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Da "infecção em intensivismo" ao "intensivismo em infecção": o olhar do intensivista na medicina tropical

EDITORIAL

Da "infecção em intensivismo" ao "intensivismo em infecção": o olhar do intensivista na medicina tropical

Ricardo Tapajós

Divisão de Clínica de Moléstias Infecciosas e Parasitárias - DCMIP, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - FMUSP- São Paulo (SP), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Ricardo Tapajós Rua Jericó, 255 - cj 92 CEP: 05435-040 - São Paulo (SP), Brasil E-mail: ritapajos@uol.com.br

A medicina das infecções e a medicina intensiva são duas áreas bem estruturadas do conhecimento e da práxis médica. A primeira, mais antiga, desenvolve-se e reinventa-se desde que a medicina se entende por ofício e arte. A segunda, instrumentalizada pela contemporaneidade, avança a largos passos, criando e consolidando o seu estatuto epistemológico, ou seja, a forma como lida com a base de conhecimentos que informa a sua prática. Conhecimentos sobre o uso e geração de evidência científica, seus limites, a linha de ação quando falta essa evidência, o balanço entre a ciência e a humanização na prática do intensivismo, suas bases de escolhas éticas, entre outros, convergem na natureza do olhar do intensivista.

A intersecção entre essas duas áreas da medicina, tanto nos aspectos práticos do dia a dia médico, quanto nos campos acadêmicos de geração de conhecimento e sua comunicação através de revistas e periódicos, é terreno fértil no qual se entreveem pelo menos dois campos conceituais correlatos, porém distintos: o da "infecção em intensivismo" e o do "intensivismo em infecção".

O primeiro tem-se interessado com muito vigor pelas infecções que complicam os pacientes em ambiente de terapia intensiva. Não deixa de ser o olhar do infectologista sobre a medicina intensiva. É o campo da infecção hospitalar aplicada ao intensivismo, com suas questões epidemiológicas, terapêuticas, profiláticas e mesmo administrativas (já que se fala aqui de índices de qualidade). Nessa intersecção abordam-se, com propriedade, infecções de cateter e corrente sanguínea, de trato urinário, de ferida cirúrgica, de pneumonias associadas à ventilação mecânica, discutem-se a ecologia dos micro-organismos e seus mecanismos de evasão e resistência, delineiam-se os usos de novos antibióticos e novas classes antibióticas e reconhece-se cada vez mais a importância dos fungos neste contexto.

Este editorial interessa-se mais pelo segundo campo conceitual, qual seja, intensivismo em infecção. Uma parte enorme das doenças infecciosas se trata em ambiente de terapia intensiva. O intensivismo, portanto, é fundamental, com sua epistemologia e suas boas práticas, para a terapêutica de doentes com doenças infecciosas como o tétano, a malária, a meningoccemia, a febre amarela e tantas outras. Há que se agregar, então, ao olhar dos infectologistas e epidemiologistas, de longa data comprometidos com essas doenças, o olhar do intensivista.

A importância do intensivismo nas doenças infecciosas passou, talvez, pouco enfatizado, pelo menos até a década de 90, quando se organizaram os conceitos de sepse, sepse grave, choque séptico e disfunção de múltiplos órgãos e sistemas (DMOS).(1) Revisitados e normatizados, com definições claras, esses conceitos jogaram luz sobre o fato de que as doenças infecciosas todas, independentemente de sua natureza etiológica (virais, bacterianas, protozoóticas ou fúngicas), podem cursar de maneira adversa, evoluindo como sepses graves, que, por sua vez, podem evoluir até o estágio de DMOS. Posto de outra maneira, as doenças infecciosas que se comportarem como sepse grave/DMOS (e qualquer uma pode fazê-lo), terão como quadro clínico uma somatória de disfunções de órgãos e sistemas. Algumas doenças infecciosas costumam, inclusive como regra, evoluir como sepses graves, ora como febres hemorrágicas, ora como doenças íctero-hemorrágicas. Assim, o campo da medicina tropical convive diariamente com o enfrentamento clinico de sepse graves/DMOS.

Não interessa se febres amarelas, leptospiroses ou hantaviroses, essas sepses graves cursarão (ou não) com rebaixamento do sensório, diminuição do ritmo de diurese, comprometimento da perfusão tecidual, hiperlactacidemia, lesão pulmonar aguda (LPA) ou síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), plaquetopenia, diátese hemorrágica e coagulação intravascular disseminada (CIVD), hipotensão com estados hiperdinâmicos de baixo índice de resistência vascular sistêmica (IRVS) e alto índice cardíaco (IC), hiperbilirrubinemias diretas por colestase transinfecciosa.

Não interessa se meningococcemias ou malárias, essas sepses graves necessitarão de restauro precoce e meta-dirigido da perfusão, às custas dos mesmos cristaloides e aminas vasoativas do dia-a-dia de qualquer unidade de terapia intensiva. Terapia anti-microbiana precoce continuará sendo um princípio irrevogável nesses casos, onde ainda usar-se-á (ou não) a mesma estratégia protetora de ventilação, o mesmo controle glicêmico, o mesmo corticoide em dose fisiológica. Nesses casos, cogitar-se-á, quando indicado e sensato, o uso de drotrecogina alfa, se disponível.

Ou não. Aqui encontra-se a grande questão que necessita ser examinada através do olhar do intensivista, gerador de conhecimentos e guidelines. Em que medida e com quais cuidados e peculiaridades as recomendações gerais para as sepses graves/DMOS podem ser aplicáveis à sepses graves da medicina tropical? Os conhecimentos, habilidades, atitudes e práticas do bom intensivismo, convergidos no olhar do intensivista, impigem diretamente sobre a práxis da medicina das doenças infecciosas graves. Que esse olhar se impinja, também, sobre a geração de conhecimentos e sua comunicação em periódicos e revistas passa a ser apropriado, desejável e mesmo essencial. Assim, neste número da RBTI, o artigo de revisão de Gomes et al., "Malária grave por Plasmodium falciparum"(2) mostra-se extremamente oportuno, se não pioneiro, não só por abordar uma doença tropical de alto impacto epidemiológico no mundo e no Brasil, mas também e principalmente por abordá-la como a sepse grave que é. Sob a ótica do intensivista, os autores recortam o assunto para um público (readership) de intensivistas, infecto-intensivistas e médicos de maneira geral, que precisam estar instrumentalizados para lidar, em ambiente pré-intensivo e de terapia intensiva, com uma das doenças que mais matam brasileiros e cidadãos do mundo que habitam as áreas tropicais do planeta.

A medicina tropical, portanto, precisa cada vez mais convictamente, do olhar da medicina intensiva (e vice-versa), para levar adiante sua práxis. Nessa linha de raciocínio, vejam-se algumas considerações específicas, à guisa de exemplo e sem a pretensão de esgotar o assunto, sobre duas doenças tropicais de importância no mundo e no Brasil.

A febre amarela é uma doença endêmica no Brasil. Há uma forma clássica da doença que se caracteriza clinicamente por uma hepatite fulminante, ou, em termos de intensivismo, por uma insuficiência hepática aguda, cuja letalidade é altíssima e flerta com o número 70%. De que arsenal disporá o intensivista ao ter de lidar profissionalmente com um paciente com febre amarela clássica? Em que medida valem os pacotes (bundles) precoce e de manejo(3) e as recomendações gerais para insuficiência hepática aguda, se aplicados a esses pacientes? Quais as propostas para as grandes hemorragias digestivas altas (vômitos negros) e para as síndromes hepatorrenais que se instalam nesses pacientes?

Alguns incautos dirão que a doença é rara. Há que se lembrar que o Brasil se encontra em ESPIN (Emergência de Saúde Pública de Interesse Nacional) para a febre amarela, já que a endemia caminha concretamente e a passos largos, para o sul e para o leste brasileiros. Antes concentrada na zona silvestre da Amazônia legal (inclusive Maranhão) e estados do centro oeste, a doença atinge hoje as zonas silvestres do sul do Piauí, do oeste da Bahia, do estado de Minas Gerais na sua totalidade, do oeste do estado de São Paulo e dos estados do sul do Brasil. Regiões extensas fronteiriças da Argentina e do Paraguai enfrentam a mesma questão epidemiológica em relação à febre amarela.

Os últimos surtos autóctones do estado de São Paulo trouxeram a zona de transmissão silvestre para a beirada da Serra do Mar. Se a zona endêmica continuar caminhando como vem fazendo, o Brasil pode ter que enfrentar surtos em regiões densamente povoadas, como os municípios do seu litoral, que, por razões históricas, têm densidades populacionais mais altas. A febre amarela não voltou a se urbanizar, ainda, ou seja, não há transmissão da doença no ambiente urbano não-silvestre, mas essa possibilidade é real e esse medo, sensato. Medidas têm sido tomadas para que isto não ocorra, através de ações bem sucedidas e concretas de vigilância epidemiológica, de vigilância de eventos sentinelas, como a morte de macacos (epizootia) e o uso judicioso de imunobiológicos, como a vacina da febre amarela.

Outra flavivirose tropical emergiu no Brasil no final do século passado e tem grassado no país, e no mundo, de maneira progressiva. A preocupação com a dengue tende a aumentar, motivando inclusive a elaboração de diretrizes pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira, recentemente publicadas pela RBTI.(4)

Ela é causada por qualquer um de quatro sorotipos diferentes (DEN 1, 2, 3 e 4), dos quais 3 circulam ciclicamente, pelo Brasil. Às vezes circula um sorotipo único em determinada região, às vezes há a co-circulação de mais de um sorotipo. A co-circulação favorece que os pacientes tenham mais do que uma dengue na vida. As segundas e terceiras dengues tem mais propensão à gravidade, por mecanismos de enhancement imunológico. Há com a co-circulação, portanto, um aumento da incidência de formas graves da doença, que é o que vem acontecendo no Brasil. Acrescente-se ainda que o DEN 4 começou a circular recentemente na região amazônica, o que leva a ações de vigilância e notificação específicas.

A dengue é doença com uma nosologia rica. Há uma forma clássica, de baixa letalidade, que costuma cursar de maneira autolimitada, cuja clínica compreende desde manifestação oligossintomática até formas exantemáticas máculo-papulares e petequiais, com manifestações hemorrágicas discretas. Há, entretanto, algumas formas graves, que cursam com manifestações de sepse grave e choque (chamadas confusamente de dengue hemorrágica e síndrome do choque da dengue). Essa nomenclatura (portanto essa nosologia) tem que ser revista sob o olhar do intensivista. A dengue grave cursa com aumento da permeabilidade capilar, levando a uma hemoconcentração que é marcadora de gravidade. Como pode a medicina entender e nomear uma doença cujo marcador de gravidade é o aumento do hematócrito como uma doença hemorrágica? E se assim é, a hemoconcentração, com que cuidados e em que extensão deve-se levar a cabo as medidas do restauro da perfusão? As metas de Rivers aplicar-se-iam a esses pacientes?

Há ainda subgrupo de pacientes com dengue grave que visceralizam suas manifestações, comportando-se mais como febres amarelas clássicas, com dano hepático intenso e frequentemente mediozonal. Para esse subgrupo (inominado), as medidas de manejo devem ser diferentes daquelas aplicáveis ao subgrupo dito hemorrágico?

São, portanto, muitas perguntas (ainda sem respostas que não sejam intuitivas), que podem ser resumidas na seguinte fórmula: em que medida os conhecimentos gerados e substanciadores de ações e recomendações nas sepse graves/DMOS podem ser aplicados no manejo das sepse graves tropicais que evoluem com manifestações hemorrágicas e íctero-hemorrágicas? Endereçar essa questão, na produção e comunicação de conhecimentos, é tarefa oportuna, mas requer que a medicina intensiva lance seu olhar epistemológico e metodológico sobre a medicina tropical. Isso é um convite.

Conflitos de interesse: Nenhum.

  • 1. American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine Consensus Conference: definitions for sepsis and organ failure and guidelines for the use of innovative therapies in sepsis. Crit Care Med. 1992;20(6):864-74. Review.
  • 2. Gomes AP, Vitorino RR, Costa AP, Mendonça EG, Oliveira AGA, Siqueira-Batista R. Malária grave por Plasmodium falciparum. Rev Bras Ter Intensiva. 2001;23(3):358-69.
  • 3
    Surviving Sepsis Campaign [Internet]. [citado 2011 Ago 29]. Disponível em http://www.survivingsepsis.org/Bundles/Pages/default.aspx
    » link
  • 4. Verdeal JCR, Costa Filho R, Vanzillotta C, Macedo GL, Bozza FA, Toscano L, et al. Recomendações para o manejo de pacientes com formas graves de dengue. Rev Bras Ter Intensiva. 2011;23(2):125-33.
  • Autor correspondente:

    Ricardo Tapajós
    Rua Jericó, 255 - cj 92
    CEP: 05435-040 - São Paulo (SP), Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011
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