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CARACTERIZAÇÃO DAS FONTES, DOS USOS E DA PERCEPÇÃO DA QUALIDADE DA ÁGUA NA TERRA INDÍGENA RIO FORMOSO, EM TANGARÁ DA SERRA/MT 1 1 Agradecimento ao CNPq pela avaliação positiva para a pesquisa em Terra Indígena, à comunidade indígena Paresi da Tirf por permitir a pesquisa contribuindo com a mesma e a Universidade do Estado do Mato Grosso, por ofertar o mestrado.

CHARACTERIZATION OF SOURCES, USES AND PERCEPTION OF WATER QUALITY BY INDIGENOUS PEOPLE IN TANGARÁ DA SERRA

CARACTÉRISATION DES SOURCES, DES USAGES ET DE LA PERCEPTION DE LA QUALITÉ DE L’EAU PAR LES INDIGÈNES À TANGARÁ DA SERRA

Resumos

A percepção do sujeito está atrelada à sua constituição identitária, que é tecida ao longo da vida e envolve todas as dimensões do ser, e nas comunidades indígenas faz parte de múltiplas dimensões. A água é o solvente universal fundamental para a existência de toda forma de vida e sua qualidade e quantidade são comumente objeto de discussões sobre problemas da sociedade moderna. Mas essas discussões dão pouca ou nenhuma ênfase à qualidade da água utilizada nas comunidades tradicionais e indígenas. A reflexão ocorre no contexto da percepção da qualidade da água no uso cotidiano pelo grupo indígena Haliti na Terra Indígena Rio Formoso, em Tangará da Serra/MT. A pesquisa foi realizada por observação direta e aplicação de formulários em quatro aldeias. Constatou-se que a qualidade da água é percebida a partir da aparência visual (cor), olfativa (odor) e palatável (gosto) e que desconsideram métodos artificiais de tratamento de água.

Abastecimento público; Desinfecção; Haliti-Paresi; Índios; Potabilidade


The individual’s perception is tied to their identity, which is woven throughout life and involves all the dimensions of the being. In Indigenous communities, such perception is part of multiple dimensions. Considered the fundamental universal solvent to the existence of all forms of life, water—its quality and quantity—is often the subject of discussions involving problems of modern society. But these debates give little to no emphasis on the quality of water used in traditional and Indigenous communities. This paper reflects on how the indigenous group Haliti in the Rio Formoso Indigenous Land, Tangará da Serra, Mato Grosso, perceive the quality of water. Data were collected by direct observation and the application of questionnaires in four villages. Results show that water quality is perceived from visual appearance (color), olfactory (odor) and palatable (taste) characteristics, ignoring the artificial water treatment methods.

Public supply; Disinfection; Haliti-Paresi; Indians; Potability


La perception de l’individu est liée à son identité, qui se tisse tout au long de la vie et implique toutes les dimensions de l’être. Dans les communautés indigènes, cette perception s’inscrit dans de multiples dimensions. Considérée comme le solvant universel fondamental à l’existence de toute forme de vie, l’eau, sa qualité et quantité, fait souvent l’objet de discussions sur les problèmes de la société moderne. Mais ces débats n’accordent que peu ou pas d’importance à la qualité de l’eau utilisée dans les communautés traditionnelles et indigènes. Cet article se penche sur la façon dont le groupe indigène Haliti dans la Terre Indigène Rio Formoso, à Tangará da Serra, Mato Grosso, perçoit la qualité de l’eau. Les données ont été collectées par observation directe et à l’aide de questionnaires dans quatre villages. Les résultats montrent que la qualité de l’eau est perçue en fonction de l’aspect visuel (couleur), olfactive (odeur) et agréable au goût (goût), sans tenir compte des méthodes de traitement artificiel de l’eau.

Approvisionnement public; Désinfection; Haliti-Paresi; Indiens; Potabilité


INTRODUÇÃO

De acordo com Souza, Sá-Oliveira e Silva (2015), o Brasil possui a maior disponibilidade de água superficial do mundo, com cerca de 12% do total, sendo a sua utilização regulamentada pela Lei nº 9.433/1997 ( Brasil, 1997BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 jan. 1997. ), a qual também cria os comitês de bacias hidrográficas (CBH) e garante aos indígenas assento nos comitês de bacias onde residem, ou que sejam de seu interesse.

A abundância de águas superficiais em uso pelos indígenas e caboclos ribeirinhos da região amazônica é uma realidade, ao contrário dos centros urbanos e dos sertanejos ( Diegues, 2005DIEGUES, A. C. Aspectos sócio-culturais e políticos do uso da água. São Paulo: Nupaub-USP, 2005. Disponível em: http://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub.fflch.usp.br/files/color/agua.pdf. Acesso em: 7 nov. 2017.
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) e da África do Sul, onde há escassez, conforme reportaram Coetzee, Nell e Bezuidenhout (2016). Por outro lado, é comum e crescente a contaminação e poluição das águas nesses contextos e, se não tratadas, podem atuar como veículo transmissor de enfermidades.

As sociedades tradicionais, que incluem as comunidades indígenas, sofrem com doenças de veiculação hídrica sobretudo por falta de ações preventivas contra a poluição e pelas barreiras culturais, uma vez que as causas e explicações dessas doenças são distintas, assim como a definição do que é ou não poluição, ambas relacionadas à cultura ( Diegues, 2005DIEGUES, A. C. Aspectos sócio-culturais e políticos do uso da água. São Paulo: Nupaub-USP, 2005. Disponível em: http://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub.fflch.usp.br/files/color/agua.pdf. Acesso em: 7 nov. 2017.
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).

Para essas sociedades, como explica Diegues (2005)DIEGUES, A. C. Aspectos sócio-culturais e políticos do uso da água. São Paulo: Nupaub-USP, 2005. Disponível em: http://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub.fflch.usp.br/files/color/agua.pdf. Acesso em: 7 nov. 2017.
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, as atividades que geram poluição da água são diferentes daquelas encontradas no contexto urbano. Assim, o declínio dos ecossistemas naturais, que estão sendo convertidos em sistemas agrícolas intensivos, tem contribuído para mudanças no ciclo hidrológico. O Brasil tem experimentado a supressão do cerrado para cultivo intensivo de commodities agrícolas, situação semelhante à reportada por Merten et al. (2016) no estudo sobre a escassez da água e a expansão dos dendezeiros na Indonésia.

Sabe-se que a existência de um povo está condicionada a estratégias de sobrevivência seguidas em determinados ambientes em função da disponibilidade de recursos e/ou da invenção/elaboração destes, recriando os significados e conceitos a cada nova situação. Assim, reconstrói-se uma identidade diferenciada, com razões e mitos que são repassados ao longo da existência. Nesse sentido, McPherson et al . (2016) e Tang e Gavin (2016)TANG, R.; GAVIN, M. C. A classification of threats to traditional ecological knowledge and conservation responses. Conservation & Society, [s. l.], v. 14, n. 1, p. 57-70, 2016. DOI: 10.4103/0972-4923.182799. referem o modo como conhecimento ecológico tradicional e constituição identitária são construídos ao longo da vida, incluindo todos os seres vivos.

Essas estratégias estão relacionadas à experiência, memória do indivíduo, memória coletiva e às relações sociais estabelecidas dentro de determinado grupo, o que pode facilitar ou dificultar as ações de governo quando os gestores não consideram essa percepção. Vale enfatizar que as atividades de um grupo estão diretamente interligadas à forma simbólica como ele percebe o mundo, isto é, ao mito ( Lévi-Strauss, 1987LÉVI-STRAUSS, C. Mito e significado. Tradução de Antônio Marques Bessa. Lisboa: Edições 70, 1987. ), observações essas contidas no trabalho de Coetzee, Nell e Bezuidenhout (2016) e no estudo do significado da água com a comunidade indígena Otavalo, no Equador, realizado por Trujillo et al. (2018)

O território onde se desenvolvem as atividades sociais, econômicas e culturais entre os indígenas Haliti-Paresi está implícito no mito da criação do mundo. Regina (2011)REGINA, A. W. A Ponte de Pedra, travessia para outros mundos. História Oral, Rio de Janeiro, v. 2, n. 14, p. 89-106, 2011. Disponível em: https://www.revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/233. Acesso em: 20 ago. 2017.
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descreve esse território como o vale de um rio, ou uma bacia hidrográfica, semelhante à definição de Tucci (1997)TUCCI, C. E. M. (org.). Hidrologia: ciência e aplicação. 2. ed. Porto Alegre: ABRH: Editora da UFRGS, 1997. (Coleção ABRH, v. 4). e similar ao novo dimensionamento territorial de gestão de recursos proposto pela Lei 9.433/1997 ( Brasil, 1997BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 jan. 1997. ).

Para as comunidades indígenas, há previsão de ações de vigilância e controle da qualidade da água, assim como soluções alternativas para abastecimento de água nas aldeias, as quais estão a cargo da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), conforme Portaria de Consolidação Federal 5/2017 ( Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 5, de 28 de setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 360, 3 out. 2017. Suplemento 190. ).

Dentre as diretrizes da Sesai, está o monitoramento da água usada na aldeia, com a avaliação de algumas variáveis pertinentes, como: turbidez, pH, cor, coliformes totais, Escherichia coli ( E. Coli ) e cloro residual livre. A frequência da amostragem recomendada é semanal e, no caso de aldeias que não aceitam o tratamento, as avaliações devem ser realizadas com água bruta e os resultados sobre a qualidade da água consumida informados aos usuários ( Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Diretrizes para monitoramento da qualidade da água para o consumo humano em aldeias indígenas. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. ).

A pesquisa surgiu do contato e da vivência com um grupo indígena, em especial da Terra Indígena Rio Formoso (Tirf), onde foi observado que existe um sistema público de abastecimento de água, e da constatação de que a água fornecida nas aldeias não passa por tratamento ou desinfecção, tão pouco por avaliação da qualidade. Assim, buscou-se refletir sobre as possíveis estratégias de tratamento da água, bem como sobre as percepções locais da sua qualidade para o consumo.

MATERIAL E MÉTODOS

Cenário do estudo

A pesquisa foi realizada na época de seca na região, em julho de 2017, na Tirf, localizada a 280 quilômetros de Cuiabá/MT, no município de Tangará da Serra/MT, onde existem seis aldeias, das quais quatro foram escolhidas como objeto da pesquisa: JM, Jatobá, Cachoeirinha e Formoso. Foi utilizado como critério de escolha a ocorrência de corpos de água passíveis de uso da bacia do rio Formoso e ainda a facilidade de acesso logístico. Nas demais aldeias – Queimada e Santa Vitalina, localizadas no vale do rio Juba –, não foi possível realizar a pesquisa em razão da falta de financiamento, haja vista a dificuldade de acesso ( Figura 1 ).

Figura 1
– Terra Indígena Rio Formoso em Tangará da Serra/MT e detalhamento da rede de drenagem

As aldeias pesquisadas dispõem de energia elétrica, estradas mantidas pela prefeitura e água encanada. Além disso, recebem informações por meio de acesso à sinais de televisão através de antena parabólica e, ainda, as aldeias Jatobá e Rio Formoso se comunicam externamente por meio de acesso à internet.

A população da Tirf em 2017, segundo o IBGE (2017)IBGE. Etnias pertencentes a outras famílias não classificadas em troncos: Aruak. In: IBGE. Brasil indígena: povos/etnias. Rio de Janeiro: IBGE, [2017]. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/povos-etnias. Acesso em: 13 out. 2017.
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, era de 166 pessoas distribuídas nas seis aldeias e, segundo a Sesai ([2017SESAI. Dados populacionais indígenas por diversos parâmetros de análise. Brasília: Sesai, [2017]. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/oministerio/principal/secretarias/secretariasesai/mais-sobre-sesai/9518-destaques. Acesso em: 5 nov. 2017.
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]), 184 pessoas. As aldeias estudadas somaram 131 pessoas, assim distribuídas: Formoso com 77; JM com 20; Jatobá com 29; e Cachoerinha com cinco pessoas.

Regina (2011)REGINA, A. W. A Ponte de Pedra, travessia para outros mundos. História Oral, Rio de Janeiro, v. 2, n. 14, p. 89-106, 2011. Disponível em: https://www.revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/233. Acesso em: 20 ago. 2017.
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afirma que o mito da origem do mundo dos Haliti-Paresi, grupo indígena que habita o oeste de Mato Grosso, tem a Chapada dos Parecis – hoje importante polo agrícola produtor de commodities – como principal local. Foi lá que Wazare, personagem mítico considerado deus, teria criado todas as cabeceiras dos rios, reservando a cada grupo os vales específicos para sua sobrevivência. Dessa forma, os subgrupos Kozarene, Waimaré, Kaziniti, Warere e Kawali não teriam que disputar os recursos naturais, haja vista os territórios bem definidos.

De acordo com Regina (2011)REGINA, A. W. A Ponte de Pedra, travessia para outros mundos. História Oral, Rio de Janeiro, v. 2, n. 14, p. 89-106, 2011. Disponível em: https://www.revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/233. Acesso em: 20 ago. 2017.
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, o território original da área de estudo, no mito da criação, pertencia ao subgrupo Kozarene, mas na atualidade foi reduzido e, conforme reportado por Terças et al . (2016), inexistem aldeias ou regiões com populações somente de um dos subgrupos. A miscigenação e a redução do território foram consequências das frentes expansionistas sobre o território que ocupavam, que tiveram como marco inicial a instalação das linhas telegráficas, em 1910, com destaque ao território Cozarene ou Kozarene (grafia atual) da área do estudo ( Figura 2 ).

Figura 2
– Terras Indígenas dos Haliti-Paresi sobrepostas à distribuição geográfica dos subgrupos

O grupo indígena continua fixado nos corpos de água, sempre nas cabeceiras, atualmente compartilhando o uso com as fazendas limítrofes de suas terras, que utilizam os solos para a agricultura de monocultura de soja, acelerando as mudanças nos corpos de água ( Eazokemae, 2003EAZOKEMAE, J. Q. A contaminação dos rios das aldeias Água Limpa, Queimada e Formoso. In: ZORTHÊA, Kátia S; MENDONÇA, Terezinha F. de (org.). Sócio-diversidade indígena: ensaios de educação escolar no projeto Tucum. Cuiabá: Seduc, 2003. p. 213. ).

De acordo com Paes (2002)PAES, M. H. R. A questão da língua na escola indígena em aldeias Paresi de Tangará da Serra-MT. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 21, p. 52-60, 2002. DOI: 10.1590/S1413-24782002000300005. , os Haliti-Paresi vivem num mundo estruturado sob forma fronteiriça, que une o tradicional ao moderno, incorporando o hábito de consumir mercadorias exógenas e levar para a aldeia uma infinidade de resíduos. Uma vez que não há política pública de reuso – como coleta, reciclagem ou outro destino para o lixo produzido –, esses resíduos disponíveis dentro da Tirf podem facilitar a contaminação dos solos e das águas servidas ou usadas na aldeia.

Metodologia

A abordagem foi quali-quantitativa e a pesquisa foi composta por levantamento bibliográfico sobre a temática e aplicação de formulários ( Minayo, 2001MINAYO, M. C. de S. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. ). Além disso, incorporou multimétodos para obter os resultados, observação direta das conversas informais e, ainda, colaborações espontâneas, conforme exposto por Tuzzo e Braga (2016)TUZZO, S. A.; BRAGA, C. F. O processo de triangulação da pesquisa qualitativa: o metafenômeno como gênese. Revista Pesquisa Qualitativa, São Paulo, v. 4, n. 5, p. 140-158, 2016. quando avaliaram o processo de triangulação da pesquisa qualitativa e Souza e Kerbauy (2017)SOUZA, K. R.; KERBAUY, M. T. M. Abordagem quanti-qualitativa: superação da dicotomia quantitativa-qualitativa na pesquisa em educação. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 21-44, 2017. DOI: 10.14393/0102-6801.v31n61a2017-p21a44.
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ao discursar sobre a pesquisa quanti-qualitativa na educação.

A abordagem qualitativa se iniciou com anotações a partir do contato com a comunidade, conversas com algumas lideranças e observação do múltiplo uso da água. Nessa fase, foi possível identificar: a quantidade de núcleos familiares; a existência de algumas instalações, como lavanderias; a utilização de eletrodomésticos, como geladeiras e freezers; atividades nos corpos de água, como lavagem de roupas e de utensílios domésticos e banho; nas festas, algumas atividades estavam relacionadas ao corpo de água. Foram essas as bases que orientaram a elaboração do formulário estruturado para quantificar e verificar descobertas.

Durante essa fase, e dada a pequena quantidade de residências, optou-se pelo censo para a coleta dos dados e o formulário foi utilizado de forma norteadora para a coleta, sistematizando os dados qualitativos já coletados e outros discutidos.

A aplicação do formulário na língua portuguesa nas residências das aldeias foi feita na presença de toda a família do entrevistado, ou seja, o dono da casa ( Silveira, 2011SILVEIRA, E. M. dos S. Cultura como desenvolvimento entre os Paresi Kozarini. 2011. 159 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011. ) e demais membros da família que auxiliaram no entendimento das perguntas e formulação das respostas, incluindo a residência da liderança, que participa do Comitê de Bacia do Sepotuba, e da casa do agente indígena de saneamento (Aisan).

O Aisan da aldeia tem a função de operar equipamentos de desinfecção, realizar análises de cloro residual e informar aos superiores os resultados, bem como comunicar imediatamente qualquer divergência quanto às características da água distribuída. Também tem a incumbência de realizar reuniões com a comunidade para esclarecer e sensibilizar quanto à importância do tratamento da água para garantir o consumo seguro, além de manter o sistema de abastecimento funcionando ( Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Diretrizes para monitoramento da qualidade da água para o consumo humano em aldeias indígenas. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. ).

Com base na ética da pesquisa e conteúdo do termo de consentimento livre e esclarecido, a opção por não participar foi respeitada, mesmo procedimento adotado por Coetzee, Nell e Bezuidenhout (2016).

O formulário contou com 13 questões, sendo sete fechadas, com as opções de múltipla escolha, respostas simples ou múltiplas, e seis abertas, na língua portuguesa do Brasil.

As sete questões fechadas foram: “Há água encanada em casa?”; “Utiliza algum desses métodos de tratamento da água para beber? (filtro, fervura, nenhum)”; “A água distribuída é tratada?”; “É importante utilizar cloro na desinfecção da água?”; “Serve-se de outras fontes de água?”; “Como faz a limpeza dos utensílios domésticos? (casa, torneira externa, chafariz, rio)”; “Como faz para lavar roupas? (casa, torneira externa, chafariz, rio)”.

As seis questões abertas foram: “Por que não é importante a desinfecção com cloro?”; “Caracterize uma água boa para beber”; “Caracterize uma água boa para a higienização”; “Caracterize uma água boa para a irrigação”; “Utiliza água nos ritos culturais e tradicionais?”; “Qual sua visão do uso que o homem branco faz da água?”.

As respostas das questões fechadas foram transformadas em dados numéricos, por repetição, e dispostos em planilha eletrônica utilizando-se de estatística descritiva para a avaliação. As informações qualitativas foram transcritas e algumas agrupadas pela semelhança.

A pesquisa foi autorizada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – Autorização nº 036/AAEP/PRES/2016, de 28 de junho de 2016 –, mediante concordância da comunidade, parecer ad hoc do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) reconhecendo o mérito científico e, ainda, parecer do Conselho de Ética na Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) – Parecer nº 1.784.407/2016.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A água que abastece as aldeias provém da nascente do rio Bonito, um rio subterrâneo no interior Tirf, localizada na escarpa da Chapada dos Parecis, em área preservada de cerrado, com solos neossolos quartzarênicos ou areia quartzosa álica.

De acordo com Spera et al . (1999), o potencial hidrogeniônico (pH) desses solos indica acidez de elevada a média, saturados em alumínio tóxico para as plantas. Tais condições têm reflexos na água, embora, sob o ponto de vista sanitário não tragam riscos para a saúde humana.

A água aduzida por meio de duas bombas de roda d’água para reservatórios e destes é distribuída para as casas. A captação nesse manancial para abastecimento das aldeias iniciou no ano de 2003, quando a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) instalou o sistema de bombeamento e, de acordo com o Aisan da aldeia, na época da pesquisa não havia o monitoramento de qualidade da água distribuída.

Sob o ponto de vista sanitário, as águas de nascentes não garantem isenção de patógenos nocivos à saúde e apresentam baixas concentrações de constituinte químicos e pH baixo, conforme encontrado por Swistock et al . (2015) no estudo de qualidade da água em nascentes em beira de estradas na Pensilvânia.

Os envolvidos na pesquisa foram identificados como núcleos familiares. Aqueles que participaram, os ausentes e aqueles que desejaram não participar, estão dispostos conforme a Tabela 1 .

Tabela 1
– Aldeias do estudo, residências existentes e visitadas

Um dos chefes de família optou por não participar, alegando que estava numa outra atividade e não teria tempo, não obtendo sucesso em marcar um outro horário e dia. Os outros dois sugeriram contraprestação financeira.

Em relação à água encanada nas residências e à utilização de técnicas alternativas de purificação, como fervura ou filtração simples da água para uso, constatou-se que 38,46% das casas possuem água encanada e 92,30% dos entrevistados não empregam qualquer tipo de tratamento na água distribuída para beber – apenas um dos entrevistados relatou fervê-la –, alegando tratar-se de água de mina, evidentemente de boa qualidade. Quase a totalidade da população das aldeias, portanto, consomem a água in natura .

A Funasa levou o sistema de abastecimento de água até um chafariz próximo às residências. Aqueles que desejaram ter água encanada no interior da moradia tiveram que custear a instalação com recursos financeiros próprios.

Quanto ao tratamento da água distribuída na aldeia e sobre a importância da utilização de cloro para sua desinfecção, todos os entrevistados sabem que a água distribuída não passa por qualquer tratamento e 92,30% deles consideram desnecessária a desinfecção por cloro, alegando tratar-se de água de nascente. Todos afirmaram que o tratamento altera as características organolépticas da água, tornando desagradáveis o sabor e o odor, e que pesquisas teriam comprovado a boa qualidade da água que utilizam, inclusive mineral, contudo não foi encontrado material comprobatório dessas análises.

Percebeu-se que todos os entrevistados acreditam que os recursos hídricos já foram violados, exceto a referida fonte, por ser uma nascente, e 92,30% resistem à ideia da instalação de um sistema de desinfecção da água com a utilização de cloro, contrariando o que preconiza a legislação brasileira. Consideram que a adição desse produto poderia causar mais mal do que bem, provocando ânsia e mal-estar aos consumidores. No estudo de Liddle, Mager e Nel (2014) em Ndola (Zâmbia), 90% dos entrevistados entendem que é necessário o tratamento da água proveniente de seus poços para ser consumida.

O Aisan complementou que considera importante o monitoramento de coliformes termotolerantes e/ou E. Coli no manancial utilizado como fonte de abastecimento das aldeias. Nesse sentido, Eazokemae (2003)EAZOKEMAE, J. Q. A contaminação dos rios das aldeias Água Limpa, Queimada e Formoso. In: ZORTHÊA, Kátia S; MENDONÇA, Terezinha F. de (org.). Sócio-diversidade indígena: ensaios de educação escolar no projeto Tucum. Cuiabá: Seduc, 2003. p. 213. , ao ressaltar a prestação de serviços por órgãos públicos que cuidam do abastecimento de água nas cidades e campanhas educativas, aponta que esses procedimentos eram inexistentes nas aldeias e, até data da pesquisa, a situação não havia mudado.

A barreira apresentada para a desinfecção da água a ser consumida está relacionada ao mito da criação, segundo o qual a região do chapadão dos Pareci abriga as cabeceiras dos rios ( Regina, 2011REGINA, A. W. A Ponte de Pedra, travessia para outros mundos. História Oral, Rio de Janeiro, v. 2, n. 14, p. 89-106, 2011. Disponível em: https://www.revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/233. Acesso em: 20 ago. 2017.
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), entendendo-se que as águas seriam de melhor qualidade.

Quanto à utilização de outras fontes de água, 76,92% utilizam, simultaneamente, as águas do rio para a limpeza de utensílios domésticos, roupas e banho. Destaca-se que as aldeias Cachoeirinha, Jatobá e JM raramente utilizam a nascente (23,08%). Elas estão um a dois quilômetros distantes do rio Formoso, portanto este é utilizado quando falta água na torneira ou para o lazer. O uso simultâneo de diversas fontes de água em área rural é um fato recorrente, sendo uma dinâmica identificada por Aleixo et al . (2016) em seu estudo no Nordeste brasileiro e por Coetzee, Nell e Bezuidenhout (2016).

Percebe-se que as relações com os corpos de água na aldeia, conforme reportado por Maciel (2010)MACIEL, M. R. A. Raiz, planta e cultura: as roças indígenas nos hábitos alimentares do povo Paresi, Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. 2010. 206 f. Tese (Doutorado em Agronomia) – Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2010. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/103232. Acesso em: 5 nov. 2017.
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, se iniciam na madrugada, quando as mulheres vão ao rio buscar água e já tomam o banho matinal nas águas mornas. Foi constatado que essa dinâmica, associada ao costume dos mais velhos, vem sendo quebrada com o abastecimento público em aldeias mais distantes dos corpos de água.

Sobre a limpeza de utensílios domésticos e a lavagem de roupas, 76,93% afirmaram que utilizam as torneiras dentro da residência, torneira nas proximidades e chafariz coletivo para essas finalidades. No entanto, 23,07% dos entrevistados utilizam apenas o rio. As residências na aldeia são distantes dos corpos de água entre 100 e 300 metros e, no rio, ficam expostos ao sol. Realizar essa atividade dentro de casa ou próximo a ela evita o transporte do material e a insolação.

Em relação à caracterização da água para a potabilidade, higienização e irrigação, além de desejarem água limpa, sem cheiro ou gosto desagradável, ainda a desejam fresca – armazenam água em geladeira e freezer. Essa é razão da localização estratégica das aldeias ( Regina, 2011REGINA, A. W. A Ponte de Pedra, travessia para outros mundos. História Oral, Rio de Janeiro, v. 2, n. 14, p. 89-106, 2011. Disponível em: https://www.revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/233. Acesso em: 20 ago. 2017.
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) onde as águas das cabeceiras dos rios apresentam parâmetros muito próximos às condições de potabilidade da Portaria de Consolidação Federal nº 5/2017 ( Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 5, de 28 de setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 360, 3 out. 2017. Suplemento 190. ), mesma concepção reportado por Coetzee, Nell e Bezuidenhout (2016) e Liddle, Mager e Nel (2014)

Foi constatado que não inseriram técnicas de irrigação nas roças (lavouras), pelo próprio ciclo hidrológico da região e o regime econômico tradicional. No entanto, um dos entrevistados expressou o desejo de utilizar essa tecnologia para a irrigação de pomares, com cultivares exógenos domesticados às margens do rio Bonitinho. Em outras comunidades tradicionais, como na África do Sul, onde há a escassez de água, constataram-se regas em jardins e em cultivos de subsistência (Coetzee; Nell; Bezuidenhout, 2016).

A água nos rituais equipara-se à do uso cotidiano, sendo importante para limpar e fazer a bebida para a festa, remédios e, também, para purificar o corpo daqueles que foram batizados. Interessante pontuar que a água em rituais não é considerada em si sagrada, pois, de acordo com os entrevistados, faz parte de um todo, não sendo um elemento isolado nos rituais. A mesma abordagem foi feita por Coetzee, Nell e Bezuidenhout (2016), que não obtiveram unanimidade na comunidade estudada sobre a água isoladamente, como um elemento sagrado em um ritual, apesar da forte conexão espiritual com a água.

Numa das conversas informais, um interlocutor Haliti-Paresi observou que a qualidade da água em uso, no dia a dia ou nas festas, quando é utilizada para a fabricação de bebidas está relacionada à oferenda que se faz aos espíritos e pode ser usada sem causar danos à saúde daquelas pessoas que a consomem. Conforme reportou Maciel (2010)MACIEL, M. R. A. Raiz, planta e cultura: as roças indígenas nos hábitos alimentares do povo Paresi, Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. 2010. 206 f. Tese (Doutorado em Agronomia) – Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2010. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/103232. Acesso em: 5 nov. 2017.
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, a esses espíritos, de pessoas que em vida foram boas, são feitas as oferendas de modo a obter saúde e proteção, inclusive a purificação da água para o consumo, havendo em todos os rituais um momento no rio ( Silveira, 2011SILVEIRA, E. M. dos S. Cultura como desenvolvimento entre os Paresi Kozarini. 2011. 159 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011. ).

Sobre a utilização da água pelo homem branco, fora da aldeia, a visão do Haliti-Paresi é enfática e aponta uma concepção meramente mercantilista. Todas as formas de uso são ressaltadas como indevidas e, acima de tudo, nocivas aos corpos hídricos. A utilização comercial dos recursos hídricos é um fato comum em países emergentes, conforme explicita Prieto (2015)PRIETO, M. Privatizing water in the Chilean Andes: the case of Las Vegas de Chiu-Chiu. Mountain Research and Development, [s. l.], v. 35, n. 3, p. 220-229, 2015. DOI: 10.1659/MRD-JOURNAL-D-14-00033.1. em relação à privatização das águas nos Andes chilenos.

A aldeia Formoso, a casa mais próxima, está a 100 metros do corpo de água do riacho Bonitinho, sendo a maior aldeia entre as quatro estudadas. Lá, a utilização dos corpos de água é intensa e rotineira, sugerindo riscos de contaminação do corpo de água existente no pátio da aldeia. As características do solo arenoso não são fatores limitantes para a contaminação deste e, consequentemente, dos recursos hídricos.

Sobre as transformações ao longo do tempo, foi reportado que antigamente, na época de coleta de mel, preferiam a água adoçada com esse produto, mas hoje usam sucos em pó diluídos na água e refrigerantes gelados. Além disso, com a geladeira, bebem água gelada e ainda consomem, em larga escala, a chicha, que é uma mistura de água com mandioca, milho, arroz e frutas do cerrado, dentre outros gêneros de origem vegetal.

Relatam que, para utilizar a água nos mananciais hídricos quando em campanhas de caça, pesca, coleta ou outra atividade fora da aldeia, sempre observam se ela é límpida e se não tem cheiro ou partículas suspensas, e procuram uma parte mais úmida às margens, cavam um buraco e esperam encher de água e decantar para depois beberem. Esse relato aponta para a utilização de técnicas ou métodos de tratamento ou purificação da água: a filtração e separação por decantação – métodos aprimorados nas Estação de Tratamento de Água (ETA).

Reportaram que, antes da instalação de lavouras mecanizadas na região, nas atividades de caça e outras como coletas e viagens, procuravam água acumulada em ocos de árvores quando estavam com sede – não foi especificado o tipo de árvore – e bebiam por meio de um canudo de taquara. Atualmente, explicaram, isso é impraticável em decorrência da deriva dos agrotóxicos, bem como da disponibilização de outros meios como garrafas térmicas.

Outro ponto interessante, ressaltado por um jovem Haliti-Paresi numas das conversas informais sobre as mudanças no tempo com relação com a água, é que antigamente, antes do homem branco chegar à região, não havia cuidados especiais com a água. Contudo, o pai do jovem, que participou da entrevista, contestou a fala do filho afirmando que tomavam todas as precauções para não se contaminar com as águas e relatou casos de diarreia.

Não foi relatado se no passado ocorreu óbito por consumo de água contaminada, o que seria de difícil identificação, uma vez que a concepção e as causas de muitas doenças entre os Haliti-Paresi são fortemente ligadas a causas místicas, principalmente ao feitiço ( Diegues, 2005DIEGUES, A. C. Aspectos sócio-culturais e políticos do uso da água. São Paulo: Nupaub-USP, 2005. Disponível em: http://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub.fflch.usp.br/files/color/agua.pdf. Acesso em: 7 nov. 2017.
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; Silveira, 2011SILVEIRA, E. M. dos S. Cultura como desenvolvimento entre os Paresi Kozarini. 2011. 159 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011. ).

Além da fervura, que se mostra eficaz, algumas alternativas de tratamento de água em escala doméstica são disponíveis no mercado e a ciência tem experimentado técnicas eficientes de purificação, como reportado por Costa Sobrinho, Coelho e Coelho (2016) quando estudaram a eficácia de velas filtrantes na retenção de cistos de Giardia duodenalis em água experimentalmente contaminada, para que pudesse ser acondicionada em geladeira e/ou frízer.

A diretriz da Sesai estabelece que devem ser propiciados meios convencionais de desinfecção e tratamento de água nas aldeias e procura padronizar, na medida do possível, as tecnologias de tratamento da água para todas as aldeias do Brasil. Entretanto, em lugares longínquos ou marginais, isso poderia ser inviabilizado por falta de tecnologias apropriadas (Brasil, 2014) e efetivamente não foi implantado nas aldeias.

Uma das lideranças Haliti-Paresi participa do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Sepotuba, na tentativa de equilibrar a discussão do uso da água em relação ao seu modo de vida em consonância ao interesse econômico ( Brasil, 1997BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 jan. 1997. ). De acordo com essa liderança, a comunidade tem pouco benefício com a participação no comitê.

Como as comunidades indígenas em geral, os Haliti-Paresi adaptaram-se bem à energia elétrica nas aldeias, inclusive com a substituição da iluminação que mantinham dentro da hati (casa tradicional) durante a noite ( Maciel, 2010MACIEL, M. R. A. Raiz, planta e cultura: as roças indígenas nos hábitos alimentares do povo Paresi, Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. 2010. 206 f. Tese (Doutorado em Agronomia) – Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2010. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/103232. Acesso em: 5 nov. 2017.
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), e a outras comodidades que proporcionam conforto para o clima quente da região, como água e sucos gelados. Porém isso não ocorreu com a água tratada, pois percebem as características organoléticas alteradas na forma como foi apresentada na aldeia e na que bebem quando vão à cidade.

CONCLUSÕES

A percepção dos indígenas Haliti-Paresi em relação à qualidade da água está fortemente associada à aparência visual (cor), olfativa (odor) e palatável (gosto). Consideram a água que consomem boa e de qualidade, consumindo-a primordialmente em sua forma in natura . Rejeitam a purificação com cloro e não demonstraram interesse em adotar métodos artificiais de tratamento de água. Porém, adotam tradicionalmente meios convencionais para o uso em campanhas fora das aldeias e, ainda, conforme sua cosmovisão de mundo, pedem aos espíritos a purificação da água para o uso, a saúde e proteção em geral, apontando para a cultura como valor, na forma de pensar e agir sobre o mundo.

É necessário adotar e incentivar estratégias de tratamento alternativo, em razão da disseminação de doenças, inclusive as de veiculação hídrica. De forma coletiva, a desinfecção com luz ultravioleta e, para o tratamento local nas residências, a utilização de filtros de barro com velas com carvão ativado são alternativas de baixo custo que não modificam as características organoléticas da água e têm conseguido filtragem de patógenos em até 100%.

Sugere-se um programa de monitoramento constante das águas nas aldeias indígenas, não só da água servida nas casas, mas também da usada em atividades como banho, que geralmente ocorrem em corpos de água a que todos os moradores das aldeias têm acesso, com intuito de verificar a qualidade e acompanhar possíveis alterações no decorrer do tempo.

AGRADECIMENTOS

Agradecimento ao CNPq pela avaliação positiva para a pesquisa em Terra Indígena, à comunidade indígena Paresi da Tirf por permitir a pesquisa contribuindo com a mesma e a Universidade do Estado do Mato Grosso, por ofertar o mestrado.

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    Agradecimento ao CNPq pela avaliação positiva para a pesquisa em Terra Indígena, à comunidade indígena Paresi da Tirf por permitir a pesquisa contribuindo com a mesma e a Universidade do Estado do Mato Grosso, por ofertar o mestrado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2019
  • Aceito
    24 Mar 2023
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