • 6
    “Biqueira” é como são conhecidos os pontos de venda de drogas em São Paulo. Mais recentemente, tem sido usada também a denominação “lojinha”.
  • 7
    O batismo e a necessidade de ter um “padrinho” para se tornar membro do PCC pode remeter a questões de ordem religiosa, mas também pode ter sido cópia de nomenclaturas típicas de organizações mafiosas.
  • 8
    Entrevista “Mano Brown” – Parte 2 – Afropress.com, 2009 – Entrevista coletiva no encerramento da Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PQ4dP2evx9w
  • 9
    Para um detalhamento desse, processo ver Fontes (2018FONTES, L. O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo. 2018. Tese (Doutorado em sociologia) – Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018., 2020aFONTES, L. Beyond the institutional order: culture and the formation of new political subjects in the peripheries of São Paulo. Latin American Perspectives, [s. l.], v. 47, n. 5, p. 79-93, 22 jun. 2020a.).
  • 10
    Para um detalhamento deste tipo de mobilização política mais recente nas periferias paulistas ver Fontes (2018FONTES, L. O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo. 2018. Tese (Doutorado em sociologia) – Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.; 2020aFONTES, L. Beyond the institutional order: culture and the formation of new political subjects in the peripheries of São Paulo. Latin American Perspectives, [s. l.], v. 47, n. 5, p. 79-93, 22 jun. 2020a.; 2020bFONTES, L. Da formação cultural à mobilização social: espaços de formação e mobilização ao longo de três gerações nas periferias de São Paulo. Lua Nova, São Paulo, n. 109, p. 51-101, abr. 2020b.).
  • 11
    “Debates” é o modo como são chamados os julgamentos promovidos pelos próprios criminosos, a partir de consultas a membros do PCC que estão dentro das prisões. Para mais detalhes, ver Feltran (2007)FELTRAN, G. Trabalhadores e bandidos: categorias de nomeação, significados políticos. Revista Temáticas, [s. l.], v. 30, p. 11-50, 2007..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2020
  • Aceito
    30 Set 2022
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