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SUJEIÇÃO E SERVIDÃO NO TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRANSPORTE: um estudo de caso no Rio de Janeiro

SUBJECTION AND SERVITUDE IN THE WORK IN TRANSPORTATION DIGITAL PLATFORMS: a case study in Rio de Janeiro

L’ASSUJETTISSEMENT ET LA SERVITUDE DANS LE TRAVAIL SUR LES PLATEFORMES NUMÉRIQUES DE TRANSPORT: un étude de cas à Rio de Janeiro

Resumos

O artigo se propõe a investigar se o engendramento da sujeição social e da servidão maquínica, conforme propostos por Maurizio Lazzarato, auxiliam na compreensão da realidade do trabalho em plataformas digitais de transporte de pessoas no Rio de Janeiro. Para isso, analisam-se qualitativamente quatro entrevistas concedidas a partir de um questionário semiestruturado e discorre-se principalmente sobre as formas de controle pelas empresas de plataforma e as cobranças e motivações pessoais desses trabalhadores, concluindo que o uso da subjetividade consolidada na figura do “empresário de si” somada à dessubjetivação e ao impacto dos signos assignificantes na pré-subjetividade dos indivíduos são elementos importantes e complementares na percepção do objeto empiricamente estudado. O artigo conclui que o homem-máquina da servidão maquínica se perfaz completamente no trabalho em plataforma.

Sujeição Social; Servidão Maquínica; Plataformas Digitais; Subjetividade; Homem-Máquina


The article proposes to investigate whether engendering social subjection and machinic enslavement, as proposed by Maurizio Lazzarato, helps to understand the reality of work on digital platforms for the transport of people in Rio de Janeiro. For this, four interviews were qualitatively analyzed from a semi-structured questionnaire and we discussed mainly the forms of control by the platform companies and the personal self-expectations and motivations of these workers, concluding that the use of the consolidated subjectivity in the figure of the “self-entrepreneur” added to the de-subjectivation and the impact of the assignifying signs in the pre-subjectivity of individuals are important and complementary elements in the perception of the empirically studied object. The article concludes that the machine-man of machinic enslavement is completely accomplished in the platform work.

Social Subjection; Machinic Enslavement; Digital Platforms; Subjectivity; Machine-Man


L’article propose d’examiner si l’engendrement de l’assujettissement social et de la servitude machinique, tel que proposé par Maurizio Lazzarato, aide à comprendre la réalité du travail sur les plateformes numériques pour le transport des personnes à Rio de Janeiro. À cette fin, quatre entretiens ont été analysés qualitativement basées sur un questionnaire semi-structuré et nous avons principalement discuté des formes de contrôle par les entreprises de la plateforme et des attentes de soi et motivations personnelles de ces travailleurs, en concluant que l’utilisation de la subjectivité consolidée dans la figure de “l’auto-entrepreneur” ajoutée à la désubjectivation et à l’impact des signes assignifiants dans la pré-subjectivité des individus sont des éléments importants et complémentaires dans la perception de l’objet empiriquement étudié. L’article conclut que l’homme-machine de la servitude machinique est complètement accompli dans le travail de plateforme.

Subjectivité Sociale; Servitude de la Machine; Plateformes Digitales; Subjectivité; Homme-Machine


INTRODUÇÃO

O trabalho em plataformas digitais assumiu o protagonismo nas discussões acerca do trabalho no século XXI. Ele é costumeiramente apresentado como o futuro deste, pecha – injustamente ou não – colocada tanto por defensores das plataformas digitais quanto por seus detratores.

Este estudo pretende se debruçar criticamente sobre o trabalho realizado nessas plataformas, tendo como referencial analítico as noções de sujeição e servidão desenvolvidas por Maurizio Lazzarato e como base empírica os dados levantados em pesquisa na qual se realizou entrevistas com trabalhadores de plataformas do setor de transporte no Rio de Janeiro.

Parte-se da possibilidade de que essas plataformas digitais, longe de se constituírem como um lugar de emancipação desses trabalhadores, supostamente donos dos seus próprios negócios e patrões de si mesmos, são construções eficazes do neoliberalismo para engendrar a sujeição e a servidão na sociedade.

Para verificar a hipótese, serão tratados os conceitos como desenvolvidos por Maurizio Lazzarato, comparados com os dados levantados por entrevistas feitas a partir de um questionário semiestruturado respondido por quatro trabalhadores do setor do transporte de pessoas mediante cadastro e utilização de plataformas digitais, entre agosto e novembro de 2019.

Conforme Jonker-Hoffrén (2021, p. 67), a utilização dos conceitos de sujeição social, servidão maquínica e signos assignificantes pode ser uma via frutífera para os estudos do trabalho sobre plataformas digitais. Para o autor, as pesquisas sobre plataformas se beneficiariam da utilização de múltiplos métodos, com a conjugação de conceitos teóricos como os empregados por Lazzarato e “estudos de caso com entrevistas ou métodos etnográficos”, levando a empiria a explicações teóricas mais amplas (Jonker-Hoffrén, 2021, p. 80). Para ele, os estudos com métodos interdisciplinares levariam a um entendimento mais profundo sobre a interação entre humanos e plataformas, propondo que sejam realizadas pesquisas com essa abordagem metodológica. Esta é a trilha seguida por esta pesquisa e que demonstra sua relevância e diferença sobre as demais realizadas até agora: relacionar os conceitos de Lazzarato de pesquisas com trabalhadores para conhecer melhor o trabalho em plataforma.

O estudo será dividido em uma primeira parte, em que será realizado um panorama sobre as plataformas digitais, em especial no Brasil, apresentando o estado da arte das discussões acerca do trabalho nessas plataformas. Em uma segunda parte, serão apresentadas as noções de sujeição e servidão de Maurizio Lazzarato. Na terceira, serão analisados os elementos extraídos de levantamento empírico.

AS PLATAFORMAS DIGITAIS E O MUNDO DO TRABALHO

As novidades possibilitadas pela tecnologia digital, aceleradas desde a década de 1970 e exponencializadas pela portabilidade do hardware e a comunicabilidade quase universal pela rede de computadores, têm representado mudanças significativas no mundo do trabalho. As comumente denominadas TIC (Tecnologias da Informação e Computação), como exploraram Ricardo Antunes e Vitor Filgueiras (2020), por outro lado, instrumentalizam um panorama de exploração dos trabalhadores escondido atrás do argumento da neutralidade da tecnologia, potencializando uma tendência muito além da plataformização (Abílio, 2020).

Adrian Todolí Signes (2017) ressalta que, nos últimos anos, o aprimoramento das tecnologias usadas para controle e comunicação permitiu que houvesse uma redução dos custos para descentralizar a realização dos serviços e tarefas. No limite, este modelo é capaz de causar uma atomização do mercado de trabalho, já que muito menos custoso se revela ao empregador o desapego ao modelo tradicional, marcado pelo controle de horários e subordinação caracterizada pelas ordens diretas.

Mais vantajoso se mostra, portanto, que as empresas construam e controlem um ecossistema organizacional por intermédio de plataformas digitais (como se tem visto a partir da proliferação de aplicativos e sites para prestação dos mais variados serviços) pelas quais são dirigidas as pontas do negócio: de um lado comandando todas as etapas da prestação de determinado serviço a partir da sua distribuição a uma multidão de trabalhadores formalmente autônomos e que são remunerados por peça (Huws, 2014HUWS, U. Vida, trabalho e valor no século XXI: desfazendo o nó. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 13-30, 2014.), de outro concentrando cada vez mais os consumidores.

Estes modelos de negócio, no entanto, têm sido tratados como uma espécie de avanço do mercado de trabalho, tidos como o retrato do futuro desenhado pelas startups do Vale do Silício para a criação de mecanismos tecnológicos de gestação de uma nova economia: do compartilhamento. No entanto, o que se verifica de fato é o aprofundamento da precariedade do trabalho ao redor do mundo e a emergência de uma força de trabalho just-in-time na multidão (De Stefano, 2016DE STEFANO, V. The rise of the “just-in-time workforce: on-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig economy”. In: INTERNATIONAL LABOUR OFFICE. Inclusive labour markets, labour relations and working conditions branch. Geneva: ILO, 2016.; Lima; Bridi, 2019LIMA, J. C.; BRIDI, M. A. Trabalho digital e emprego: a reforma trabalhista e o aprofundamento da precariedade. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 325-341, 2019.), transformando o exército industrial de reserva em ativo sob demanda.

Sobre o uso do discurso da economia do compartilhamento, Murilo Oliveira (2019)OLIVEIRA, M. C. S. O Direito do Trabalho (des)Conectado das Plataformas Digitais. Teoria Jurídica Contemporânea, Niterói, v. 4, n. 1, p. 246-266. 2019. destaca a relevância deste modelo, que poderia ser positivamente absorvido para promover a colaboração entre os indivíduos, mas tem sido aplicado como instrumento do capital para operação de atividades econômicas à margem das legislações regulatórias.

Defendem os entusiastas desta ideia de que as plataformas digitais possibilitam uma troca de benefícios: com base nesta noção, se compararia o Mercado Livre à Uber (Carelli, 2017CARELLI, R. L. O caso Uber e o Controle por Programação: de carona para o século XXI. In: PAES LEME, A. C. R.; RODRIGUES, B. A.; CHAVES JÚNIOR, J. E. R.. (coord.). Tecnologias disruptivas e exploração do trabalho humano: a intermediação de mão de obra a partir das plataformas eletrônicas e seus efeitos jurídicos e sociais. São Paulo: LTr, 2017. p. 130-146.; 2020), ignorando-se, no entanto, que no segundo caso não se trata da compra de um objeto, mas sim a prestação de um serviço resultado de trabalho humano. A ideia de compartilhamento de um ser humano é algo que se aproxima mais do século XIX que do século XXII, desnudando a sharing economy e vendo surgir por baixo do véu a gig economy, ou economia dos bicos (Woodcock; Graham, 2020WOODCOCK, J.; GRAHAM, M. The gig economy: a critical introduction. Cambridge: Polity Press, 2020.), trazida sob uma forma moderna de humans as a service (Prassl, 2018PRASSL, J. Humans as a service: the promise and peils of work in the gig economy. Oxford: Oxford University Press, 2018.). Além disso, faz-se necessário evidenciar todo o controle exercido pelas empresas por meio da programação algorítmica dessas plataformas, associado ao sistema de avaliação pelos próprios clientes (Wood et al., 2019; Wu; Li, 2019WU, Q.; LI, Z. Labor control and task autonomy under the sharing economy: a mixed-method study of drivers’ work. The Journal of Chinese Sociology, Londres, v. 6, n. 14, p. 1-21, 2019.).

É dessa forma que o trabalho mediante cadastro e uso de aplicativos ou sites se camufla no discurso da “plataforma” e do “algoritmo” (Oliveira; Carelli; Grillo, 2020). Pode-se utilizar estes termos para ilustrar e entender a despersonalização dessas empresas que, na realidade, assim como as antigas e atuais fábricas, existem fisicamente, possuem pessoas físicas responsáveis pela sua operação, têm como objetivo final uma atividade econômica e, ao fim desta linha, o lucro. É com base nesta falácia que a empresa Uber, que hoje opera aproximadamente 21 milhões de entregas ao dia, efetuadas por mais de 5 milhões de motoristas e entregadores ao redor do mundo,1 1 Dados disponibilizados pela empresa em https://ubr.to/2JsDVWW. Acesso em: 2 jun. 2020. utiliza como definição do seu objeto social, constante no cadastro de pessoa jurídica, a intermediação e agenciamento de serviços e negócios.

O argumento da tecnologia neutra, modernizante e flexível tem dado efetivo espaço às ilusões de que estas plataformas possibilitariam aos trabalhadores uma independência e um autogerenciamento total, baseadas – dentre outras fontes – no marketing exacerbado em que as empresas mencionadas investem para a transformação do empregado em parceiro, colaborador, empreendedor ou empresário de si.

A realidade, por outro lado, se demonstra muito diversa. Trata-se, na análise de Ludmila Abílio (2019), da transformação dos trabalhadores em “autogerentes subordinados” que precisam se submeter ao cadastro, controle e avaliação pelas empresas de plataforma digital. Apesar da negativa absoluta de direitos formais, cabe a eles a realização das tarefas indicadas, e a partir disso serão vigiados e qualificados pela empresa, tudo na forma idealizada e programada pelos algoritmos de controle.

Os estudos de Jamie Woodcock e Mark Graham (2020) sobre o trabalho em plataformas digitais ressaltam a diversidade existente nos tipos de serviços executados atualmente dentro do padrão denominado gig economy, destacando que há gradações nos níveis de controle espacial e temporal pelas empresas responsáveis. Os autores destacam, ainda, que as atividades de entrega e transporte, objeto deste artigo, possuem alto grau de controle espacial, com ciência e controle de onde os trabalhadores estão, para onde vão e qual rota seguir. Exercem, também, grande controle sobre o valor pago pelo serviço: há definição, pelas empresas, dos critérios para o pagamento ao trabalhador, e estes muitas vezes sequer possuem conhecimento destes parâmetros. Por fim, ressaltam que há um alto grau de coordenação explícita pela empresa responsável.

Especificamente sobre a plataforma Uber no Rio de Janeiro, constatou-se que os motoristas demonstram pouco conhecimento em relação às próprias despesas com as quais arcam para realizar os serviços, tendo a maioria dos entrevistados se referido apenas ao valor do combustível e das prestações ou aluguel do veículo (Carelli, 2017CARELLI, R. L. O caso Uber e o Controle por Programação: de carona para o século XXI. In: PAES LEME, A. C. R.; RODRIGUES, B. A.; CHAVES JÚNIOR, J. E. R.. (coord.). Tecnologias disruptivas e exploração do trabalho humano: a intermediação de mão de obra a partir das plataformas eletrônicas e seus efeitos jurídicos e sociais. São Paulo: LTr, 2017. p. 130-146.). Demonstrou-se, também, grande insatisfação quanto à unilateralidade da empresa na aplicação de penalidades e no valor cobrado pela plataforma. É ela, afinal, que determina as regras e até mesmo o nível de qualidade da prestação – de outro modo fosse, seria impossível atrair e manter a clientela.

Compreende-se, portanto, que estas corporações utilizam da tecnologia para viabilizar um modelo de prestação de serviços com total responsabilidade imposta ao trabalhador e cujo controle se dá remotamente e, desta forma, se torna mais lucrativo e tem conseguido se desvencilhar, no cenário brasileiro, da aplicação dos institutos formais do Direito do Trabalho (Carelli; Carelli, 2020CARELLI, R. L; CARELLI, B. N. B. A zona cinzenta do trabalho e emprego, trabalhadores sob demanda em plataformas digitais e trabalhadores portuários avulsos: direitos trabalhistas além da relação de emprego. Revista Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 1-14, 2020.). As plataformas digitais, que alegam que os trabalhadores estão ali somente para obter uma complementaridade de renda, na prática se tornam a fonte de sobrevivência de grande parte dos trabalhadores, apresentando-se, assim, a característica de free rider em relação aos empregadores convencionais (Schor et al., 2020).

A estratégia corporativa para a efetividade do modelo de exploração do trabalho aqui comentado consiste nesta transferência dos riscos do empreendimento para o indivíduo, sob o argumento de que o aplicativo e a plataforma são apenas o suporte tecnológico para o oferecimento dos seus serviços (Filgueiras; Antunes, 2020FILGUEIRAS, V; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020.). Alguns dos lemas utilizados pela Uber, aplicáveis para exemplificação deste ponto, são “Seja dono do seu próprio destino” ou “Ganhe dinheiro no seu tempo: fature com a Uber no ritmo da sua vida”.2 2 Consulta realizada diretamente no site da empresa, disponível em: https://ubr.to/3ga7u4y. Acesso em: 14 jun. 2020.

Importante ressaltar, neste ponto, as reflexões de Veena Dubal (2017)DUBAL, V. Wage Slave or Entrepreneur? Contesting the dualism of legal worker identities. California Law Review, São Francisco, v. 105, n. 1, p. 101-159, 2017. sobre o desenvolvimento do neoliberalismo a partir da década de 1970 como peça fundamental para a valorização do empreendedor em detrimento do conceito de empregado, e como esta mudança paradigmática tem acarretado – alinhada ao crescimento da terceirização e do mercado dos serviços – reiterados alargamentos da ideia de empresário individual.

No entanto, não apenas na exploração do labor humano para majoração dos lucros está o objetivo destas empresas: Niels Van Doorn e Adam Badger explicam que o capitalismo de plataforma se caracteriza pelo que denominam “duplo valor de produção” (Doorn; Badger, 2020, p. 6), o que também engloba a produção de dados pelos trabalhadores, a partir dos parâmetros e linguagens que a empresa determina.

As avaliações dos usuários, as rotas utilizadas e tantos outros fatores funcionam a serviço dessa expropriação, que se transforma em capital principalmente por meio da valorização das empresas no mercado financeiro e do financiamento pelos investidores que os autores denominam “meta-plataformas” (Van Doorn; Badger, 2020VAN DOORN, N. V.; BADGER, A. Platform capitalism’s hidden abode: producing data assets in the gig economy. Antipode, Hoboken, v. 52, n. 5, p. 1475-1495, 2020., p. 15), dispostas a arcar inclusive com prejuízos das empresas de plataforma para que estas prossigam na obtenção dos dados.

Não é de se desprezar que a tecnologia digital hoje assume um papel amplo de instrumental de poder, que vai da geopolítica, passa pelas finanças e chega na apropriação corporativa do trabalho e dos pequenos negócios, em uma invasão de todos os aspectos da vida humana, forma de controle da pobreza em uma conjuntura de retração dos direitos sociais (Oliveira, 2019OLIVEIRA, M. C. S. O Direito do Trabalho (des)Conectado das Plataformas Digitais. Teoria Jurídica Contemporânea, Niterói, v. 4, n. 1, p. 246-266. 2019.; Oliveira; Ceratt, 2020OLIVEIRA, R.; CERATT, C. C. S. Pobreza como malware: aplicativos e retração dos direitos sociais. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 480-488, 2020.).

Importa, para concluir nosso ponto de partida, reiterar as devidas críticas ao modelo aqui debatido. São as empresas que definem os serviços, prazos, preços, remuneração, aplicam penalidades, admitem ou bloqueiam estes motoristas, que ainda assim se entendem, muitas vezes, na condição de empreendedores. Além disso, ressalta-se que há ainda uma captura de dados que funciona a partir de trabalho não pago e serve à lógica da financeirização da economia e da dataficação da sociedade (Grohmann, 2020GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: entre a dataficação, a finaceirização e a racionalidade neoliberal. Revista Eptic, Aracaju, v. 22, n. 1, p. 106-122,2020.). A insustentabilidade deste cenário ainda tem um campo extenso para discussão, mas que não cabe no estreito limite deste trabalho.

A SUJEIÇÃO SOCIAL E A SERVIDÃO MAQUÍNICA EM MAURIZIO LAZZARATO

Neste segundo momento, apresentaremos de que forma os conceitos de sujeição e servidão são aplicados pelo sociólogo italiano Maurizio Lazzarato. É importante reconhecer, inicialmente, que o neoliberalismo é um sistema composto de muito mais mecanismos complexos que simplesmente determinadas práticas econômicas. Lazzarato é um pensador político que aborda o sistema neoliberal em várias perspectivas e coloca em foco a sua intrínseca ligação com os novos fascismos, com a despolitização, a individualidade extrema e a globalização (2019).

Este autor apresenta os conceitos de sujeição social e servidão maquínica como as “duas modalidades de produção, de tratamento e de exploração da subjetividade” (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 168) que o capitalismo aplica para coordenar e otimizar a produção e aprofundar o consumo exacerbado. Estes institutos, que juntos auxiliam no entendimento da modelação dos indivíduos às intenções capitalistas, dentro de um contexto neoliberal, serão resumidamente apresentados a seguir.

A sujeição social é o instrumento de formação da identidade, ela “produz e distribui papéis e lugares” (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 168), determina que cada indivíduo se compõe a partir de onde nasceu e vive, qual é o seu gênero, sua profissão etc, em formas geralmente binárias ou finitas para a classificação e, portanto, separação e distribuição mais eficaz de tarefas e de papéis dentro de um enredo criado. A sujeição social produz e os distribui não somente dentro, mas também para a divisão do trabalho (Lazzarato, 2014LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: n-1 edições, 2014., p. 27). A construção do sujeito compatível com as premissas da lógica capitalista é essencial para que a governamentalidade se imponha sobre os indivíduos, pois a subjetivação construirá a pessoa e, consequentemente, sua relação com o trabalho e consumo (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 172).

No neoliberalismo, a sujeição atinge sua forma ideal na criação de um indivíduo responsável pelos riscos de sua própria empresa, o “empreendedor de si” ou “capital humano” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 174), o último avatar do individualismo (Lazzarato, 2014LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: n-1 edições, 2014., p. 27). A sujeição social que culmina neste “auto-empresário” se coaduna perfeitamente com a lógica do capital: todas as atividades, escolhas pessoais, dívidas e investimentos, por exemplo, são em função desta microempresa – que é o próprio ser – e para o melhor rendimento desta, cabendo também a ela arcar com os eventuais riscos destas ações (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 168). Essa é uma precariedade politicamente induzida criadora da subjetividade do empreendedor de si mesmo (Barbosa, 2020BARBOSA, D. A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.).

Evidente que nesse contexto de extrema individualização despontam a autocobrança e a autoavaliação constante – patente na gamificação do trabalho em plataformas-, afinal “o indivíduo isolado pela sua própria ‘liberdade’ é remetido não apenas à concorrência com os outros, mas também à concorrência consigo mesmo” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 175). Para o autor, a sujeição dos tempos atuais leva ainda à “plena e completa alienação” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 176), já que as ideias de emancipação carregadas pelo empreendedor de si o levam a maximizar “o ‘lamento’ contra si, em vez de se investir nas relações de poder” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 175), já que sua subjetividade foi construída em torno da própria culpa sobre seu rendimento, desempenho e custos que são, também, seu empreendimento.

Para Lazzarato, entender a sujeição do indivíduo no capitalismo da financeirização necessariamente passa pelo redesenho da relação capital versus trabalho, que hoje se estrutura a partir da dívida: a oposição – e, portanto, a divisão de papéis – é entre credores e devedores (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 194). Assim, a sujeição do indivíduo neoliberal empreendedor é movida pela culpa pela dívida, que age a partir dos sentimentos despertados na responsabilização individual, na necessidade de valorizar-se como “capital humano” (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 173). O empreendedor de si mesmo é o gestor, no final das contas, de sua competição contra os outros trabalhadores, de sua empregabilidade, de sua redução de remuneração e da diminuição dos serviços públicos e sociais (Lazzarato, 2013LAZZARATO, M. La fábrica del hombre endeudado: ensayo sobre la condición neoliberal. Buenos Aires: Amorrortu, 2013., p. 108). É o gestor de nada mais além de sua pobreza. Os trabalhadores em plataformas digitais são um exemplo próprio dessa subjetividade: entendidos pela máquina social – e muitas vezes por si próprios – como pequenos empreendedores lutando a cada dia pela sua sobrevivência e tentando pagar suas dívidas (Filgueiras; Antunes, 2020FILGUEIRAS, V; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, 2020.).

Já a servidão maquínica, desenvolvida inicialmente por Deleuze e Guattari, seria própria e a novidade do neoliberalismo, representa o complemento, e, ao mesmo tempo, o outro lado deste esquema de engendramento do controle da população. A servidão consiste na técnica que, ao contrário da primeira, “dessubjetiva” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 172) e transforma todos em pequenas partes de uma grande máquina responsável pelo controle social a partir da posse e disponibilização da informação. Lazzarato explica que essa “desterritorialização do indivíduo fornece os elementos de base para reconstruir não os ‘sujeitos’, mas os consumidores, os eleitores e os comunicadores” (Lazzarato, 2017, p. 183).

A servidão maquínica mescla o homem à máquina, que possui agora uma importância muito maior do que lhe era atribuída no fordismo, quando se limitava à produção. Fala-se aqui da servidão que coloca as máquinas lado a lado dos indivíduos a todo tempo, e neste contexto “os nossos atos mais ‘humanos’ (falar, ver, ouvir, reproduzir-se como ‘espécie’, sentir, afetar e ser afetado etc.) são hoje impensáveis sem o concurso das máquinas” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 176).

Deleuze e Guattari, não à toa, tomaram o conceito de servidão emprestado da cibernética e da ciência da automação, significando pilotagem ou governo dos componentes de um sistema, que subjuga variáveis para assegurar a coesão e o equilíbrio funcional do todo (Lazzarato, 2014LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: n-1 edições, 2014., p. 28). Enquanto que a sujeição produz e sujeita indivíduos, a servidão os transforma em dividuais e as massas se tornam amostras ou dados (Lazzarato, 2014LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: n-1 edições, 2014., p. 29). Assim, esses conceitos são perfeitos para o estudo do trabalho em plataformas digitais baseados em algoritmos.

Com o controle dos indivíduos a partir de mecanismos capazes de captar, reproduzir e principalmente operar as informações, a servidão manuseia os “possíveis” (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 170). Este agenciamento impacta não apenas a produção – para o autor, reside neste ponto a grande novidade no modelo atual: são impactados também os desejos, no lazer, nos sentimentos etc., o que torna manipuláveis a política, a comunicação e o consumo, por exemplo (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 172). Por todo este processo que envolve os dados e ações que os próprios homens fornecem, a partir da posição que se encontrem na engrenagem, o sociólogo define que os indivíduos se constituem a partir dos inputs e outputs desse agenciamento (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 173): se antes o operário fazia uso da máquina para produzir, hoje “o sujeito individuado não se opõe às máquinas, é adjacente a elas” (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 169) e essa mescla possibilita um gerenciamento que vai muito além do trabalho assalariado. Isso se faz ainda mais forte e claro no caso do trabalho para plataformas: os trabalhadores são nós do algoritmo, que reagem aos seus inputs e outputs, como pedidos, trajetos a serem percorridos, confirmações de entregas etc. (Jonker-Hoffrén, 2021, p. 80).

A dívida, tão central na obra do autor em estudo, explicita essa ideia. Ela atuará na sujeição do indivíduo, mobilizando o empreendedor de si para o trabalho ou para a valorização de seu capital humano; por outro lado, dentro da máquina financeira a dívida “se torna completamente outra coisa, um simples input do agenciamento financeiro” e este agenciamento vai muito além do poder de compra (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 174).

Trabalhar as categorias de sujeição social e servidão maquínica, como sugere Lazzarato, em sua complementariedade, abre espaço ao relevante e necessário debate sobre o local de dominação em que não se percebem os sentidos de linguagem, em que se aplicam procedimentos, regras, e penalidades por meio da tecnologia e de um aparelho estatal e privado que funciona de forma maquínica, ao mesmo tempo em que o sistema participa da formação de quem é o ser submetido a estas regras, o que deve consumir, como e por que deve trabalhar.

A partir destas reflexões, analisaremos a seguir o trabalho intermediado por plataformas digitais de transporte de pessoas no Rio de Janeiro.

A SUJEIÇÃO E SERVIDÃO EM PLATAFORMAS DE TRANSPORTE NO RIO DE JANEIRO: A PESQUISA EMPÍRICA

No tópico I, o trabalho por intermédio de plataformas digitais foi apresentado sob a perspectiva teórica que entendemos aplicável para explicar algumas premissas do seu funcionamento. Afirmamos que esta modalidade de exploração da mão de obra está intimamente ligada ao falacioso discurso de neutralidade tecnológica e de valorização da figura do empreendedor em oposição ao empregado formal.

A partir destes pontos iniciais, em uma análise qualitativa de entrevistas semiestruturadas realizadas entre agosto e novembro de 2019, discorreremos sobre as respostas recebidas por quatro motoristas, selecionados aleatoriamente a partir da solicitação de corridas via aplicativo de celular.

Sobressaem as questões relativas ao controle pelas empresas mediante orientações, avaliações dos clientes e aplicação de advertências e desligamentos. Os entrevistados também discorreram sobre o critério unilateral de determinação do valor devido aos trabalhadores, ambos ocultados pela tecnologia, aparentemente neutra e implacável para os motoristas. Além disso, suas falas também expuseram as razões pelas quais recorreram ao trabalho via cadastro e utilização de aplicativos para transporte de pessoas.

Sobre o Controle de Qualidade da Prestação de Serviços: Avaliação, Bloqueios e Desligamentos dos Motoristas

A avaliação é um dos mecanismos essenciais para o funcionamento do transporte em plataformas digitais. Para manter um padrão de qualidade conforme os critérios que a própria empresa de plataforma determina, se fazem necessários instrumentos de controle da prestação de serviços, sejam estes semelhantes ou diferentes dos que já conhecíamos.

As plataformas possuem recomendações aos motoristas sobre vestuário e forma de atuação no trabalho prestado como uma forma de orientar o trabalhador sobre o que agradará os clientes e quais comportamentos gerarão melhores avaliações para ele. Ao fim da corrida se questiona “Como foi a sua viagem?”, em uma nota de 1 a 5, em que os usuários respondem qual a pontuação do motorista. A partir desta nota que cada motorista possui e de outros critérios para realização do controle (como o número de vezes que o trabalhador rejeita uma nova corrida, por exemplo), são aplicadas as penalidades pelas plataformas.

O motorista B. tem 35 anos, é casado, mora em Niterói e possui o segundo grau completo. Trabalha utilizando Uber e 99Taxi desde dezembro de 2018 (à época da entrevista, totalizava 9 meses) e, antes, atuava como corretor no ramo de seguros de vida. Atualmente, o aplicativo não é mais sua única fonte de renda, e nele o motorista se considera um trabalhador autônomo.

Questionado sobre as recomendações das plataformas e quanto ao impacto das avaliações dos usuários no seu trabalho, respondeu que segue as sugestões das empresas sobre vestimenta, comportamento, e que inclusive já ouviu falar de punições aplicadas pela plataforma. Quanto a sentir-se ou não pressionado pelas avaliações dos clientes, respondeu:

Procuro sempre fazer o por onde eu conseguir uma nota boa. Minha nota hoje na Uber é 4.96, o teto é 5 né? Então, a minha é 4.96, e eu procuro sempre dar um tratamento bom pras pessoas que entram, um tratamento de respeito, e procuro sempre deixar o veículo limpo, e isso aí influencia muito (motorista B.).

Em seguida, questionado sobre a liberdade para aceitar e recusar corridas, disse:

Depois da quinta corrida não aceita eu fico banido por cinco (minutos) e por aí vai. (o entrevistador perguntou se ocorre dessa forma nos dois aplicativos). Na Uber, ela não chega a bloquear, mas a sua taxa de aceitação fica lá embaixo, então assim, quanto mais você recusa... ela não te bloqueia, mas em contrapartida você tem menos chamados (motorista B.).

O trabalhador I., 26 anos, noivo, morador de Belford Roxo, cursando ensino superior, atuava no transporte de pessoas pela Uber há dois anos ao tempo da entrevista. Antes disso, era empregado formal como técnico em eletrônica; na plataforma, se considera autônomo. Questionado sobre as sugestões do aplicativo sobre vestimentas, veículo, tratamento dos clientes, respondeu:

De vestimenta eles não dão nenhuma obrigação do que tem que fazer, não. Você segue pelo bom senso da pessoa, vai de cada um, né. Eu acredito que é melhor trabalhar de calça, tênis, camisa, do que de bermuda e chinelo. Mas aí é o que eu acredito, vai de motorista pra motorista (trabalhador I.).

Quando perguntado se conhece alguém que tenha recebido advertência, respondeu que conhece algumas pessoas, mas não sabe o motivo pelo qual foram punidos. Em seguida, sobre sentir-se pressionado ou não pela avaliação dos clientes, disse: “Mais ou menos. A gente falar que não se sente pressionado seria mentira, assim. Mas eu já me senti mais pressionado, hoje nem tanto.” (trabalhador I.).

O entrevistado L., 42 anos, união estável, residente na Tijuca, tem segundo grau técnico na área eletrotécnica e trabalhava há 3 anos e 7 meses em aplicativo. No momento anterior ao cadastro nos aplicativos Uber, 99Taxi e Cabify, era gerente de logística de uma empresa em Macaé. A partir da crise política brasileira que atingiu em cheio a indústria petrolífera, passou para a plataforma. Não possui outra fonte de renda e se considera autônomo.

Quanto às sugestões da empresa, respondeu que ser educado com os passageiros é necessário e “vem de berço”, mas que não se preocupa com as questões relativas ao vestuário. Sobre a aplicação de penalidades, contou:

Já fui desligado uma vez da Uber por cancelamento de corrida (o entrevistador pergunta se foi temporário); é, na verdade a gente sabe né, fui desligado e liguei pra lá e eles não falam o motivo nunca, a Uber tem esse problema, eles nunca falam o motivo. Aí eu fiquei perturbando muito e eles me religaram e falaram “ó, o motivo foi cancelamento, evita ficar cancelando muita corrida” (entrevistado L.).

Perguntado se depois disso ele mudou quanto aos cancelamentos de corrida, respondeu: “claro. Tive que mudar, não tem jeito”(entrevistado L.). Sobre as notas dos clientes, informou que se sente pressionado. Acrescentou mais à frente no questionário que para as empresas “sempre o passageiro tem razão, e isso eu acho muito errado. Sempre o passageiro tem razão, nunca o parceiro. A gente na verdade não é parceiro, a gente é escravo deles” (entrevistado L.).

O motorista A., 29 anos, solteiro, reside em São Gonçalo e possui ensino médio completo. Trabalhava em aplicativos há 3 anos, e antes trabalhou como bombeiro hidráulico. Tem a plataforma como única fonte de renda e se considera autônomo. Quando perguntado sobre as sugestões de forma de trabalhar, vestuário, higienização do carro pela empresa de plataforma, respondeu:

(As plataformas) indicam, assim, é bom trabalhar com camisa assim, trabalhar de calça, e não de boné e nem de bermuda, mas eles não nos obrigam a vestir nada. (o entrevistador questiona se ele segue as recomendações). Eu sigo por causa da avaliação, porque influencia um pouco na avaliação, se você trabalha mais social ou se você trabalhar mais casual. O trabalho mais social é mais profissional, então sua avaliação aumenta, então é por isso que eu sigo essas dicas. (o entrevistador pergunta onde ele acessa essas dicas) Vem mais do próprio aplicativo, você abre o aplicativo e tem uma parte de ajuda lá que eles ensinam (motorista A.).

Quando questionado diretamente sobre sentir-se pressionado pela nota, respondeu que sim. Mencionou, ainda, que já soube de casos em que uma pessoa que conhece foi bloqueada temporariamente por muitos cancelamentos de viagem, e em outro o colega foi definitivamente banido da plataforma por recusar a corrida de uma pessoa com deficiência. Ele contou que já recebeu uma advertência indicando que cancelasse menos corridas; em seguida, explicou que sempre cancela a viagem quando questiona o passageiro sobre seu destino e este responde que está indo para alguma área de risco, pela sua própria segurança, já que a empresa não lhe informa o destino desde a solicitação da viagem.

Nas respostas coletadas, aparecem as preocupações dos motoristas quanto à manutenção de um padrão de prestação do serviço de transporte de passageiros, as quais – ainda que não estejam sempre estritamente ligadas às exatas recomendações das empresas – estão atreladas à cobrança pela avaliação do cliente. Percebemos, também, que é de suma importância para as empresas de plataforma que os índices de recusa de corridas e de cancelamentos pelo motorista sejam baixos, e principalmente para isso são aplicadas as penalidades.

O fato de estes entrevistados, em geral, se sentirem pressionados para manter alguns padrões na prestação de serviços devido à avaliação e compelidos a aceitar e não cancelar viagens por causa dos possíveis impactos na sua fonte de renda permitem refletir sobre o engendramento da servidão maquínica no objeto analisado.

Ao aplicar o conceito de “máquina” desenvolvido por Guatarri, Lazzarato entende a sociedade como um campo de forças divididas que aplicam suas estratégias em oposição, sendo uma destas o uso da máquina técnica (Lazzarato, 2019, p. 110). Assim, a máquina social – “que, nas condições do capitalismo, só pode ser mesmo uma máquina de guerra” (Lazzarato, 2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução: o neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: n-1 edições, 2019., p. 105) – possui o domínio da máquina técnica para a conquista de seus objetivos. Dessa forma, desmistificando a neutralidade da tecnologia, Lazzarato (2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução: o neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: n-1 edições, 2019., p. 133) constata:

A máquina técnica serve então à máquina social, é um componente de sua estratégia. É essa última que dá forma à relação humano-máquina selecionando e fazendo funcionar os possíveis mais bem adaptados a suas finalidades (o lucro e a dominação), e para fazer isso ela sujeita tanto a máquina quanto o ser humano.

A sujeição social, isoladamente, não é capaz de tratar a complexidade dessa subjetividade. Todos os entrevistados disseram que se entendem autônomos, mas é o funcionamento procedimental e algorítmico das plataformas para as quais trabalham que parece determinar o nível de cobrança a que os motoristas se submetem. Os trabalhadores, aparentemente, entendem-se como “autônomos” pelo fato de não serem reconhecidos de fato como empregados pelas plataformas digitais, ou seja, uma autonomia no plano formal, também devido à flexibilidade de escolha de horários e de trabalhos a serem aceitos (Carelli; Oliveira, 2021CARELLI, R. L; OLIVEIRA, M. C. S. As plataformas digitais e o Direito do Trabalho: como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no século XXI. São Paulo: Dialética, 2021.; Machado; Zanoni, 2022a, p. 210-211; Wood et al., 2019). Entretanto, percebe-se que o discurso contraditório desses trabalhadores, verificado também em outras pesquisas (Cardoso; Artur; Oliveira, 2020; Machado; Zanoni, 2022b; Oliveira; Assis; Costa, 2019) indica que para eles mesmos essa autonomia é aparente ou limitada pela servidão maquínica.

Caso considerássemos apenas a sujeição, não seria possível explicar como as empresas de plataforma digital uniformizam, por exemplo, o baixo nível de cancelamento de corridas pelos trabalhadores. É na desterritorialização da servidão maquínica que encontramos a chave para esta reflexão.

Sobre o Valor Recebido pelos Motoristas e Retido pela Empresa: Remuneração e Jornada

Abordaremos neste tópico as falas dos trabalhadores quanto ao limite de jornada que praticam e sua remuneração pelas corridas realizadas. Observamos, em linhas gerais, que os entrevistados não têm clareza sobre a forma como a cobrança da comissão pelas empresas de transporte de pessoas por plataformas digitais ocorrem. As falas apontam também para uma tendência à jornada exaustiva baseada em metas de valor diário a ser alcançado.

O entrevistado B. trabalha para as empresas Uber e 99Taxi aos fins de semana, quando não está em seu emprego formal, visando obter, em média, 500 reais extras. Para isso, trabalha 12 horas por dia. Ele conta que, em nenhuma das empresas, sabe quanto o passageiro pagou. Questionado se entende a forma como o valor que recebe é calculado, respondeu:

Isso é muito variável. Eles informam que é uma média de 25% (que fica retido para a empresa). Tem corrida que tira 12, tem corrida que tira 20, tem corrida que tira 25 e tem corrida que até tira 30. Essa corrida sua não sei se vai ser 12, 20, 25 ou 30. (o entrevistador perguntou se o percentual é aplicado aleatoriamente, se são eles quem decidem). Tudo com eles. (o entrevistador perguntou se ele já tentou reclamar alguma vez). Ah, várias pessoas já, eu nunca reclamei, mas nunca tiveram resposta (entrevistado B.).

O entrevistado L., que não possui outra fonte de renda, relata trabalhar de 10 a 12 horas, de 5 a 7 dias na semana – ele complementa o trabalho aos fins de semana quando não atinge sua meta semanal de dois mil reais. Ele também expôs que não consegue entender qual o percentual retido pela Uber em cada corrida. Já o trabalhador I., por conciliar a graduação com o trabalho, realiza corridas para as empresas 8 horas por dia, e estuda no turno da noite. Relatou que tenta obter 800 reais e folgar um ou dois dias a cada semana, geralmente aos domingos.

Interessa-nos notar como as peculiaridades individuais moldam a intensidade da relação dos entrevistados com as empresas: o estado civil e a idade3 3 As informações pessoais sobre cada entrevistado estão dispostas no item anterior. – que certamente diferenciam as formas de vida e as obrigações de cada um, bem como a dependência total ou parcial da atividade executada são elementos importantes para a compreensão das assimetrias na jornada e meta de renda apresentadas.

Na entrevista do trabalhador A., quando questionado sobre a forma que a empresa retém a comissão, aparecem as insatisfações quanto aos métodos de cálculo da cobrança aplicados:

Às vezes eles chegam a cobrar quase 50% da corrida, mas a gente não... particularmente, eu não sei por que isso. Tem vezes que eles não cobram quase nada, então assim, eu fico quase com a corrida toda pra mim, mas eu não sei qual é o procedimento que eles fazem pra calcular. (o entrevistador perguntou detalhes sobre o alto valor de 50% que já foi cobrado pela plataforma). Foi uma corrida longa, muito longa, de mais ou menos trinta quilômetros. Quando finalizei, aí fui ver achei muito pouco pra mim, aí fui ver quanto deu tudo e eles tinham cobrado quase 50% do valor (e o que veio escrito?) Escrito não veio nada, só vem os detalhes da corrida: quilometragem, embarque e desembarque, aí tá lá uns quilometragens, uns negócios que eu não li direito, mas a forma de cálculo é própria deles mesmo. […] Eu gostaria de mudar, que a taxa da Uber é muito alta, acho que devia ser quinze... No máximo, vinte por cento (trabalhador A.).

Na manipulação do valor cobrado pela empresa do entrevistado, apesar de sua indignação, há números e informações que ele não pôde compreender, há uma linguagem que não é representativa ou apelativa utilizada para operacionalizar essa retenção da comissão sobre a corrida. Sobre isso, nas palavras de Lazzarato sobre a servidão:

A força do capitalismo reside menos no performativo, no simbólico e na palavra – técnicas comuns a toda forma de poder – do que em suas formas de ação “diagramáticas” e operacionais que, sem passar pela consciência e pela representação, são próprias ao capitalismo (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 188). (grifo nosso)

A sujeição social, por outro lado, define quem somos na sociedade. Para Lazzarato (2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 168), no neoliberalismo a forma ideal de indivíduo consiste no “empresário de si”, que realiza escolhas com base no modelo de empresa em todos os âmbitos de sua vida. Nas falas dos entrevistados, conseguimos compreender melhor a sujeição. De acordo com as histórias de vida de cada pessoa, a meta de valor diário ou semanal na plataforma varia, mas há uma constante: todos eles se consideram autônomos e todos impõem a si mesmos uma jornada que entendem suficiente para alcançar a renda que necessitam. Aqui, percebe-se a relação de “uso e ação” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 173) entre o trabalhador e a máquina (o seu celular com o aplicativo da plataforma instalado).

Por outro lado, o capital age profundamente na pré-subjetividade por meio da servidão. Na exponencial complexificação dos “signos a-significantes” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 177), em que o autor inclui os algoritmos como exemplo, é que mora o crescente controle do desejo, da pré-consciência. Nesta imbricada relação com a máquina, o trabalhador é chamado a não se revoltar contra a falta de clareza quanto à comissão cobrada pelas empresas. A servidão maquínica, ao definir os possíveis e os impossíveis, é responsável por esse processo.

Sobre as Intenções e Opiniões Gerais quanto às Empresas de Plataforma: O que Dizem os Trabalhadores?

No momento final das entrevistas, questionamos aos motoristas suas impressões gerais sobre as empresas: por que continuar? Vale a pena? Quais seriam os prós e contras? Somados a estas respostas, neste tópico, traremos os motivos pelos quais os trabalhadores informam que ingressaram nesta modalidade de trabalho. Neste tópico as variadas respostas convergem na busca por uma saída econômica em razão da dificuldade de recolocação no mercado formal de trabalho e/ou nos baixos salários percebidos nestes empregos formais.

Na fala do entrevistado B., quando questionado sobre sua visão geral quanto ao trabalho realizado, aparece a preocupação com a baixa oferta de trabalho formal:

Pra uma pessoa que tá desempregada, que não tá aparecendo oportunidade nenhuma, é uma boa alternativa. Mas nem tudo é fácil, né, a pessoa não vai conseguir colocar o carro na rua e conseguir uma diária de 200, 300 reais, é difícil. E pro passageiro também acho que é uma alternativa boa. Eu não recomendo quem tem seu emprego largar e vir pra cá (entrevistado B.).

Já o trabalhador I. relatou que, em função da flexibilidade de horários que necessita para cursar a graduação, um emprego formal não seria vantajoso. Além disso, contou que a maioria dos empregos não lhe trariam o mesmo rendimento financeiro. Perguntado sobre o motivo por que começou a trabalhar neste ramo, respondeu que sua entrada se deu “[em função d]a crise que está aí no nosso país, eu acho que a única alternativa de renda é essa, que você consegue ter mais ganhos assim. Se for procurar um emprego fixo, atualmente não ganho o mesmo valor que eu ganho aqui na Uber” (trabalhador I.).

O motorista L., de forma geral, comentou que essa forma de trabalho “ajuda muito as pessoas que estão desempregadas”, mas que o valor precisaria ser reajustado, já que a tarifa para os motoristas só tem diminuído. Quando questionado sobre o motivo por que se cadastrou nas empresas para prestar o serviço de transportes, respondeu:

Motivo é difícil, né, cara. Foi o meio que eu encontrei de sustentar a família, cara. (o entrevistador pergunta se foi a partir do momento em que ele teria sido dispensado) Exatamente, é. Eu não consigo arrumar outro emprego, quando arruma o salário é muito baixo e não tem condições (motorista L.).

O entrevistado A., também em uma resposta geral sobre a sua opinião quanto a esta modalidade de trabalho, relatou:

O aplicativo pra mim só serve como uma forma de renda. Pra mim, ele só serve pra isso. E no geral tá me ajudando muito. Eu tô gostando muito. Mas deveria mudar a questão de segurança, mostrar pra gente pra onde que a gente vai, aumentar mais o valor das taxas, porque assim, a gasolina aumenta, tudo aumenta, mas o aplicativo continua com a mesma taxa. E isso tá dificultando a gente trabalhar, a gente tem que trabalhar mais horas pra completar a nossa renda (entrevistado A).

As respostas sobre os motivos que levaram os trabalhadores a recorrer às empresas de plataforma para prestar os serviços de transporte de pessoas têm justificativas estritamente ligadas às necessidades financeiras. Podemos visualizar a potência da sujeição social nessa responsabilidade pessoal dos trabalhadores pela empregabilidade, na procura por alguma fonte de renda que amenize a sua condição de devedor (tanto para o Estado quanto para o mundo privado).

Dentro deste cenário, o sujeito desempregado e endividado sente necessidade de uma fonte de renda, mas dentro dos possíveis, que são determinados pela servidão. Em suas obras, Lazzarato aborda os índices de desemprego e da bolsa de valores como “semióticas assignificantes” que atuam na pré-subjetividade dos indivíduos (Lazzarato, 2010, p. 175). Assim, ao indivíduo “é imposto funcionar como uma simples variável de ajustamento do mercado de trabalho, como uma peça flexível e adaptável aos ‘automatismos’ da demanda e da oferta de emprego” (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 173).

Vemos, neste tópico, que a procura por esta forma de trabalho, na trajetória dos entrevistados, não está ligada às suas habilidades e afinidades pessoais. O cadastro nas empresas de transporte de pessoas esteve associado, nas respostas, à dessubjetivação: nesse momento, o trabalhador é apenas uma peça dentro do agenciamento do sistema econômico (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 168).

Comentários Gerais sobre o Uso do Aplicativo na Solicitação das Viagens

Vale trazermos, por fim, duas breves considerações a partir de características do objeto analisado (trabalho de transporte de pessoas por plataformas digitais), observadas também na mencionada pesquisa de campo: a) ao abrir o aplicativo4 4 Neste ponto, referimo-nos ao aplicativo Uber, utilizado pela maioria dos motoristas entrevistados. e solicitar uma corrida, é possível acessar algumas informações do motorista que realizará o serviço, como nome, cidade onde reside, sua nota na plataforma, quais idiomas fala e quantas viagens já completou; e b) os smartphones são peças fundamentais – muito mais para o motorista que para o usuário – para a realização da corrida, já que por meio do celular com internet são recebidas todas as informações relativas à corrida mas, em especial, porque o motorista é rastreado para que o cliente receba sua localização em tempo real antes e durante o trajeto.

Aqui, a sujeição e servidão explicadas por Lazzarato nos auxiliam a entender como a aplicação destes mecanismos de forma complementar se torna eficaz para o funcionamento do modo de negócio estudado. Quando o cliente solicita uma viagem, e o aplicativo lhe informa que o motorista que recebeu e aceitou a chamada para a sua corrida é o Carlos, carioca, de nota 4.95, que já dirigiu mais de 500 viagens e fala português e espanhol,5 5 Dados fictícios apenas para ilustração de um perfil possível de motorista. cria-se uma sensação de segurança para o usuário por meio das informações pessoais que individuam este trabalhador.

Significa dizer que ao consumidor que ele está prestes a entrar no carro de um homem, bem avaliado, bilíngue e que já está habituado a realizar o transporte de pessoas. Assim, mobilizam-se as representações pessoais, colocadas em seu lugar pela sujeição social, para garantir o engendramento da servidão maquínica e fazer com que o serviço ocorra conforme os protocolos da empresa responsável.

Quanto ao uso ostensivo do aparelho multimídia portátil, especialmente para garantir que o usuário tenha a localização do motorista antes e durante o trajeto, é essencial retomarmos as reflexões de Lazzarato ao ressaltar que “na servidão maquínica, o sujeito individuado não se opõe às máquinas, é adjacente a elas. Juntos constituem um dispositivo “homens–máquinas” onde os homens e as máquinas são tão–somente peças” (Lazzarato, 2010, p. 169). O celular é uma figura muito representativa dessa relação íntima, mútua e constante do trabalhador com a máquina técnica. Não há trabalho sem o celular e este controla todos os passos do trabalhador por meio de GPS do aparelho, além de indicar o trajeto a ser realizado, corrigir velocidade, aceleração e freadas e, atualmente, mostrar inclusive alertas de alagamentos ou quedas de árvore diretamente da prefeitura.6 6 Disponível em: https://bit.ly/3XbfCSY. Acesso em: 9 nov. 2020. O celular pode, inclusive, fazer calar o trabalhador com um toque de tela do consumidor, em exemplo máximo de integração do homem à máquina.7 7 Disponível em: https://bit.ly/3ElpMYW. Acesso em: 9 nov. 2020.

Aqui, levantamos novamente a discussão sobre o outro viés deste tipo de trabalho, que consiste na expropriação dos dados que os trabalhadores de plataforma sequer conhecem estar produzindo. O “duplo valor do trabalho” plataformizado (Van Doorn; Badger, 2020VAN DOORN, N. V.; BADGER, A. Platform capitalism’s hidden abode: producing data assets in the gig economy. Antipode, Hoboken, v. 52, n. 5, p. 1475-1495, 2020.) é possível graças à servidão maquínica, assim como as avaliações pelos clientes e motoristas uns dos outros.

A servidão age a partir de fluxos descodificados que não estão centrados nos indivíduos, mas nos maquinismos sociais imensos (Lazzarato, 2014LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: n-1 edições, 2014., p. 30), que podem ser identificados com a própria ideia de plataforma.

Como peças no agenciamento da máquina social, lado a lado com as máquinas técnicas, o conceito de trabalho se expande e abrange também os desempregados, como os consumidores (Lazzarato, 2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 177). Na avaliação pelos usuários e no monitoramento contínuo de rotas e tempo, por exemplo, que vemos nos aplicativos de transporte, importam para as empresas as informações obtidas pelo todo, e cada um dos passageiros e motoristas torna-se uma peça. Nas palavras de Lazzarato (2010LAZZARATO, M. Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 12, p. 168-179, 2010., p. 171), seria dizer que a servidão “libera assim potências de produção incomensuráveis com as do emprego e do trabalho humano”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Testamos brevemente neste artigo a possibilidade de que o trabalho de transporte de pessoas pelo uso de plataformas digitais, apresentada criticamente como um aprofundamento da exploração da força de trabalho humana a partir do uso das tecnologias para maior controle pelas empresas, tem encontrado caminhos por meio do engendramento dos indivíduos a partir da sujeição e servidão maquínica, conceitos aplicados por Maurizio Lazzarato. A partir da análise qualitativa das quatro entrevistas com motoristas, em corridas solicitadas pelo aplicativo Uber entre agosto e novembro de 2019, visualizamos a narrativa da realidade destes trabalhadores a partir dos mencionados conceitos, principalmente em três eixos: a) a importância das avaliações e das punições pelas empresas; b) o valor percebido pelos trabalhadores e sua carga horária; e c) motivo pelo qual aderiram e atuavam nesta modalidade de trabalho.

Foi possível ressaltar, nas falas dos entrevistados, a sujeição social concretizada na forma de auto empreendedor, ou empresário de si, já que todos os motoristas se entendem autônomos. Por outro lado, a servidão maquínica pode ser visualizada como mecanismo eficaz utilizado pelas empresas para dividuar, homogeneizar os comportamentos desejados. A avaliação realizada pelos passageiros, que preocupa os entrevistados e guia parcialmente suas atitudes e forma de atendimento e vestuário, cumpre este papel homogeneizante.

Observamos, como prevê Lazzarato, que apenas sujeição social na forma de construção do sujeito empreendedor e endividado não é suficiente para entendermos o engajamento do indivíduo em todos os aspectos necessários para o controle pelas empresas. A servidão maquínica aparece, portanto, na naturalização da falta de clareza de determinadas informações (como o valor retido a título de taxa para a empresa) e na submissão às regras das plataformas por meio de tendências algorítmicas, como a propensão a uma menor oferta de corridas para os motoristas que mais as rejeitam.

Notamos, ainda, a importância do conceito de “homens-máquinas” de Lazzarato, numa relação de complementariedade de homens e máquinas como peças do agenciamento da sociedade para essa análise. Essa ideia se visualiza na necessidade do celular para o trabalho dos motoristas, que vai muito além da relação fordista do operário com as máquinas.

A ideia do endividamento que perpassa a sujeição e a servidão para Lazzarato é especialmente importante para as questões relativas à jornada cumprida pelos trabalhadores e suas motivações para realizar o cadastro e permanecer na forma de prestação de serviços em estudo. As influências que os altos índices de desemprego exercem na atratividade e nas longas jornadas deste trabalho plataformizado são compatíveis com a ideia de signos assignificantes que constroem a servidão maquínica. Os conceitos de servidão e sujeição usados por Lazzarato se mostram, portanto, especialmente úteis para a análise da subjetividade dos trabalhadores no trabalho plataformizado, em que observar a íntima relação homem-máquina é tão importante quanto analisar as semióticas significantes. O homem-máquina da servidão maquínica se perfaz completamente no trabalho em plataforma.

No entanto, ficamos à espera dos resultados das pequenas resistências e formas de organização ainda incipientes desses trabalhadores para verificar a possibilidade de ultrapassagem ou desmonte da sujeição social e da servidão maquínica.

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  • 1
    Dados disponibilizados pela empresa em https://ubr.to/2JsDVWW. Acesso em: 2 jun. 2020.
  • 2
    Consulta realizada diretamente no site da empresa, disponível em: https://ubr.to/3ga7u4y. Acesso em: 14 jun. 2020.
  • 3
    As informações pessoais sobre cada entrevistado estão dispostas no item anterior.
  • 4
    Neste ponto, referimo-nos ao aplicativo Uber, utilizado pela maioria dos motoristas entrevistados.
  • 5
    Dados fictícios apenas para ilustração de um perfil possível de motorista.
  • 6
    Disponível em: https://bit.ly/3XbfCSY. Acesso em: 9 nov. 2020.
  • 7
    Disponível em: https://bit.ly/3ElpMYW. Acesso em: 9 nov. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2020
  • Aceito
    16 Nov 2022
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