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Impacto da adequação da oferta energética sobre a mortalidade em pacientes de UTI recebendo nutrição enteral

Resumos

OBJETIVO: Investigar a relação entre adequação da oferta energética e mortalidade na unidade de terapia intensiva em pacientes sob terapia nutricional enteral exclusiva. MÉTODOS: Estudo observacional prospectivo conduzido em uma unidade de terapia intensiva em 2008 e 2009. Foram incluídos pacientes >18 anos que receberam terapia nutricional enteral por >72h. A adequação da oferta de energia foi estimada pela razão administrado/prescrito. Para a investigação da relação entre variáveis preditoras (adequação da oferta energética, escore APACHE II, sexo, idade e tempo de permanência na unidade de terapia intensiva e o desfecho mortalidade na unidade de terapia intensiva, utilizou-se o modelo de regressão logística não condicional. RESULTADOS: Foram incluídos 63 pacientes (média 58 anos, mortalidade 27%), 47,6% dos quais receberam mais de 90% da energia prescrita (adequação média 88,2%). O balanço energético médio foi de -190 kcal/dia. Observou-se associação significativa entre ocorrência de óbito e as variáveis idade e tempo de permanência na unidade de terapia intensiva, após a retirada das variáveis adequação da oferta energética, APACHE II e sexo durante o processo de modelagem. CONCLUSÃO: A adequação da oferta energética não influenciou a taxa de mortalidade na unidade de terapia intensiva. Protocolos de infusão de nutrição enteral seguidos criteriosamente, com adequação administrado/prescrito acima de 70%, parecem ser suficientes para não interferirem na mortalidade. Dessa forma, pode-se questionar a obrigatoriedade de atingir índices próximos a 100%, considerando a elevada frequência com que ocorrem interrupções no fornecimento de dieta enteral devido a intolerância gastrointestinal e jejuns para exames e procedimentos. Pesquisas futuras poderão identificar a meta ideal de adequação da oferta energética que resulte em redução significativa de complicações, mortalidade e custos.

Nutrição enteral; Necessidade energética; Medidas de associação, exposição, risco ou desfecho; Unidades de terapia intensiva; Mortalidade


OBJECTIVE: To investigate the relationship between adequacy of energy intake and intensive care unit mortality in patients receiving exclusive enteral nutrition therapy. METHODS: Observational and prospective study conducted during 2008 and 2009. Patients above 18 years with exclusive enteral nutrition therapy for at least 72 hours were included. The adequacy of energy intake was estimated by the administered/prescribed ratio. Non-conditional logistic regression was used to assess the relationship between predictive variables (adequacy of energy intake, APACHE II, gender, age, and intensive care unit length of stay) and intensive care unit mortality. RESULTS: Sixty-three patients (mean 58 years, 27% mortality) were included, 47.6% of whom received more than 90% of the energy prescribed (mean adequacy 88.2%). Mean energy balance was -190 kcal/day. Significant associations between death in the intensive care unit and the variables age and intensive care unit length of stay were observed, after removing the variables adequacy of energy intake, APACHE II, gender and age during the modeling process. CONCLUSION: In our study, adequacy of energy intake did not affect intensive care unit mortality. Carefully followed enteral nutrition protocols, resulting in an administered/prescribed ratio above 70%, are apparently not sufficient to impact the mortality rates in the intensive care unit. Therefore, it may not be necessary to achieve 100% of the targeted energy, considering the high frequency of enteral feeding interruptions due to gastrointestinal intolerance and fasting for tests and procedures. Additional research is needed to identify the optimal energy intake for improved outcomes and reduced costs.

Enteral nutrition; Energy requirements; Measures of association, exposure, risk or outcome; Intensive care units; Mortality


ARTIGO ORIGINAL

Impacto da adequação da oferta energética sobre a mortalidade em pacientes de UTI recebendo nutrição enteral

Natália Sanchez OliveiraI; Lúcia CarusoII; Denise Pimentel BergamaschiIII; Flávia de Conti CartolanoIV; Francisco Garcia SorianoII

IPrograma de Aprimoramento Profissional em Nutrição Hospitalar do Hospital Universitário, Universidade de São Paulo - USP – São Paulo (SP), Brasil. (2009)

IIUnidade de Terapia Intensiva Adultos do Hospital Universitário, Universidade de São Paulo USP – São Paulo (SP), Brasil

IIIDepartamento de Epidemiologia, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil

IVPrograma de Aprimoramento Profissional em Nutrição Hospitalar do Hospital Universitário Universidade de São Paulo (HU-USP) – São Paulo (SP), Brasil. (2008)

Autor correspondente Autor correspondente: Lucia Caruso Av. Professor Lineu Prestes, 2565 - Cidade Universitária – 1º A CEP: 05508-900 - São Paulo (SP), Brasil. Fone/Fax: (11) 3039-9357 E-mail: snd@hu.usp.br

RESUMO

OBJETIVO: Investigar a relação entre adequação da oferta energética e mortalidade na unidade de terapia intensiva em pacientes sob terapia nutricional enteral exclusiva.

MÉTODOS: Estudo observacional prospectivo conduzido em uma unidade de terapia intensiva em 2008 e 2009. Foram incluídos pacientes >18 anos que receberam terapia nutricional enteral por >72h. A adequação da oferta de energia foi estimada pela razão administrado/prescrito. Para a investigação da relação entre variáveis preditoras (adequação da oferta energética, escore APACHE II, sexo, idade e tempo de permanência na unidade de terapia intensiva e o desfecho mortalidade na unidade de terapia intensiva, utilizou-se o modelo de regressão logística não condicional.

RESULTADOS: Foram incluídos 63 pacientes (média 58 anos, mortalidade 27%), 47,6% dos quais receberam mais de 90% da energia prescrita (adequação média 88,2%). O balanço energético médio foi de -190 kcal/dia. Observou-se associação significativa entre ocorrência de óbito e as variáveis idade e tempo de permanência na unidade de terapia intensiva, após a retirada das variáveis adequação da oferta energética, APACHE II e sexo durante o processo de modelagem.

CONCLUSÃO: A adequação da oferta energética não influenciou a taxa de mortalidade na unidade de terapia intensiva. Protocolos de infusão de nutrição enteral seguidos criteriosamente, com adequação administrado/prescrito acima de 70%, parecem ser suficientes para não interferirem na mortalidade. Dessa forma, pode-se questionar a obrigatoriedade de atingir índices próximos a 100%, considerando a elevada frequência com que ocorrem interrupções no fornecimento de dieta enteral devido a intolerância gastrointestinal e jejuns para exames e procedimentos. Pesquisas futuras poderão identificar a meta ideal de adequação da oferta energética que resulte em redução significativa de complicações, mortalidade e custos.

Descritores: Nutrição enteral; Necessidade energética; Medidas de associação, exposição, risco ou desfecho; Unidades de terapia intensiva; Mortalidade

INTRODUÇÃO

Em pacientes de unidade de terapia intensiva (UTI), fatores como estresse metabólico, catabolismo, imobilização prolongada e oferta nutricional inadequada podem estar relacionados com balanço energético negativo, situação que ocorre quando o gasto de energia supera a ingestão.(1,2)

Estudos observacionais indicam a existência de associação entre balanço energético negativo e ocorrência de maior número de complicações, sobretudo as de origem infecciosa, além de aumento do tempo de permanência na UTI.(3-5)

A adequação da oferta energética ao paciente crítico representa um importante desafio. A terapia nutricional enteral (TNE), que é a primeira opção quando a alimentação pela via oral não é possível, frequentemente resulta em oferta insuficiente de energia, visto que inúmeros fatores podem levar à interrupção no fornecimento da fórmula enteral, tais como intolerância gastrointestinal (distensão abdominal, vômitos, diarréia) e jejuns para exames e procedimentos.(6)

Na prática clínica, é possível que pacientes em TNE não recebam a totalidade da prescrição dietética feita com base nas estimativas das suas necessidades nutricionais, sendo descritos na literatura valores de energia administrada variando entre 50% a 87% da meta prescrita.(7,8)

Tem-se ainda uma controvérsia na literatura acerca da quantidade ideal de energia a ser oferecida ao paciente de UTI. Alguns autores questionam se o esforço empregado para alcançar 100% da meta energética prescrita seria uma estratégia eficiente a ponto de resultar em melhora de desfechos clinicamente relevantes.(9)

Em estudo realizado por Krishnan et al.,(10) pacientes no maior tercil de adequação energética, que receberam > 66% das calorias prescritas, apresentaram menor chance de alta hospitalar e de obter alta da UTI respirando espontaneamente do que os pacientes no menor tercil (que receberam 0 a 32% do prescrito). Já os pacientes do segundo tercil, cuja energia administrada foi entre 33% a 65% da prescrita, apresentaram maior chance de efetuar o desmame ventilatório antes da alta da UTI do que os do menor tercil. Estes dados sugerem haver uma janela terapêutica, acima da qual a oferta energética não conferiria benefícios adicionais e, pelo contrário, poderia estar relacionada a piores desfechos.

Por outro lado, Faisy et al.(11) observaram mortalidade significativamente maior nos pacientes no maior quartil de déficit energético, em estudo realizado com pacientes de UTI sob ventilação mecânica prolongada. Por meio de análise multivariada, o déficit energético médio foi identificado como fator independentemente associado com mortalidade na UTI. Desta forma, os autores reiteram a hipótese de que a oferta energética o mais próximo possível da estimada pode ser uma forma de obter melhores desfechos em UTI.

Esta ausência de consenso na literatura motivou o presente estudo, conduzido com o objetivo de investigar a relação entre adequação da oferta energética e mortalidade na UTI em pacientes recebendo TNE exclusiva.

MÉTODOS

Estudo observacional prospectivo conduzido na UTI-adultos do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, com coleta de dados realizada durante o segundo semestre de 2008 e de 2009. Foram incluídos pacientes com idade mínima de 18 anos que receberam terapia nutricional enteral exclusiva por pelo menos 72 horas. Os critérios de exclusão foram a não anuência ao termo de consentimento livre e esclarecido e a adoção de cuidados paliativos.

A estimativa de energia (kcal) para cada condição clínica foi realizada de acordo com o protocolo existente na unidade,(12) utilizando-se recomendações de calorias por quilo de peso (kcal/kg) nos casos de sepse e insuficiência renal ou hepática e a fórmula de Harris & Benedict nos demais diagnósticos. Para os cálculos, considerou-se o peso corpóreo habitual, ajustado ou ideal obtido a partir de tabelas de referência segundo faixa etária(13,14) e a estatura (cm) referida ou estimada pela altura do joelho, utilizando as equações de Chumlea et al. para adultos(15) e idosos.(16)

Foram utilizadas sondas em posição pós-pilórica, confirmando-se o posicionamento por meio de raios-X. As fórmulas enterais foram administradas de forma contínua, por bombas de infusão, durante aproximadamente 22 horas por dia, estimando-se duas horas de pausa para procedimentos e administração de medicamentos.

A progressão da velocidade de infusão seguiu o protocolo,(17) iniciando-se a 25 mL/h e evoluindo 10mL/h a cada quatro horas até atingir a meta inicial de 55 mL/h. Em seguida, cada paciente progrediu até sua meta individual, utilizando-se uma das fórmulas enterais disponíveis: normocalórica e normoprotéica, normocalórica e hiperprotéica ou hipercalórica e hiperprotéica. Nenhuma das fórmulas continha imunonutrientes.

Obteve-se na admissão na UTI dados referentes a sexo, idade, peso, estatura, diagnóstico e o escore prognóstico Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE II).(18) Diariamente, registrou-se o volume de dieta infundido nas 24 horas precedentes a partir das anotações da enfermagem. A coleta de dados de dieta foi realizada a partir do dia de introdução da TNE, sendo interrompida no momento de alta da UTI, óbito ou início de outra via de administração nutricional.

O balanço energético foi calculado como a diferença entre a quantidade de energia administrada (obtida a partir dos registros de volume infundido) e a quantidade de energia estimada. Estimou-se a adequação da oferta de energia por meio do cálculo da razão entre os valores calculados e prescritos e entre os valores prescritos e administrados.

Os resultados são apresentados na forma de média e desvios padrão para variáveis numéricas, e como número (n) ou porcentagem (%) para variáveis categóricas, incluindo intervalo de confiança (IC) de 95% estimado por meio da distribuição binomial. Para a comparação de variáveis, utilizou-se o teste t de Student e o intervalo de confiança de 95%.

Para a investigação da relação entre as variáveis preditoras e o desfecho mortalidade na UTI, foi adotado o modelo de regressão logística não condicional. Iniciou-se com o modelo completo, excluindo-se as variáveis uma a uma por meio do teste da razão de verossimilhança.(19,20)

O processo de modelagem foi iniciado contendo as variáveis: adequação percentual da oferta energética (<70%; 70-90%; >90%), APACHE II (<15; 15-23; >23), sexo (masculino; feminino), idade (<60 anos; >60 anos) e tempo de permanência na UTI (<14 dias; >14 dias).

Considerou-se para tomada de decisão estatística o valor descritivo do teste (valor de p). A análise estatística foi realizada no programa Epi Info versão 3.5.1 e no Stata versão 9.0. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Instituição (CEP 603/05), com assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes ou seus responsáveis.

RESULTADOS

No decorrer do estudo, 87 pacientes adultos internados na UTI receberam TNE exclusiva, sendo que 23 não preenchiam critérios de inclusão (22 pacientes em cuidados paliativos, 1 não anuência ao termo de consentimento). Durante a análise de regressão, um paciente foi excluído por se tratar de um caso atípico, apresentando valor aberrante referente ao tempo de permanência na UTI.

Assim, foram analisados dados de 63 pacientes, com idade média de 58 anos, distribuição semelhante de gêneros (51% feminino) e APACHE II médio de 19,5. Os principais diagnósticos de admissão na UTI foram problemas respiratórios (37%), seguidos por cardiológicos (17%) e sepse (16%). A mortalidade foi igual a 27%. Em relação à adequação da oferta energética, 7,9% dos pacientes receberam menos de 70% da energia prescrita, 44,4% receberam entre 70 e 90% e 47,6% receberam mais de 90% da energia prescrita (Tabela 1).

A tabela 2 apresenta os valores médios de energia calculada, prescrita, administrada e balanço energético. Obteve-se adequação percentual média entre a energia prescrita e calculada igual a 100,5% e entre a energia administrada e prescrita, igual a 88,2%. A média da razão de energia administrada/calculada foi de 88,7%. Isto se reflete no valor do balanço energético médio, que foi ligeiramente negativo (menos 190 kcal/dia).

Observou-se que 54 pacientes (86%) apresentaram balanço energético médio negativo, com déficit energético variando entre -690,9 e -4,6 kcal/dia. Os demais pacientes (14%) apresentaram balanço energético médio positivo, com excesso de energia entre 2,8 e 224,3 kcal/dia.

Os pacientes que foram a óbito apresentaram médias de idade e do escore APACHE II significativamente maiores do que os que sobreviveram (p<0,001 e p=0,007, respectivamente). Não foi observada diferença estatisticamente significante quanto à distribuição de gêneros, tempo de permanência na UTI, tempo em jejum antes do início da TNE e número de dias com TNE (Tabela 3).

Analisando-se os grupos segundo categorias de adequação percentual da oferta energética (<70%, 70-90%, >90%), observa-se que não houve diferença estatisticamente significante quanto à idade (p=0,690), tempo de permanência na UTI (p=0,235) e APACHE II (p=0,367).

Na análise do modelo de regressão logística final, observou-se associação estatisticamente significante entre ocorrência de óbito e as variáveis explanatórias, idade e tempo de permanência na UTI (Tabela 4), após a retirada das variáveis adequação da oferta energética, APACHE II e sexo durante o processo de modelagem.

DISCUSSÃO

No presente estudo, a adequação da oferta energética em pacientes adultos de UTI recebendo nutrição enteral exclusiva não influenciou a mortalidade.

Ressalta-se a boa adequação entre os valores de energia administrada e prescrita na UTI estudada (88,2%). Em pacientes de UTI sob ventilação mecânica, Reid(21) observou 81% de adequação da oferta energética, enquanto O'Meara et al.(8) observaram apenas 50%.

O percentual de adequação encontrado reflete a realização de práticas consistentes com o protocolo de infusão de nutrição enteral adotado, que define medidas para o alcance da meta nutricional e para o manejo de intercorrências como volume gástrico residual elevado, bem como o esforço da Equipe Multidisciplinar de Terapia Nutricional (EMTN) em minimizar o tempo de jejum para extubação e procedimentos de rotina.

O balanço energético médio, de -190 kcal por dia, foi bastante inferior ao encontrado no estudo de Faisy et al.,(11) no qual os pacientes tiveram em média déficit de mais de 1200 kcal/dia. Uma possível explicação para esta diferença é que no estudo de Faisy et al. a prescrição dietética não era baseada na estimativa do gasto energético. Quando a prescrição dietética é realizada individualmente, com base na estimativa da necessidade energética, como ocorre na UTI estudada, a tendência é que o déficit energético seja menor.

No estudo realizado por Villet et al.,(3) o balanço energético médio foi menor na quarta semana de internação (-625 kcal/dia) do que na primeira semana (-1270 kcal/dia). A demora para iniciar a oferta de nutrição enteral neste estudo (74,4 horas em média) contribuiu para a magnitude do déficit energético na primeira semana.

A média para início da TNE no presente estudo, de 28,8 horas, é condizente com as diretrizes que preconizam a introdução precoce da TNE, nas primeiras 24 a 48 horas decorridas da admissão.(22) Tanto a introdução precoce como o alcance rápido da meta nutricional podem ter contribuído também para o menor déficit energético observado.

Os resultados da análise de regressão logística indicam como fatores que favorecem a ocorrência de óbito na população estudada a idade e o tempo de permanência na UTI. Dados provenientes da literatura mostram que a idade avançada está associada a aumento da mortalidade hospitalar em pacientes admitidos na UTI.(23,24) Contudo, outras publicações sugerem que a idade isoladamente não representa um forte preditor de mortalidade na UTI.(25-27)

O tempo de permanência na UTI também foi identificado como fator associado com mortalidade em alguns estudos. Martin et al.(28) observaram mortalidade na UTI significativamente maior nos pacientes com tempo de permanência na UTI superior a 21 dias (24%) comparado a pacientes com menor tempo de permanência (11%). No estudo de Abelha et al.,(29) realizado em uma UTI cirúrgica, o tempo de permanência na UTI > 3 dias foi identificado como fator independentemente associado com mortalidade na UTI.

Como esperado, a média do APACHE II foi significativamente maior nos pacientes que foram a óbito, comparados aos sobreviventes. Alguns resultados publicados na literatura apontam o APACHE II como preditor independente de mortalidade na UTI.(30,31) Todavia, no modelo estudado, assim como no estudo de Bregeon et al.,(32) o APACHE II não foi capaz de predizer de forma independente a mortalidade na UTI.

É preconizado que a TNE excessivamente hipercalórica ou hipocalórica seja evitada em pacientes críticos,(22) porém a oferta ideal de energia em relação ao prescrito ainda é questão não respondida na literatura. As diretrizes internacionais recomendam a oferta de energia o mais próximo possível da meta estabelecida, enquanto alguns pesquisadores defendem o que se pode chamar de subalimentação permissiva.

Estes últimos justificam que o suporte nutricional mais agressivo poderia precipitar hiperglicemia(33) e aumentar o volume gástrico residual, favorecendo a ocorrência de aspiração.(34) Além disso, há evidências de que a restrição calórica pode diminuir o estresse oxidativo, atenuar a resposta inflamatória e melhorar a sensibilidade à insulina.(22,35)

Os resultados de alguns estudos observacionais sustentam que a oferta energética ideal possa ser abaixo da meta prescrita, pois a oferta mais próxima da meta esteve relacionada com piores desfechos, como aumento do tempo de permanência e redução da chance de proceder ao desmame ventilatório antes da alta da UTI.(9,10) Pode-se argumentar, no entanto, que tais resultados apresentam um viés, uma vez que os pacientes que tendem a ficar mais tempo na UTI têm mais chance de alcançar a meta energética, e nestes a maior exposição à UTI por si só poderia aumentar o risco de complicações, sem ter relação com a oferta energética.

No recente estudo de Arabi et al.(35) foi realizado ajuste para a variável de confusão tempo de permanência na UTI. Os autores demonstraram que a ingestão calórica mais próxima da meta (>64,6%) associou-se com aumento significativo da mortalidade hospitalar, da duração da ventilação mecânica e do risco de adquirir infecções na UTI. A mortalidade na UTI foi maior nos pacientes que receberam mais de 64,6% das calorias prescritas (35%), comparados aos que receberam entre 33,4% e 64,6% (24%) e menos do que 33,4% (21%), porém esta diferença não foi significativa (p=0,08).

Vale comentar que a adequação média entre energia administrada e prescrita encontrada por Arabi et al. foi de 50%, sendo que somente um terço dos pacientes recebeu mais do que 65% da meta estipulada.(35) No presente estudo, 92% dos pacientes receberam mais de 70% das calorias prescritas. Ainda são necessários mais estudos para determinar se reduzir a oferta energética pode melhorar o desfecho em pacientes de UTI.

Por outro lado, em estudo multicêntrico observacional realizado com 2772 pacientes sob ventilação mecânica,(36) demonstrou-se que o incremento de 1000 kcal/dia associou-se com redução significativa da mortalidade. Os pacientes mais beneficiados foram aqueles com IMC < 25 ou > 35 kg/m2.

As evidências provenientes de ensaios clínicos e metanálises também parecem corroborar a hipótese de que quanto maior a oferta da TNE melhores serão os desfechos, sobretudo quando a TNE precoce é comparada com aquela iniciada de forma mais tardia.(37) Isso desde que haja um cálculo individual e criterioso da necessidade de energia e proteínas. Todavia, não fica clara a associação entre o cumprimento de 100% das calorias prescritas e a ocorrência de desfechos clinicamente importantes.

Nesse sentido, pode-se questionar a necessidade de promover o esforço da EMTN para garantir que a totalidade da dieta prescrita seja administrada, tendo em vista a frequência com que ocorrem interrupções no fornecimento de dieta enteral em UTI, devido a jejuns para exames, procedimentos de rotina e fatores relacionados à intolerância gastrointestinal.

Os dados obtidos no presente estudo parecem indicar que garantir que pelo menos 70% da quantidade prescrita seja administrada poderia ser uma meta adequada e mais fácil de alcançar na prática clínica. O tamanho da amostra é uma limitação e impossibilita que as conclusões apresentadas sejam generalizadas, assim como seu caráter observacional. São necessários ensaios clínicos que investiguem a razão ideal entre energia administrada/prescrita para pacientes de UTI recebendo nutrição enteral, visando à redução do tempo de permanência na UTI, complicações e mortalidade.

CONCLUSÃO

A adequação da oferta energética em pacientes sob TNE exclusiva não influenciou a taxa de mortalidade nos pacientes internados na UTI. A análise de regressão logística indicou como fatores relacionados à ocorrência de óbito a idade e o tempo de permanência na UTI. Protocolos de infusão de nutrição enteral seguidos criteriosamente, e atingindo um índice de adequação acima de 70% das necessidades calculadas para pacientes internados em UTI, por períodos de duas a três semanas no máximo, parecem não modificar a mortalidade. Dessa forma, pode-se questionar a obrigatoriedade de atingir índices próximos a 100%. Pesquisas futuras precisam ser conduzidas para identificar a meta ideal de adequação da oferta energética que resulte em redução significativa de complicações, mortalidade e custos.

Submetido em 14 de Fevereiro de 2011

Aceito em 8 de Maio de 2011

Conflitos de interesse: Nenhum.

Estudo realizado no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil.

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  • Autor correspondente:
    Lucia Caruso
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      14 Fev 2011
    • Aceito
      08 Maio 2011
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