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Cuidados de final de vida nas UTIs brasileiras, certamente não é apenas uma questão legal: treinamento e conhecimento adequados são essenciais para melhorar estes cuidados

EDITORIAL

Cuidados de final de vida nas UTIs brasileiras, certamente não é apenas uma questão legal: treinamento e conhecimento adequados são essenciais para melhorar estes cuidados

Jefferson Pedro PivaI, II; Márcio SoaresIII, IV

IDepartamento de Pediatria, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre (RS), Brasil

IIUnidade de Terapia Intensiva Pediátrica, Hospital São Lucas, Faculdade de Medicina, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS - Porto Alegre (RS), Brasil

IIIInstituto D'Or de Pesquisa e Ensino - IDOR - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IVPrograma de Pós-Graduação, Instituto Nacional de Câncer - INCA - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Jefferson Pedro Piva UTI Pediátrica - Hospital São Lucas da PUCRS Av. Ipiranga 6690 - 5º andar - Jardim Botânico CEP: 90640-002 - Porto Alegre (RS) - Brasil E-mail: piva@terra.com.br

Nas últimas três décadas as decisões de final de vida (FDV) se tornaram uma questão frequente e desafiadora na maior parte das unidades de terapia intensiva (UTIs) em todo o mundo. Pacientes portadores de doenças graves, progressivas e terminais, frequentemente precisam ser admitidos à UTI. Nestas condições, a equipe da UTI é confrontada com decisões clínicas, morais e éticas que (às vezes) envolvem estratégias opostas, como: a) prosseguir com um tratamento em busca de uma improvável cura que pode apenas prolongar o processo letal; ou b) reconhecer a condição terminal e escolher os cuidados paliativos como prioritários, assim evitando tratamentos agressivos. O processo decisório de FDV e suas consequentes estratégias variam no mundo, dependendo de diversos fatores como questões culturais, crenças religiosas, imposições legais, valores éticos e morais e conhecimento médico a respeito de doenças terminais e de cuidados paliativos.(1-5)

Os dois modelos mais comuns de decisões de FDV são: a) o modelo compartilhado, no qual os médicos (equipe da UTI) e os pacientes (e respectivas famílias) chegam a um consenso com relação ao diagnóstico, prognóstico (condição de terminalidade) e ao tratamento a ser administrado. Neste modelo, a perspectiva clínica (que é centrada em princípios de beneficência e não-maleficência) é contrabalançada pelos desejos do paciente (autonomia) ou familiares. Às vezes os médicos expressam sua inconformidade com relação à decisão final neste processo, pois se sentem obrigados a administrar um tratamento com o qual não concordam completamente, por respeito à decisão (autonomia) do paciente (familiares). b) o modelo paternalista, em que os médicos (equipe da UTI), com base em sua perspectiva médica orientam os pacientes (e familiares) em direção à decisão final. Obviamente este modelo traz em si um forte e intrínseco viés, pois a perspectiva médica pode ser influenciada por outros fatores além de aspectos meramente médicos, como valores culturais e morais que podem ser muito diferentes dos valores do paciente. Nestas situações, é altamente recomendável que a perspectiva médica seja compartilhada por outros membros da equipe da UTI e, especialmente, que se inclua a equipe de enfermagem neste processo decisório.(1-3,6)

Em consequência das características culturais de alguns países (por exemplo, França, Itália, Brasil, Índia), a abordagem paternalista tem sido o modelo preferido nas decisões de FDV.(1-3) O modelo paternalista assume que o médico proporia uma decisão levando em consideração o melhor interesse do paciente naquela condição.(6) Alguns estudos brasileiros demonstraram que este modelo centrado na perspectiva médica é bem distante da visão paternalista. Em consequência de temores legais, falta de conhecimento e falta de treinamento em relação aos aspectos éticos ligados às decisões de FDV, os médicos brasileiros frequentemente ministram a seus pacientes terminais tratamento curativo pleno até os últimos instantes de vida, sendo que as ordens para não ressuscitar (ONR) é a forma mais frequente de limitação de tratamento vital.(7-10) A participação do paciente (familiares) e o envolvimento da enfermagem no processo decisório de limitação de tratamento vital nas UTIs brasileiras é incomum, mesmo quando estão envolvidas crianças com doenças terminais.(7-11) Os temores legais têm sido considerados como a razão mais importante para esta peculiaridade comportamental dos médicos brasileiros em relação às decisões de limitação de tratamento vital.(9,12)

Foram recentemente publicados por Forte et al. os resultados de um questionário aplicado a 105 médicos de UTIs brasileiras, selecionados de 11 UTIs de hospitais universitários, que avaliava as decisões de FDV envolvendo um paciente fictício com grave lesão cerebral.(13) Os resultados reforçam pelo menos dois pontos importantes: a) os temores legais ainda têm impacto nas decisões de FDV dos médicos brasileiros; e b) o conhecimento ético modifica positivamente o processo decisório de FDV. Além do mais, os médicos de UTI que liam mais regularmente matérias éticas tiveram maior tendência a envolver familiares e enfermagem no processo decisório de FDV, assim como a assumir decisões proativas.(13) Além disto, muitas intervenções que incluíam consultas éticas e paliativas, estratégias de comunicação intensiva, conferências com a família combinadas com manuais de luto, se mostraram capazes de melhorar a qualidade dos cuidados de FDV, reduzindo a permanência e uso inadequado de recursos de UTI, prevenir conflitos e minimizar o ônus psicológico dos familiares.(14-17)

Santos e Bassit descrevem nesse número da RBTI as expectativas de familiares e pacientes com longa permanência hospitalar (+30 dias) sendo 17% desses na UTI. Apesar de 53% dos pacientes terem discutidos a possiblidade de limitação de suporte vital com seus familiares, 76% deles nunca abordaram esse assunto com seus médicos!(18) Mesmo havendo uma grande predisposição de pacientes e familiares para discutir a limitação de suporte vital frente a situações doença terminal e irreversível, as equipes médicas não tem criado as condições propícias para que que se atinja uma decisão consensuada.

Advogados, juízes, promotores e o Conselho Federal de Medicina se envolveram em uma longa discussão quanto aos aspectos legais das decisões de FDV. Finalmente, em 2010 ocorreram dois fatos que (pelo menos por enquanto) encerraram esta discussão: a) o novo Código de Ética Médica que explicita em vários artigos e sessões a necessidade e dever ético do médico de fornecer cuidados paliativos aos pacientes que sofrem de doenças incuráveis e terminais, assim como de evitar obstinação terapêutica, sempre levando em consideração os desejos do paciente, ou se incapaz, de seu representante legal. Mais ainda, que o descumprimento destas orientações neste tipo de situação representa uma infração do Código de Ética Médica brasileiro.(19) b) O STJ brasileiro rejeitou em agosto de 2010 uma moção que propunha que médicos não poderiam limitar o suporte à vida em pacientes terminais. O tribunal decidiu que as decisões de FDV que envolvem pacientes terminais se referem a matéria médica, e que não representam qualquer violação do Código Civil Brasileiro.

Ao se abstraírem os aspectos legais deste complicado cenário, os médicos podem agora concentrar suas atenções no melhor cuidado a ser fornecido a seus pacientes. Não há dúvidas de que, em pacientes terminais, o cuidado paliativo deve ser priorizado em relação às medidas curativas. Contudo, os resultados de Forte, Santos e Bassitt e de diversos outros estudos demonstraram que a educação médica deve merecer maior ênfase.(13-18) Médicos com melhor conhecimento de questões éticas e bem treinados com relação ao FDV têm maior tendência a envolver a enfermagem e familiares no processo decisório de FDV, assim como suas decisões concordam com o que creem ser melhor para seus pacientes.(13) Em outras palavras: a falta de conhecimento e treinamento impedem os médicos de fornecer o melhor cuidado aos seus pacientes internados em UTI.

Conflitos de interesse: Nenhum.

Apoio Financeiro: Os Drs. Soares e Piva são parcialmente apoiados por verbas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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  • Autor correspondente:
    Jefferson Pedro Piva
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    • Publicação nesta coleção
      04 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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