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Insuficiência múltipla de órgãos relacionada a acidente ofídico: relato de caso

Resumos

O acidente ofídico não é ocorrência rara no Brasil. Embora com grandes variações entre as diversas regiões, sua incidência é próxima de 30.000 casos por ano. O gênero botrópico, do qual fazem parte as serpentes conhecidas popularmente como jararacas, é, de longe, o mais frequente, seguido pelo gênero crotálico, cujas principais representantes são as cascavéis. Outros gêneros, como Micrurus e Lachesis, são desprovidos de interesse epidemiológico. Casos críticos são incomuns e as complicações mais graves são insuficiência renal e distúrbios na coagulação sanguínea. A síndrome do desconforto respiratório do adulto e a insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas são descritas, porém raras. O objetivo do presente relato é descrever um caso de acidente ofídico do gênero botrópico, que evoluiu com síndrome do desconforto respiratório do adulto e insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas, bem como analisar criticamente o tratamento realizado.

Mordedura de cobra; Síndrome do desconforto respiratório do adulto; Insuficiência renal aguda; Insuficiência de múltiplos órgãos; Relatos de casos


Ophidian accidents are not rare in Brazil. Its frequency is of about 30,000 cases/year in Brazil, although ranging between different regions. The gender Bothrops, which includes snakes popularly known as 'jararaca', is by far the most frequently involved, followed by the gender Crotalus, mainly represented by the rattlesnake. Other genders as Micrurus and Lachesis have lower epidemiological relevance. Critical cases are uncommon, and the most severe complications include renal failure and blood coagulation disorders. Adult respiratory distress syndrome and multi-organ systems failure are described, although rare. This report is aims to describe a case involving a Bothrops ophidian accident progressing to adult respiratory distress syndrome and multi-organ and systems failure, and to discuss the therapy used.

Snake bites; Respiratory distress syndrome, adult; Renal insufficiency, acute; Multiple organ failure; Case reports


RELATO DE CASO

Insuficiência múltipla de órgãos relacionada a acidente ofídico: relato de caso

Luiz Claudio Andrades LimaI; Fábio BombardaII; Rosemeire CortellazzeIII; Gisele Carvalho TrentinIV; Sergio SmolentzovV

IMédico da Unidade de Terapia Intensiva da Santa Casa de Araçatuba - Araçatuba (SP), Brasil

IIMédico da Unidade de Terapia Intensiva da Santa Casa de Araçatuba - Araçatuba (SP), Brasil

IIIEnfermeira do Pronto-Socorro da Santa Casa de Araçatuba - Araçatuba (SP), Brasil

IVFisioterapeuta da Santa Casa de Araçatuba - Araçatuba (SP), Brasil

VMédico da Unidade de Terapia Intensiva da Santa Casa de Araçatuba - Araçatuba (SP), Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência: Luiz Claudio Andrades Lima Rua Rio de Janeiro, 248 CEP: 16015-150 - Araçatuba (SP), Brasil. Fone: (18) 3623-8106 / (18) 9121-0000 E-mail: stanefron@terra.com.br

RESUMO

O acidente ofídico não é ocorrência rara no Brasil. Embora com grandes variações entre as diversas regiões, sua incidência é próxima de 30.000 casos por ano. O gênero botrópico, do qual fazem parte as serpentes conhecidas popularmente como jararacas, é, de longe, o mais frequente, seguido pelo gênero crotálico, cujas principais representantes são as cascavéis. Outros gêneros, como Micrurus e Lachesis, são desprovidos de interesse epidemiológico. Casos críticos são incomuns e as complicações mais graves são insuficiência renal e distúrbios na coagulação sanguínea. A síndrome do desconforto respiratório do adulto e a insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas são descritas, porém raras. O objetivo do presente relato é descrever um caso de acidente ofídico do gênero botrópico, que evoluiu com síndrome do desconforto respiratório do adulto e insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas, bem como analisar criticamente o tratamento realizado.

Descritores: Mordedura de cobra; Síndrome do desconforto respiratório do adulto; Insuficiência renal aguda; Insuficiência de múltiplos órgãos; Relatos de casos

INTRODUÇÃO

Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2005 foram registrados 28.597 casos de acidentes ofídicos.(1) Considerando que se trata de doença de notificação compulsória, cujo tratamento principal, a soroterapia, encontra-se centralizado pelo Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais, provavelmente se trata de um valor muito próximo da realidade. Sua incidência, em torno de 15 casos por 100.000 habitantes, apresenta grande variação entre as regiões, sendo 9,5/100.000 na região Sul e 54/100.000 na região Norte, explicado por se tratar de uma ocorrência típica de áreas rurais. Para se ter uma idéia relativa de sua importância, estes números são maiores que, por exemplo, a incidência de insuficiência renal crônica que apresentou, no ano de 2007, 26.603 novos casos segundo o censo da Sociedade Brasileira de Nefrologia.(2)

Os acidentes ofídicos provocados por serpentes do gênero botrópico do qual fazem partes as espécies popularmente conhecidas como jararacas é o mais frequente, com 87,5% dos casos. O gênero crotálico, que abrange as espécies de cascavéis, vem a seguir, com 9,2%. O restante dos casos é distribuído entre Micrurus e Lachesis, desprovidos de importância epidemiológica.(3)

As propriedades do veneno diferem entre os gêneros, sendo predominantemente proteolítico e coagulante nos botrópicos e neuro e miotóxico, igualmente com alterações na coagulação, nos crotálicos. Desta forma, o quadro clínico também se apresenta de forma diferente, com predominância de manifestações locais no primeiro caso e neurológicas no último. Quanto aos distúrbios da coagulação, comuns aos dois gêneros, podem manifestar-se como fenômenos hemorrágicos ou trombóticos.(3)

Casos graves são raros e isto se deve a vários fatores, sendo um dos principais a soroterapia precoce e adequada. Nos acidentes por botrópicos, a complicação mais frequente é a grande destruição tecidual.(4)

A insuficiência renal é mais comum nos envenenamentos crotálicos, entre 9 e 31% dos casos.(5) Estudo de 3.139 acidentes causados por serpente do gênero botrópico relatou a presença de insuficiência renal aguda em 1,6% dos casos.(6) Na sua gênese estão envolvidos diversos mecanismos como rabdomiólise, coagulação intravascular e ação direta de nefrotoxinas.(7) Além disso, outros fatores relacionados com o risco de desenvolvimento de insuficiência renal aguda são a idade (mais frequente nas crianças), tamanho da serpente, local da picada, grau de hidratação do paciente, tempo entre a picada e administração do soro específico.(8) A síndrome do desconforto respiratório do adulto (SDRA) e a insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas (IMOS) são descritas como raras.(3,4,9)

A mortalidade é baixa, em torno de 0,5% dos casos, podendo o tipo de envenenamento e o tempo de atendimento aumentar até 8 vezes a letalidade.(1,3-6,9)

O objetivo do presente relato é descrever um caso de acidente ofídico provocado por serpente do gênero botrópico que evoluiu com SDRA e IMOS, bem como analisar criticamente o tratamento realizado.

RELATO DO CASO

Paciente masculino, 37 anos, encaminhado à unidade de pronto atendimento 2 horas após ter sido picado por cobra identificada posteriormente como jararaca.

Apresentava-se em bom estado geral, pressão arterial 130/80, frequência cardíaca 96 batimentos por minuto, temperatura 37,2 ºC, oximetria de pulso maior que 92% em ar ambiente, bastante ansioso e referindo dor intensa no local da picada. Acompanhantes relataram que apresentou perda da consciência com duração de aproximadamente 10 minutos. Negava estados mórbidos significativos anteriores. Na face lateral do tornozelo esquerdo notavam-se duas lesões puntiformes, com pequeno hematoma e edema perilesional.

Como não houve identificação imediata do gênero ofídico, foram administradas 3 ampolas de soro polivalente, hidratação com 1000 ml de soro fisiológico de 8/8 horas, analgesia com dipirona e tramadol.

Exames significativos na entrada: hematócrito- 55%; leucócitos 25.000/mm3; creatinina 1,6 mg%; tempo de atividade de protrombina: sangue incoagulável. Com estes exames foi repetida a dose de soro e o paciente foi encaminhado para a unidade de terapia intensiva (UTI).

Durante os primeiros dias de internação apresentava-se hemodinamicamente estável, mantendo oximetria de pulso> 92% em ar ambiente, sem alterações do sensório e sem evidências de sangramentos, embora os testes de coagulação estivessem significativamente alterados. Apresentou sinais clínicos e laboratoriais de comprometimento progressivo da função renal. No 3º dia de internação (DI) o volume urinário de 24 horas reduziu-se a 200 ml com creatinina 5,8mg% e ureia 345 mg%. Decidiu-se por instalação de diálise peritonial por cateter rígido. Mantinha oximetria de pulso >90% com máscara de Venturi a 50%, intercalada com pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP). A diálise foi repetida no 6° e 9° DI. Neste dia começou a apresentar icterícia à custa de bilirrubina direta (5mg%). A função respiratória agravou-se, com hipóxia refratária à ventilação não invasiva e surgimento de infiltrado pulmonar difuso na radiografia de tórax. Colocado em assistência ventilatória mecânica modo volume-controlado com pressão de platô mantida em 30 cm de água. Após 36 horas de diálise, a despeito do balanço negativo de 11000 ml, não apresentou melhora do quadro clínico e a ureia permaneceu acima de 300 mg%. Optou-se por substituir a diálise peritonial por hemodiálise, sendo realizada uma sessão com 3 horas de duração, sem qualquer intercorrência.

A hemodiálise foi repetida nos dias seguintes por mais 5 vezes, até o 18° DI. A partir de então, notou-se aumento do volume urinário, o quadro clínico passou a apresentar evolução satisfatória, sendo extubado no 20°DI e mantido sem suporte dialítico.

Recebeu alta da UTI após 24 dias de internação, com ureia de 154mg%, creatinina 3 mg% e volume urinário em torno de 3 litros diários, mantendo saturação > 90 % em ar ambiente.

DISCUSSÃO

Trata-se de um acidente ofídico por serpente do gênero botrópico, em paciente adulto, previamente hígido.

O tempo de atendimento foi próximo do ideal, que é tido como duas horas.(3) As complicações graves dos acidentes ofídicos são pouco frequentes, sendo o óbito extremamente raro. Ribeiro et al., estudando 3.139 casos de picadas de serpentes do gênero Bothrops, encontraram insuficiência renal em 1,6% dos casos e choque em 0,7 %. Ocorreram 9 óbitos.(6) Em outro estudo, analisou o prontuário de 43 casos fatais em 12.639 registros de acidentes ofídicos ocorridos no Estado de São Paulo em um período de 5 anos. A insuficiência renal constava como causa principal ou contribuindo para o óbito em 34 pacientes (79% dos óbitos), enquanto insuficiência respiratória estava presente em 28 pacientes, (65% dos óbitos).(9) Estudando apenas pacientes internados em unidades de terapia intensiva com este diagnóstico, da Silva et al. encontraram taxa de mortalidade de 20%.(10) Pinho et al., em estudo prospectivo de 100 casos de envenenamento por serpentes do gênero Crotalus, encontraram insuficiência renal aguda em 25% dos pacientes.(5) Infelizmente, não existe uma padronização nos critérios diagnósticos de insuficiência renal, o que dificulta a comparação entre os estudos.

O mecanismo da lesão renal é multifatorial, estando envolvidas a hipotensão, rabdomiólise e coagulação intravascular.(5) Boer et al. estudaram em ratos os efeitos do veneno botrópico e encontraram alterações na membrana basal e matriz mesangial dos glomérulos que atribuem à atividade proteolítica direta do veneno.(7) O veneno botrópico aumenta a permeabilidade capilar no local da picada. Para Gold et al. este mecanismo pode ocorrer nos pulmões, miocárdio, rins, peritônio e sistema nervoso central.(11) Estudos de Barravieira et al. evidenciaram aumento das citoquinas e fator de necrose tumoral nos cinco primeiros dias após o acidente ofídico, levando a um quadro de síndrome da resposta inflamatória sistêmica. Os autores não descartam a possibilidade do envolvimento do soro antiofídico em sua gênese.(3)

O episódio sincopal e os testes de coagulação precocemente alterados eram indícios da gravidade da situação. Embora tenha sido administrado soro logo ao chegar ao hospital, este foi do tipo polivalente e em dose insuficiente. Posteriormente, a dose foi repetida. Ainda assim, manteve-se abaixo do preconizado para casos graves (Quadro 1).(1) Há que se considerar ainda o hematócrito elevado, possível indicador de desidratação, principalmente pelo fato de o acidente ter ocorrido enquanto o paciente se encontrava em atividade ao ar livre em uma região de clima quente. O volume de soro fisiológico prescrito no início do atendimento, em torno de 3.000 ml em 24 horas, pode ter sido insuficiente e contribuído na evolução da função renal. A pronta internação na unidade de terapia intensiva foi adequada, embora inicialmente o paciente se mostrasse estável. A evolução para insuficiência renal aguda foi rápida e severa. A escolha da diálise peritonial mostrou-se muito conservadora. Por se tratar de um método seguro, porém de baixa eficiência, não seria a melhor escolha frente a situação de catabolismo exagerado. Por outro lado, a prescrição de sessões diárias de hemodiálise, a instituição precoce de dieta enteral e a manutenção da ventilação dentro dos parâmetros preconizados pelo Consenso Brasileiro de Ventilação Mecânica(12) foram fatores decisivos na evolução favorável do caso.


Santos et al. em revisão recente do tema, ressaltam que a soroterapia precoce e adequada é a principal forma de prevenir complicações. Alertam ainda que se evite o uso de drogas potencialmente nefrotóxicas, como anti- inflamatórios não esteroides e antibióticos aminoglicosídeos.(13)

É de se notar que 60 dias após o ocorrido o paciente ainda apresentava um pequeno déficit na função renal, o que indica a necessidade de um acompanhamento mais prolongado em situações semelhantes.

Submetido em 26 de Outubro de 2009

Aceito em 22 de Outubro de 2010

Trabalho realizado na Santa Casa de Misericórdia de Araçatuba - Araçatuba (SP), Brasil.

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. 2a ed. Brasília: Fundação Nacional de Saúde; 2001. Disponível em: http//portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/manu_peconhentos.pdf.
  • 2. Sociedade Brasileira de Nefrologia. Censo de Diálise SBN 2008. Disponível em http://198.106.86.84/censo/2008/censosbn2008.pdf
  • 3. Barraviera B, Ferreira Jr RS. Acidentes ofídicos. In: Veronesi R. Veronesi: tratado de infectologia. 3a ed. rev. e atual. São Paulo: Atheneu; 2005. p.1929-47.
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  • Autor para correspondência:
    Luiz Claudio Andrades Lima
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    CEP: 16015-150 - Araçatuba (SP), Brasil.
    Fone: (18) 3623-8106 / (18) 9121-0000
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      22 Out 2010
    • Recebido
      26 Out 2009
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