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O início: responsabilidade global em saúde - com foco em doenças tropicais

EDITORIAL

Há dois sentidos para a expressão "raras e negligenciadas". Um se refere a doenças que ocorrem com pouca frequência em todas as populações do mundo; o outro às doenças que não ocorrem com frequência na Europa, nos Estados Unidos e em outros países com sistemas de saúde pública altamente desenvolvidos.

O primeiro caso pode causar grande sofrimento a um pequeno número de pacientes, mas esse pequeno número é visto pelos sistemas de saúde simplesmente como muito limitado em danos para justificar o custo de desenvolver medicamentos, vacinas ou outras medidas de prevenção. Pode-se não gostar desse raciocínio, mas é possível entender o argumento econômico.

O segundo grupo é paradoxal. A ocorrência das doenças pode ser em grande escala, o número de indivíduos afetados muito grande, e com enormes custos econômicos para os países ou regiões envolvidas. Ao mesmo tempo, pode não haver incentivos econômicos evidentes para curto prazo-em uma estrutura de cuidados de saúde mundial altamente capitalista-para concentrar seus recursos para esses tipos de doenças, ao invés das doenças mais comuns, crônicas ou não infecciosas de sociedades prósperas.

Há muitos exemplos de doenças desse segundo grupo - que não são raras, mas são negligenciadas. Elas estão frequentemente concentradas, especialmente as infecciosas - nas regiões tropicais: malária e cólera são exemplos óbvios, mas existem outras que são menos populares: uma série de doenças causadas por parasitas (doença do sono, doença de Chagas, esquistossomose, leishmaniose, filariose, oncocercose) e por microrganismos ou vírus (lepra, dengue, vários tipos de encefalite e febres hemorrágicas, chicangunya e tuberculose).1 As doenças genéticas, por exemplo, a doença de células falciformes e talassemia também são importantes.

O foco deste número especial são algumas das doenças negligenciadas, comuns em regiões emergentes no tocante à saúde. Pode-se argumentar, no entanto, que enquanto o termo "negligenciada" pode ainda ser aplicado a pelo menos algumas delas, o termo "raro" realmente deveria ser descartado, uma vez que uma doença rara e regional hoje, pode se tornar uma epidemia global e um grande problema para a área da saúde em um ano.

Há cem anos, ou talvez 50, em países ricos, havia doenças tão isoladas geograficamente e tão incomuns - pelos motivos que fossem - que não representavam nenhuma ameaça perceptível àqueles países. E uma vez que aqueles países eram os únicos com sistemas de pesquisa médica suficientemente bem desenvolvidos para promover um contra-ataque eficaz - quer medicamentos, vacinas ou medidas de saúde pública - a qualquer nova ameaça, aquelas doenças puderam seguir seu curso, independente do sofrimento que causaram, sem muita atenção dos países e organizações tecnologicamente mais avançados.

A globalização mudou a história, e o vírus da imunodeficiência humana / a síndrome da imunodeficiência adquirida (HIV/AIDS) foi o prenúncio de uma nova ordem. Uma vez que o vírus da imunodeficiência adquirida se espalhou rapidamente, o sistema global de saúde foi pego despreparado e esse impacto deixou claro que, na era de viagens aéreas de longa distância a baixo custo, cidades densamente povoadas, com mudanças nos padrões de comportamento social e outros fatores, não há mais qualquer garantia de que uma doença "negligenciada e rara" possa ser mantida isolada; e nunca houve garantia de que uma resposta a uma nova doença pudesse ser desenvolvida rapidamente.

Apesar de os avanços na compreensão da síndrome da imunodeficiência adquirida e no tratamento de seus sintomas serem grandes triunfos da medicina moderna, ainda não existe uma vacina eficaz ou cura para ela, e a co-evolução da síndrome da imunodeficiência humana e tuberculose em uma sindrome de doenças intimamente associadas, com o potencial de desenvolvimento de cepas do Mycobacterium tuberculosis altamente resistentes aos antibióticos, ilustra o quão difícil é lidar com uma nova doença. A síndrome respiratória aguda, a síndrome respiratória do Oriente Médio e as novas cepas de influenza reforçam a mesma mensagem, embora não tivessem (ou ainda não tenham tido) o impacto do vírus da imunodeficiência humana.

A evolução do vírus Ebola, de uma doença incomum, esporádica e restrita, para uma doença com possibilidade de propagação mundial e de enorme impacto econômico, é o exemplo atual demonstrando que não pode mais haver doenças que permanecerão globalmente incomuns com segurança, apenas com base na sua origem geográfica restrita e distante. Viajantes e vetores infectados espalham-se hoje muito rapidamente para que uma nova doença possa ser contida, sem premeditação, planejamento, sorte, formação, preparação, conhecimento e gastos.

Em um mundo no qual a mobilidade de pessoas aumentou num nível global, a probabilidade de que um surto local se torne uma doença mundialmente importante, países como o Brasil têm uma oportunidade e responsabilidade únicas. O Brasil é um país com grandes (e crescentes) recursos humanos e financeiros e com um interesse em doenças tropicais a nível nacional. É um líder regional em muitos campos da tecnologia e o único país do BRICI (Brasil, Rússia, Índia, China e Indonésia) com a motivação e a capacidade potencial para se concentrar em doenças tropicais. Também tem muito a perder em caso de uma epidemia ou endemia, que drena seus recursos ou que desencoraja o desenvolvimento econômico e o turismo. Mas ainda não aceitou a idéia de que possa ter, tanto uma responsabilidade global em saúde - com foco em doenças tropicais - quanto uma oportunidade de tornar-se - ao longo do tempo - um líder mundial nessa área importante.

Assim, o Brasil tem tanto a capacidade quanto a motivação (ambas em princípio) para se tornar- num espaço de 50 anos - um líder mundial na área de doenças tropicais infecciosas negligenciadas (ou emergentes; "negligenciadas" e, pelo menos, "potencialmente emergentes" podem ser descrições da mesma coisa).

Esse ponto representa um começo. Fazer mais exigirá um compromisso financeiro e técnico continuado, com recrutamento de jovens cientistas talentosos para carreiras relevantes em doenças infecciosas, química medicinal, bioquímica e saúde pública; o estímulo ao desenvolvimento farmacêutico em áreas relevantes e o desenvolvimento de parcerias com empresas farmacêuticas globais.

Os artigos desta edição fornecem um bom levantamento de importantes e representativas áreas e abordagens sobre o assunto. Seis tratam de novos compostos ativos ou candidatos a fármacos de baixa massa molecular e três, de métodos de análise/diagnóstico ou doença genética. Cinco revisões cobrem aspectos do tratamento da dengue, da doença de Chagas, da leishmaniose e da lepra, e uma trata do controle de insetos vetores.

George M. Whitesides

Universidade de Harvard - EUA

Referências

  • 1. Trouiller, P.; Olliaro, P.; Torreele, E.; Orbinski, J.; Liang, R.; Ford, N.; The Lancet, 2002, 359, 2188.
  • O início: responsabilidade global em saúde - com foco em doenças tropicais

    O que são "doenças raras e negligenciadas"? E por que alguém deveria se preocupar com elas, se são "raras", ou insuficientemente problemáticas para justificar apenas "negligência" por parte da comunidade médica?
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Out 2014
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