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Disfunção do trato gastrointestinal prolongada em pacientes admitidos na terapia intensiva

Resumos

OBJETIVOS: Em pacientes gravemente enfermos, enquanto as disfunções de outros órgãos ou sistemas são rapidamente progressivas, os sinais de disfunção do trato gastrointestinal são frequentemente sutís e pouco valorizados. Contudo, a região esplâncnica tem muito provavelmente um papel importante no desenvolvimento e ou manutenção da resposta inflamatória e disfunção de múltiplos órgãos e sistemas. O objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência e os fatores preditivos de disfunção prolongada do trato gastrointestinal. MÉTODOS: Estudo de coorte, retrospectivo e observacional. Foi realizado na unidade de terapia intensiva clínico - cirúrgica de 24 leitos de um hospital universitário. Foram incluídos todos os pacientes entre agosto de 2003 e janeiro de 2004 e que tiveram tempo de permanência na unidade de terapia intensiva superior a 4 dias. A função do trato gastrointestinal foi avaliada diariamente de acordo com uma classificação que considera o exame físico (presença ou ausência de ruídos hidro-aéreos ou distensão) e o nível e tipo de suporte nutricional ofertado. RESULTADOS: Foram incluidos 128 pacientes. A média de idade foi até 56 ± 19 anos, 81 pacientes (63,3%) eram do sexo masculino e 91 pacientes (77,3%) cirúrgicos. Disfunção do trato gastrointestinal prolongada ocorreu em 35 % dos pacientes, com uma prevalência 3,3 vezes maior em pacientes cirúrgicos (27%) do que em pacientes clínicos (8%). Em 38 pacientes (29,7%) foi realizada endoscopia digestiva alta. Lesões erosivas e/ou hemorrágicas foram observadas em ¾ do total das endoscopias digestivas altas. A frequência de disfunção do trato gastrointestinal foi significativamente mais alta em pacientes com edema moderado a grave (51%) do que em pacientes sem edema (22,5%) (p<0,05). Na análise de regressão logística, uma concentração sérica de lactato na admissão acima de 5.2 mEq/L (RR 6,69 IC 95% 1,15-38,7, p= 0.034) e um índice de oxigenação inferior a 200 (RR 12,4 IC 95% 2,18-70,8, p=0.005) foram preditivos de disfunção do trato gastrointestinal. CONCLUSÕES: Disfunção do trato gastrointestinal prolongada foi altamente prevalente nesta população heterogênea de pacientes de terapia intensiva. Níveis séricos elevados de lactato e índice de oxigenação inferior a 200 na admissão foram preditivos de evolução com disfunção do trato gastrointestinal.

Trato gastrintestinal; Doenças gastrointestinais; Insuficiência de múltiplos órgãos; Lactato; Íleo


OBJECTIVE: We aimed to investigate the prevalence and independent predictors of prolonged gastrointestinal dysfunction in critically ill patients admitted to the intensive care unit. METHODS: Retrospective and observational cohort study performed in a mixed 24 beds intensive care unit in a tertiary center. Patients admitted in the intensive care unit between August 2003 and January 2004, who had a length of stay in the intensive care unit greater than 4 days were enrolled. Gastrointestinal function was evaluated daily according to a classification that considered physical examination (bowel sounds or distension) and the nutritional support progress. RESULTS: Were included 128 patients. The mean age was 56 ± 19 years, 63.3% were male and 77.3% were surgical patients. Prolonged gastrointestinal dysfunction occurred in 35% of patients, with prevalence 3.3 times higher in surgical patients (27%) than in medical patients (8%). Endoscopies were performed in 38 patients (29.7%), and in three quarters of them erosive lesions and or bleeding were observed. Gastrointestinal dysfunction was more frequent in patients presenting moderate or severe edema (51%) than in patients without edema (22.5%) (p<0.05). In the logistic regression analysis, a serum lactate level higher than 5.2 mEq/L (RR 6.69 95%CI 15-38.7, P = 0.034) and the presence of a low oxygenation index (RR 12.4 95%CI 2.18-70.8, p = 0.005) were predictive of gastrointestinal dysfunction. CONCLUSION: Prolonged gastrointestinal dysfunction was highly prevalent in this heterogeneous population of critically ill patients. Admission high serum lactate levels and a low oxygenation index were predictive of prolonged gastrointestinal dysfunction.

Gastrointestinal tract; Gastrointestinal diseases; Multiple organ failure; Lactate; Ileum


ARTIGO ORIGINAL

Disfunção do trato gastrointestinal prolongada em pacientes admitidos na terapia intensiva

Suzana Margareth LoboI; Amanda Lucia Diaz MirandaII

IProfessor Associado da Disciplina de Medicina Interna da Faculdade de Medicina de Rio Preto - FAMERP - Hospital de Base - São Jose do Rio Preto - São Paulo (SP), Brasil

IIMédico Residente da Faculdade de Medicina de Rio Preto - FAMERP - Hospital de Base - São José do Rio Preto - São Paulo (SP), Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência: Suzana Margareth Lobo Avenida Brigadeiro Faria Lima, 5544 CEP: 15090-000 - São Jose do Rio Preto (SP), Brasil. E-mail: utigeral.hbase@famerp.br

RESUMO

OBJETIVOS: Em pacientes gravemente enfermos, enquanto as disfunções de outros órgãos ou sistemas são rapidamente progressivas, os sinais de disfunção do trato gastrointestinal são frequentemente sutís e pouco valorizados. Contudo, a região esplâncnica tem muito provavelmente um papel importante no desenvolvimento e ou manutenção da resposta inflamatória e disfunção de múltiplos órgãos e sistemas. O objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência e os fatores preditivos de disfunção prolongada do trato gastrointestinal.

MÉTODOS: Estudo de coorte, retrospectivo e observacional. Foi realizado na unidade de terapia intensiva clínico - cirúrgica de 24 leitos de um hospital universitário. Foram incluídos todos os pacientes entre agosto de 2003 e janeiro de 2004 e que tiveram tempo de permanência na unidade de terapia intensiva superior a 4 dias. A função do trato gastrointestinal foi avaliada diariamente de acordo com uma classificação que considera o exame físico (presença ou ausência de ruídos hidro-aéreos ou distensão) e o nível e tipo de suporte nutricional ofertado.

RESULTADOS: Foram incluidos 128 pacientes. A média de idade foi até 56 ± 19 anos, 81 pacientes (63,3%) eram do sexo masculino e 91 pacientes (77,3%) cirúrgicos. Disfunção do trato gastrointestinal prolongada ocorreu em 35 % dos pacientes, com uma prevalência 3,3 vezes maior em pacientes cirúrgicos (27%) do que em pacientes clínicos (8%). Em 38 pacientes (29,7%) foi realizada endoscopia digestiva alta. Lesões erosivas e/ou hemorrágicas foram observadas em ¾ do total das endoscopias digestivas altas. A frequência de disfunção do trato gastrointestinal foi significativamente mais alta em pacientes com edema moderado a grave (51%) do que em pacientes sem edema (22,5%) (p<0,05). Na análise de regressão logística, uma concentração sérica de lactato na admissão acima de 5.2 mEq/L (RR 6,69 IC 95% 1,15-38,7, p= 0.034) e um índice de oxigenação inferior a 200 (RR 12,4 IC 95% 2,18-70,8, p=0.005) foram preditivos de disfunção do trato gastrointestinal.

CONCLUSÕES: Disfunção do trato gastrointestinal prolongada foi altamente prevalente nesta população heterogênea de pacientes de terapia intensiva. Níveis séricos elevados de lactato e índice de oxigenação inferior a 200 na admissão foram preditivos de evolução com disfunção do trato gastrointestinal.

Descritores: Trato gastrintestinal/patologia; Doenças gastrointestinais; Insuficiência de múltiplos órgãos; Lactato; Íleo

INTRODUÇÃO

No paciente gravemente enfermo, enquanto as disfunções de outros órgãos ou sistemas são rapidamente progressivas, os sinais de disfunção do trato gastrintestinal (DTGI) são frequentemente sutís e pouco valorizados frente ao dramático quadro geral do paciente.(1) Lesões da mucosa e alterações funcionais do trato gastrintestinal (TGI) podem ocorrer como consequência de choque circulatório, estresse cirúrgico ou traumático e uso prolongado de antibióticos de amplo espectro.(2-5) DTGI associa-se com grande desconforto e maior tempo de internação e custos.(6)

A DTGI que ocorre após injúria traumática ou infecciosa pode se manifestar pela presença de distensão abdominal, ileo adinâmico, retardo na eliminação de flatos ou fezes, e vômitos, freqüentemente determinando intolerância à alimentação enteral. Síndromes disabsortivas decorrentes de atrofia, edema da mucosa e supercrescimento bacteriano vão ocasionar grave desnutrição proteíco-calórica nos casos de ocorrência prolongada.(4) A hipertensão intra-abdominal e a síndrome compartimental abdominal começam a ser valorizadas no contexto da DTGI e associam-se a altas taxas de mortalidade.(7-9) Ainda, erosões e hemorragia da mucosa gástrica foram descritas em 24 a 100% dos pacientes críticos já nas primeiras 24 horas após a admissão na unidade de terapia intensiva (UTI).(2) A DTGI é potencialmente danosa devido à possibilidade de quebra da barreira intestinal permitindo a translocação de germes e de toxinas para a corrente sangüínea, além de se acompanhar de quadro de desnutrição grave intra-hospitalar, daí a importância do conhecimento das suas características e fatores de risco afim de que estudos intervencionistas sejam desenvolvidos. Nosso objetivo foi avaliar a prevalência e os fatores de risco para DTGI em um grupo heterogêneo de pacientes críticos.

MÉTODOS

Estudo de coorte, retrospectivo e observacional. Foi realizado na UTI clínico-cirúrgica de 24 leitos de um hospital universitário. Todos os pacientes entre agosto de 2003 e janeiro de 2004 e que tiveram tempo de permanência na UTI superior a 4 dias foram incluídos. O CEP da instituição não julgou necessário o termo de consentimento para a coleta de dados dos prontuários.

Foram avaliados os dados demográficos, escores Acute Physiology And Chronic Health Evaluation II (APACHE II)(10) e Sequential Organ Failure Assessment (SOFA),(11) a dosagem sérica de lactato e a gasometria arterial na admissão. A presença de infecção durante a internação, o sítio principal de infecção e o diagnóstico de sepse na admissão foram registrados. O uso de drogas vasoativas foi considerado na presença de infusão de dopamina em dose superior a 5 µg/Kg.min ou noradrenalina em qualquer dose. A relação entre a pressão parcial de oxigênio e a fração inspirada de oxigênio (relação PaO2/FiO2) utilizada foi usada como índice de oxigenação e foi obtida da gasometria arterial colhida na admissão na UTI. Edema corporal foi definido pela presença de acúmulo anormal de líquidos no tecido subcutâneo e foi avaliado diariamente nos tornozelos, pernas e mãos pelo médico plantonista e residentes, nos primeiros 7 dias de internação. Critério semi-quantitativo foi usado para avaliar o grau de edema, sendo uma cruz (+) - edema discreto, duas cruzes (++) - edema moderado e três cruzes (+++) - edema intenso.

DTGI foi considerada quando uma adequada alimentação enteral ou oral não foi possível em vista da presença de alterações do TGI como distensão, íleo ou vômitos. A função do TGI foi avaliada diariamente de acordo com a classificação adotada no serviço, onde se considera o exame físico (presença ou ausencia de ruidos hidro-aéreos ou distensão) e o nível e tipo de suporte nutricional ofertado (Quadro 1). Os pacientes com classificação maior ou igual a 3 por 5 ou mais dias consecutivos foram considerados como portadores DTGI prolongada.


Estatística

Os resultados foram expressos como média e desvio padrão ou mediana e percentis 25-75%. A análise estatística foi realizada com os testes T de Student e de Fisher. A análise de regressão logística foi realizada para avaliar os fatores independentes preditivos de DTGI. Na análise multivariada somente variáveis precoces da internação (obtidas nas primeiras 24 horas) com valores de p inferiores a 0.2 foram incluídass no modelo. A taxa de mortalidade foi calculada com o uso de risco relativo. Um valor de p <0.05 foi considerado estatisticamente significativo.

RESULTADOS

Foram incluídos 128 pacientes. A média de idade foi 56 ± 19 anos, 63,3% eram do sexo masculino e 77,3% eram cirúrgicos. Os dados demográficos e de evolução estão demonstrados na tabela 1. Um total de 51% foi admitido com diagnóstico de sepse e uma infecção foi documentada ou presumida a partir de dados laboratoriais, exame físico e exames de imagens em algum momento da internação em 106 pacientes (83%). Os principais focos de infecção foram pulmonar (39%), abdominal (31%) e trato urinário (18%). Houve necessidade do uso de drogas vasoativas em 47% dos pacientes (Tabela 1).

Em 38 pacientes (29,7%) foi realizada uma endoscopia digestiva alta devido a suspeita de hemorragia digestiva. Lesões erosivas (25 pacientes, 66%) e/ou hemorrágicas (10 pacientes, 26%) foram observadas em três quartos do total de procedimentos realizados.

DTGI prolongada ocorreu em 35 % dos pacientes (nível 3, 1; nível 4, 4; nível 5, 40), com uma prevalência 3,3 vezes maior em pacientes pacientes cirúrgicos (27%) do que em pacientes clínicos (8%). O tempo médio de duração da DTGI foi de 14 dias no nível 3, 10.5 ± 4.3 dias no nível 4 e 6.3 ± 2.7 dias no nível 5. Na tabela 2 estão demonstrados os dados demográficos, de gravidade, dosagens séricas de lactato e tempo de internação de pacientes sem e com DTGI prolongada. Pacientes com DTGI eram mais graves, visto os valores mais elevados dos escores de gravidade, receberam mais dias de suporte com vasopressores e permaneceram mais tempo na UTI e no hospital (Tabela 2).

A frequência de DTGI prolongada foi significativamente mais alta em pacientes com edema moderado ou grave (51%) do que em pacientes sem edema ou com edema leve (22.5%) (RR 2.26 IC 95% 1,36 – 3,72, p<0,05). A taxa de mortalidade observada foi 53% no grupo sem DTGI e 62 % no grupo com DTGI (RR=1.17, IC 95% 0.86 - 1.59, não significativo).

As variáveis obtidas nas primeiras 24 horas de admissão, inseridas na análise multivariada, foram APACHE II, SOFA escore, presença de sepse, uso de droga vasoativa, dosagem sérica de lactato e índice de oxigenação. Na análise de regressão logística, uma concentração sérica de lactato na admissão acima de 5.2 mEq/L (RR 6,69 IC 95% 1,15-38,7, p= 0.034) e um baixo índice de oxigenação (RR 12,4 IC 95% 2,18-70,8, p=0.005) foram preditivos de DTGI.

DISCUSSÃO

A DTGI representa um problema clínico relevante no paciente internado na UTI. Associa-se maior tempo de internação e, provavelmente a maior mortalidade.(6) Nossos resultados demonstram que a DTGI prolongada é bastante prevalente em uma população heterogênea de pacientes de terapia intensiva. Como esperado, foi mais frequente em pacientes cirúrgicos do que em pacientes clínicos e associou-se à presença de infecção e a internações mais prolongadas. Detectamos níveis séricos elevados de lactato e baixo índice de oxigenação na admissão como preditores independentes de evolução com DTGI. Ainda, na presença de edema corporal moderado a intenso, a prevalência de DTGI foi mais de duas vezes maior.

A prevalência de 35% de pacientes com DTGI prolongada encontrada em nossa casuística de pacientes clínicos e cirúrgicos com estadia acima de 4 dias na UTI é semelhante à observada em outros estudos realizados em pacientes gravemente enfermos. Em pacientes com nutrição enteral internados em UTI mista, 32% dos pacientes apresentaram intolerância à dieta enteral (resíduo gástrico elevado), e este fato foi preditor independente do desenvolvimento de pneumonia nosocomial, estadia mais prolongada na UTI e maior mortalidade.(12) Em uma população mista de pacientes com ventilação mecânica os autores consideraram DTGI a presença de sinais de intolerância à dieta enteral e ou sinais de hipertensão intra-abdominal que ocorreram em 58,3% e 27,3%, respectivamente.(9) Estas taxas diminuem em populações de menor risco. Um estudo prospectivo e multicêntrico brasileiro, realizado em 21 UTIs, usou a mesma definição do presente estudo e mostrou a DTGI prolongada como a terceira complicação mais freqüente no pós-operatório de cirurgias não cardíacas de grande porte, ocorrendo em 8% dos pacientes.(13) Complicações gastrintestinais ocorreram em apenas 2,5% dos pacientes submetidos a cirurgias cardíacas.(14)

Lactato sérico acima de 5.2 mEq/L aumentou em quase 7 vezes a chance de DTGI. A presença de níveis elevados de lactato na admissão sugere a presença de choque, embora níveis moderadamente elevados de lactato possam estar presentes em pacientes com sepse grave já adequadamente ressuscitados.(15) De acordo, a presença de acidose avaliada com o excesso de base e o pH, como índices de perfusão tecidual, além do tempo cirúrgico prolongado e ocorrência de grandes perdas sanguíneas, associaram-se a DTGI em cirurgias eletivas de médio porte.(16) A mucosa do TGI é particularmente sensivel às alterações do fluxo sanguineo ou de oxigenação. Isto se deve a peculiaridades da arquitetura da microcirculação que forma uma complexa rede onde a proximidade da arteriola nutriente com a vênula efluente na base do vilo pode resultar em shunt de difusão das arteríolas para as vênulas, o que torna a extremidade do vilo sujeita a hipóxia com relativa facilidade.(17) A manutenção do fluxo sanguíneo é importante para manter o consumo adequado de O2 no intestino.(18) Estes dados em conjunto sugerem que a queda da perfusão tecidual seja um fator relevante para o desenvolvimento de DTGI e estão de acordo com vários estudos fisiológicos.(18-21)

Um baixo índice de oxigenação no dia da admissão, isto é, uma relação PaO2/FiO2 menor que 200, elevou em mais de 12 vezes o risco de DTGI. Lesão pulmonar aguda (LPA) é causa comum de internação na UTI e foi detectada em 42% dos pacientes nas primeiras 48 horas após a admissão.(22) Neste estudo realizado em 1038 pacientes de uma UTI clínico-cirúrgica, a presença de LPA associou-se a maiores taxas de infecção, maior gravidade, presença de disfunção cardiovascular e necessidade mais prolongada de ventilação mecânica, drogas vasopressoras e terapia renal substitutiva. A LPA se correlaciona com o grau de injúria e da síndrome de resposta inflamatória, como indicado por níveis mais elevados de proteína C-reativa nestes pacientes.(22) Há vários indícios provenientes de estudos experimentais de que lesão intestinal pode ocorrer poucas horas após a instilação traqueal de bactérias ou administração de endotoxina na corrente sanguínea.(23) Nossos dados sugerem que a DTGI faz parte do espectro de órgãos acometidos nas síndromes de resposta inflamatória sistêmica e de DMOS e deve ser valorizada em estudos futuros.

A prevalência de complicações gastrintestinais, particularmente, maior tempo para recuperação da função intestinal após cirurgias do TGI, aumenta proporcionalmente com a quantidade de fluidos administrado e o ganho de peso.(24-26) A presença de edema corporal moderado ou grave foi avaliada como marcador de balanço de fluidos positivo em nosso estudo. A frequência de DTGI prolongada mais do que dobrou em pacientes com edema corporal moderado ou grave em nossa casuística. O edema reflete uma ruptura local das relações que mantêm o líquido dentro do espaço intravascular e está quase sempre associado a balanço positivo de água e sódio e com aumento de peso. A presença de hipoalbuminema tem sido associada com prolongamento do tempo de esvaziamento gástrico e do trânsito intestinal e íleo pós-operatório.(27) Se o efeito é devido a hipoalbuminemia per se ou o resultado do balanço hídrico positivo é desconhecido porque é difícil separar estas duas condições.

Lesões erosivas e/ou hemorrágicas da mucosa esofágica ou gástrica foram observadas em três quartos do total de endoscopias realizadas. Estas lesões foram descritas em 24% a 100% dos procedimentos realizados em pacientes críticos, nas primeiras 24 horas de admissão na UTI, em outros estudos.(2) Como mecanismos desencadeantes da lesão do TGI postulam-se como os principais, a hipóxia celular com liberação de mediadores inflamatórios, apoptose e necrose, em especial na sepse, além de alterações na secreção de ácido e pepsina.(28,29)

São várias as limitações deste estudo, mas provavelmente a mais importante se refere a inexistência de uma definição mais objetiva do que se trata a DTGI.(9) Contudo, dados disponiveis ainda são controversos, não há consenso e não dispomos de medidas objetivas. Na nossa definição incluimos dados de exame físico e dados relacionados à tolerancia da dieta enteral ou oral. O desenho retrospectivo limitou a análise de dados importantes como o balanço de fluidos e o impacto da utilização de medicamentos que podem influir no trânsito intestinal como derivados de morfina ou prócinéticos. O tamanho da amostra e o caráter monocêntrico e de uma UTI clínico-cirúrgica também sugerem que é provável que estes resultados possam não ser aplicáveis a outros tipos de UTIs. Apesar destas limitações, nossos dados são importantes na medida em que chamam a atenção para a alta prevalência e impacto da DTGI, além de seus fatores de risco.

Hipovolemia, e consequente hipóxia tecidual, se correlacionam com disfunção de múltiplos órgãos (DMOS). Contudo, o excesso de fluidos também é deletério. Em um modelo animal de isquemia intestinal, a reposição de maior volume de Ringer lactato em comparação a menor volume de cristalóide e colóide determinou significativa queda da pressão coloidosmótica e maior grau de edema intestinal.(30) Em pacientes cirúrgicos, estudos que comparam estratégias mais restritivas de fluidos de manutenção durante cirurgia colo-retal têm demonstrado redução do número de complicações e menor tempo médio para passagem de flatos e fezes nos grupos restritivos.(24-26) Por outro lado, em pacientes de alto risco, a otimização hemodinâmica dirigida por metas no período perioperatório mostrou melhora da acidose da mucosa gástrica e reduziu complicações gastrintestinais no pós-operatório.(31-34) Em vista do impacto da DTGI sobre a evolução e custos, estudos nesta área devem ser encorajados. Abordagens multimodais, que incluam medidas que diminuam o trauma mecânico, mobilização e alimentação enteral precoce, maior precisão na reposição da volemia e do tratamento do choque com monitorização da região esplâncnica, devem ser investigadas em estudos multicêntricos prospectivos.

CONCLUSÃO

Concluímos diante do exposto que disfunção do trato gastrointestinal prolongada tem alta prevalência nesta população heterogênea de pacientes de terapia intensiva. Níveis séricos elevados de lactato e índice de oxigenação inferior a 200 na admissão foram preditivos de evolução com disfunção do trato gastrointestinal.

Submetido em 14 de Dezembro de 2009

Aceito em 7 de Junho de 2010

Recebido de da Faculdade de Medicina de Rio Preto - FAMERP - Hospital de Base - São Jose do Rio Preto - São Paulo (SP), Brasil.

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  • Autor para correspondência:
    Suzana Margareth Lobo
    Avenida Brigadeiro Faria Lima, 5544
    CEP: 15090-000 - São Jose do Rio Preto (SP), Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Aceito
      07 Jun 2010
    • Recebido
      14 Dez 2009
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