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REFUGIADOS DA ÁGUA: vulnerabilização e conflitos por acesso à água

WATER REFUGEES: vulnerabilization and conflicts evolving access to water

RÉFUGIÉS DE L’EAU: vulnérabilisation et conflits pour l’accès à l’eau

Resumos

Este artigo busca compreender como os processos de vulnerabilização socioambiental repercutiram nos conflitos com as populações atingidas pelo deslocamento compulsório nas obras da transposição do Rio São Francisco, fazendo com que essas se tornassem refugiadas da água. São analisadas três Vilas Produtivas Rurais (VPR’s), sendo duas do Eixo Leste – uma em Sertânia/PE (VPR Salão) e outra em Monteiro/PB (VPR Lafayete) – e a terceira no Eixo Norte, em São José de Piranhas/PB (VPR Irapuá I). Essas localidades foram afetadas pelo empreendimento, tendo como uma das questões centrais a dificuldade do acesso à água para consumo humano e produção por parte das famílias para lá transferidas. Utilizam-se, para este artigo, as metodologias de revisão bibliográfica, entrevistas em grupo, reuniões e visitas de campo às referidas VPR’s. Concluiu-se que a vulnerabilização social decorre das múltiplas formas de desterritorialização dessas famílias, rompendo vínculos sociais, culturais e ambientais das comunidades rurais, sem garantia do Estado frente às suas responsabilidades com o deslocamento forçado das famílias, o desmantelamento das áreas produtivas e o não acesso à água com a qualidade e a quantidade necessárias para o consumo humano e para a produção agrícola.

Vulnerabilização socioambiental; Conflitos por água; Refugiados da água; Transposição do Rio São Francisco; Desterritorialização


This article presents an understanding of how the socio-environmental vulnerabilities of the populations displaced by the San Francisco River Diversion Project have turned them into water refugees. Three Rural Villages (VPR’s) are analyzed. The VPR Salão, located in Sertania/PE, and the VPR Lafayete, in Monteiro/PB, are in the East Canal. The third VPR is Irapuá I in the North Canal and is in the municipality of Piranhas/PB. These areas were affected by this project and had as one of the results the lack of access to potable water for human consume and production. This paper used the methodologies of bibliographical revision, group interviews with local people, and visits to the three VPRs. The authors conclude that the social vulnerabilization of those populations have various sources such as the deterritorialization that made them to loose social, cultural and environmental ties that are common in the rural areas and also the lack of access to drinking water and water for agricultural production, which is a responsibility of the government to provide.

Social-environmental vulnerabilization; Water conflicts; Water refugees; São Francisco River Diversion Project; Deterritorialization


Cet article cherche à comprendre comment les processus de vulnérabilité socio-environnementale ont eu des répercussions sur les conflits avec les populations affectées par le déplacement forcé dans les travaux de transposition du fleuve São Francisco, les faisant devenir des réfugiés de l’eau. Trois Villages Productifs Ruraux (VPR) sont analysés, deux dans l’Axe Est – un à Sertânia/PE (VPR Salão) et un autre à Monteiro/PB (VPR Lafayete) – et le troisième dans l’Axe Nord, à São José de Piranhas/ PB (VPR Irapuá I). Ces localités ont été impactées par le projet, l’un des enjeux centraux étant la difficulté d’accès à l’eau pour la consommation humaine et la production par les familles qui y sont transférées. Pour cet article, les méthodologies de revue bibliographique, d’entretiens de groupe, de réunions et de visites de terrain auprès des VPR susmentionnés sont utilisées. Il a été conclu que la vulnérabilité sociale découle des multiples formes de déterritorialisation de ces familles, rompant les liens sociaux, culturels et environnementaux dans les communautés rurales, sans que l’État ne garantisse ses responsabilités avec le déplacement forcé des familles, le démantèlement des zones productives et le manque d’accès à l’eau avec la qualité et la quantité nécessaires à la consommation humaine et à la production agricole.

Vulnérabilité socio-environnementale; Conflits de l’eau; Réfugiés de l’eau; transposition du Fleuve São Francisco; Déterritorialisation


INTRODUÇÃO

A ideia de transpor as águas do Rio São Francisco como solução para o abastecimento hídrico da região do Nordeste do Brasil data ainda do período imperial, sendo discutida incansavelmente, ao longo de décadas, por sucessivos governos, sem ter saído do plano do debate (Oliveira, 2015OLIVEIRA, G. P. de. O rio e o caminho natural: propostas de canais do São Francisco, aspectos físicos fluviais e dinâmicas políticas no Brasil Império (1846-1886). 2015. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUBD-9XHH6L/1/oliveira__gabriel_pereira_de._o_rio_e_o_caminho_natural._disserta__o.pdf. Acesso em: 19 abr. 2018.
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). Foi apenas no ano de 2007, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, cuja trajetória de vida está profundamente marcada pelo fenômeno das secas, que a gestão governamental reuniu condições políticas para implementar o projeto de transposição do Rio São Francisco (PISF) (BRASIL, 2021BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Projeto de Integração do Rio São Francisco. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/seguranca-hidrica/projeto-sao-francisco. Acesso em: 23 abr. 2021.
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). Esse projeto constituiu uma das maiores obras de infraestrutura hídrica do país no âmbito da Política Nacional de Recursos Hídricos, e seu objetivo foi garantir a oferta de água para 12 milhões de pessoas em 390 municípios do Nordeste setentrional (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte), parte do semiárido brasileiro que sofre constantemente com longos períodos de estiagens (Sousa et al., 2018SOUSA, M. de F; SANTOS, C. F; ROZENDO, C; DINIZ, P. C. O. As marcas a transposição do Rio São Francisco: negociações e tensões em torno da desapropriação de áreas no município de São José de Piranhas-PB. In: CONGRESSO NACIONAL DA DIVERSIDADE DO SEMIÁRIDO, 1., 12-14 dez. 2018, Natal. Anais... Natal: [S. N.], 2018. Disponível em https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/50552, Acesso em: 20 abr. 2023.
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).

A inauguração festiva da obra (Maisonnave; Knapp, 2018) em 2017, demonstrou a grandiosidade do empreendimento, formado por canais, barragens, túneis, aquedutos, estações elevatórias etc., que se estenderam por cerca de 500 quilômetros. O PISF é composto por dois eixos (Figura 1): o primeiro – Eixo Leste –, com 217 quilômetros de extensão, corta o estado de Pernambuco partindo da cidade de Floresta e chegando à bacia do Rio Paraíba (no estado que leva o mesmo nome) para, a partir daí, por força da gravidade, percorrer aproximadamente 100 quilômetros, até chegar a um dos seus destinos prioritários – o reservatório de água que abastece a cidade de Campina Grande/PB e seu entorno. A segunda parte do empreendimento, o Eixo Norte (Valadares, 2020VALADARES, João. Bolsonaro inaugura trecho da obra de transposição do rio São Francisco, assim como Lula, Dilma e Temer: essa é a maior obra hídrica do Brasil; orçamento inicial saltou de R$ 4,5 bilhões para R$ 12 bilhões. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 jun. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/bolsonaro-inaugura-trecho-da-obra-de-transposicao-do-rio-sao-francisco-assim-como-lula-dilma-e-temer.shtml?origin=uol. Acesso em: 07 nov. 2020.
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), sai da cidade de Cabrobó, também em Pernambuco, avança cerca de 260 quilômetros pelo sertão até alcançar o estado da Paraíba, bifurcando-se então para os estados do Ceará e Rio Grande do Norte (BRASIL, 2021BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Projeto de Integração do Rio São Francisco. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/seguranca-hidrica/projeto-sao-francisco. Acesso em: 23 abr. 2021.
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).

Figura 1
– Localização dos Eixos do PISF

O ministério de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional,1 1 O Ministério da Integração Nacional foi fundido com o Ministério das Cidades e denominado de Ministério de Desenvolvimento Regional, no governo de Jair Messias Bolsonaro (2019 a 2022). Em 2023, no terceiro governo de Luís Inácio Lula da Silva, a pasta foi recriada como Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. responsável pela obra do PISF, previu que, em seu percurso, haveria a desapropriação de cerca de 2 mil propriedades rurais e o reassentamento de 848 famílias em 18 Vilas Produtivas Rurais (VPR’s).2 2 As VPR’s são estruturadas em cinco espaços: área de reserva legal, área de lazer e serviços (de uso coletivo), área da residência (com 99 m2) de meio hectare, área de produção de sequeiro (em média, 5 hectares) e área de um hectare para irrigação (BRASIL, 2005). As VPR’s foram criadas especialmente para abrigar a parte da população atingida mais vulnerável do ponto de vista socioeconômico (BRASIL, 2005BRASIL. Projeto São Francisco: água a quem tem sede. Programa de Reassentamento das Populações (PBA 08). 2005. Disponível em: https://antigo.mdr.gov.br/images/stories/ArquivosSEMOB/ArquivosPDF/Ramal_do_Agreste/PROGRAMA_08_Reassentamento_de_Familias.pdf. Acesso em: 08 maio 2018.
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).3 3 Apenas as famílias cuja propriedade e benfeitorias perfizessem o valor de até 30 mil reais tinham o direito ao reassentamento nas VPR’s; as demais foram indenizadas em dinheiro (BRASIL, 2005). O deslocamento compulsório desta população criou uma série de conflitos esgarçando suas relações sociais, desarticulando seus sistemas produtivos locais e suas formas tradicionais de acesso à água, criando novos processos de vulnerabilização.4 4 O conceito de vulnerabilidade social pode ser entendido como a “predisposição que um dado grupo tem para ser afectado, em termos físicos, econômicos, políticos ou sociais, no caso de ocorrência de um processo ou acção desestruturante de origem natural ou antrópica” (Mendes; Tavares, 2011, p. 06), como o foram algumas das famílias atingidas pela transposição. Este texto tem como objetivo refletir sobre as condições desse reassentamento nas VPR’s, destacando especialmente as estratégias e lutas das famílias pelo acesso à água no âmbito de um projeto que, em princípio, seria para ampliar e democratizar esse acesso.

Para os objetivos deste texto, privilegiamos a análise de três VPR’s (todas inauguradas em 2016, nove anos após iniciada a obra). Duas no Eixo Leste, as únicas desse eixo, sendo uma localizada em Sertânia/PE (VPR Salão) e a outra em Monteiro/PB (VPR Lafayete), contando com 38 e 61 famílias, respectivamente. A outra vila está situada no Eixo Norte, no município de São José de Piranhas/PB (VPR Irapuá I), para onde foram deslocadas 30 famílias.

Os dados (qualitativos) foram coletados pelos autores, em diferentes momentos,5 5 De modo geral, a compilação de pesquisas realizadas para compor este texto está circunscrita à inauguração do Eixo Leste (2017) e ao desfecho da luta por acesso à água na VPR Lafayete (em Monteiro), resultando em uma dissertação (Sousa, 2020). destacando-se as Vilas Lafayete e Irapuá I em 2018 (março e agosto, respectivamente) por meio de entrevistas individuais e coletivas, participação em reuniões e observações feitas diretamente pelos pesquisadores. Esses dados foram atualizados, posteriormente, por pesquisas que resultaram em trabalhos acadêmicos (Silva, 2020SILVA, A. J. S. Sociologia ambiental e ensino de sociologia: uma análise dos livros didáticos de sociologia para o ensino médio. 2020. 120 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) –Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2020.; Sousa, 2020SOUSA, M. de F. O. de. As Marcas da Transposição: acesso à água, conflitos e desenvolvimento no município de São José de Piranhas-PB. 2020. 180 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.; Silva, 2022SILVA, M. M. V. da. Injustiça Hídrica: a implantação do projeto de integração do Rio São Francisco no Semiárido brasileiro. 2022. 130 f. Dissertação (Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). A VPR Salão, por sua vez, fazia parte do projeto de pesquisa sobre reparação integral comunitária da Fiocruz6 6 Projeto de pesquisa “Estudo ecossistêmico do acesso à água, dos conflitos socioambientais e da reparação na área de abrangência da transposição do rio São Francisco”, chamada CNPq/Instituto Aggeu Magalhães-FIOCRUZ Nº 39/2018, coordenado pelo Dr. André Monteiro Costa (pesquisador da FIOCRUZ), tendo vigência entre junho de 2019 e maio de 2023. e, além de entrevistas individuais e coletivas, foi possível colher informações durante o ciclo de oficinas temáticas (associativismo, saúde coletiva, direitos etc.) dentro do projeto. Outros estudos sobre estas VPR’s também foram consultados, como forma de estabelecer um diálogo entre diferentes olhares sobre a problemática de acesso à água do ponto de vista das famílias reassentadas.

Do ponto de vista teórico, tencionamos trabalhar com a ideia de “refugiados da água” para fazer referência às famílias desalojadas compulsoriamente pelo PISF. Segundo Casarões (2010)CASARÕES, G. S. P. Os refugiados da água: problemas globais, soluções locais? Plurale en Revista, mar. 2010. Disponível em: https://www.plurale.com.br/site/noticias-detalhes.p?cod=7942&codSecao=11&oMnu=especiais⊂=agua&q=ESPECIAL+%C3%81GUA%2F+Os+refugiados+da+%C3%A1gua%3A+problemas+globais%2C+solu%C3%A7%C3%B5es+locais%3F&bsc=ativar. Acesso em: 25 mar. 2021.
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, esse termo designa um subgrupo de refugiados ambientais e, embora não seja um problema recente, essa definição foi criada há pouco tempo, tendo em vista os problemas hídricos que crescem de forma exponencial mundialmente. No Brasil, a categoria refugiado tem sido utilizada com frequência para referir-se às populações atingidas pelos megaprojetos (hidroelétricos, minerais, rodoviários etc.) cuja situação de vulnerabilidade e violação de direitos em que se encontram não refletem os compromissos assumidos pelos gestores no início de cada projeto. Para essa “nova” categoria de refugiados, os impactos socioambientais são considerados um mal necessário, justificando-se pelos benefícios futuros trazidos pelo progresso. Assim, as bases territoriais (materiais, culturais, simbólicas etc.) das comunidades são quase totalmente extintas e, ao mesmo tempo, “acompanhadas de reparos financeiros insuficientes ou de reassentamentos incapazes de assegurar as condições de vida e de trabalho anteriormente acessadas”, concluem Giongo, Mendes e Werlang (2017, p. 133).

Guardadas as devidas proporções, o PISF também assumiu compromissos para com os atingidos pela obra, mas a realidade que se apresenta para muitas famílias impactadas pela transposição repete uma história bem conhecida em várias partes do planeta onde foram construídos grandes projetos hídricos. As populações e comunidades atingidas foram excluídas dos frutos do desenvolvimento e do progresso alardeados para justificar o projeto, engrossando a enorme lista de refugiados do desenvolvimento no Brasil.7 7 A noção de refugiados do desenvolvimento é uma categoria que vem sendo construída – teórica e politicamente – pelo menos, desde meados da década de 1980 no Brasil. De acordo com Nóbrega (2011), é o reconhecimento institucional de que, em função dos grandes projetos de infraestrutura (hidroelétricos, minerais etc.), uma série de compromissos por parte do Estado e dos responsáveis pelos empreendimentos deveriam ser disponibilizados em benefício dos atingidos.

No caso em análise, de forma compulsória, as famílias foram apartadas de seus territórios – sob a promessa de que a transposição levaria água a doze milhões de pessoas – enquanto se definia o novo local para seu reassentamento. Por cerca de sete anos, muitas delas viveram em diversas localidades, inclusive em áreas urbanas, sem poder produzir e desestruturando seus projetos de vida. Quando finalmente foram assentadas, as VPR’s para onde foram forçadas a se mudar tornaram-se espaços altamente tutelados e controlados pela burocracia governamental (Costa; Diniz, 2021COSTA, A. M.; DINIZ, P. C. O. Territórios tutelados e processos de vulnerabilização: história social da transposição. In: SANTOS, S. E. de B. et al. (orgs.). Transvergente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021.). A figura de refugiados diz respeito, exatamente, a uma dimensão metafórica em que essas famílias, com seus deslocamentos obrigatórios, perderam autonomia dentro do que deveria ser seu novo território, sendo ilustrativa a acentuada separação do lugar onde viviam anteriormente, com suas estratégias individuais e coletivas de acesso às fontes de água para diversos usos, e a condição vivida nas VPR’s, em que as decisões sobre esses processos lhes foram subtraída. Daí a ideia refugiados da água.

Ao mesmo tempo, a noção de vulnerabilização busca explicitar historicamente e politizar as origens que propiciam a transformação de certos agrupamentos sociais em grupos vulneráveis propensos a perdas econômicas, simbólicas, culturais etc., envolvendo “uma gama de fenômenos de natureza multidimensional e multifacetada, que torna imperativo o diálogo e um olhar mais abrangente diante do tema”, conforme dizem Marandola Jr. e Hogan (2006, p. 35). Entender a condição de vulnerabilização das populações e comunidades atingidas, portanto, é um elemento fundamental tanto para o resgate da historicidade dos processos que afetam grupos sociais vulneráveis e seus territórios, bem como para atribuir a essas populações a condição de sujeitos portadores de direitos que foram ou se encontram negados, segundo Porto (2011)PORTO, M. F. S. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: Um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 93, p. 31-58, 2011. doi: 10.4000/rccs.133..

Além dessa introdução e das considerações finais, o texto apresenta três seções: (1) a primeira faz uma abordagem sobre conflitos socioambientais e injustiça ambiental e sobre sua relação com conflitos por água; (2) a seção seguinte busca explorar a ideia de desterritorialização e privação do acesso à água para grupos sociais vulnerabilizados; e (3) a terceira seção reflete sobre os “enclaves” da transposição, destacando como as VPR’s estudadas se tornaram espaços tutelados pelo Estado. Para concluir, alertamos sobre a situação atual das famílias, buscando dar visibilidade ao processo de vulnerabilização socioeconômica, de tutela governamental, e à condição de refugiadas da água a que foram submetidas essas famílias. Aqui destacamos, também, o protagonismo destas em busca de alternativas de acesso à água.

CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E INJUSTIÇA AMBIENTAL

No Brasil, o desfecho e as consequências de grandes projetos de desenvolvimento deram origem a inúmeros conflitos socioambientais que, a partir da década de 1990, tornaram-se objeto de investigação e análise de pesquisadores de diversas áreas, ressaltando-se a complexidade das questões ambientais e a impossibilidade de serem reduzidas a questões ecológicas (Alonso; Costa, 2002ALONSO, A.; COSTA, V. Ciências Sociais e Meio Ambiente no Brasil: um balanço bibliográfico. Revista Brasileira de Informações Bibliográficas em Ciências Sociais, n. 53, p. 35-78, 2002. Disponível em: https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/245/236. Acesso em: 20b jan. 2019.
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). O país tem se destacado na escala internacional pelos inúmeros conflitos pela terra e pela água,8 8 Para conferir o número de conflitos por terra e por água no Brasil, acessar o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino – CEDOC. Comissão Pastoral da Terra. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/ Acesso em: 21.04.2023. assumindo, de forma praticamente recorrente, o primeiro lugar em termos de assassinatos de líderes ambientais e membros de comunidades indígenas (Global Witness, 2019GLOBAL WITNESS, Annual report 2018. Delivering global change. 2019. Disponível em: https://www.globalwitness.org/pt/about-us/annual-report-2018-delivering-global-change/. Acesso em: 13 out. 2020.
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). Importante destacar que estamos diante de duas dimensões entendidas como conflitos socioambientais e como conflitos da água e pela água.

Os conflitos socioambientais ocorrem em torno da captura e dominação do meio ambiente e do uso e significado do território, tendo, por um lado, um valor simbólico de disputas de significados e diferenças na compreensão dos problemas ambientais (Ferreira, 2016FERREIRA, J. G. Saneamento básico: factores sociais no insucesso da despoluição da bacia do rio Lis. Saarbrücken: Novas Edições Académicas, 2016.). Por outro lado, emergem a partir dos distintos modos de apropriação técnica, econômica, social e cultural do mundo material, surgindo associados a situações de disputa pela captura dos recursos e serviços ambientais, em que imperam condições desproporcionais no acesso aos recursos naturais e na forma desigual de exposição das comunidades à degradação ambiental. Em suma, tratam-se de lutas políticas e simbólicas estabelecidas em torno do sentido e do destino dos territórios que levam a “embates entre práticas espaciais distintas que operam sobre um mesmo território ou sobre territórios interconexos” (Zhouri et al., 2016ZHOURI, A. et al. O desastre da Samarco e a política das afetações: classificações e ações que produzem o sofrimento social. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 68, n. 3, p. 36-40, jul./set. 2016. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v68n3/v68n3a12.pdf. Acesso em: 10 jan. 2021.
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, p. 37). Tal situação provoca, ao mesmo tempo, “colisão e concorrência entre sistemas diversos de uso, controle e significação dos recursos” (Zhouri et al., 2016ZHOURI, A. et al. O desastre da Samarco e a política das afetações: classificações e ações que produzem o sofrimento social. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 68, n. 3, p. 36-40, jul./set. 2016. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v68n3/v68n3a12.pdf. Acesso em: 10 jan. 2021.
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, p. 37) e despossessão dos grupos locais, o que os vincula à temática da injustiça ambiental e, por vezes, à subordinação das comunidades mais vulneráveis, dando origem ao que Acserald (2004, 2010) intitula de zonas de sacrifício, associando desigualdades socioambientais, risco e conflito.

Para Zhouri e Laschefsky (2014, p. 04), esses conflitos não se restringem apenas a situações em curso, mas podem ter início desde o momento de concepção e/ou de planejamento de intervenções em territórios determinados. São esses conflitos que denunciam as contradições nas quais as vítimas não são só excluídas do chamado desenvolvimento, como também assumem todo o ônus dele resultante.

A apropriação da base territorial de grupos sociais, removendo-os do seu território, além de significar a perda da terra, também representa uma violenta desterritorialização, uma vez que, em diversas situações, a nova localização, com condições materiais e simbólicas diferentes, pode não permitir a reprodução de suas práticas socioculturais de origem, alertam Zhouri e Laschefski (2014ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. Conflitos Ambientais. Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais - GESTA/UFMG. 2014. Disponível em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2014/04/ZHOURI__LASCHEFSKI_-_Conflitos_Ambientais.pdf. Acesso em: 15 dez. 2019.
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, p. 09).

De forma geral, os conflitos socioambientais em territórios tradicionais surgem na medida em que o espaço é dominado pelo Estado ou por grandes conglomerados econômicos por ele chancelado, chocando-se com os grupos sociais que habitam ou utilizam esses territórios e cujas formas de uso dependem, em alto grau, dos ritmos de regeneração natural do meio utilizado e das relações sociais estabelecidas. Desse modo, o território é entendido como patrimônio necessário para a produção e reprodução para garantir a sobrevivência da comunidade como um todo, pois as “formas de uso são vinculadas a uma socialização do grupo em princípios de reciprocidade e coletividade mais do que competitividade”, segundo Zhouri e Laschefsky (2014, p. 09).

Os conflitos pela água, por sua vez, têm elementos comuns e distintos da maioria ou de outros conflitos socioambientais. Por se tratar de um dos recursos naturais mais disputados e ameaçados – escasso em muitas regiões do planeta e com maiores dificuldades no acesso por grupos mais vulneráveis –, a água tanto gera consensos, como dissensos. As situações de escassez e conflitos resultam da desigual distribuição do recurso e da sua captura por parte de alguns grupos econômicos. Os conflitos também emergem igualmente por serem negligenciadas as dinâmicas sociais e culturais e a forma como estas interagem com o meio natural, designadamente, na forma como regulam o acesso ao recurso e influenciam as preferências e o conhecimento das populações (Agudo, 2009AGUDO, P. A. Typology and roots of conflicts over water in the world. In: DECLÒS, Jaume (coord.). Water, a right, not a commodity: Civil Society proposals for a public model of water services. Catalunha: Engineering without Borders, 2009.).

Castro (2009CASTRO, J. E. Luta pela água na América Latina. Desafios do Desenvolvimento. Brasília, IPEA, v. 06, n. 51, jun. 2009. Disponível em: http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&id=1030:catid=28. Acesso em: 10 out. 2020.
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; 2010), por sua vez, alarga esse debate à disputa pelos direitos de cidadania, em que as lutas pela água se ligam a lutas sociais mais amplas, incluindo a proteção dos ecossistemas, a luta pela posse da terra e a defesa dos direitos dos seres humanos pelo acesso à água potável em qualidade e quantidade suficientes, e, ao mesmo tempo, pelo acesso aos serviços de água, coleta e tratamento de esgotos. Destacamos ainda os citados conflitos contra a construção de grandes infraestruturas hídricas, bem como os conflitos internacionais pelo acesso e controle da água – geopolítica da água (Ferreira, 2016FERREIRA, J. G. Saneamento básico: factores sociais no insucesso da despoluição da bacia do rio Lis. Saarbrücken: Novas Edições Académicas, 2016.). A emergência climática e o risco de escassez de água recolocam o tema no debate sobre a injustiça socioambiental e em perspectiva que se afirma pela noção de justiça hídrica, o que reforça também o seu lugar enquanto direito humano (Castro, 2009CASTRO, J. E. Luta pela água na América Latina. Desafios do Desenvolvimento. Brasília, IPEA, v. 06, n. 51, jun. 2009. Disponível em: http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&id=1030:catid=28. Acesso em: 10 out. 2020.
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).

No semiárido brasileiro (Silva, 2020SILVA, A. J. S. Sociologia ambiental e ensino de sociologia: uma análise dos livros didáticos de sociologia para o ensino médio. 2020. 120 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) –Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2020., p. 51), podemos relacionar os conflitos socioambientais “com os dilemas em torno do acesso à água potável” e com as estratégias de resolução presentes na opção pela construção de um número considerável de grandes açudes, pela perfuração de poços e por outras formas de produção e/ou armazenamento de água de forma concentrada. Mas também estão muito presentes nas estratégias de dominação e controle pelos grandes proprietários, servindo como uma arma política de influência e domínio do sufrágio universal das comunidades no entorno das fazendas, pela própria dependência criada sobre a figura do grande proprietário rural – os antigos “coronéis”. Há também um crescente aumento da presença de empresas do agronegócio que comandam a fruticultura irrigada com grande demanda de água, gerando conflitos que começam a emergir em diferentes partes daquela região (Número..., 2020).

Essas circunstâncias são reveladoras da desigualdade de oportunidades no acesso aos recursos naturais (nesse caso, a água) por parte das populações marginalizadas e vulneráveis e que são geradoras de injustiça ambiental, compreendida como o “mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento” a essas populações (Acserald; Mello; Bezerra, 2009, p. 41).

Assim ocorreu com as populações e comunidades tradicionais atingidas pela transposição. Considerado o maior projeto hídrico do Brasil nos últimos anos e legitimado pelo discurso da promoção da segurança hídrica (Silva, 2017SILVA, A. C. A. B. da. As águas do Rio São Francisco: disputas, conflitos e representações do mundo rural. 2017. 406 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.), as populações e comunidades tradicionais foram deslocadas de forma compulsória, na medida em que os canais da obra rasgavam seus territórios e desestruturavam seus modos de vida, numa intensa e violenta desterritorialização. Esse processo que Haesbaert (2021HAESBAERT, R. Território e descolonialidade: sobre o giro (multi)territorial/de(s)colonial na “América Latina”. Buenos Aires, Niterói: CLACSO; UFF, 2021. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20210219014514/Territorio-decolonialidade.pdf. Acesso em: 26 mar. 2021.
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/s...
, p. 275) denomina de “precarização territorial”,9 9 Para Haesbaert (2011, p. 275-276) “A precarização da vida material no território, [...] nem sempre se conjuga com a perda dos referenciais simbólico-territoriais, podendo até estimular o processo inverso, pois elementos culturais-identitários podem ser fortalecidos a partir da referência a essa condição materialmente precária”. Segundo sua abordagem, a perda de controle sobre o espaço sempre está envolvida numa transformação com “os processos de reterritorialização de diversas ordens”. ao mesmo tempo, alia perdas “de controle das condições materiais de existência” e das condições simbólicas; processo muito evidente no caso das populações e comunidades tradicionais, dotadas, em grande medida, “de um forte laço territorial que os empodera ao servir de referente para uma construção identitária” (Haesbaert, 2021HAESBAERT, R. Território e descolonialidade: sobre o giro (multi)territorial/de(s)colonial na “América Latina”. Buenos Aires, Niterói: CLACSO; UFF, 2021. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20210219014514/Territorio-decolonialidade.pdf. Acesso em: 26 mar. 2021.
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/s...
, p. 275).

DESTERRITORIALIZAÇÃO E PRIVAÇÃO DO ACESSO À ÁGUA

Os territórios tradicionais são estruturados sob diferentes níveis e dimensões, de modo que “a relação dos povos e comunidades tradicionais com a terra e o meio ambiente é pautada pelo respeito e cuidado mútuo”, segundo Little (2018LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, v. 28, n. 01, p. 251-290, 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6871/7327. Acesso em: 29 set. 2020.
https://periodicos.unb.br/index.php/anua...
, p. 283). A água, como um bem de uso comum nessas comunidades, é um elemento importante para a coesão territorial, e as fontes hídricas são organizadas de modo que possam ser compartilhadas por todos, especialmente em regiões áridas e semiáridas. Nos casos em análise, o leito de riachos e de rios, mesmo intermitentes, era fundamental para essa coesão. Tradicionalmente, os solos de aluvião (encontrados no leito de riachos) são usados para perfuração de poços, desde os mais simples como cacimbas e cacimbões, até os mais complexos denominados poços tubulares, que precisam de máquinas próprias para perfuração (perfuratrizes), especialmente quando o potencial de água no aluvião permite, conforme ressalta Rebouças (1997)REBOUÇAS, A. da C. Água na região Nordeste: desperdício e escassez. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 29, p. 127-154, 1997. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8976/10528. Acesso em: 26 mar. 2021.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
, uma que vez esses aquíferos são utilizados amplamente pelos pequenos proprietários e meeiros do semiárido.

Esse era o caso do Rio Paraíba, no qual os moradores das comunidades tradicionais de Pau D’arco e Mulungu (locais por onde passaram os canais da transposição e onde foi instalada a VPR Lafayete) relataram ter mais de 40 poços, das mais variadas profundidades, mas todos com água suficiente para consumo humano e/ou animal e/ou uso produtivo (Silva, 2022SILVA, M. M. V. da. Injustiça Hídrica: a implantação do projeto de integração do Rio São Francisco no Semiárido brasileiro. 2022. 130 f. Dissertação (Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.). O leito do rio era usado para lazer, irrigação e dessedentação dos animais durante todo o ano pelas famílias sem condições de ter um poço tubular. Para o consumo humano, utilizavam-se da água armazenada nas cacimbas e/ou em pequenos açudes no período chuvoso, e, nos momentos de verão, as famílias eram abastecidas a partir de outras fontes de boa qualidade situadas no território, colocando-se em prática o princípio da coletividade e da não competitividade, conforme nos informaram acima Zhouri e Laschefsky (2014).

O acesso às diversas fontes de água no território é algo rotineiro, geralmente feito todos os dias, uma vez que muitas famílias não têm como armazenar água em grandes quantidades. Nesse sentido, há um certo código de conduta para as famílias mais demandadoras de água (e que não dispõem de fontes próprias). Elas diversificam suas fontes (para consumo humano e preparo de alimentação; para uso doméstico geral; para dessedentação animal; para pequenas irrigações etc.) por vários vizinhos e/ou locais, de modo a não “abusar” da bondade de quem cede a fonte e não gerar sobrecarga sobre a mesma. Enfim, são estratégias organizadas para a gestão coletiva da água, favorecendo o direito de todas as famílias de suprirem a necessidade de usos diversos e garantindo a reprodução social nos sítios.10 10 Conforme Nogueira (2019, p. 102), os sítios são “porções indivisíveis de terra, no interior das quais famílias nucleares detêm e se organizam territorialmente em parcelas […]”. Lugar em que existem relações “[…] de interconhecimento entre seus habitantes, que se identificam como pertencentes física e moralmente àquele lugar”. Ao descrever o processo desencadeado pela transposição em São José de Piranhas/PB, Nogueira (2019)NOGUEIRA, V. S. De sitiantes a moradores de vila: o projeto de integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste brasileiro e as novas territorialidades. Novos Cadernos NAEA, Belém, v. 22, n. 3, p. 97-120, 2019. doi: 10.5801/ncn.v22i3.7145. diz que, com a chegada do empreendimento, os “sitiantes” de Riacho de Boa Vista (sítio de onde as famílias foram deslocadas para a VPR Irapuá I) foram transformados em “moradores de vila” e passaram a viver como em um condomínio, “com regras para tudo” (Nogueira, 2019NOGUEIRA, V. S. De sitiantes a moradores de vila: o projeto de integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste brasileiro e as novas territorialidades. Novos Cadernos NAEA, Belém, v. 22, n. 3, p. 97-120, 2019. doi: 10.5801/ncn.v22i3.7145., p. 112), reforçando o caráter de tutela para com as famílias das VPR’s.

Essa forma tradicional de ordenamento do território é uma característica dos “grupos sociais fundiariamente diferenciados frente ao Estado brasileiro”, conforme diz Little (2018LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, v. 28, n. 01, p. 251-290, 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6871/7327. Acesso em: 29 set. 2020.
https://periodicos.unb.br/index.php/anua...
, p. 283). Assim, quando seus modos de vida e seus territórios são ameaçados pelos grandes projetos de desenvolvimento, o conflito instaurado e a luta resultante deste têm como foco principal o reconhecimento da legitimidade dos regimes de bens comuns compartilhados e das leis consuetudinárias que fundamentam seus territórios tradicionais. Esse “direito” é usado pelos povos e comunidades tradicionais como instrumento estratégico nas lutas por justiça social, conclui Little (2018)LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, v. 28, n. 01, p. 251-290, 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6871/7327. Acesso em: 29 set. 2020.
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, ou ainda contra os mecanismos de injustiça ambiental, para lembrar Acserald, Mello e Bezerra (2009).

Com a obra da transposição, houve a completa desestruturação dessas estratégias de sobrevivência nos territórios. Num primeiro momento, os canais, em grande parte construídos sobre os aluviões, limitaram progressivamente o acesso às fontes comuns de água e ao leito de riachos. Em seguida, em alguns territórios, a escavação do terreno para nivelar os canais foi feita por meio de detonação de rochas, levando à movimentação do terreno e, segundo relatos, secando os poços que, embora poupados pelas obras, foram atingidos de forma indireta. Nas comunidades Pau D’arco e Mulungu (Monteiro/PB), por exemplo, foi relatado ainda que, mesmo com as novas perfurações feitas por algumas famílias, não encontravam mais água no subsolo.

Assim, a desmobilização das estratégias tradicionais de acesso às fontes de água, com a chegada da transposição foi um ponto fundamental para o processo de desterritorialização das comunidades. Mesmo aquelas famílias que não foram deslocadas, de forma compulsória, foram apartadas das fontes de água e passaram a ser abastecidas por carros-pipa em dias definidos junto às prefeituras municipais. Essa situação aprofundou a condição de vulnerabilização social (Porto, 2011PORTO, M. F. S. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: Um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 93, p. 31-58, 2011. doi: 10.4000/rccs.133.) de muitas famílias que, além de disporem de poucas condições materiais, inclusive de estrutura para armazenar água, passaram a contar com o abastecimento por carro-pipa apenas alguns dias por semana, diminuindo substantivamente a quantidade de água disponível. Essa restrição levou as pessoas a priorizarem o uso para tarefas essenciais, o que não ocorria na situação anterior às obras, pois, mesmo em condições precárias, as fontes eram acessadas diariamente.

Com a conclusão do Eixo Leste, em 2017, as famílias que permaneceram nas comunidades ribeirinhas pelas quais passa esse canal foram impedidas de ter acesso às águas da transposição, isto é, foram proibidas de retirar água do canal (que passa ao lado das residências) até mesmo para seus consumos domésticos. Portanto, o PISF, além de desmobilizar as estratégias comunitárias de acesso à água, privou as famílias situadas às margens e no entorno dos canais do seu acesso, vulnerabilizando-as de forma material e simbólica.

As formas de vulnerabilização podem ser caracterizadas como processos de injustiça ambiental, uma vez que grupos sociais são afetados em seus meios de produção e reprodução de vida. Processos de vulnerabilização que, inclusive, podem ter implicações para a saúde, quer por doenças transmissíveis, quer por transtornos mentais decorrentes de situações de estresse, inatividade e perdas de referenciais identitários, como alertou Porto (2011)PORTO, M. F. S. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: Um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 93, p. 31-58, 2011. doi: 10.4000/rccs.133., posto que, quando o direito à água é negado, vários outros direitos também o são.

O fato é que o projeto de transposição ainda não fez as compensações necessárias às populações e aos diversos grupos sociais impactados (Diniz; Maluf, 2020DINIZ, P. C. O.; MALUF, R. S. Usos e conflitos por água no rio Paraíba em face da transposição do Rio São Francisco: segurança hídrica e segurança alimentar no semiárido. In: OLIVEIRA, R. J. de. Agricultura em Foco: Tópicos Em Manejo, Fertilidade do Solo e Impactos Ambientais, v. 2. p. 232-243, 2020. doi:10.37885/200600453.
https://doi.org/10.37885/200600453...
) que vivem à margem e no entorno dos canais. Decorridos 15 anos, o sentimento é de que quase nada foi feito para a população ter acesso à água (seja água para consumo humano, para dessedentação animal ou para irrigação em pequena escala) nessa nova condição de restrição e desmobilização de suas fontes tradicionais. Grosso modo, podemos perceber que as populações e as comunidades, do ponto de vista do acesso à água, estão em uma situação bem pior do que estavam antes das obras; uma grande parte se encontra sem trabalho, sem horizonte e à espera da água: esse é um contexto vulnerabilizante que agrava o quadro decorrente da implantação das obras, conclui Costa (2019)COSTA, A. M. (Coord.). Estudo ecossistêmico dos processos de vulnerabilização e do acesso à água em territórios e populações na área de abrangência do projeto de transposição do Rio São Francisco. Relatório Final de Pesquisa. PROEP/FACEPE, Recife (mimeo), 2019..

O DESLOCAMENTO FORÇADO E O REASSENTAMENTO NAS VPR’S: OS “ENCLAVES” DA TRANSPOSIÇÃO

A situação de privação do acesso à água também se estendeu às famílias deslocadas compulsoriamente e reassentadas nas Vilas Produtivas Rurais. Em princípio, as Vilas foram concebidas para serem abastecidas com “água tratada” e parte da infraestrutura estava preparada para essa finalidade (reservatório central e rede de distribuição até as residências). Contudo, o arrastar-se das obras por uma década e meia levou a formas provisórias de abastecimento (poços e carros-pipa). Esperar pela chegada da água, de modo definitivo, foi a “ponta do iceberg” e, portanto, do problema que as famílias desenraizadas e apartadas do seu território começaram a enfrentar cotidianamente. Desterritorializadas pela promessa de que a transposição levaria água a milhões de pessoas, ficaram elas mesmas sem acesso a esse bem comum.

Figura 2
– Ilustração demonstrando a localização das VPR’s ao longo dos Eixos do PISF.

Com a progressiva chegada às Vilas, as famílias foram percebendo que as fontes disponíveis não eram suficientes para o abastecimento de todos, seja em termos de qualidade da água ou em termos de quantidade. A partir desse momento, em cada VPR, as pessoas entraram num conflito intenso, usando as estratégias disponíveis para ter o direito de acessar a água que lhes foi retirada, inicialmente, e negada, posteriormente. Destacaremos algumas situações especialmente para entender as contradições de um projeto hídrico dessa envergadura que promete favorecer o acesso à água para as populações do semiárido, conforme difundido nos espaços públicos (Silva, 2017SILVA, A. C. A. B. da. As águas do Rio São Francisco: disputas, conflitos e representações do mundo rural. 2017. 406 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.), mas que não consegue suprir com água suficiente as VPR’s.

Enquanto a água não chega, os poços resolvem!

Em relação ao abastecimento feito pelos poços, podemos dizer que cada Vila tem uma tragédia para chamar de sua. A saga das famílias da VPR Irapuá I merece destaque. Na Vila, o sistema de abastecimento contava com reservatório central de distribuição com capacidade de 30 mil litros, perfazendo uma média de mil litros/dia por família (saliente-se que cada residência tinha disponível, por concepção do projeto, uma caixa d’água de PVC com capacidade de 500 litros).

Foi garantido às famílias que o poço seria suficiente para uso coletivo (desde que fizessem uso racional), até a chegada em definitivo da água “tratada”. Como as famílias foram chegando aos poucos, não houve intercorrências inicialmente. Porém, quando o número de pessoas na Vila aumentou – e, consequentemente, o consumo de água –, começaram a surgir os problemas. Depois de poucos dias, a água era insuficiente para todos, e o poço havia “secado”! A dedução foi de que, quando chegaram à VPR Irapuá I, todo o sistema de abastecimento estava em sua capacidade máxima (tudo cheio: as caixas d’água das casas, o reservatório central de distribuição, o próprio poço poderia ter água), mas, com o aumento da demanda, o sistema entrou em colapso. De forma emergencial, cerca de 10 poços foram perfurados pela empresa responsável pela obra, conforme relatou uma das lideranças da VPR Irapuá I, mas nenhum foi suficiente para abastecer a Vila, dando a entender que essa prática era uma forma deliberada de a empresa lucrar com a obra, pois era remunerada a cada nova perfuração.

Embora seja uma acusação perigosa de se fazer de forma gratuita, essa desconfiança coletiva decorre do fato de a associação ter investido 28 mil reais na perfuração de um poço que foi “marcado” por uma criança de dez anos, por meio de radiestesia,11 11 A radiestesia é uma prática de marcação de poços por meio de sensibilidade a determinadas energias emitidas por elementos da natureza (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RADIESTESIA E RADIÔNICA, 2019). conseguindo uma vazão de 3 mil litros por hora. Curiosamente, no momento de pesquisa de campo (2018), os moradores não estavam usando a água porque a rede de energia elétrica não suportava a carga energética demandada pelos moradores do local (VPR Irapuá I e comunidades no entorno), ou seja, quando a bomba era acionada, a rede elétrica era desativada por não suportar a demanda. O fato demonstra, segundo Porto (2011)PORTO, M. F. S. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: Um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 93, p. 31-58, 2011. doi: 10.4000/rccs.133., mais um descaso de grandes obras que hipervalorizam os benefícios gerais de grupos hegemônicos e ocultam os processos de vulnerabilização das populações vulneráveis.12 12 Posteriormente, o problema foi solucionado por meio de energia solar instalada pela associação de moradores da VPR Irapuá I (Sousa, 2020).

Sem água nos poços, a VPR Irapuá I passou a ser abastecida por meio de carro-pipa, com a disponibilização de 30 mil litros de água a cada dois dias. Esse fato fez com que a disponibilidade de água por família caísse pela metade (em média de 500 litros/dia). Mas a questão não foi resolvida e, poucos dias depois de iniciar o abastecimento com carro-pipa, os moradores desconfiaram de que não estavam recebendo o volume de água combinado, então designaram um fiscal para verificar se a quantidade de água e o cronograma de entrega estavam de acordo com o que haviam estabelecido no acordo.

Em um outro momento, os moradores também perceberam que o equipamento (motor-bomba e tubulações) para colocar água no reservatório de distribuição não era adequado à demanda, então a associação de moradores fez a aquisição de um novo equipamento, arcando com a despesa de cerca de 2,5 mil reais. Por último, ao final de 2017, os serviços do carro-pipa (que eram terceirizados pelo consórcio construtor) foram suspensos por falta de pagamento. A “sorte”(!) é que, nesse momento, São Pedro mandou chuvas e a associação de moradores partiu para outra opção de abastecimento, dessa vez por uma adutora própria.

Enquanto a água não chega, o carro-pipa resolve!

A situação da VPR Lafayete não é muito diferente. As famílias logo descobriram que a água do poço (abastecimento provisório) era inadequada para consumo, pois não atingia os padrões de potabilidade recomendados pelo ministério da Saúde (o teor de salinidade era excessivo), acionando então o Ministério Público Federal (MPF), na cidade de Monteiro/PB, para uma ação civil pública. A ação movida pela associação de moradores garantiu o direito de acesso à água por parte das famílias e fez com que o MPF mediasse um acordo entre o Governo Federal e o consórcio construtor para fornecer água aos moradores da VPR Lafayete, bem como à população remanescente das comunidades tradicionais no entorno dos canais (Pau D’arco e Mulungu). Como dissemos, essas comunidades ficaram sem as fontes tradicionais de acesso à água (açudes, poços e cacimbas existentes no leito do rio) de que dispunham antes da obra e que, mesmo depois que a transposição foi concretizada, foram impedidas de usar a água dos canais.

Ressaltamos que, mesmo com a chegada das águas da transposição, em 2017, o abastecimento da VPR Lafayete ainda não havia sido resolvido no início de 2019 (três anos após a chegada das famílias). Por conta disso, à luta da associação, somou-se o papel do MPF, que permaneceu como um ator importante para atender as reivindicações das famílias, desencadeando uma audiência pública para resolver a questão em abril de 2019 (TRANSPOSIÇÃO..., 2019). O principal objetivo da audiência foi, justamente, cobrar dos representantes do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e da Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa) soluções para resolver em definitivo o problema de falta d’água na Vila. Apesar dos compromissos assumidos (com o abastecimento via empresa de saneamento), as famílias relatam que têm períodos em que a VPR Lafayete fica sem água saneada por até 15 dias consecutivos (por falhas no sistema), tendo que recorrer às fontes alternativas que começam a surgir por iniciativa de moradores da própria Vila. Além disso, algo novo na vida dessas famílias é o alto valor da tarifa cobrada pelos serviços de abastecimento da água (o que era inexistente). Além de um custo alto, há muitas limitações de oferta, conforme relatado em estudo de Silva, Diniz e Medeiros (2020).

Escassez de água e conflitos internos!

A VPR Salão, em Sertânia/PE, foi abastecida inicialmente pela Compesa, empresa pública de saneamento de Pernambuco. O colapso no abastecimento de água na cidade de Sertânia, em função do período de seca entre 2012 e 2017 (A CRISE..., 2016), também vai afetar diretamente a Vila Salão, e a Compesa fica impossibilitada de continuar com o abastecimento. Como a empresa de abastecimento não oferecia mais o serviço, as famílias contrataram a perfuração de um poço com recursos próprios. Contudo, a qualidade inadequada da água (em função da alta salinidade) não permitiu o consumo humano, acarretando novos custos para a compra de água potável por parte das famílias.

Nesse contexto de pouca água, foi instalada na VPR Salão uma “sementeira” para produzir mudas de árvores para o replantio de áreas desmatadas pelo projeto da transposição, demandando mais água em uma situação de escassez. Isso elevou as tensões internas na VPR Salão entre grupos políticos (Silva; Santos, 2020SILVA, G.; SANTOS, S. E. de B. Grito da Terra: narrativas acerca do fenômeno da desapropriação na transposição do Velho Chico. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v.16, p. 01-23, 2020. doi: 10.5212/Rev.Conexao.v.16.16434.48.), implicando a redução da oferta de água para as famílias e amplificando os problemas em um contexto de reterritorialização de grupos de origens distintas e com incidências externas sobre aquela VPR, que, por sua vez, contribuíram para consolidar o esgarçamento de seu tecido social. Silva e Santos (2020SILVA, G.; SANTOS, S. E. de B. Grito da Terra: narrativas acerca do fenômeno da desapropriação na transposição do Velho Chico. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v.16, p. 01-23, 2020. doi: 10.5212/Rev.Conexao.v.16.16434.48., p. 01) caracterizam esse contexto como de “violação de direitos fundamentais, e por conflitos nas relações políticas, onde ocupam o lugar de subalternos”.

Aos conflitos no âmbito do projeto da transposição que implicaram perdas materiais – o fato de estarem há cerca de 15 anos sem água suficiente para plantar e/ou criar –, agregam-se as perdas simbólicas, como a falta de “ocupação” para as pessoas, o que gera casos de ansiedade e depressão, sentimentos de não pertencimento e descrença nas instituições, conforme identificaram Silva e Santos (2020)SILVA, G.; SANTOS, S. E. de B. Grito da Terra: narrativas acerca do fenômeno da desapropriação na transposição do Velho Chico. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v.16, p. 01-23, 2020. doi: 10.5212/Rev.Conexao.v.16.16434.48.. Os conflitos internos na comunidade, relacionados às disputas de poder político e a tensões pelo acesso à água, aprofundam a crise de uma Vila que não conseguiu se constituir enquanto uma comunidade, ficando ainda sem vínculos ou identidade. Assim, se define um dos moradores ao se referir aos novos modos de vida, afirmando que é “Morador do governo! Porque aqui nós não temos direito a fazer nada!” (Silva; Santos, 2020SILVA, G.; SANTOS, S. E. de B. Grito da Terra: narrativas acerca do fenômeno da desapropriação na transposição do Velho Chico. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v.16, p. 01-23, 2020. doi: 10.5212/Rev.Conexao.v.16.16434.48., p. 07). No modo de vida camponês que caracterizava suas comunidades de origem, havia autonomia e pertencimento como um aspecto central de sua reprodução social, diferentemente do que ocorre nas VPR’s estudadas. A água que passa pelo canal próximo à VPR Salão não produz novos vínculos, ao contrário, reproduz o esgarçamento do tecido social desde quando expropriados de suas comunidades originais, confirmando a situação de apartação do seu lugar, onde passaram a viver como refugiados e impedidos de ter acesso à água – como sempre o tiveram em seus territórios anteriormente. Como afirma um morador: “[...] essa água do São Francisco não tá servindo prá nada, porque não tá vindo prá cá” – e o desterro deságua no sofrimento de vidas suspensas, concluem Silva e Santos (2020SILVA, G.; SANTOS, S. E. de B. Grito da Terra: narrativas acerca do fenômeno da desapropriação na transposição do Velho Chico. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v.16, p. 01-23, 2020. doi: 10.5212/Rev.Conexao.v.16.16434.48., p. 09).

A única água aqui é a de São Pedro!

Depois do intenso período de seca em quase todo o semiárido (entre 2012 e 2017), São Pedro foi generoso, e, a partir de 2017, a chuva foi suficiente para acumular água em boa parte da região. Isso fez com que a barragem Boa Vista (estrutura que compõe o complexo de obras da transposição no Eixo Norte) acumulasse um volume considerável de água, colocando-se como alternativa ao abastecimento das VPR’s localizadas em São José de Piranhas/PB (dentre elas, a VPR Irapuá I). Em novo acordo com o Governo Federal, a empresa construtora e a associação de moradores da Vila, decidiu-se pela construção de uma adutora justamente na barragem de Boa Vista (buscando superar o trauma dos poços, conforme visto anteriormente). Em meados do ano de 2017, a adutora ficou pronta, começando a fase de teste para transporte e tratamento da água.13 13 Ressalte-se que o Eixo Norte (onde localiza-se a VPR Irapuá I) foi inaugurado apenas em 2020, diferentemente do Eixo Leste inaugurado anteriormente (em 2017).

Contudo, no período de teste, percebeu-se que a infraestrutura para armazenar, tratar e distribuir a água não era suficiente para a demanda. Relata-se que eram necessárias quase 12 horas de trabalho para o tratamento de 30 mil litros de água (capacidade máxima) e a sua disponibilização no sistema de distribuição. Ao mesmo tempo, o tratamento da água (regulação e estabilização do PH) gerou uma série de conflitos e nem mesmo o “técnico” da empresa responsável pela instalação dos equipamentos conseguiu o seu funcionamento adequado. Por fim, os custos da água tratada saíram muito altos: mão de obra (para os serviços de tratamento da água); energia (cerca de 700 reais/mês); e produtos químicos para tratamento (vindos da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba). De modo que, segundo os cálculos realizados, a média do custo por cada família seria de quase 100 reais por 15 mil litros/mês por família, enquanto na cidade, essa mesma quantidade de água custava, em média, 30 reais, de acordo com as informações dos moradores da VPR Irapuá I.

Tendo em vista a necessidade real e urgente por água, as famílias não aceitaram o modelo proposto (tratamento da água), mas continuaram usando a adutora para levar água bruta para “o gasto”, tendo basicamente a energia como principal custo a ser assumido por todos. Para racionalizar o uso, aqueles que mais usavam água pagavam um valor maior. Já em relação à água para consumo humano, as famílias recorriam aos vizinhos e/ou conhecidos que dispunham de água de boa qualidade ou ao comércio local, comprando água mineral ou água considerada de boa qualidade, o que só reforça a injustiça hídrica (Silva, 2022SILVA, M. M. V. da. Injustiça Hídrica: a implantação do projeto de integração do Rio São Francisco no Semiárido brasileiro. 2022. 130 f. Dissertação (Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022.) a que estão submetidos.

Enfim, essa é a descrição de alguns aspectos da situação de conflitos e negação de direitos que levaram a um aprofundamento da vulnerabilização social das famílias das VPR’s analisadas, que, conforme afirma Porto (2011)PORTO, M. F. S. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: Um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 93, p. 31-58, 2011. doi: 10.4000/rccs.133., trazem para o debate questões de natureza ética e política, em que as decisões sobre os rumos dos projetos de desenvolvimento são realizadas à revelia dos interesses, valores e cultura das populações locais. Ou seja, desenraizadas de seu território, as famílias não receberam as condições mínimas prometidas pelo projeto e, como se não fosse o bastante, receberam um projeto hídrico que desestruturou as fontes territoriais de água e negou – por um determinado período – água às famílias que passaram a viver tuteladas nas VPR’s (condomínios e/ou casa do governo, como afirmam alguns moradores). Famílias que passaram a viver como refugiadas da água em seus novos territórios.

O atraso em relação ao cumprimento dos compromissos e o certo descaso visto em todas as situações apontam para a normalização do sofrimento das populações atingidas, e o discurso que justifica a transposição – levar água para doze milhões de pessoas no Nordeste – estrutura-se com os mesmos elementos que constituem um discurso favorável à construção das grandes obras. Um discurso que acaba “justificando e naturalizando o sofrimento daqueles que têm suas vidas devastadas pelas obras em prol do desenvolvimento”, de acordo com Giongo, Mendes e Werlang (2017, p. 128).

CONCLUINDO: “A ÚNICA COISA QUE TÁ FALTANDO AQUI É ÁGUA”

A privação e o impedimento de acessar a água da transposição por parte das populações atingidas, sejam as reassentadas ou as que ficaram na margem e no entorno dos canais, tem sido, até o momento, a grande marca da transposição. A luta das famílias para assegurarem o direito à água, prometido no momento de desenraizamento de seu território, ainda perdura. A água é fundamental para assegurar a reprodução social dessas famílias, seja para o consumo humano (respeitando direito humano à água), seja para produção agrícola e criação animal (devolvendo as mesmas condições de vida que tinham anteriormente). Acessar água para produção (questão não abordada aqui) será o grande desafio para o futuro de cada VPR e um elemento de incerteza, podendo aprofundar os processos de vulnerabilização social.

No caminho da transposição, identificamos que essas populações, historicamente invisíveis, passaram a ser um empecilho à obra e ao desenvolvimento. Aceitar sair do “caminho”, sem nenhum questionamento, portanto, seria uma obrigação, afinal o Estado prometia propiciar-lhes a oportunidade de ter uma vida digna, melhor do que muitas delas tinham em seus “precários” territórios. Sem qualquer opção, foram forçadas a deixar tudo para trás, sob o pretexto de que a transposição seria uma obra essencial para o desenvolvimento da região. “Mas, importante para quem?” Essa foi a pergunta de uma moradora da VPR Lafayete em entrevista no ano de 2018.

Na “nova” casa, negado o direito à água, as famílias não mais invisíveis aos olhos do Estado passaram a ser tuteladas permanentemente – como em campos de refugiados – e, ao mesmo tempo, abandonadas pelo mesmo Estado que lhes prometera uma terra com água e uma vida melhor. No seu novo território, as famílias ficaram reféns de um jogo de empurra-empurra entre as diferentes esferas da gestão pública. O governo federal, por meio do ministério do Desenvolvimento Regional (à época), afirmava que já havia cumprido sua parte, repassando a responsabilidade aos gestores estaduais e municipais.

O fato é que o abastecimento de água foi conquistado “a duras penas” e ainda não está totalmente resolvido em algumas VPR’s. No caso da Vila Lafayete, foram três anos de intensa mobilização da associação dos moradores, necessitando de intermediação do MPF – que se tornou um grande aliado para as famílias reassentadas. Mas a “água tratada”, além do alto custo para cada família, é uma água que não serve para consumo humano, como colocou Silva (2020SILVA, A. J. S. Sociologia ambiental e ensino de sociologia: uma análise dos livros didáticos de sociologia para o ensino médio. 2020. 120 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) –Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2020., p. 50): a compra de água mineral é uma prática comum entre os moradores da VPR Lafayete, pois a “água da torneira não presta para beber”. Na VPR Salão, as famílias ainda esperavam pela empresa de abastecimento, enquanto recebiam água de carro-pipa. No caso da VPR Irapuá I, a associação de moradores instalou o sistema de abastecimento com energia solar (custeada pelos moradores) como forma de baratear o custo da água (Sousa, 2020SOUSA, M. de F. O. de. As Marcas da Transposição: acesso à água, conflitos e desenvolvimento no município de São José de Piranhas-PB. 2020. 180 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.).

Apesar disso, as famílias buscam reconfigurar as relações no interior das VPR’s, tentando romper as amarras da tutela do Estado – e sua condição de refugiados – e colocar em prática ações coletivas e colaborativas que ampliem sua autonomia e, ao mesmo tempo, recuperem estratégias tradicionais em seu novo território, estabelecendo novas relações produtivas e sociais. Enfim, o processo de reconfiguração das VPR’s ocorre no sentido de superar a invisibilidade e/ou ocultamento de seus interesses para se tornarem sujeitos políticos e detentores da construção de seu próprio destino, transformando o “enclave” que são as VPR’s em um território social e simbolicamente referenciado, uma reterritorialização baseada em valores de justiça, bem-estar e solidariedade. Ou seja, a construção de um território para chamar de seu(!) e com água: “porque você sabe, que quem tem água tem tudo, né?” (Campelo; Buarque, 2020CAMPELO, I.; BUARQUE, S. M. À espera da água. Marco Zero Conteúdo. 2020. Disponível em: https://marcozero.org/aesperadagua/. Acesso em: 05 out. 2020.
https://marcozero.org/aesperadagua/...
).

Os conflitos decorrentes das situações de vulnerabilização social e das condições de refugiados da água, de certa forma, impuseram uma relativa ação coletiva por parte das populações atingidas. Processos que apontam para a transformação do território tutelado, do local de refugiados e da situação de vulneráveis em um “lugar” de direitos: à água e à reterritorialização das famílias atingidas pela transposição das águas do Rio São Francisco.

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    » http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v68n3/v68n3a12.pdf
  • 1
    O Ministério da Integração Nacional foi fundido com o Ministério das Cidades e denominado de Ministério de Desenvolvimento Regional, no governo de Jair Messias Bolsonaro (2019 a 2022). Em 2023, no terceiro governo de Luís Inácio Lula da Silva, a pasta foi recriada como Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional.
  • 2
    As VPR’s são estruturadas em cinco espaços: área de reserva legal, área de lazer e serviços (de uso coletivo), área da residência (com 99 m2) de meio hectare, área de produção de sequeiro (em média, 5 hectares) e área de um hectare para irrigação (BRASIL, 2005BRASIL. Projeto São Francisco: água a quem tem sede. Programa de Reassentamento das Populações (PBA 08). 2005. Disponível em: https://antigo.mdr.gov.br/images/stories/ArquivosSEMOB/ArquivosPDF/Ramal_do_Agreste/PROGRAMA_08_Reassentamento_de_Familias.pdf. Acesso em: 08 maio 2018.
    https://antigo.mdr.gov.br/images/stories...
    ).
  • 3
    Apenas as famílias cuja propriedade e benfeitorias perfizessem o valor de até 30 mil reais tinham o direito ao reassentamento nas VPR’s; as demais foram indenizadas em dinheiro (BRASIL, 2005BRASIL. Projeto São Francisco: água a quem tem sede. Programa de Reassentamento das Populações (PBA 08). 2005. Disponível em: https://antigo.mdr.gov.br/images/stories/ArquivosSEMOB/ArquivosPDF/Ramal_do_Agreste/PROGRAMA_08_Reassentamento_de_Familias.pdf. Acesso em: 08 maio 2018.
    https://antigo.mdr.gov.br/images/stories...
    ).
  • 4
    O conceito de vulnerabilidade social pode ser entendido como a “predisposição que um dado grupo tem para ser afectado, em termos físicos, econômicos, políticos ou sociais, no caso de ocorrência de um processo ou acção desestruturante de origem natural ou antrópica” (Mendes; Tavares, 2011MENDES, J. M.; TAVARES, A. O. Risco, vulnerabilidade social e cidadania. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 93, p. 05-08, 2011. doi: 10.4000/rcss.173., p. 06), como o foram algumas das famílias atingidas pela transposição.
  • 5
    De modo geral, a compilação de pesquisas realizadas para compor este texto está circunscrita à inauguração do Eixo Leste (2017) e ao desfecho da luta por acesso à água na VPR Lafayete (em Monteiro), resultando em uma dissertação (Sousa, 2020SOUSA, M. de F. O. de. As Marcas da Transposição: acesso à água, conflitos e desenvolvimento no município de São José de Piranhas-PB. 2020. 180 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.).
  • 6
    Projeto de pesquisa “Estudo ecossistêmico do acesso à água, dos conflitos socioambientais e da reparação na área de abrangência da transposição do rio São Francisco”, chamada CNPq/Instituto Aggeu Magalhães-FIOCRUZ Nº 39/2018, coordenado pelo Dr. André Monteiro Costa (pesquisador da FIOCRUZ), tendo vigência entre junho de 2019 e maio de 2023.
  • 7
    A noção de refugiados do desenvolvimento é uma categoria que vem sendo construída – teórica e politicamente – pelo menos, desde meados da década de 1980 no Brasil. De acordo com Nóbrega (2011)NÓBREGA, R. da S. Os atingidos por barragem: refugiados de uma guerra desconhecida. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, Ano XIX, n. 36, p. 125-143, jan./jun. 2011. Disponível em: https://remhu.csem.org.br/index.php/remhu/article/view/251/233. Acesso em: 18 abr. 2023.
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    , é o reconhecimento institucional de que, em função dos grandes projetos de infraestrutura (hidroelétricos, minerais etc.), uma série de compromissos por parte do Estado e dos responsáveis pelos empreendimentos deveriam ser disponibilizados em benefício dos atingidos.
  • 8
    Para conferir o número de conflitos por terra e por água no Brasil, acessar o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino – CEDOC. Comissão Pastoral da Terra. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/ Acesso em: 21.04.2023.
  • 9
    Para Haesbaert (2011, p. 275-276) “A precarização da vida material no território, [...] nem sempre se conjuga com a perda dos referenciais simbólico-territoriais, podendo até estimular o processo inverso, pois elementos culturais-identitários podem ser fortalecidos a partir da referência a essa condição materialmente precária”. Segundo sua abordagem, a perda de controle sobre o espaço sempre está envolvida numa transformação com “os processos de reterritorialização de diversas ordens”.
  • 10
    Conforme Nogueira (2019NOGUEIRA, V. S. De sitiantes a moradores de vila: o projeto de integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste brasileiro e as novas territorialidades. Novos Cadernos NAEA, Belém, v. 22, n. 3, p. 97-120, 2019. doi: 10.5801/ncn.v22i3.7145., p. 102), os sítios são “porções indivisíveis de terra, no interior das quais famílias nucleares detêm e se organizam territorialmente em parcelas […]”. Lugar em que existem relações “[…] de interconhecimento entre seus habitantes, que se identificam como pertencentes física e moralmente àquele lugar”.
  • 11
    A radiestesia é uma prática de marcação de poços por meio de sensibilidade a determinadas energias emitidas por elementos da natureza (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RADIESTESIA E RADIÔNICA, 2019ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RADIESTESIA E RADIÔNICA. Código de Ética na Área de Geologia e Radiestesia Hidro-Mineral. 2019. Disponível em: https://abrad.com.br/ codigo-de-etica-na-area-de-geologia-e-radiestesia-hidro-mineral/. Acesso em: 07 nov. 2020.
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    ).
  • 12
    Posteriormente, o problema foi solucionado por meio de energia solar instalada pela associação de moradores da VPR Irapuá I (Sousa, 2020SOUSA, M. de F. O. de. As Marcas da Transposição: acesso à água, conflitos e desenvolvimento no município de São José de Piranhas-PB. 2020. 180 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.).
  • 13
    Ressalte-se que o Eixo Norte (onde localiza-se a VPR Irapuá I) foi inaugurado apenas em 2020, diferentemente do Eixo Leste inaugurado anteriormente (em 2017).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2021
  • Aceito
    05 Jun 2023
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