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Necessidades nutricionais do doente crítico

Resumos

OBJETIVO: As unidades de terapia intensiva recorrem às equações preditivas, para determinar o gasto energético, ou às recomendações estabelecidas por sociedades internacionais, devido à inacessibilidade da calorimetria indireta. O objetivo deste trabalho foi comparar o gasto energético de pacientes críticos, por calorimetria indireta, aos calculados por meio da equação de Harris-Benedict. MÉTODOS: Estudo retrospectivo observacional realizado no Serviço de Cuidados Intensivos 1 do Centro Hospitalar do Porto. Foram avaliadas as necessidades energéticas, desde janeiro de 2003 até abril de 2012, dos pacientes críticos internados em que foi realizada calorimetria indireta. Procedeu-se ao cálculo da precisão (intervalo de ±10% entre os valores medidos e estimados), da diferença média e dos limites de concordância da equação estudada. RESULTADOS: Foram avaliados 85 pacientes, em que se efetuaram 288 medições por calorimetria indireta. Valores obtidos para necessidades energéticas em diferentes métodos: calorimetria indireta 1.753,98±391,13 kcal ao dia (24,48±5,95 kcal/kg ao dia), equação de Harris-Benedict 1.504,11±266,99 kcal ao dia (20,72±2,43 kcal/kg ao dia). A precisão da equação foi de 31,76%, a diferença média de -259,86 kcal ao dia, com limites de concordância entre -858,84 a 339,12 kcal ao dia. O gênero (p=0,023), a temperatura (p=0,009) e o índice de massa corporal (p<0,001) revelaram-se fatores com impacto significativo no gasto energético. CONCLUSÃO: A equação de Harris-Benedict não é precisa na determinação do gasto energético, subestimando-o e apresentando diferenças significativas para predizer, a nível individual, o gasto energético real.

Calorimetria indireta; Dietoterapia; Terapia nutricional; Metabolismo energético; Respiração artificial; Unidades de terapia intensiva


OBJECTIVE: Given the inaccessibility of indirect calorimetry, intensive care units generally use predictive equations or recommendations that are established by international societies to determine energy expenditure. The aim of the present study was to compare the energy expenditure of critically ill patients, as determined using indirect calorimetry, to the values obtained using the Harris-Benedict equation. METHODS: A retrospective observational study was conducted at the Intensive Care Unit 1 of the Centro Hospitalar do Porto. The energy requirements of hospitalized critically ill patients as determined using indirect calorimetry were assessed between January 2003 and April 2012. The accuracy (± 10% difference between the measured and estimated values), the mean differences and the limits of agreement were determined for the studied equations. RESULTS: Eighty-five patients were assessed using 288 indirect calorimetry measurements. The following energy requirement values were obtained for the different methods: 1,753.98±391.13 kcal/day (24.48 ± 5.95 kcal/kg/day) for indirect calorimetry and 1,504.11 ± 266.99 kcal/day (20.72±2.43 kcal/kg/day) for the Harris-Benedict equation. The equation had a precision of 31.76% with a mean difference of -259.86 kcal/day and limits of agreement between -858.84 and 339.12 kcal/day. Sex (p=0.023), temperature (p=0.009) and body mass index (p<0.001) were found to significantly affect energy expenditure. CONCLUSION: The Harris-Benedict equation is inaccurate and tends to underestimate energy expenditure. In addition, the Harris-Benedict equation is associated with significant differences between the predicted and true energy expenditure at an individual level.

Indirect calorimetry; Diet therapy; Nutritional therapy; Energy metabolism; Respiration, artificial; Intensive care units


ARTIGOS ORIGINAIS - PESQUISA CLÍNICA

Necessidades nutricionais do doente crítico

Nuno André de Almeida CostaI; Aníbal Defensor MarinhoII; Luciana Ribeiro CançadoIII

IMestrado Integrado em Medicina, Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar, Universidade do Porto - UP - Porto, Portugal

IIUnidade de Cuidados Intensivos 1, Centro Hospitalar do Porto - CHP - Porto, Portugal

IIICurso de Pósgraduação em Nutrição Clínica, Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação, Universidade do Porto - UP - Porto, Portugal

Autor correspondente Autor correspondente: Nuno André de Almeida Costa Rua Loteamento do Castanhal, 341 - Brufe CEP: 4760-830 - Vila Nova de Famalicão - Portugal E-mail: nunoada@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: As unidades de terapia intensiva recorrem às equações preditivas, para determinar o gasto energético, ou às recomendações estabelecidas por sociedades internacionais, devido à inacessibilidade da calorimetria indireta. O objetivo deste trabalho foi comparar o gasto energético de pacientes críticos, por calorimetria indireta, aos calculados por meio da equação de Harris-Benedict.

MÉTODOS: Estudo retrospectivo observacional realizado no Serviço de Cuidados Intensivos 1 do Centro Hospitalar do Porto. Foram avaliadas as necessidades energéticas, desde janeiro de 2003 até abril de 2012, dos pacientes críticos internados em que foi realizada calorimetria indireta. Procedeu-se ao cálculo da precisão (intervalo de ±10% entre os valores medidos e estimados), da diferença média e dos limites de concordância da equação estudada.

RESULTADOS: Foram avaliados 85 pacientes, em que se efetuaram 288 medições por calorimetria indireta. Valores obtidos para necessidades energéticas em diferentes métodos: calorimetria indireta 1.753,98±391,13 kcal ao dia (24,48±5,95 kcal/kg ao dia), equação de Harris-Benedict 1.504,11±266,99 kcal ao dia (20,72±2,43 kcal/kg ao dia). A precisão da equação foi de 31,76%, a diferença média de -259,86 kcal ao dia, com limites de concordância entre -858,84 a 339,12 kcal ao dia. O gênero (p=0,023), a temperatura (p=0,009) e o índice de massa corporal (p<0,001) revelaram-se fatores com impacto significativo no gasto energético.

CONCLUSÃO: A equação de Harris-Benedict não é precisa na determinação do gasto energético, subestimando-o e apresentando diferenças significativas para predizer, a nível individual, o gasto energético real.

Descritores: Calorimetria indireta; Dietoterapia; Terapia nutricional; Metabolismo energético; Respiração artificial; Unidades de terapia intensiva

INTRODUÇÃO

O paciente crítico constitui uma amostra não homogênea de indivíduos que, em razão de diferentes agressões agudas, necessitam de cuidados complexos e de monitorização constante, o que requer, habitualmente, a internação numa unidade de terapia intensiva (UTI).(1)

O estado nutricional dos pacientes hospitalizados tem um impacto significativo em sua evolução clínica.(2) Segundo Logan e Hildebrandt,(3) a desnutrição calórico-proteica é um problema prevalente, afetando entre 30 a 60% dos pacientes hospitalizados. Muitos deles perdem peso durante a internação, tendo tal fenômeno origem multifatorial (gravidade da doença, ausência de um suporte nutricional (SN) adequado, entre outros).(4)

Esse problema é ainda mais proeminente em pacientes críticos, uma vez que apresentam um estado de hipermetabolismo e hipercatabolismo,(5,6) em um contexto clínico (presença de instabilidade hemodinâmica e ausência, por vezes, de uma via entérica disponível) que, eventualmente, impossibilita o aporte nutricional precoce. Acresce, ainda, à problemática o fato de que o gasto energético (GE) é condicionado por alguns procedimentos clínicos e farmacológicos, promovendo redução da resposta metabólica.(7)

Frente a esse cenário, que se associa facilmente à desnutrição, são recomendadas a estimativa do GE, da maneira mais precisa possível, e a instituição precoce de nutrientes. As diretrizes das diferentes sociedades de nutrição enteral e parenteral recomendam o SN em todos os pacientes críticos para os quais não se tenha perspectiva de uma dieta oral completa nos 3 primeiros dias após a admissão numa UTI. Esse SN deve ser iniciado, idealmente, nas primeiras 24 a 48 horas após a internação.(8)

Por essa razão, a determinação precisa do GE desses pacientes é obrigatória, assegurando-se, assim, suas necessidades energéticas e evitando-se as múltiplas consequências deletérias associadas à hiper ou hipoalimentação.(9-14)

Foram descritos muitos métodos de avaliação do GE no paciente crítico, todos eles com limitações. A calorimetria indireta (CI) é um método não invasivo, que determina as necessidades energéticas e a taxa de utilização dos substratos a partir do volume de oxigênio consumido (VO2) e da produção do dióxido de carbono (VCO2), obtidos por análise do ar inspirado e expirado pelos pulmões.(15) Atualmente, é considerado o método padrão-ouro para a determinação do GE total,(16) embora possua limitações técnicas bem conhecidas, como a exigência de pessoal treinado com disponibilidade, a necessidade de fração de oxigênio inspirado menor do que 0,6 e o custo elevado do equipamento.(15)

Existem outros métodos de mais fácil aplicabilidade, que têm sido usados com maior frequência para otimizar o aporte nutricional, dentre os quais se destacam as recomendações clínicas da American Society for Parenteral and Enteral Nutrition (ASPEN) e da European Society for Clinical Nutrition and Metabolism (ESPEN)(8) e o uso de equações para estimar o GE. Existem mais de 200 equações preditivas do GE documentadas,(17) mas a mais estudada e usada na prática clínica(18) é a equação de Harris-Benedict (HB).(19) Esses métodos preditivos são, contudo, muitas vezes considerados imprecisos,(6,20-22) e, assim, nenhum método adquiriu ainda aceitação universal.

O objetivo primário deste trabalho consistiu em avaliar o GE dos pacientes críticos, medido por CI, e compará-lo ao calculado pela fórmula preditiva de HB e às recomendações de aporte nutricional da ESPEN. Procurou-se, igualmente, identificar parâmetros que poderiam influenciar o consumo energético.

MÉTODOS

Desenho do estudo

Estudo retrospectivo observacional analítico, realizado no Serviço de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar do Porto (CHP). Foram incluídos todos os pacientes críticos, no período de janeiro de 2003 até abril de 2012, com internação mínima de 3 dias, sujeitos à CI e cujos dados antropométricos foram registrados.

Foram considerados critérios de exclusão a inexistência de dados que permitissem recorrer à equação de HB para estimar o GE (peso, altura e idade) e indivíduos com menos de 18 anos de idade, bem como foram rejeitadas as medições de CI cujas determinações de quociente respiratório (QR) fossem <0,6 ou >1,25 ou a fração de oxigênio inspirado >0,6, por indicarem marcos de baixa qualidade da medição.(23) Nenhum diagnóstico de admissão foi excluído.

Foi obtida aprovação pelo Comitê de Ética para a Saúde do CHP sem necessidade de termo de consentimento. Foram registradas informações demográficas, tipo de admissão (patologia neurocirúrgica, médica, transplantação, cirúrgica urgente e cirúrgica programada), índice de gravidade Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) e valores de albumina, pré-albumina sérica, proteína C-reativa (PCR), contagem total de leucócitos (CTL) e valores de ureia e creatinina urinária de 24 horas.

O peso e altura foram obtidos na admissão, por inquérito ao paciente ou familiar mais próximo (peso pré-internação) ou por registo médico recente em cuidados de saúde primários. O índice de massa corporal (IMC) foi agrupado em cinco classes, tendo por base a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS):(24) <18,5 (desnutrição), 18,5 a 24,99 (eutrofia), 25 a 29,99 (sobrepeso), 30 a 34,99 (obesidade grau I) e >35 (obesidade graus II e III). Em razão do fato do IMC não refletir sozinho o diagnóstico nutricional em pacientes críticos, as definições da OMS foram adaptadas para: <18,5 (baixo peso), 18,5 a 24,99 (normoponderal), 25 a 29,99 (excesso de peso), 30 a 34,99 (obesidade grau I) e >35 (obesidade graus II e III).

A medição do GE real dos doentes foi efetuada por CI respiratória. Todas as medições foram realizadas por um único responsável na instituição com domínio da técnica, limitando-se, assim, à introdução de erros operador-dependente. Foram coletados dados de todas as medições efetuadas a partir do 2º dia de internação, respeitando os critérios de inclusão no estudo.

Todos os pacientes foram avaliados durante ventilação mecânica, de forma contínua, com duração mínima de 25 minutos, em posição supina no leito, com movimentação mínima dos pacientes e num ambiente termoneutro. Foi realizada apenas uma medição por dia, não sendo estabelecido um período específico para esse efeito.

Em cada medição por CI, foram coletados valores de QR, VO2 e de VCO2, administração de catecolaminas, temperatura do paciente e presença ou não de sedação. O aparelho utilizado para realização da CI foi o monitor metabólico DeltatractTM II (Datex-Ohmeda, Finlândia), que foi calibrado (gás e pressão) antes de cada medição, conforme as recomendações do fabricante.(25) O GE é apresentado em kcal por dia e em kcal/kg por dia. Após estabelecimento de SN, as medições foram realizadas com manutenção de nutrição contínua.

Para cada paciente, foram ainda registrados valores de albumina, leucócitos, PCR e escore SOFA no dia da primeira medição da CI, e valores de pré-albumina e de ureia e creatinina de 24 horas nos dias subsequentes mais próximos ao da primeira medição.

Foi calculado o GE basal (kcal por dia) por meio da equação preditiva de HB - gênero masculino: 66,47 + (13,75 x peso) + (5,003 x altura) - (6,775 x idade); gênero feminino: 655,09 + (9,563 x peso) + (1,85 x altura) - (4,676 x idade). Onde peso é expresso em quilogramas, altura em centímetros e idade em anos. Não foram aplicados fatores de estresse/atividade à equação, por se considerar que tais fatores introduzem um carácter empírico nas estimativas.

Análise estatística

Para análise e tratamento dos dados estatísticos, foi usado o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17, e, em todos os testes, foi considerado um nível de significância estatística de p<0,05. Os resultados são apresentados como média±desvio padrão (DP).

Utilizou-se a média das leituras da CI por doente para a comparação estatística com a equação de HB. Foi calculado o quociente de correlação de Pearson para avaliar a relação entre o GE obtido pela equação de HB e o medido por CI. A correlação mede a força e direção da relação e o valor (r) varia entre 0 (sem correlação) e 1 (correlação perfeita).(26) O método de Bland & Altman permite descrever a concordância entre duas aferições quantitativas que medem a mesma característica, na mesma escala,(27) e foi usado para avaliar a concordância dos valores obtidos pelos dois métodos. Não existe um valor de prova para descrever a concordância; esta passa pelo conceito de que a diferença das duas medições emparelhadas é analisada em relação à média das duas medições, sendo recomendado que 95% dos dados devam estar incluídos em ±1,96 DP da média da diferença(26) e que o viés seja próximo do 0.

Foi calculado o grau de precisão da equação de HB, traduzido pela percentagem de dados compreendidos em ±10% dos obtidos pela CI. Quando os valores das estimativas se encontravam fora desse intervalo, estas foram entendidas como imprecisas;(6) valores fornecidos pela equação de HB <90%, em relação aos medidos pela CI, foram classificados como hipoalimentação e os >110%, hiperalimentação.

Foi igualmente calculada a diferença média do GE obtido pela equação de HB e pela CI para todas as medições e agrupada por IMC. Os resultados foram expressos em kcal por dia e em intervalos de confiança (IC) de 95% para a média da diferença. A equação de HB é considerada coincidente com a CI se o IC incluir o valor 0.

Avaliou-se a associação entre o GE real por quilograma de peso e os seguintes parâmetros: gênero, idade, sedação, administração de aminas, temperatura, tipo de admissão e escore SOFA.

A comparação entre as variáveis contínuas foi realizada utilizando-se modelos de regressão. A comparação entre variáveis contínuas e categóricas, dicotômicas e policotômicas, foi realizada pelo recurso aos testes estatísticos de t de student e análise de variância (ANOVA), respectivamente.

RESULTADOS

Do total de 136 pacientes submetidos à CI, 85 cumpriram os requisitos de inclusão. A amostra foi constituída por 71,76% (n=61) indivíduos do gênero masculino, com média de idade de 60,08±17,05 anos, IMC médio de 25,84±5,13 e taxa de mortalidade de 23,8%. Motivos de admissão: neurocirúrgico 50,6%, clínica médica 16,5%, transplantes 7,1%, cirúrgico urgente 15,3% e cirúrgico programado 10,6%. O tempo de internação médio foi de 13,42±13,86 dias, com o valor mínimo de 3 dias e máximo de 76 dias.

O QR obtido em cada medição de CI foi, em média, de 0,77±0,16. A amostra foi constituída por 30,4% dos pacientes em terapia com catecolaminas, 65,9% em sedação e 34,8% com temperatura >38ºC. Relativamente a dados bioquímicos, destacam-se os seguintes valores médios: PCR 112,60±106,82 mg/L, SOFA 5,46±3,02, pré-albumina 141,83±72,05 mg/L, ureia de 24 horas 25,53±14,19 g ao dia e creatinina de 24 horas de 1.139,08±536,99 mg ao dia.

Os pacientes estudados apresentaram IMC médio de 25,84±5,13, assim distribuídos: 5,9% (n=5) tinham IMC <18,5 (baixo peso), 38,8% (n=33) com IMC entre 18,5 e 24,99 (normoponderal), 36,5% (n=31) com IMC entre 25 e 29,99 (excesso de peso), 15,3% (n=13) com IMC entre 30 e 34,99 (obesidade grau I) e 3,5% (n=3) com IMC >35 (obesidade grau II e III).

Foram efetuadas 288 medições de CI, em média 3,38±2,18 medições por doente, com duração média de 12,12±9,43 horas, obtendo-se um valor médio do GE de 1.753,98±391,13 kcal ao dia.

O GE médio obtido pela equação de HB foi de 1.504,11±266,99 kcal ao dia. Em termos de Kcal diárias por quilograma de peso a CI mediu uma média de 24,48±5,95 e a HB estimou 20,72±2,43 contrapondo-se às 25 kcal diárias recomendadas pela ESPEN (2009).(8) Dessa forma, a equação de HB indicou, em média, um GE correspondente a 85,75% do medido pela CI. Apenas em 31,8% (n=58) dos pacientes, a equação de HB previu uma administração energética adequada. Em 60% dos doentes (n=27), haveria hipoalimentação (valor previsto <90% do medido) e em 8,24% (n=7) hiperalimentação (valor >110%).

O quociente de correlação de Pearson revelou correlação significativa (p<0,001; n=85), mas moderada(26) (r=0,627) entre o GE obtido por meio da fórmula de HB e o medido por CI (Figura 1).


A figura 2 mostra a representação do método de Bland-Altman. Constata-se que 6/85 (7,06%) dos pontos estão para além de ±1,96 DP. A diferença média dos dois métodos foi de -259,86±305,60 kcal ao dia e os limites de concordância variaram entre -858,84 (média -1,96 DP) e 339,12 (média + 1,96 DP).


A equação de HB apresentou-se não coincidente com a CI quando considerada a totalidade das medições (intervalo de confiança de 95% de -315,78 a -183,95), estando coincidente apenas nos pacientes com obesidade graus II e III (Tabela 1). HB subestimou o GE real para a generalidade das medições e para todas as classes de IMC, sendo a diferença média maior para os indivíduos normoponderais (-356,08 kcal ao dia) e a menor para os indivíduos com obesidade grau II e III (-78,03 kcal ao dia). A precisão da equação mostrou-se reduzida nos pacientes com baixo peso (20%) e aumentada nos obesos de graus II e III (66,67%). O fator de correção médio da equação de HB à CI foi de 1,17 (valor que, em média, teria de multiplicar um dado obtido pela equação para prever o que seria obtido pela CI).

Relações estatísticas entre diferentes variáveis e o GE foram buscadas. Verificou-se que o GE é significativamente maior no gênero masculino (p=0,023) com valores médios de 24,66±6,38 kcal/kg ao dia versus 21,17±6,01 kcal/kg ao dia no gênero feminino. Os indivíduos com temperatura >38ºC apresentam GE (26,29±7,23 kcal/kg ao dia) significativamente superior (p=0,009) comparativamente com os de temperatura inferior (23,68±6,69 kcal/kg ao dia). Verificou-se uma diminuição (ANOVA, p<0,001) das necessidades energéticas nas classes de maior IMC, variando o GE real entre 30,54±9,31 kcal/kg ao dia nos indivíduos com IMC <18,5 e 16,72±1,86 kcal/kg ao dia nos indivíduos com IMC >35 (Figura 3). Não houve diferenças do GE médio com a administração de aminas (p=0,167) e sedação (p=0,328), nem relativamente ao índice de gravidade SOFA (p=0,778). Relativamente à idade dos indivíduos, verificou-se que, à medida que esta aumenta, o GE diminui (regressão linear, p<0,001, r= 0,371).


Apesar da inexistência de diferenças médias significativas (p=0,402) do GE real entre os diferentes tipos de admissão, verificou-se que o valor mais elevado corresponde aos pacientes transplantados, com GE médio de 26,84±4,30 kcal/kg ao dia e o mais reduzido aos pacientes submetidos a cirurgias urgentes com 20,90±4,57 kcal/kg ao dia (Figura 4). O cruzamento do tipo de admissão com o IMC é apresentado na tabela 2.


DISCUSSÃO

A equação de HB revelou-se imprecisa (31,76% de precisão), enviesada e com limites de concordância distantes, desde -858,84 a 339,12 kcal ao dia. Segundo Frankenfield et al.,(28) valores de precisão <50% não parecem adequados do ponto de vista clínico. Dessa forma, a utilidade, a nível prático da equação de HB, apresenta-se limitada. Nossos resultados apontam para 68,24% de aporte nutricional estimado desadequado, o que vai ao encontro da literatura. Kross et al.,(20) em 927 pacientes críticos, constataram 68,7% de imprecisão (nutrição desadequada) da equação de HB. Pirat et al.,(6) em 34 pacientes críticos com neoplasias, relataram 58% de nutrição desadequada (29% de hipoalimentação e hiperalimentação respectivamente). Boullata et al.,(22) em 395 pacientes, concluíram 57% de predições ineficazes.

Neste estudo, verificou-se uma correlação significativa de apenas 62,7% entre o GE obtido por meio da equação de HB (1.504,11 kcal ao dia) e da CI (1.753,98 kcal ao dia; p<0,001), sendo essa equação indutora de hipoalimentação (a equação previu, em média, apenas 85,75% do aporte nutricional necessário). Os dois métodos tiveram diferença média de -259,86 kcal ao dia, o que corresponde a um valor concordante e relativamente mais preciso que o atribuído por vários estudos, como refere Frankenfield et al.(28) em que os valores médios variavam entre -250 e -900 kcal aodia, sendo, contudo, bastante superior às -150 kcal ao dia constatadas por Kross et al.(20) Embora não tenha sido definido a priori, consideramos, tal como Boullata et al.,(22) que erros >250kcal ao dia não são clinicamente aceitáveis, podendo induzir estados de hipoalimentação ou hiperalimentação e suas consequências deletérias. Sabendo que, em média, houve subestimativa diária de 259,86 kcal e que o tempo médio de internação foi de 13,42 dias, poderíamos constatar que o viés cumulativo seria de cerca de -3.487 kcal, o que enfatiza a imprecisão da estimação.

Ao contrário do apontado por Kross et al.,(20) no nosso estudo, a equação de HB não parece subestimar o GE de forma mais marcada nos indivíduos com obesidade. Pelo contrário, a diferença média parece ser menor (-207 kcal ao dia para obesidade grau I e -78,03 kcal ao dia para obesidade graus II e III versus -249,86 kcal ao dia para os normoponderais), mas isso poderá ser devido ao número limitado de indivíduos com obesidade neste estudo (18,8%) comparativamente aos 43,3% que incluíam o estudo supracitado. Todavia esses resultados são concordantes com o estudo de Reid(18) e sugerem que a equação de HB sem fatores de correção parece ser um bom preditor do GE nos indivíduos com IMC >35 (100% de precisão).

A existência de correlação entre a equação de HB e a CI é concordante com os resultados de Boullata et al.,(22) mas, novamente, isso não se refletiu na precisão e na inexistência de diferenças aceitáveis, o que são características clinicamente mais úteis do que a medição da força da correlação. Em síntese, o presente estudo corrobora vários resultados já apontados pela literatura, apontando para a ineficácia das equações preditivas(20,22,28,29) e para o fato da equação de HB tender a subestimar as verdadeiras necessidades nutricionais.(20,30) Todavia, outros autores apontam a equação de HB como um substituto aceitável da CI.(31,32)

As últimas diretrizes da ESPEN(8) recomendam que, ao paciente crítico, na ausência de CI, deve ser administrado um valor energético de 25 kcal/kg ao dia, atingindo-o ao longo de 2 a 3 dias após o início do SN. Nossos resultados, constatando necessidades energéticas médias de 24,48 kcal/kg ao dia, vieram demonstrar que, de uma forma global, os valores recomendados pela sociedade europeia são adequados às necessidades globais dos pacientes dessa UTI, embora possa ocorrer ligeira hiperalimentação, particularmente para indivíduos com obesidade. Isso é ainda mais relevante, atendendo a recomendações recentes(33) que sugerem a adoção de um regime nutricional hipocalórico (11 a 14 kcal/kg por dia do peso atual) e hiperproteico aos pacientes obesos sem contraindicações. Stucky et al.(34) recomendam, inclusive, a utilização de regimes nutricionais hipocalóricos na generalidade dos internados em UTI.

O uso de fatores de atividade/estresse desenvolvidos por Long et al.(35) de forma a introduzir um valor de correção às estimativas da HB devido às condições metabólicas específicas dos pacientes críticos (variando entre 0,7, se o paciente tem fome, até 2,1, se é queimado) é já considerado não fiável a nível prático,(28) até porque diversos parâmetros, alguns ainda não determinados, contribuem para o GE total e variam consoante a globalidade desses parâmetros em uma UTI. Dessa forma, apenas apresentamos o valor de correção da HB à CI, nomeadamente 1,17, como a nossa visão de que, atualmente, apenas é possível indicar um fator de correção a posteriori, sem conhecimento concreto de todas as variáveis que o justificam, e fornecendo apenas um caráter informativo do estado de estresse metabólico geral.

O tipo de admissão não influenciou o GE medido, ressalvando-se que 50,6% dos indivíduos pertenciam a uma só classe (neurocirúrgico). Embora esteja descrito que a sedação diminui o GE real, enquanto que as aminas vasoativas o aumentam,(36) essa associação não se verificou no nosso estudo. Entretanto, não foi usada nenhuma escala de sedação para quantificar o nível de sedação dos pacientes.

Neste estudo também não se verificou a existência de uma relação entre o GE real e a gravidade da doença avaliada pelo SOFA. Por outro lado, o GE real foi significativamente maior nos indivíduos com temperatura >38ºC. Esses achados apoiam as conclusões de Bruder et al.(37) em que a temperatura corporal foi o maior determinante do GE nos indivíduos sedados.

Não podemos deixar de referir as limitações deste estudo, que incluem o fato de ser retrospectivo e de ter sido selecionada uma população não aleatória de pacientes, portanto as conclusões obtidas podem não ser generalizáveis a todos os pacientes críticos. Outra limitação consiste no fato de terem sido consideradas as necessidades energéticas necessárias, e não as efetivamente administradas, podendo existir discrepância considerável.(38)

Sendo a CI reconhecida como método de referência para medição do GE em pacientes críticos ventilados, as limitações que a acompanham induzem à utilização de fórmulas, como a equação de HB e recomendações de sociedades de nutrição, métodos mais comuns para estimar o GE real na prática clínica. Nossos resultados, apesar das suas limitações, confirmam a necessidade de se desenvolver ou melhorar os métodos preditivos de GE mais usados e corroboram para que a CI permaneça como método mais fidedigno de sua determinação.

CONCLUSÃO

A equação de HB não é precisa na determinação do GE, subestimando-o, e apresentando diferenças significativas para predizer, a nível individual, o GE real.

Submetido em 8 de Junho de 2012

Aceito em 30 de Agosto de 2012

Conflitos de interesse: Nenhum.

Estudo realizado no Serviço de Cuidados Intensivos Polivalente I, Centro Hospitalar do Porto - Porto, Portugal.

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  • Autor correspondente:

    Nuno André de Almeida Costa
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2012

    Histórico

    • Recebido
      08 Jun 2012
    • Aceito
      30 Ago 2012
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