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Interferências na absorção de levotiroxina e dificuldades no manuseio de pacientes com hipotireoidismo na unidade de terapia intensiva: relato de dois casos e revisão de literatura

Resumos

Inúmeros fatores podem influenciar a absorção da levotiroxina nos pacientes hipotireoideos, especialmente medicações e administração concomitante com alimentos. Nos pacientes internados em unidade de terapia intensiva, estes fatores são mais evidentes, principalmente em função da dieta enteral contínua além de diversas medicações que podem interferir na sua absorção. Alterações adaptativas no eixo hipotálamo-hipófise-tireóide e alterações clínicas comumente presentes em pacientes críticos que podem ter contribuição de um hipotiroidismo não tratado se associam tornando ainda mais difícil o manuseio da reposição de levotiroxina. Relatamos dois casos de pacientes com hipotiroidismo internados em unidade de terapia intensiva, com suas respectivas abordagens para reposição de levotiroxina, levantando questões controversas como: qual a dose ideal de reposição, velocidade no incremento das doses, necessidade de associação com triiodotironina, interferência da dieta enteral na absorção, e finalmente as possíveis conseqüências de um hipotiroidismo não tratado e as formas clínicas e laboratoriais para monitorizar as doses hormonais administradas.

Absorção; Levotiroxina/farmacocinética; Hipotireoidismo; Cuidados críticos; Relatos de casos


Levothyroxine absorption in hypothyroid patients can be influenced by several factors, particularly medications and concomitant food administration. This is especially evident in intensive care unit patients, where a continual enteral diet and the administration of multiple medications changes its absorption. Changes or adaptations in the hypothalamic-pituitary-thyroid axis, in conjunction with clinical abnormalities possibly related to under-treatment of hypothyroidism, render levothyroxine replacement therapy very challenging. Here, we report two intensive care hypothyroidism patients and their respective levothyroxine replacement management issues, focusing on a number of controversial issues, such as the optimal replacement dose, how fast the levothyroxine doses should be increased, triiodothyronine requirements, the interference of an enteral diet with absorption, and finally, the possible consequences of undertreated hypothyroidism and levothyroxine replacement monitoring useful clinical/laboratory parameters.

Absorption; Levothyroxine/pharmacokinetics; Hypothyroidism; Critical care; Case reports


RELATO DE CASO

Interferências na absorção de levotiroxina e dificuldades no manuseio de pacientes com hipotireoidismo na unidade de terapia intensiva: relato de dois casos e revisão de literatura

Ana Lúcia Marinho Vinagre; Marcus Vinícius Leitão de Souza

Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Marcus Vinicius Leitão de Souza Travessa Maria Elmira, 32 - casa 33 - Santa Rosa CEP: 24240-260 - Niterói (RJ), Brasil. E-mail: marcusleitao@gmail.com

RESUMO

Inúmeros fatores podem influenciar a absorção da levotiroxina nos pacientes hipotireoideos, especialmente medicações e administração concomitante com alimentos. Nos pacientes internados em unidade de terapia intensiva, estes fatores são mais evidentes, principalmente em função da dieta enteral contínua além de diversas medicações que podem interferir na sua absorção. Alterações adaptativas no eixo hipotálamo-hipófise-tireóide e alterações clínicas comumente presentes em pacientes críticos que podem ter contribuição de um hipotiroidismo não tratado se associam tornando ainda mais difícil o manuseio da reposição de levotiroxina. Relatamos dois casos de pacientes com hipotiroidismo internados em unidade de terapia intensiva, com suas respectivas abordagens para reposição de levotiroxina, levantando questões controversas como: qual a dose ideal de reposição, velocidade no incremento das doses, necessidade de associação com triiodotironina, interferência da dieta enteral na absorção, e finalmente as possíveis conseqüências de um hipotiroidismo não tratado e as formas clínicas e laboratoriais para monitorizar as doses hormonais administradas.

Descritores: Absorção; Levotiroxina/farmacocinética; Hipotireoidismo; Cuidados críticos; Relatos de casos

INTRODUÇÃO

A reposição de levotiroxina (LT4) constitui-se no tratamento consagrado do hipotireoidismo independendo da sua etiologia. Seu uso isoladamente ou associado à triiodotironina (T3) tem sido objeto de estudos recentes(1,2) principalmente no que se refere ao seu uso ambulatorial. No paciente ambulatorial, classicamente se recomenda a reposição inicial com incrementos graduais das doses de LT4. No outro extremo, temos os pacientes com quadro de coma mixedematoso, onde se impõe uma reposição mais agressiva(3) não somente em função do risco de vida, mas também em função da provável dificuldade na absorção intestinal. Entre estes dois grupos temos os pacientes hipotireoideos, sem coma mixedematoso, em situação crítica, ou seja, internados em unidade de terapia intensiva não em conseqüência direta de complicações do hipotireoidismo. Como proceder diante destes pacientes constitui um desafio na prática clínica, nunca estudado, porém extremamente importante, já que o controle adequado do hipotireoidismo pode ser determinante para recuperação de eventuais patologias dentro da terapia intensiva, notadamente quadro hemodinâmico e de insuficiência respiratória com dependência de ventilação mecânica. Ao mesmo tempo doentes não hipotireoideos apresentam alterações adaptativas em períodos de doenças críticas que em alguns aspectos se assemelha com quadro de hipotiroidismo (síndrome do doente eutiroidiano) e com isso levantando a questão de como proceder no doente com hipotiroidismo compensado com LT4, já que este paciente sendo dependente de doses orais fixas de LT4, talvez não seja capaz de se "auto ajustar" aos mecanismos adaptativos presentes na doença crítica.

Apresentamos dois casos de pacientes com hipotireoidismo e evolução para insuficiência respiratória por pneumonia hospitalar e como procedemos em relação à reposição de LT4 e eventualmente triiodotironina (T3). Apresentamos uma revisão dos mecanismos que interferem com a absorção de drogas em pacientes críticos assim como das alterações adaptativas do doente crítico e como estas alterações podem influenciar no manuseio das doses de reposição neste tipo de paciente.

RELATO DE CASO

Caso 1

J.M.S., 80 anos, masculino, foi avaliado no ambulatório em agosto de 2006 devido à hipotireoidismo descompensado por tratamento irregular. Paciente apresentando diagnóstico de hipotireoidismo primário desde 1994, em acompanhamento ambulatorial com reposição de levotiroxina 100μg/dia (1,1μg/kg/dia), tendo suspenso a medicação há 70 dias. Referia sonolência, astenia, fala arrastada, constipação e mialgias. Ao exame físico encontrava-se hipocorado (+/4+), eupneico, com edema periorbitário, bradicárdico, com pressão arterial de 150/70mmhg, peso de 90 kg e altura de 1,75m. Apresentava bulhas hipofonéticas e edema de membros inferiores. Restante do exame físico sem alterações. Paciente foi internado na enfermaria de Endocrinologia para inicio da reposição de LT4 principalmente em função das co-morbidades associadas.

Estava em uso de glibenclamida 10mg/dia para tratamento de diabetes mellitus e ácido acetilsalisílico 100mg/dia. Referia história de hipertensão sem tratamento e de enfisema pulmonar. Tabagista de longa data de 50 anos/maço.

A avaliação laboratorial da internação demonstrou hipotireoidismo descompensado, com dosagem de hormônio estimulante da tireóide (TSH) de 88,02 μU/ml (valor de referência - VR: 0,4 - 4,5) e T4L de 0,08 ng/dl (VR: 0,8 – 1,9); anemia de doença crônica, com hematócrito (Ht) de 33% e hemoglobina (Hb) de 11g/dl, leucograma sem sinais de infecção, glicose de 181mg/dl e creatinina de 1,7mg/dl. Sem outras anormalidades laboratoriais (Tabela 1).

Foi iniciada reposição com LT4 12,5μg/dia, sendo aumentada a dose progressivamente em 15 dias até 62,5μg/dia. Após compensação clínica, no 16° dia de internação, o paciente apresentou hemoptóicos e estertoração crepitante em base pulmonar direita, sendo iniciada antibioticoterapia oral. Após cinco dias evoluiu sem melhora, apresentando dispnéia em repouso, picos febris, estertores crepitantes difusos à ausculta, leucocitose de 14,3mil/mm3 com desvio para esquerda (bastões de 17), Na+ de 131mMol/l, K+ de 5,5mMol/l e creatinina de 2,1mg/dl (Tabela 1). Radiografia de tórax evidenciou infiltrado difuso bilateral. Evoluiu com insuficiência respiratória, necessitando de suporte ventilatório, hemodinâmico e de nutrição enteral. Aumentou-se a dose de reposição de LT4 para 200μg/dia (2,2μg/kg/dia) por via enteral, foi iniciada corticoterapia (hidrocortisona-200mg/dia), antibioticoterapia e inibidor da bomba de prótons (omeprazol) venoso.

Após três dias de tratamento, ainda em suporte ventilatório, apresentou discreta melhora clínica, sendo diminuída a sedação e aumentada a reposição de LT4 para 300μg/dia (3,3μg/kg/dia); com dosagem hormonal após quatro dias de T4L: 0,96ng/dl e TSH: 2,07ng/dl (Tabela 2). Paciente foi submetido à suspensão diária da sedação como proposto por Schweickert et al.,(4) apresentando pronto despertar em menos de 30 minutos, fato que garantia não haver qualquer problema em relação ao seu nível de consciência relacionado ao hipotireoidismo.

Paciente manteve-se grave durante toda a internação, apesar da melhora laboratorial hormonal, com últimas dosagens após 20 dias do uso de LT4 300μg/dia de T4L: 1,38ng/dl e TSH: 0,10ng/dl (Tabela 2), evoluindo com choque séptico de foco pulmonar e óbito após 30 dias de internação.

Caso 2

Paciente E.F.W., 76 anos, 1,78m de altura, 90 kg, diabética há 35 anos, complicações microvasculares neuropatia sensitivo motora, gastroparesia leve e retinopatia não proliferativa. Hipotiroidismo tratado e compensado ambulatorialmente com 125 μcg de LT4 (1,38 μcg/kg), surgido pós tireoidectomia em função de nódulo tireoidiano suspeito, sendo confirmado benigno – adenoma folicular - na histopatologia. Até março de 2008 vinha em uso de insulina glargina 16 unidades 1x/dia com bom controle glicêmico. Fazia uso regular de valsartan 80 mg/dia, pantoprazol 20 mg/dia e bromoprida pré prandial em períodos de acentuação de vômitos pós alimentares.

Há um ano teve fratura do colo do fêmur direito por queda da própria altura. Teve curso de antibioticoterapia estendido para 21 dias no pós-operatório em função de pequenas deiscências na incisão, tendo completado este curso com ciprofloxacina ambulatorialmente. Dois meses após esta internação apresentou infecção do trato urinário sintomática por Klebsiella (cepa produtora de β lactamase de espectro estendido – ESBL) sendo tratada ambulatorialmente com ertapenem intra-muscular.

Em abril de 2008 teve internação hospitalar em função de diverticulite com evolução para sepse, tendo alta após 10 dias de antibioticoterapia com meropenem. Quinze dias após a alta hospitalar evoluiu em sua residência com sonolência, febre e hipotensão. Nova internação, sendo diagnosticada pneumonia que evoluiu com choque séptico. Após estabilização do quadro infeccioso, mantinha dificuldade de desmame da ventilação mecânica especialmente em função de derrame pleural recorrente em trono de 600-800 ml em cada hemi-tórax, com duas avaliações confirmando se tratar de transudato. Em função da dieta enteral contínua a paciente já estava em uso de 200 mcg, (2,2 μcg/kg) sendo levantada a hipótese de que o hipotireoidismo poderia estar contribuindo para a manutenção do derrame pleural. Nova dosagem hormonal revelou TSH = 12,0 μU/ml (VR: 0,4 -4,5) e T4 livre de 0,7 ng/dl (VR: 0,8-1,9). Paciente não havia feito uso de corticoide em função de resposta adequada a vasopressor (noradrenalina) sendo necessário seu uso por apenas cinco dias. Foi associado ao T4, 20 mcg/dia de T3. Foi colocado cateter de Wayne para drenagem de ambos hemitorax que mostrava drenagem em torno de 1000 ml a cada três dias. Progressivamente a freqüência da drenagem assim como seu volume foi diminuindo, para intervalos semanais com saída de 300-400 ml, quando conseguiu desmame da ventilação mecânica e alta da unidade de terapia intensiva (UTI).

DISCUSSÃO

A levotiroxina sódica é comumente prescrita para reposição fisiológica no hipotireoidismo, sendo a dose típica para reposição ambulatorial de 1,6 a 1,8 μcg/kg/dia,(5) o que resulta na prescrição de aproximadamente 75 a 112μcg/dia para mulheres e 125 a 200μcg/dia para homens. Alguns pacientes podem necessitar de doses mais altas ou mais baixas do que as geralmente utilizadas, devido às variações individuais na absorção e muitas outras condições associadas que possam alterar as necessidades de LT4, como doenças gastrintestinais, suplementos dietéticos e algumas drogas que podem interferir com a absorção de LT4. Muitos estudos sobre a absorção do hormônio tireoidiano foram conduzidos desde a década de 1960. Para estudar as alterações da biodisponibilidade do LT4 foi necessário desenvolver métodos para examinar a absorção do hormônio. Hays(6) desenvolveu um modelo compartimental baseado nos parâmetros de transporte gastrintestinal, onde a absorção do LT4 foi localizada no duodeno, jejuno e íleo; principalmente nos dois últimos sítios, sendo 80% da administração oral absorvido. Nas primeiras poucas horas após a ingestão oral, o LT4 distribui-se principalmente para o leito vascular e órgãos esplâncnicos antes da circulação para os tecidos periféricos, com um pico em 2 a 4 horas.(7) Assim, o incremento sérico do T4 total deve ser proporcional à quantidade de T4 absorvido em vários momentos durante as primeiras seis horas depois da ingestão.

Assim, questões objetivas podem ser levantadas em relação a absorção de T4 em doentes críticos, como edema de alça intestinal , hipoalbuminemia e dieta enteral contínua

Além destas questões objetivas relacionadas à absorção de LT4, alterações adaptativas que ocorrem no eixo hipotálamo-hipófise–tireóide (HHT) nos trazem outras dificuldades para avaliação da reposição de LT4 em pacientes com hipotiroidismo prévio a doença crítica não diagnosticado assim como nos pacientes previamente diagnosticados como hipotiroideos tanto os ambulatorialmente descompensados como o paciente 1 como os previamente compensados como o paciente 2.

Discutiremos as alterações adaptativas no eixo HHT e suas relações práticas com pacientes hipotiroideos, a interferência das drogas comumente utilizadas na UTI e os efeitos da dieta sobre a absorção e disponibilidade de T4 especialmente nos pacientes críticos.

Efeitos das doenças gastrintestinais na absorção de levotiroxina

O T4 é absorvido principalmente no jejuno e parte superior do íleo, assim mesmo em pacientes críticos algumas patologias ou mesmo associações delas podem estar presentes nos pacientes hipotiroideos. Pacientes com doença celíaca, insuficiência pancreática, síndrome do intestino curto, doença intestinal inflamatória e outras (incluindo aquelas que comprometem a secreção ácida normal do estômago, como gastrite crônica atrófica e infecção por helicobacter pylori) devem ter a absorção do LT4 reduzida, frequentemente evidenciada pelo aumento do TSH enquanto tomam uma dose de LT4 que o normalizaria previamente. Alguns autores(8) propuseram que a dosagem de anticorpos para doença celíaca possa ser útil como rastreamento para a doença em pacientes que necessitam de doses diárias de LT4 > 2 μcg/kg/dia, assim como Silva e Souza relataram caso com necessidade maior que 6 μcg/kg/dia em paciente com doença celíaca não tratada.(9) No entanto em pacientes críticos não existe qualquer recomendação em relação às doses de reposição principalmente pela dificuldade em relação aos parâmetros laboratoriais considerados para adequação das doses.

Efeito da alimentação na absorção de LT4

A interferência da alimentação na absorção do LT4 foi evidenciada por Benvenga et al.(10) através de curvas de absorção pelos níveis de incremento do T4 sérico. O adiamento do café por pelo menos uma hora, após a ingestão do LT4, resultou em normalização dos níveis de TSH. No entanto, são necessários estudos adicionais para respaldar a recomendação de que o LT4 deve ser ingerido com o estômago vazio, uma hora antes da alimentação. Alguns componentes da alimentação como as fibras e a soja podem diminuir a biodisponibilidade do LT4.(11,12) Considerando o ciclo entero-hepático do T4, mesmo quando administrado separadamente ou parenteral, as fibras da dieta podem interagir com o T4 durante o seu reciclo no intestino. O clearance do T4 também pode aumentar independente do tempo entre a ingestão do LT4 e das fibras. Assim, em pacientes ambulatoriais uma monitorização da concentração do TSH é recomendada para pacientes em uso de LT4 que fazem mudanças em sua dieta envolvendo um aumento no consumo de fibras e/ou soja.(11,12) Em doentes críticos, com dieta enteral contínua estima-se que a absorção de determinados medicamentos possa diminuir em torno de 50%, levando-se em conta apenas a infusão da dieta. O hipotireoidismo associado pode ser fator adicional juntamente com as alterações normalmente presentes no doente crítico (retenção hídrica, insuficiência renal, edema de alça intestinal, uso de aminas vasoativas, etc). No entanto, não há nenhum estudo analisando especificamente o uso da levotiroxina neste grupo de pacientes. Considerando estes fatos, uma proposição lógica, mas ao mesmo tempo especulativa, seria de pelo menos dobrar a dose plena recomendada para pacientes ambulatoriais, o que giraria em torno de 3mcg/kg/dia. Em ambos os pacientes a reposição se situou claramente acima das doses ambulatoriais (3,3 μcg/kg no paciente 1 e 2,2 μcg/kg) sendo que no paciente 2 mesmo a adição de T3 não foi suficiente para estabilizar os níveis de TSH no período de internação na UTI.

Efeito das medicações nos níveis dos hormônios tireoideanos

Muitas medicações têm sido relatadas por interferir na absorção de LT4, incluindo: sulfato ferroso, hidróxido de alumínio, carbonato de cálcio, colestiramina, sucralfate e mais recentemente, inibidores da bomba de prótons, que além de interferir na absorção, pode também aumentar a sua depuração.(8,13) Dentre essas, a única usada por ambos os pacientes foi o inibidor da bomba de prótons omeprazol. Os pacientes devem ser instruídos a tomar LT4 pelo menos 3 horas depois da administração dessas medicações.(7) Em geral, o aumento da necessidade de LT4 requerido é menor que duas vezes a reposição habitual.

Em pacientes internados em UTI as medicações frequentemente relatadas, por alterarem o eixo tireoideano, são os glicocorticóides e as aminas simpaticomiméticas (dopamina). A administração aguda e em doses farmacológicas de glicocorticóides inibe a liberação pulsátil de TRH, levando, consequentemente, a diminuição dos níveis de TSH, da relação T3/ T4 e, concomitantemente, ocorre aumento da relação rT3 (T3 reverso) /T4, sugerindo que os glicocorticóides elevam a atividade da desiodase tipo 3.(14) Essas alterações ocorrem tanto em pacientes normais e hipertireoideos, como em pacientes hipotireoideos em uso de LT4. A dopamina inibe a liberação de TSH, resultando também em diminuição dos níveis de T4 e T3.(15) No paciente 1, houve a administração de glicocorticóides nas doses recomendadas para pacientes em sepse,(16) o que, em parte, pode ter contribuído para a redução relativamente rápida dos níveis de TSH, apesar dos valores normais de T4L. Já no paciente 2, não houve administração de corticoide, apenas de norepinefrina por período curto, no entanto, mesmo diante de situação crítica seus níveis hormonais revelaram reposição insuficiente de hormônio tiroidiano.

Alterações do eixo tireoideano e metabolismo hormonal

Nos pacientes internados em unidade de terapia intensiva o eixo hipotálamo-hipofisário é, geralmente, modificado. Frequentemente ocorre uma redução da liberação dos hormônios hipofisários, que pode ser endógena; devido à ausência do input hipotalâmico, ou piorada pelo uso de algumas drogas, como a dopamina e glicocorticóides (já descritas anteriormente). No eixo tireoidiano ocorre uma redução da liberação pulsátil de TSH, supostamente pela redução da liberação do hormônio liberador da tireotropina (TRH), sendo evidenciado perifericamente pelos baixos níveis de T3 e T4 e pelo aumento dos níveis de triiodotironina reversa (rT3). Essas alterações, denominada de síndrome do eutireoideano doente, se tornam progressivamente mais graves de acordo com o estado clínico do paciente, sendo dividida em três estágios:

1. Estágio 1: redução do T3 circulante em até 50%; aumento modesto no rT3; sem alterações nos níveis de T4L, T4T (T4 Total) ou TSH séricos.

2. Estágio 2: redução significativa da depuração do T4, porém persiste a secreção pulsátil do TSH, levando a uma modesta elevação do T4L; maiores reduções nos níveis séricos de T3 e aumentos no rT3.

3. Estágio 3: essas alterações são acompanhadas do desaparecimento da secreção pulsátil do TSH e de uma queda nos níveis de T4 e T3. Os pacientes se encontram gravemente enfermos, e as alterações podem ser observadas como uma fase pré-agônica da enfermidade grave, considerando alta a mortalidade nesses pacientes.

Em pacientes com hipotireoidismo primário compensados com reposição de LT4 que são hospitalizados devido à doença aguda não tireoideana também foram observadas algumas mudanças no curso natural do T3, T4, rT3 e TSH. Como demonstrado por Wadwekar e Kabadi(17) ocorre uma diminuição nos níveis de T3 e T4 para um nadir e elevação de rT3 no 3° dia de hospitalização, o TSH diminui inicialmente, mas aumenta no 7° dia antes de sua normalização, provavelmente secundário às alterações transitórias no metabolismo dos hormônios tireoideanos. O início da recuperação de uma doença crítica é precedido por um aumento nos níveis de TSH circulantes.(18) Na paciente 2 , os níveis de TSH estavam elevados no curso da doença crítica e se mantiveram elevados mesmo no período recuperação o que torna difícil esta "separação" das fases acima descritas.

Outras alterações extremamente relevantes são as mudanças em relação ao metabolismo periférico dos hormônios tiroidianos durante a doença crítica, predominantemente na fase aguda, além das alterações no eixo tireoideano. A desiodase tipo 1 (D1), considerada a principal fonte de T3 circulante, tem sua atividade marcadamente reduzida quando comparada previamente com indivíduos saudáveis, porém essa redução é reversível, sendo restaurada após infusão de TRH, normalizando os níveis de T4 e T3.(18) Com base neste conhecimento temos optado por incrementos mais agressivos das doses de LT4 sem qualquer receio de piora de doença cardíaca ou coronária, especialmente em pacientes já em uso de aminas simpaticomiméticas. A captação do T4 pelo fígado também está diminuída, sendo mais um fator contribuinte para a produção reduzida de T3 nesses pacientes. Outras alterações periféricas incluem: aumento do T4 sulfatado (inativo), diminuição da concentração das proteínas ligadoras dos hormônios tireoideanos e da ligação destes aos seus receptores nucleares. Diferentemente da fase aguda, é improvável que as alterações observadas durante a fase crônica de uma doença crítica representem uma resposta adaptativa.(19) Nesta fase, os níveis dos hormônios tireoideanos se correlacionam inversamente com os marcadores bioquímicos do hipercatabolismo (produção de uréia e degradação óssea), que podem ser reduzidos quando os níveis hormonais são restaurados para níveis fisiológicos pela infusão contínua de TRH em combinação com secretagogos do hormônio do crescimento (GH).(19,20) Até o momento, a administração de T4 tem falhado em demonstrar benefícios clínicos nesses pacientes, talvez pelo comprometimento da conversão do T4 em T3.(18) Entretanto, doses substitutivas de T3 usadas após correção de anomalias cardíacas congênitas em pacientes tratados com dopamina foram associadas com melhora na função cardíaca pós-operatória,(18) mas ainda não há evidências para o tratamento dos níveis baixos de T3, característicos da doença crítica prolongada.(21)

Manuseio da reposição em doentes críticos

Como mencionado anteriormente, as consequências de um hipotiroidismo não tratado em uma unidade de terapia intensiva são lembradas somente em casos de suspeita de coma mixedematoso, onde obviamente, se impõe tratamento agressivo do hipotiroidismo se possível com hormônio venoso. As alterações adaptativas do doente crítico frequentemente trazem dificuldades para interpretar a real necessidade de tratamento, no entanto, algumas manifestações clínicas podem sugerir a participação do hipotiroidismo. Notadamente, interferências com nível de consciência, dificuldades no desmame ventilatório associado ou não a derrame pleural e alterações de motilidade gastro-intestinal, hiponatremia podem ter contribuição de hipotiroidismo não tratado adequadamente. Em pacientes previamente compensados a passagem pela doença crítica pode eventualmente não necessitar de qualquer ajuste na dose de levotiroxina, porém esta conduta é baseada em experiências individuais e pode não corresponder a real necessidade de ajuste dos hormônios tireoidianos. Como não existem evidências consistentes na literatura de como abordar a reposição dos hormônios tiroidianos em pacientes hipotiroideos sem coma mixedematososo, a apresentação destes dois pacientes representa como tem sido a reposição de LT4 (eventualmente T3) em nosso serviço (Tabela 3). A grande questão parece estar relacionada a que momento as alterações deixam de ser adaptativas "protetoras" e em que momento estes mecanismos adaptativos passam a interferir com a recuperação dos pacientes. Claramente, o tempo de internação em unidades de terapia intensiva tem aumentado tornando o que anteriormente era transitório e curto em prolongado e recorrente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dose de LT4 proposta para os pacientes apresentados foram aproximadamente, o dobro da reposição fisiológica, com o uso de 300μg/dia (3,3μg/kg/dia) no caso 1 e 200 μcg (2,2μg/kg/dia) para o caso 2, sendo que no segundo paciente houve uso adicional de T3. Esta abordagem se deveu as prováveis interferências na absorção do hormônio (uso de inibidores de bomba de prótons, atonia gástrica e edema de mucosa intestinal), em função do uso de dieta enteral contínua e em especial no caso 2 em função do derrame pleural de difícil manuseio com provável contribuição do hipotiroidismo. A suspensão da dieta uma hora antes e uma hora após a administração da LT4 poderia ser uma tentativa de otimizar sua absorção, porém em doentes críticos esta é ainda uma pergunta sem resposta, assim como o questionamento sobre alguns componentes da dieta enteral interferindo com a absorção da LT4 ou aumentando o seu clearance. Os incrementos das doses dos hormônios não necessitam ter a mesma lentidão do paciente ambulatorial, já que com o incremento da desiodase, o temido efeito cardíaco consequente a uma reposição "excessiva" é claramente amenizado, sem considerar o fato do paciente já estar naturalmente exposto a situações de mais "stress" para o miocárdio como a própria resposta metabólica ao trauma e o uso de aminas simpaticomiméticas. Considerando-se que as alterações adaptativas no doente crítico podem ser importantes para prevenção do catabolismo protéico especialmente na fase aguda nos coloca diante de um dilema em relação a que níveis de T4 e T3 seriam adequados especialmente em doentes com complicações do hipotiroidismo sabidamente deletérias para o manuseio de um doente crítico, como despertar tardio de sedação ou derrame pleural interferindo com desmame de ventilação mecânica. Assim, o esquema utilizado é baseado em dados objetivos em relação à interferência da absorção de LT4, no entanto, é apenas intuitivo em relação a real necessidade de reposição de LT4 e eventualmente de T3 em pacientes críticos e hipotireoideos. A fase em que o paciente se encontra também deveria ser objeto de estudo, já que reposições mimetizando pulsos similares aos fisiológicos claramente mostraram-se positivos em estudos visando estratégias anabólicas para os doentes críticos. Sugerimos atenção quanto ao despertar após suspensão dos sedativos como um parâmetro de adequação na reposição, assim como sugerimos acompanhamento preferencialmente dos níveis de T4 livre em função das conhecidas influências na UTI sobre as dosagens de TSH.

Submetido em 16 de Agosto de 2010

Aceito em 2 de Dezembro de 2010

Conflitos de interesse: Nenhum

Estudo realizado no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

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  • Autor correspondente:
    Marcus Vinicius Leitão de Souza
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    CEP: 24240-260 - Niterói (RJ), Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Aceito
      02 Dez 2010
    • Recebido
      16 Ago 2010
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